Para uma nova interpretação do princípio da superioridade do interesse público sobre o privado

Autora: Giovanna Mayer
Juíza Federal Substituta
Publicado na Edição 21 - 19.12.2007

Sumário: Introdução. 1 Revisitando o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 1.1 A evolução do conceito de interesse público. 1.1.1 Os Conceitos Jurídicos Indeterminados. 1.1.2 O interesse público como exteriorização da vontade individual. 1.2 Considerações sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 1.2.1 Posição tradicional. 1.2.2 Questionamentos acerca da posição tradicional. 1.2.2.1 A ótica dos direitos fundamentais. 1.2.2.2 O princípio da unidade da Constituição. 1.2.2.3 A crítica fundada na teoria dos princípios. 1.2.2.4 A questão do interesse público. 1 2.2.5 O pensamento de MEDAUAR: a ponderação de bens. 1.2.3 A resposta de FÁBIO MEDINA OSÓRIO. 2 Uma síntese necessária: a supremacia do interesse público sobre o privado como um problema no campo das regras. Referências bibliográficas.

Introdução

A moderna teoria do direito constitucional, sempre à procura da maior efetividade aos direitos dos cidadãos, começa a rever certos dogmas que funcionam como fio condutor de todo o seu estudo e prática. Nosso sistema, influenciado fortemente pelo direito público francês, presencia estas mudanças desde a negação da irresponsabilidade do soberano até a fuga da Administração para o direito privado. Não poderia ser diferente, pois a evolução do Direito Constitucional está diretamente ligada às formas de exteriorização do poder e organização do Estado. Deste modo, como a História demonstra constante evolução, influenciando o modo de governar, a teoria do Direito Constitucional começa a rever seus pontos cardeais. Assim como a História, o Direito Constitucional e a sua concretização, que é o Direito Administrativo, estão em constante evolução e não podem apegar-se em dogmas, que inibem seu desenvolvimento.

O Direito Público está fundado em um princípio basilar: o da supremacia do interesse público sobre o privado. Decompondo este princípio, encontram-se duas noções principais: supremacia e interesse público. É ao redor destas duas idéias que se desenvolverá o presente trabalho.

O primeiro questionamento que serve para conduzir todo este estudo é averiguar o que é o interesse público. Ora, se o Direito Público possui prerrogativas para a persecução da finalidade pública, consubstanciada no interesse público, convém definir o que seja este interesse público. No entanto, esta expressão, como será observado, enquadra-se dentro dos conceitos jurídicos indeterminados, que dão margem à competência discricionária, segundo a doutrina mais abalizada. Além disso, demonstrar-se-á que o interesse público não pode ser definido em abstrato: é um conceito atrelado à realidade.

Ainda, se o interesse público é um conceito jurídico indeterminado, cujo real significado deve ser observado em concreto, como sustentar a existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado? A teoria dos princípios tem como um dos seus pilares estruturantes a abstração. Assim, se o conceito de interesse público só pode ser extraído de uma situação concreta, como se explicar o princípio da supremacia? Este é o principal dogma que será revisitado neste estudo, pois, ao que parece, a tendência contemporânea é rejeitar a existência de um princípio da supremacia por vários argumentos que serão aqui analisados, substituindo-o pelo princípio da proporcionalidade.

1 Revisitando o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

A questão do interesse público é uma das maiores discussões que existem no Direito Público. O que é interesse público? Esta é a pergunta que deve acompanhar o estudioso do Direito em toda a sua caminhada, seja na aplicação prática, seja na construção teórica do seu objeto de estudo. É imperioso ressaltar que a conceituação do que seja interesse público não será analisada nesta ocasião. Pretende-se, apenas, analisar o seu conteúdo, de maneira perfunctória, de modo a subsidiar os demais pontos aqui abordados.

O interesse público é a razão de ser do Direito Administrativo,(1) pois a sua função é justamente persegui-lo e concretizá-lo. Assim, necessária é sua identificação. A doutrina costuma identificá-lo ou como a exteriorização do interesse privado, ou a escolha da lei ou a escolha do Estado. É preciso, portanto, traçar alguns limites para que se determine o seu conteúdo.

1.1 A evolução do conceito de interesse público

O primeiro estágio de interesse público é o da alienação total. O homem, quando resolve viver em sociedade, aliena seus direitos em benefício de toda a comunidade, de modo que seus próprios direitos privados ficam mitigados,. Essa é a idéia que ROUSSEAU traz em seu Contrato Social: "...a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a favor de toda a comunidade, porque primeiramente, entregando-se cada qual por inteiro, a 'condição é igual para todos, e, por conseguinte, sendo esta condição idêntica para todos, nenhum tem interesse em fazê-Ia onerosa aos outros".(2)

Percebe-se, portanto, que nesta primeira fase o indivíduo abdica de suas escolhas privadas em prol de uma escolha pública. Mitiga-se, assim, a idéia de esfera privada em detrimento a uma esfera pública. O interesse público possui, portanto, uma conotação totalitária. Em nome da vida em sociedade, mitigariam-se os interesses privados em prol do interesse público.

Em seguida, o conceito de interesse público passa a ser identificado por meio da lei. A lei revela a vontade geral e, via de conseqüência, o interesse público. É a fase do princípio nominalista: interesse público é o que a lei diz que é.(3) O problema em delegar a escolha do interesse público à lei é justamente a indeterminabilidade do seu conceito. A lei, ao prescrever que determinada ação é de interesse público, abre amplo campo para a discricionariedade administrativa, o que não é desejado no direito administrativo.

