Sumário: Introdução. 1 Ética. 1.1 Bioética. 2 A Bioética e o Direito. 3 Genoma humano. 4 Clonagem. 4.1 A clonagem de seres humanos. 5 Células-tronco. 6 Gravidez de substituição. 7 Sêmen. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
Vivemos numa era de grandes avanços, na qual em poucos meses a ciência se renova e se redescobre. As informações viajam pelo tempo e pelo espaço em fração de segundo e a novidade torna-se obsoleta quase que imediatamente.
Muitos são os avanços na área da ciência, da biologia e da medicina, e a ocorrência se dá de forma tão veloz e intensa que gera dificuldades de adaptação da sociedade a tantas inovações.
É certo que muitas dessas inovações e descobertas vão além da ciência, da biologia ou da medicina, extrapolando fronteiras sociais, religiosas, filosóficas e ideológicas, gerando discussões acerca da sua aplicabilidade ou viabilidade.
Questões éticas vêm à tona, trazendo em seu bojo valores morais, sociais e religiosos. As discussões científicas não ficam mais nos bancos acadêmicos ou em questões meramente técnicas, sendo assunto de discussão da massa de pessoas da nossa sociedade.
Nessa mesma direção estão as questões legais e jurídicas que envolvem essas descobertas. É certo que a lei jamais se antecede às mudanças sociais; ao revés, essas mudanças é que geram as alterações legislativas. Na maioria das vezes, essas alterações refletem os valores éticos e morais de um povo.
Contudo, certas questões pontuais geram discussões aparentemente intransponíveis. Porém, para que a humanidade possa utilizar a ciência em seu benefício, como no caso da cura e da prevenção de doenças, é necessário que essas questões sejam enfrentadas.
Com efeito, o direito não pode ficar alheio a tais fatos, muito menos adiar o enfrentamento dessas discussões, posto que a cada dia a ciência avança em direção a curas, prevenções, descobertas extremamente benéficas à humanidade, não havendo explicação lógica para que barreiras legais impeçam o seu desenvolvimento.
Entretanto, sem um amparo legislativo há o risco de cruzarmos uma linha muito tênue que separa o ético e o não-ético, o certo e o errado, o bom e o ruim, o bem e o mal. Parâmetros devem ser traçados, mas, para que isso seja feito, há a necessidade de que o direito se funda a outras ciências. A exemplo disso, temos novos ramos do direito surgindo, como o biodireito.
Nessa seara, trataremos adiante a respeito de temas relevantes ao biodireito, abordando questões de ética e bioética, genoma humano, células-tronco, reprodução assistida, clonagem, doação de órgãos, dentre outras questões de extrema relevância na atualidade.
Certamente, tais assuntos são de grande relevância jurídica e social, e a sua discussão se faz necessária para que possamos usufruir a ciência, respeitando valores éticos e traçando limites legais às pesquisas científicas, sem, contudo, bloquearmos seu desenvolvimento.
1 Ética
O termo ética, do grego éthos, foi criado por Aristóteles e, segundo o filósofo, expressa um modo-de-ser, uma atitude psíquica, aquilo que o homem traz dentro de si na sua relação consigo, com o outro e com o mundo. Indica as disposições do ser humano perante a vida. Ser ético é muito mais do que um problema de costumes, de normas práticas. Supõe a boa conduta das ações, a felicidade pela ação feita e o prêmio ou a beatitude da alegria da auto-aprovação diante do bem-feito.(1)
Podemos definir ética, em sentido amplo, como sendo o conjunto de valores morais e princípios que devem pautar a conduta humana. Nas palavras de Matilde Carone Slaibi Conti, “Ética é o estudo do comportamento do homem em sociedade. É o combustível que abastece a sobrevivência humana no planeta, como senso da dignidade e da responsabilidade uns com os outros”.(2)
Temos, portanto, que a ética está presente em todos os setores do relacionamento humano, seja profissional, seja interpessoal, seja religioso. As condutas humanas, em última análise, são sempre analisadas sob a ótica da moral, sendo fruto do convívio em sociedade.
Nos últimos tempos, porém, estão muito em voga discussões concernentes a valores éticos e religiosos aplicados à ciência, mais especificamente à genética. Temas como pesquisas com células-tronco, clonagem humana, reprodução assistida, transplante de órgãos, dentre outros, saem do âmbito dos laboratórios de pesquisas e atingem a sociedade, fomentando discussões em torno do assunto.
Surge no contexto a genética humana, que “é a ciência que estuda as particularidades e diferenças humanas”,(3) levando a humanidade a questionar a sua validade em contraposição a valores sociais e morais.