1.1.1 Os Conceitos Jurídicos Indeterminados

O principal instrumento do operador do Direito é a linguagem. A importância da linguagem para o estudioso do Direito pode ser sentida não só do estudo do seu objeto – a lei – como na análise da argumentação dos que a sustentam ou a refutam. Como bem sustenta Paulo de Barros CARVALHO, há dois tipos de linguagens distintas no que se refere ao Direito: a linguagem do legislador e a linguagem do jurista. Assevera o tributarista que em razão dos Parlamentos serem compostos por pessoas de diversas profissões e segmentos da sociedade é comum a utilização de conceitos vagos para a construção de uma lei. Cabe ao jurista desvendar qual o real significado destas abstrações.(4)

O pensamento desse expoente da PUC-SP revela, na verdade, uma premissa corrente na academia: não cabe ao legislador tecer conceitos justamente porque esta tarefa é objeto da Ciência do Direito e, ainda, 'a utilização de conceitos vagos é salutar, pois permite a abertura do sistema, dinamizando-o.(5) Percebe-se, portanto, que a utilização de expressões como "interesse público", "justiça", "saúde pública" é salutar para a Ciência do Direito. Seria benéfica para o agente público?

A resposta mais coerente é a positiva, pois permite que o agente público exerça seu ônus de persecução da finalidade pública com maiores possibilidades de ação. No entanto, essas expressões não podem ser entendidas como discricionariedade, e sim como subsunção ao princípio da legalidade, pois o administrador deve escolher a solução mais adequada.

O problema não reside no fato de que o administrador público possui vários caminhos para atingir a finalidade legal. Toda a problemática deste estudo centra-se nas hipóteses em que esta finalidade legal não está bem clara, pois é dotada de indeterminabilidade.

O problema em deixar totalmente o preenchimento de uma categoria de interesse público pela lei é justamente abrir margem para um campo de atuação enorme por parte da Administração. A Administração executa a lei e interpreta o que seja interesse público conforme suas conveniências.(6) "O arbítrio, que a construção do princípio da legalidade administrativa intentou afastar, voltou disfarçado".(7) Muitas vezes o interesse público foi confundido com razões de Estado ou mesmo com motivos privados do governante. Daí a importância de se definir, pelo menos minimamente, o conteúdo de um conceito jurídico indeterminado.

1.1.2 O interesse público como exteriorização da vontade individual

Modernamente tem-se conceituado interesse público como a exteriorização coletiva das vontades individuais.(8) A lei que determine alguma medida em favor do interesse público é um veículo do princípio democrático; é o instrumento para que as vontades individuais sejam exteriorizadas e formem o interesse público. Dessa forma, o interesse público não seria uma categoria autônoma,(9) e sim uma qualificação dos interesses privados em razão da quantidade.(10) A diferença entre o interesse público e o interesse privado reside apenas na quantidade e não na qualidade. O interesse público não se sobrepõe ao privado por ser melhor; a primazia possui fundamento no fato de estar em maior quantidade.(11) Assim, não há uma distinção rígida entre interesse público e interesse individual. Os dois conceitos são conexos.(12)

Percebe-se, portanto, que a identificação do interesse público com o interesse privado não retira a carga de indeterminabilidade do conceito de interesse público. Todavia, é possível, por meio desta identificação, iniciar um caminho para delinear o que seja realmente o interesse público. Este caminho consiste em escutar os anseios dos cidadãos e compatibilizá-Ios com a Constituição. Percebe-se, portanto, que a concretização do direito de participação é um caminho para se identificar o que seja o interesse público.

Diante desta conclusão duas questões são importantes: Como definir o que seja interesse público se o campo de exteriorização das vontades individuais é restrito ao período das eleições? Como sustentar a existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado ante a indeterminabilidade do conceito de interesse público? Estas são as duas indagações que nortearão o presente estudo.

1.2 Considerações sobre o princípio da supremacia do direito público sobre o privado

O Direito Público e, especificamente, o Direito Administrativo estão repletos de justificativas para os institutos e decisões tomadas pela Administração Pública fundadas na supremacia do interesse público sobre o privado. Os exemplos mais ordinários são capazes de ilustrar a força que esta idéia possui na vida dos cidadãos: limitações administrativas, desapropriações, poder de polícia, tudo fundado no princípio do interesse público. Tamanha é a importância desta premissa no Direito Administrativo que por muito tempo esteve ausente de críticas e questionamentos, caracterizando um verdadeiro dogma.

No entanto, algumas vozes vêm questionando o princípio do interesse público, tendo em vista algum dos fundamentos do moderno Direito Constitucional: o foco antropocêntrico, a teoria dos princípios e o princípio da proporcionalidade.

É justamente esta passagem do enfoque tradicional para um enfoque moderno que se pretende analisar neste capítulo, iniciando com a análise das posições tradicionais.

1.2.1 Posição tradicional

Os grandes tratadistas do Direito Administrativo, em geral, tratam o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado partindo da constatação da sua existência, sem qualquer explicação do porquê desta escolha pelo sistema. Assim, correta a observação de Celso Antônio Bandeira de MELLO,(13) que o chama como um verdadeiro axioma, ou seja, "premissa considerada verdadeira sem necessidade de demonstração",(14) ou ainda, "o primeiro princípio".(15) Percebe-se, portanto, a força que este "princípio" possui no sistema jurídico brasileiro, a ponto de um dos maiores doutrinadores da atualidade tratá-Io como uma verdade indemonstrável e indiscutível, auto-explicável.