A partir daí, o binômio ética e genética torna-se assunto polêmico e debatido em todos os setores da sociedade, transcendendo os laboratórios e os estudos acadêmicos. Desde discussões acerca dos valores morais em torno dessas pesquisas até questões de cunho religioso são levantadas e debatidas em todas as esferas sociais.
Questionam-se valores não apenas científicos, mas religiosos e morais, envolvendo não apenas a ciência, mas as crenças e os princípios em que se pauta a humanidade.
1.1 Bioética
A palavra “bioética” surgiu da necessidade de se definir a ética em relação às ciências da vida. Podemos conceituar bioética como “estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular”.(4)
O termo foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos, pelo cientista Van Rensselaer Potter, da Universidade de Winsconsin, em artigo intitulado “Bioética: uma ponte para o futuro”, em janeiro de 1970. No artigo, o cientista defendia a necessidade de se inserirem valores éticos nos estudos das ciências biológicas.(5)
“Nem o próprio Van Rensselaer Potter poderia imaginar a velocidade como as coisas transcorreriam. É oportuno mencionar que sua visão original da Bioética focalizava-se como uma questão de compromisso mais global frente ao equilíbrio e preservação da relação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta, diferente daquela que acabou difundindo-se e sedimentando-se nos meios científicos a partir da publicação do livro The Principles of Bioethics, escrito por Beauchamp e Childress, em 1979.”(6)
Podemos conceituar a bioética como “um ramo da filosofia, mais especificamente da ética aplicada, e pode ser definida como o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo uma visão moral, decisões, condutas e políticas – das ciências da vida e cuidados da saúde, empregando uma variedade de metodologias éticas em um ambiente multidisciplinar”.(7)
Em relação à aplicação da ética na medicina, temos que há séculos o juramento médico foi criado por Hipócrates. Porém, a ética e a medicina apenas se uniram em 1803, quando o médico inglês Thomas Percival criou o primeiro código de ética médica, que foi adotado pela Associação Médica Americana, em 1847, tornando a medicina a primeira profissão a ser regulamentada de acordo com um código de ética.
No início do século XX, a descoberta da penicilina, dentre outros meios terapêuticos, ampliou a possibilidade de tratamentos médicos para doenças antes incuráveis ou fatais. Porém, na segunda metade desse século, as pesquisas acerca das possibilidades de evitar ou curar doenças se intensificaram, dando início a pesquisas que utilizariam seres humanos como objeto de experimentação.
Esses eventos originaram discussões no âmbito religioso e moral, dentre outros, gerando a necessidade de se desenvolver uma ética para pautar tais relações. Surgem, então, estudos acerca da bioética, numa tentativa de se introduzirem valores que vão além da ciência nas pesquisas médicas.
Nessa seara, são desenvolvidos quatro princípios basilares, externados por Beauchamp e Childress, em obra intitulada “Princípios Éticos da Biomedicina”, com o intuito de criar uma margem ética dentro do campo das pesquisas. Tais princípios são o princípio do respeito à autonomia, o princípio da não-maleficência, o princípio da beneficência e o princípio da justiça.
“A bioética, como reflexão de caráter transdisciplinar, focalizada prioritariamente no fenômeno vida humana ligada aos grandes avanços da tecnologia, das ciências biomédicas e do cuidado à saúde de todas as pessoas que dela precisam, independentemente de sua condição social, é, hoje, objeto de atenção e diálogo nos mais diversos âmbitos. O pluralismo ético ou a diversidade de valores morais dominantes, inclusive nas pessoas de um mesmo país, e o Brasil é exemplo típico de diversidade axiológica, torna difícil a busca de soluções harmônicas e generalizadas no que se refere a problemas sobre doação de órgãos, transplantes, laqueadura de trompas, aborto, decisões sobre o momento oportuno da morte e tantos outros. O pluralismo ético dominante e a necessidade de uma teoria acessível e prática para a solução de conflitos de caráter ético fez desabrochar o principialismo como ensinamento e método mais difundido e aceito para o estudo e solução dos problemas éticos de caráter biomédico. O principialismo, de acordo com a versão mais conhecida, que é a de Beauchamp e Childress, em sua obra Principles of Biomedical Ethics, apresenta quatro princípios ou modelos basilares: o princípio do respeito à autonomia, o princípio da não-maleficência, o princípio da beneficência e o princípio da justiça”.(8)
Portanto, vimos que a ética médica conta com mais de dois séculos de existência codificada, em que pese contar com milênios de existência, e, certamente, será muito beneficiada pela bioética, ramo de estudo intimamente ligado à medicina, por desenvolver princípios para as pesquisas em relação à preservação da vida.