"A utilidade pública prefere sempre à particular": com esta frase Ruy Cirne LIMA dá o tom de toda sua obra clássica e justifica a autonomia científica do Direito Administrativo.(16) Segundo o autor gaúcho, o Direito Administrativo forma-se em torno do princípio da utilidade pública, que é, portanto, um princípio fundamental.(17) Em tom quase poético, define esse princípio:

“Produz o princípio de utilidade pública a formação do Direito Administrativo, como qualquer acidente do terreno pode causar a formação de um cômoro nas praias do mar. É suficiente que uma saliência mínima enrugue o chão liso. Sôbre ela, batidas pelo vento, logo as areias se acumulam e já o acúmulo das primeiras suplanta a saliência primitiva para fazer-lhe as vêzes e deter e acumular as novas areais que o vento tange.”(18)

No entanto, reconhece que não se trata de um princípio jurídico; é um princípio que advém da sociologia, da política e da ciência da administração.(19) Esta negação do princípio da supremacia como um princípio jurídico aparecerá décadas depois no trabalho de outro autor gaúcho, Humberto Bergmann AVILA,(20) o que demonstra a atualidade do pensamento de Cirne LIMA.

De outro lado, DI PIETRO analisa o princípio da supremacia do interesse público ao lado do princípio da legalidade, que são, para a autora, os dois princípios fundamentais do direito administrativo e do direito público.(21) Salienta DI PIETRO que o princípio da supremacia do interesse público ou da finalidade pública dirige-se tanto ao legislador como à autoridade administrativa, vinculando-a. Assim, o princípio estaria presente na formulação da lei e na sua aplicação, sendo que nesta função, sempre o agente público deveria voltar-se para a finalidade pública. Ressalta, por fim, que o princípio do interesse público está positivado no artigo 2°, caput, da Lei de Processo Administrativo Federal.(22)

Realmente, o princípio do interesse público está previsto na Lei 9.784/99. Todavia, aparece ao lado de outros princípios, sem qualquer superioridade que dê o tom de supremacia em relação aos outros princípios. A opção do legislador, portanto, não foi de conceder-lhe um caráter fundamental: o princípio do interesse público aparece ao lado de outros princípios e deve ser compatibilizado com eles.

Segundo FERRAZ e DALLARI, "verdadeiro norte para o direito administrativo, o interesse público não é uma expressão mágica, capaz de justificar todo e qualquer comportamento administrativo. Tampouco é uma palavra oca, destituída de conteúdo, comportando seja lá o que for que se lhe queira inserir”.(23) Dessa forma, o princípio do interesse público aparece na Lei do Processo Administrativo Federal; todavia, sem o traço de princípio fundamental que deseja a renomada professora da Universidade de São Paulo.

É preciso, neste ponto, esclarecer a diferença entre princípios fundamentais e princípios informativos, pois tanto DI PIETRO como Cirne LIMA qualificam o princípio do interesse público como princípios fundamentais. Segundo a lição de NERY JUNIOR, os princípios informativos são aqueles semelhantes aos axiomas, que não precisam de indagações e demonstrações, enquanto os princípios fundamentais seriam "aqueles sobre os quais o sistema jurídico pode fazer opção, considerando aspectos políticos e ideológicos".(24) Percebe-se, no entanto, que estes autores analisam o princípio do interesse público da mesma forma como faz Celso Antônio Bandeira de MELLO, ou seja, como axioma. Assim, deveriam qualificá-Io como princípio informativo e não fundamental.

Celso Antônio Bandeira de MELLO qualifica o princípio da supremacia do interesse público como um axioma, como acima mencionado. Este princípio seria o "pressuposto de uma ordem social estável".(25) Apesar de sustentar que todo o regime jurídico-administrativo gira em torno do princípio da supremacia e do princípio da indisponibilidade do interesse público, o professor da PUC-SP reconhece que o primeiro não é um princípio jurídico, pois advém da Sociologia e da Política e não existe abstratamente, e sim em relação ao direito positivado:

“O princípio cogitado, evidentemente, tem, de direito, apenas a extensão e compostura que a ordem jurídica lhe houver atribuído na Constituição e nas leis com ela consonantes. Donde, jamais caberia invocá-Ia abstratamente, com prescindência do perfil constitucional que lhe haja irrogado, e, como é óbvio, muito menos caberia recorrer a ele contra a Constituição ou as leis. Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e se por este ângulo é que pode ser considerado e invocado?”(26)

Identifica, portanto, Bandeira de MELLO que o princípio da supremacia do interesse público não é um princípio jurídico, pois seu conteúdo é político e sociológico. O ponto nevrálgico do pensamento do jurista é justamente reconhecer a relatividade do princípio da supremacia, ou seja, a sua conformação nos termos desejados pela lei, o que já demonstra um avanço da doutrina.

Carlos Ari SUNDFELD atenua o princípio da supremacia ao mudar seu nome para prioridade do interesse publico.(27) A mudança é pequena, todavia a carga semântica da palavra "prioridade" é menor que a da palavra supremacia. Ressalta o autor que o Direito qualifica o interesse público como mais importante em confronto com os interesses particulares.(28) Percebe-se que o autor avança em relação aos outros doutrinadores ao encarar que há uma prioridade; não uma supremacia a todo custo.

Saindo da seara do Direito Administrativo, Paulo de Barros CARVALHO identifica o princípio da supremacia como implícito, todavia de grande essencialidade para o regime jurídico-administrativo e para o Direito tributário, pois busca coordenar a atividade administrativa com os direitos dos administrados (súditos).(29) Percebe-se, portanto, que tradicionalmente os autores encaram o princípio da supremacia da seguinte forma. Concordam ao classificá-lo (1) como essencial à estrutura do direito administrativo e, em geral, do direito público; (2) como um princípio implícito, que ganha forma nas leis que o prevêem. Discordam ao tentar classificá-lo (1) como um princípio jurídico ou de conteúdo político e social; (2) como axioma ou como princípio fundamental.

1.2.2 Questionamentos acerca da posição tradicional

A questão da supremacia do interesse público sobre o privado foi considerada, durante quase todo século XX, como uma verdade intocável do Direito Administrativo. No entanto, a partir da década de 90 do século passado algumas vozes levantaram-se contra esta verdade, passando a questioná-Ia sobre a ótica dos direitos fundamentais, sobre a visão da teoria dos princípios e sobre a visão da unidade da Constituição.

1.2.2.1 A ótica dos direitos fundamentais

Reconhecendo que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como uma "cláusula geral de restrição dos direitos fundamentais”,(30) Paulo Ricardo SCHIER inicia seu estudo sobre o princípio da supremacia sob a perspectiva dos direitos fundamentais.

Segundo este autor, a nossa Constituição é voltada para a concretização dos direitos privados. Não chega a sustentar, como faz ÁVILA, a supremacia do interesse privado sobre o público,(31) no entanto, alerta para a diretriz que o intérprete da Constituição deve seguir: os direitos fundamentais. A própria Carta escolheu e consagrou vários direitos individuais e privados em detrimento ao interesse público: basta dar uma rápida lida no artigo 5°. "A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição cidadã, justamente pela particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúcia com que define as regras de competência da atividade estatal".(32)

Inicia o autor paranaense com uma interessante observação: só pode ser considerado Constituição o documento comprometido com a proteção dos direitos fundamentais. Assim, "o Estado existe para servir aos indivíduos, e não o indivíduo para servir ao Estado",(33) de modo que toda interpretação da estrutura e dos poderes estatais deve ser dada a partir da ótica dos direitos fundamentais.

Prossegue o autor, colhendo ensinamentos de grandes constitucionalistas, a traçar diretrizes para uma interpretação dos direitos fundamentais. Em poucas palavras, no entendimento dos direitos fundamentais, deve-se levar em conta as seguintes orientações: (1) só poderá haver restrição de direitos fundamentais quando houver expressa autorização constitucional; (2) não há cláusula geral de restrição dos direitos fundamentais; (3) a restrição só pode ocorrer por autorização do Poder Constituinte originário, seja pela própria Constituição, seja por meio de autorizações, contidas na Carta, para que a restrição ocorra por lei; (4) a lei restritiva não pode autorizar atuação discricionária da Administração Pública; (5) a restrição deve ser na medida da sua necessidade, devendo, pois, observar o princípio da proporcionalidade; (6) as leis restritivas devem ser gerais e abstratas; (7) as leis restritivas devem preservar o núcleo essencial do direito fundamental.(34)

Como bem anotado pelo autor, não há uma cláusula geral de restrição, e toda e qualquer restrição aos direitos fundamentais deve ser nos moldes descritos acima. Qualquer princípio que determine a supremacia do interesse público em abstrato violaria toda a construção sobre os direitos fundamentais. Percebe-se, portanto, que os direitos fundamentais não poderiam ser tolhidos sempre em nome do interesse público.(35)

Assim, não poderia haver, na perspectiva dos direitos fundamentais, qualquer restrição imposta em abstrato, configurando uma cláusula geral de restrição. Desta forma, não existiria um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

Na verdade, os interesses públicos e os direitos fundamentais devem ser harmonizados. A harmonização pode decorrer de uma escolha do Constituinte ou do legislador, da aplicação do princípio da proporcionalidade ou da ponderação de bens. Estas três formas de conciliação do interesse público com os direitos fundamentais serão analisados em momento posterior.

Não há mais fundamento para o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado: esta também é a posição de Diogo Figueiredo MOREIRA NETO, que sustenta a ausência de fundamento para este princípio tendo em vista a importância que os direitos fundamentais exercem no ordenamento jurídico.(36) Assim, haveria a procedência dos direitos fundamentais, que, às vezes, seria mitigada pelo interesse público. Esta mitigação residiria em escolha do legislador, de modo que a dita "supremacia do interesse público" seria um problema do princípio da legalidade.(37)

É claro que pelo princípio da unidade da Constituição esta posição que prega pela procedência dos direitos fundamentais não pode prosperar. No entanto, a posição de MOREIRA NETO é importante, pois revela a mudança na perspectiva entre os administrativistas modernos.

Outro argumento que derruba o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é a interpretação a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, que é erigido pela Constituição como diretriz de toda a interpretação constitucional. Como observa Tereza NEGREIROS, uma vez escolhido o princípio da dignidade da pessoa humana como fio condutor da hermenêutica constitucional, cai por terra toda e qualquer referência sobre a prevalência do interesse público sobre o privado.(38) Assim, tendo em vista a opção antropocêntrica de nossa Constituição, não há como sustentar uma oposição entre interesse público e interesse privado, não podendo, ainda, existir a resolução de conflitos privilegiando, de início, um ou outro interesse. É preciso avaliar, no caso concreto, qual solução atenderá de forma mais ampla o princípio da dignidade da pessoa humana:(39)

“A funcionalização axiológica da dignidade da pessoa humana, portanto, não pode servir a teses que, de um lado, defendam a supremacia do interesse dito individual sobre o público já que não mais se trata de proteger o indivíduo em si mesmo, nem que, de outro, invoquem este valor como fundamento para uma invariável sobreposição do interesse dito público sobre o privado.”(40)

Quando a Constituição elege o princípio da dignidade da pessoa humana como eixo central de toda sua construção, derruba o argumento que o interesse público deve prevalecer sempre ante os direitos fundamentais. Na verdade, por este novo marco interpretativo, o Texto prefere as soluções que privilegiem a emancipação e a dignidade do ser humano, independentemente de serem interesses públicos ou privados. Este é a baliza que devem perseguir os aplicadores do Direito.

1.2.2.2 O princípio da unidade da Constituição

Desenvolveu-se acima a idéia que não há supremacia entre interesse público ou interesses privados. São duas ordens de interesses que coexistem, sem que haja supremacia de um sobre o outro. Além do motivo exposto por Teresa NEGREIROS (princípio da dignidade da pessoa humana), outro argumento que derruba a idéia de superioridade do interesse público é a idéia de unidade da Constituição, que nada mais é do que a constatação de que as normas contidas no Texto não possuem hierarquia, não existindo, portanto, antinomias constitucionais ou normas constitucionais inconstitucionais.(41) Sob esta perspectiva, pode-se dizer que o interesse público e o interesse privado se equivalem, de modo que, de início, "os interesses públicos não são superiores aos privados", tampouco "os interesses privados não são superiores aos públicos".(42) O que pode ocorrer é a opção prévia da prevalência de um sobre o outro. Quando isto ocorre, há expressa menção na Constituição, sob pena de quebrar-se o princípio da unidade. Nos demais casos, há colisão de interesses, devendo ser resolvido pela ponderação de interesses ou pelo princípio da proporcionalidade. Sem o princípio da unidade da Constituição não poderia haver a harmonia entre as diferentes forças que formaram a Carta. Em razão da unidade da Constituição, o intérprete deve procurar solucionar, da maneira mais harmoniosa possível, as tensões que existem no Texto Constitucional:

“É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-Ia guiado pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior.”(43)

Se no campo das regras não há antinomias, na seara dos princípios também não há: as tensões são resolvidas no campo da ponderação de bens e do princípio da proporcionalidade, ou seja, em concreto. Assim, não pode haver, pelo princípio da unidade da Constituição, qualquer solução que imponha a superioridade de um bem ou interesse, em abstrato, em desfavor de outro.

Portanto, não há abstratamente um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, pois não pode haver uma cláusula geral de restrição dos direitos fundamentais, tampouco uma interpretação que quebre a unidade da Constituição. A preponderância de um sobre o outro ocorrerá apenas nas seguintes hipóteses: escolha pelo Constituinte; escolha pelo legislador, desde que autorizado pela Carta; escolha pelo magistrado, no momento de aplicar a lei e o princípio da proporcionalidade; escolha pelo Administrador Público, no momento de elaborar um ato administrativo, respeitado, é claro, o princípio da proporcionalidade.

1.2.2.3 A crítica fundada na teoria dos princípios

A partir da indagação se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado pode ser considerado norma-princípio no ordenamento jurídico brasileiro e, ainda, a partir do questionamento se este princípio pode ser considerado um postulado normativo, ou seja, uma condição para a explicação do Direito Administrativo, Humberto Bergmann ÁVILA lança uma nova visão sobre o regime jurídico-administrativo, dando ensejo a novos pilares desse regime.(44)

Primeiramente, convém destacar que é assente na doutrina que as normas jurídicas dividem-se em regras e em princípios.(45) Coexistem, portanto, no sistema jurídico.

O sistema jurídico é um sistema de regras e princípios. Assim se subdividem as normas. Adotando os critérios colecionados por CANOTILHO, pode-se distinguir as regras dos princípios em razão (1) do grau de abstração, visto que os princípios são normas mais abstratas, enquanto as regras são mais concretas; (2) do grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto, pois os princípios precisam de algo ou alguém que os concretizem, enquanto as regras são auto-aplicáveis; (3) do caráter de fundamentalidade no sistema de fontes de direitos, uma vez que os princípios têm uma elevada posição no sistema de fontes jurídicas; (4) da proximidade da idéia de direito, haja vista que os princípios externam mais facilmente a idéia de justiça, enquanto as regras nem sempre apresentam esta qualidade; (5) da natureza normogenética, pois os princípios fundamentam as regras; (6) do critério utilizado para solução de conflitos, pois as regras utilizam o critério do tudo-ou-nada, enquanto os princípios utilizam a ponderação.(46)

É justamente porque não se admite as antinomias jurídicas impróprias, ou seja, a aplicação da regra do tudo-ou-nada ao princípios,(47) que não se pode admitir a prevalência de um princípio sobre o outro em abstrato. A colisão entre princípios é resolvida dentro da dimensão peso, de modo que "armam-se diversos jogos de princípios, de sorte que diversas soluções e decisões, em diversos casos, podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a recusando".(48) A ponderação de interesses é, portanto, o método para a resolução de conflitos entre princípios.

Partindo da análise das várias acepções do vocábulo "princípio", quais sejam, axioma, postulado e norma,(49) AVILA esclarece que a norma-princípio não permite um juízo de prevalência a priori. Assim, uma vez que em sua própria denominação já há tal juízo de prevalência – "supremacia" –, dito princípio não seria uma norma-princípio.(50) Assim, é justamente por ceifar toda a possibilidade de ponderação que o autor refuta que o princípio da supremacia seja realmente um princípio.(51)

Ainda, com a consolidação do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro, segundo ÁVILA, é impossível estabelecer esta supremacia em abstrato, sem obediência à proporcionalidade.(52) Desta forma, o interesse público pode preponderar sobre o privado, mas não sempre; é preciso, antes, passar pelo crivo da proporcionalidade.(53)

Analisando o segundo questionamento – se o princípio da supremacia é estruturante do Direito Administrativo – o autor sustenta que a supremacia do interesse público só pode ser conferida no caso concreto. Assim como os interesses privados, os interesses públicos necessitam de ponderação, existindo, portanto, “regras condicionais concretas de prevalência".(54)

Realmente, esta tese de ÁVILA merece todo o respeito, pois não só demonstra que, pela nova ordem constitucional, os interesses individuais estão em destaque, o que por si só, acabaria com o regime jurídico-administrativo, como também, dá a solução para a reestruturação deste regime do direito público, através da aplicação do princípio da proporcionalidade. Assim, o princípio da supremacia não seria um princípio jurídico, mas sim um princípio ético-político. Ressalte-se que tanto LIMA como MELLO já haviam identificado que, materialmente, o princípio da supremacia não era um princípio jurídico. A tese de ÁVILA é inovadora justamente em razão de ressaltar que mesmo formalmente o princípio da supremacia não é um princípio jurídico, trazendo elementos que comprovam juridicamente a sua idéia.

1.2.2.4 A questão do interesse público

Contribui para a ausência de normatividade do "princípio" a falta de determinabilidade do que seja interesse público, como já visto anteriormente. Assim, não se pode avaliar o que seja interesse público em abstrato. Tanto é que Bandeira de MELLO, adotando o princípio nominalista, assevera que o interesse público consiste na "solução que haja sido adotada pela Constituição ou pelas leis quando editadas em consonância com as diretrizes da Lei Maior".(55) Ora, se não é possível avaliar, em abstrato, o que seja interesse público, não é possível dar um caráter princípio lógico à supremacia.

Outro problema enfrentado por ÁVILA, que derruba a tese da existência de um princípio do interesse público, é a indissociabilidade dos interesses público e privado.(56) A respeito disto, outro autor gaúcho demonstrou, por meio de uma digressão histórica, que desde Atenas a civilização é individualista, existindo, sempre, na escolhas públicas, um "processo contínuo de sacralização da órbita privada".(57) Assim, demonstra que há uma indissociabilidade do que seja público e do que se entenda por privado.

Desta forma, interesses público e privado fariam parte de um mesmo todo, em que as vontades particulares, unidas, dariam ensejo à vontade pública. Assim, o interesse público não é uma vontade autônoma; é apenas a união das vontades particulares. Ocorre que, às vezes, o interesse particular pode chocar-se com o interesse público. Quando isto ocorre, há uma colisão de interesses se o legislador não optou, de antemão, pela prevalência de um sobre o outro. Pela prática tradicional, caso não houvesse previsão legal para o problema, prevaleceria o interesse público. No entanto, como se demonstrou acima, não há consenso sobre o que seja o interesse público abstratamente. Assim, deveria haver um exame do caso concreto para verificar qual interesse deveria preponderar. Só haverá, portanto, definição do que seja realmente o interesse público diante de uma situação concreta.

1.2.2.5 O pensamento de MEDAUAR: a ponderação de bens

Antes destes novos expoentes do Direito Público chamarem a atenção para o problema da supremacia do interesse público sobre o privado, uma grande autora era uma voz única dentre os administrativistas. Já em 1992, MEDAUAR prezava pela superação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, aplicando a ponderação de interesses, tendo em vista a inexistência de um interesse público e de um interesse privado:(58)

“A sociedade contemporânea é uma sociedade pluralista. A dicotomia interesse público-privado não mais se mostra suficiente para resumir o problema dos fins da Administração Pública. Ao lado do interesse público e dos interesses privados concorrem agora novas categorias de interesses que a formulação original da idéia de supremacia do interesse público ignorava por completo: os interesses coletivos, difusos e sociais.”(59)

O que ocorre é o confronto de vários interesses, que não podem ser sacrificados, a priori, em nome do interesse público. Deve haver sempre um juízo de ponderação.

1.2.3 A resposta de Fábio Medina OSÓRIO

O debate suscitado por ÁVILA não teve apenas adeptos da sua tese. Além da doutrina tradicional, que continua a prezar pela existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, sem prestar muita atenção ao trabalho inovador, há quem faça um contraponto explícito ao seu pensamento, como é o caso de Fábio Medina OSÓRIO, que, a despeito de prezar pela ponderação, sustenta existir uma norma-princípio da supremacia.

Esclarece este autor que a doutrina não costuma identificar o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como absoluto e desrespeitador dos direitos humanos.(60) Estaria aí o equívoco da obra de ÁVILA. Em seguida, reconhece que a Constituição Federal dá ensejo à existência implícita de um princípio da supremacia, pois as vantagens que a Administração Pública possui existem para a persecução da finalidade pública e, ainda, a existência de bens públicos que prezam por uma proteção estatal revelam a superioridade do interesse público sobre o particular.(61) "A superioridade do interesse público sobre o privado, considerada internamente na ação administrativa, é uma norma constitucional implícita, que decorre da leitura teleológica e sistemática do conjunto de normas constitucionais que vinculam a Administração Pública".(62)

Ao contrário de ÁVILA, OSÓRIO justifica as "vantagens" da Administração Pública no princípio da supremacia e não como decorrência do princípio da legalidade, como o faz seu conterrâneo. Na verdade, o interesse público está ligado intimamente com o princípio da eficácia, ou seja, o legislador poderia retirar as prerrogativas do Poder Público, pois possui legitimidade para tanto, no entanto, a retirada das prerrogativas iria de encontro ao princípio da eficácia".(63)

OSÓRIO conclui que a supremacia do interesse público poderia ser um princípio ou uma regra, implícitos no sistema, que vincula o Administrador e o Legislador, constituindo uma garantia para o cidadão.(64)

2 Uma síntese necessária: a supremacia do interesse público sobre o privado como um problema no campo das regras

Após a revisão de literatura, que proporcionou um verdadeiro debate entre a posição tradicional e a posição moderna, com direito à palavra final dos tradicionalistas, faz-se mister reconhecer que é impossível se dar por acabada a discussão.

O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado parece não ser um princípio, tendo em vista que os princípios não possuem um juízo de prevalência abstratamente. Assim, não poderia haver um princípio que impusesse a sua predominância quando em choque com outro princípio. Convém ainda ressaltar que a Constituição consagra inúmeros direitos individuais e vários direitos de índole pública. Ora, não há hierarquia entre as normas constitucionais, de modo que é impossível se extrair, do Texto Fundamental, uma interpretação que dê ensejo a supremacia dos interesses públicos sobre os particulares, sob pena de quebra da necessária unidade da Constituição. Por outro lado, também não correta a posição que adota a ótica dos direitos fundamentais prevalecendo sobre o interesse público, pois é preciso que haja respeito ao princípio da unidade da Constituição.

De outro lado, parece inegável que o sistema aponta para a existência de várias normas que preferem o interesse público ao particular, como é o caso da desapropriação, da autotutela e de outras prerrogativas da Administração Pública.

Se acolhida a inexistência de um princípio constitucional da supremacia do interesse público sobre o privado, como ficariam estes institutos?

Quando se sustenta a inexistência de um princípio constitucional ou ainda, mais genericamente, de um princípio não se está a negar a existência de regras que poderiam ter o conteúdo do princípio. É sabido que as normas se dividem em regras e em princípios, conforme visto anteriormente. Assim, dizer que inexiste um princípio da supremacia não significa esvaziar o significado de toda e qualquer norma que determine a preponderância do interesse público sobre o privado. Isto porque existem as regras.

Justificar vários institutos do direito público com base em uma forçada admissão de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, capaz de justificar toda e qualquer ação do Poder Público, de modo a aceitá-Io como axioma ou princípio implícito, sem qualquer investigação sobre a sua real natureza, é uma atitude que não pode ser aceita dentre os investigadores do Direito. Pelos argumentos tecidos acima, percebe-se quão frágil é esta construção forçada. No entanto, em nenhum momento sustentou-se que a preponderância casuística do interesse público sobre interesse particular não poderia existir. Entra-se, portanto, na seara das regras.

A partir do momento em que se reconhece que a supremacia do interesse público sobre o privado é uma opção do Constituinte ou do legislador, caso a caso, podem ser justificadas as regras que determinam a prevalência do interesse público.

Na verdade, como dito por Celso Antônio Bandeira de MELLO, as prerrogativas da Administração Pública só existem porque há o dever-poder de alcançar a finalidade pública.(65) Assim, a prevalência do interesse público sobre o privado decorre' da necessidade de se atingir um alvo determinado. Só podem ser justificados institutos como a desapropriação e a auto-executoriedade. As regras que determinam a preponderância do interesse público são regras que existem para a consecução de um fim; não bastam em si mesmas. CANOTILHO classifica as regras em dois grandes grupos: as regras jurídico-organizatórias e as regras jurídico-materiais. As primeiras dividem-se em regras de competência, regras de criação de órgãos e regras de procedimento. As últimas dividem-se em regras de direitos fundamentais, regras de garantias institucionais, regras impositivas do dever de legislar e regras determinadoras de fins e tarefas do Estado. É neste último grupo (determinadoras de fins e tarefas do Estado) que podem ser inseridas as regras que tutelam o interesse público em detrimento ao interesse privado, pois são "preceitos constitucionais que, de uma forma global e abstrata, fixam essencialmente os fins e as tarefas prioritárias do Estado". Ora, o fim e as prioridades do Estado poderão ser alcançados, se necessário, por meio de medidas que mitiguem o interesse particular.

Sendo um problema de regra, a prevalência ocasional do interesse público sobre o privado deve respeitar um princípio: o princípio da proporcionalidade. Assim, toda e qualquer ação legislativa deve ser feita observando o princípio da proporcionalidade, de modo a não sacrificar demais um interesse particular se não houver necessidade para tanto.

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Notas:

1. ESCOLA, H. J. EI interés público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989. p. 236.

2. ROUSSEAU, J.J. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 31.

3. MEDAUAR, O. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Malheiros, 1992.

4. CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 3 - 6.

5. FERRAZ, S.; DALLARI, A. A. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. p.19.

6. MEDAUAR, o direito.... p. 180.

7. BAPTISTA, P. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 197.

8. MELLO, C. A. B. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 58.

9. Ibid., p.57.

10. ESCOLA, op. cit., p. 242.

11. "Conforme con lo dicho, el interés público no es más que un querer mayoritario orientado a la obtención de valores pretendidos, esto es, una mayoría de interesses individuales coincidentes, que es interés porque se orienta al logro de un valor, provecho o utilidad resultante de aquello sobre lo que recae tal coincidencia mayoritaria, y que es público que se asigna a toda la comunidad, como resultado de esa mayoria coincidente". ESCOLA, op. cit., p. 240.

12. Para efeitos deste estudo, desconsiderou-se a crítica oriunda de CAPELLETTI sobre a dicotomia público X privado. O processualista italiano, assim como a maioria da doutrina contemporânea, entende que esta dicotomia está superada pela existência de direitos difusos, coletivos e individuais. A inexistência da adoção da terminologia de CAPELLETI ocorre porque o sentido que se dará a este estudo é analisar a posição da Administração e questão do interesse público como fundamento das suas ações. Sobre os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos: MAZZILl, H. N. A defesa dos interesses difusos em juízo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 6.

13. MELLO, Curso..., p. 30.

14. AXIOMA. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 48.

15. AXIOMA. In: RUSS, J. Dicionário de filosofia. Trad. Alberto Alonso Murioz. São Paulo:

Scipione, 1994. p. 24

16. LIMA, R. C. Princípios do direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 15 - 18.

17. Ibid., p. 15.

18. Ibid, p. 17.

19. Ibid., p. 16

20. AVILA, H. B. Repensando o "Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". In: SARLET, I. W. (Org.) O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 99 –127.

21. DI PIETRO, M. S. Z. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 67.

22. Ibid., p. 70.

23. FERRAZ, S; DALLARI, A. A. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 76.

24. NERY JR, N. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 35. Percebe-se, portanto, que a terminologia abarcada pelo processualista difere da utilizada por CANOTILHO, que classifica os princípios como fundamentais, conformadores, impositivos e garantia. No entanto, optou-se pela classificação de NERY JUNIOR por envolver o binômio axioma-opção. CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, [1990?]. p. 1128 - 1130.

25. MELLO, Curso...., p. 30.

26. MELLO, Curso..., p. 30

27. SUNDFELD, C. A. Fundamentos do direito público. 4. ed; 3 tir. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 154. Importante ressaltar que, dentre os administrativistas que possuem uma posição tradicional, deve ser incluída Lucia Vale FIGUEIREDO que chega a sustentar que a prevalência do interesse público sobre o privado é um problema de lógica. Há jovens administrativistas que também compactuam com a posição tradicional. Exemplo é o trabalho de Mateus BERTONCINI, que enumera o princípio da supremacia como condição para que o Estado desempenhe suas funções, classificando-o como princípio expresso infraconstitucional, em razão da lei de processo administrativo federal) e princípio geral do direito público. Ainda, em artigo sobre o princípio da supremacia, Dora RAMOS enaltece a existência do princípio da supremacia, como decorrência do princípio da legalidade. FIGUEIREDO; L. V. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 23. BERTONCINI, M. E. S. N. Princípios de direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 183-185. RAMOS, D. M. O. Princípios da administração pública: a supremacia do interesse público sobre o interesse particular. A&C: Revista de direito administrativo e constitucional, Curitiba, v.1, p. 103.

28. MELLO, Curso..., p. 154.

29. CARVALHO, op. cit., p. 113.

30. SCHIER, P. R. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. Disponível em: Acesso em: 09 jan. 2004.

31. AVILA, op. cit., p. 109.

32. Id.

33. SCHIER, op. cit.

34. Ibid.

35. Note-se que a mera possibilidade de uma cláusula geral de restrição vai de encontro à gênese dos direitos fundamentais, que foram criados para proteger os súditos perante o Estado. Assim, uma cláusula geral de restrição iria contra a própria função primária dos direitos fundamentais.

36. MOREIRA NETO, D. F. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 86.

37. Id. Em outra obra, MOREIRA NETO sintetiza bem o seu pensamento: "Desde logo, a supremacia não seria do Estado, uma vez que a prelazia de um instrumento não poderia sacrificar a substância do direito fundamental. Tampouco seria uma supremacia, por definição, do interesse público In genere sobre quaisquer outros, pois os direitos fundamentais, por serem conaturais ao homem e às suas intangíveis personalidade e dignidade, precedem a quaisquer outros; só admitindo a aplicação ponderada: a que maximize o atendimento de todos os interesses em conflito". MOREIRA NETO, D. F. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 231, p. 129-156, jan./mar. 2003. p. 142.

38. NEGREIROS, T. Dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: TORRES, R. L. (Org.) Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 362.

39. NEGREIROS, op. cit., p. 363-364.

40. Ibid., p. 366-367.

41. CANOTILHO, op. cit., p. 1147.

42. SCHIER, op. cit.

43. SCHIER, op. cit.

44. AVILA, op. cit.

45. DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39.

46. CANOTILHO, op. cit. p. 1124-1125.

47. GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 100.

48. AVILA, op. cit, p. 101

49. Ibid, p. 102 – 106.

50. Ibid, p. 107.

51. Ibid, p. 108.

52. Ibid, p. 112.

53. Ibid, p. 115.

54. Ibid, p. 126

55. MELLO, Curso...,p. 66.

56. ÁVILA, op. cit., p. 111.

57. PASQUALlNI, A. O público e o privado. In: SARLET, I. W (Org). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999., p. 34.

58. MEDAUAR, O direito administrativo..., p. 183. MEDAUAR, O. Direito administrativo moderno. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. .157. No mesmo sentido: MÔREIRA NETO, Novos institutos..., p. 142.

59. BAPTISTA, op. cit. p.198. A autora é partidária das idéias de ÁVILA e MEDAUAR, propondo em sua dissertação de mestrado a solução da ponderação de interesses quando o legislador não tiver feito a escolha sobre qual interesse preponderará em determinada situação, bem como no momento em que se depara com conceitos jurídicos indeterminados.

60. OSÓRIO, F. M. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito brasileiro? Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 770, p. 53-92, dez. 1999. p. 65. Em outra passagem, há síntese do pensamento do autor a respeito da inexistência de um princípio absoluto da supremacia: "Ninguém sustenta um princípio da prevalência do interesse público sobre o privado ao arrepio da razoabilidade e proporcionalidade que devem orientar as ações administrativas e legislativas". OSÓRIO, op. cit., p. 68.

61. OSÓRIO, op. cit. p. 72.

62. Ibid., p. 74.

63. Ibid., p. 74.

64. Ibid., p. 90.

65. MELLO, Curso..., p. 68.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2007. Disponível em:
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