2 A Bioética e o Direito
A Constituição Federal é a norma suprema que deve pautar todas as relações jurídicas, sejam as previstas abstratamente no ordenamento jurídico, sejam as que ocorram concretamente no mundo fático. Partindo dessa assertiva, podemos destacar que os princípios constitucionais devem ser aplicados em todas as relações jurídicas.
Os princípios constitucionais são vetores, que auxiliam na interpretação do ordenamento jurídico, podendo ser explícitos (expressos) ou implícitos (tácitos). Dentre muitos princípios constitucionais, explícitos e implícitos, identificamos um dos mais importantes como sendo o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, II, da Constituição Federal.
Temos, portanto, a distinção entre o que seja estimativo e o que seja pecuniário, sendo certo que o que se vincula à dignidade humana é inestimável em valor monetário, não podendo ser objeto de troca.(9)
Nas palavras de Immanuel Kant:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez de qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.”(10)
Daí podemos extrair que os princípios geram ao menos três efeitos:
1. Imposição permanente ao legislador, para que o densifique com os conteúdos prevalecentes em cada época, mediante normas infraconstitucionais (eficácia positiva);
2. Conformação fundamental das normas infraconstitucionais, que devem ser aplicadas e interpretadas a partir e segundo o princípio constitucional (eficácia positiva);
3. Compatibilização limitante das normas infraconstitucionais, que não podem com o princípio colidirem, sob pena de inconstitucionalidade ou de revogação (eficácia negativa).(11)
Partindo dessas assertivas, podemos traçar uma linha entre a bioética e o direito, ou, na nomenclatura moderna, o biodireito.
A nossa legislação ainda é carecedora de normas legislativas que contemplem o tema. Mesmo o atual Código Civil nasceu defasado em relação a aspectos práticos e teóricos envolvendo o biodireito, não enfrentando temas como células-tronco, reprodução assistida, doação de sêmen e óvulos, gravidez de substituição, dentre muitos outros.
Enfrentaremos, a seguir, alguns desses aspectos, sem a pretensão de esgotar o tema.
3 Genoma humano
O genoma – conjunto de genes de uma espécie – está contido na área da ciência denominada genética, que é responsável pelo estudo de reprodução, herança, variação e aspectos relacionados à descendência.
O Projeto Genoma Humano (PGH) constitui consórcio público internacional, iniciado formalmente em 1990 e projetado inicialmente para durar 15 anos, do qual participam cientistas do mundo inteiro, inclusive do Brasil, sendo liderado pelos Estados Unidos e pela Grã-Betanha.
O objetivo é mapear todos os genes da espécie humana, com os seguintes objetivos na área da saúde: a melhoria e a simplificação dos métodos de diagnóstico de doenças genéticas, a otimização das terapêuticas dessas doenças e a prevenção de doenças multifatoriais.
Basicamente, 18 países iniciaram programas de pesquisas sobre o genoma humano. Os maiores programas desenvolvem-se na Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia, Dinamarca, Estados Unidos, França, Holanda, Israel, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Suécia e União Européia.
Para explicar o genoma humano, nos socorremos das palavras de Sérgio Danilo J. Pena e Elaine S. Azevêdo, conforme seguem:
“O genoma humano consiste de 3 bilhões de pares de base de DNA distribuídos em 23 pares de cromossomos e contendo de 70.000 a 100.000 genes. Cada cromossomo é constituído por uma única e muito longa molécula de DNA, a qual, por sua vez, é o constituinte químico dos genes. O DNA é composto por seqüências de unidades chamadas nucleotídeos ou bases. Há quatro bases diferentes, A (ademina), T (timina), G (guamina) e C (citosina). A ordem das quatro bases na fita de DNA determina o conteúdo informacional de um determinado gene ou segmento. Os genes diferem em tamanho, desde 2.000 bases até 2 milhões de bases. Fica claro, então, que os genes estruturais, que contêm a mensagem genética propriamente dita, perfazem apenas aproximadamente 3% do DNA de todo o genoma. O restante é constituído de seqüências controladoras e, principalmente, de regiões espaçadoras, muitas das quais geneticamente inertes. O PGH propõe o mapeamento completo de todos os genes humanos e o seqüenciamento completo das 3 bilhões de bases do genoma humano. Mapeamento é o processo de determinação da posição e espaçamento dos genes nos cromossomos. Seqüenciamento é o processo de determinação da ordem das bases em uma molécula de DNA”.(12)
Vimos, portanto, a complexidade que envolve o PGH, sendo quase intuitiva a polêmica gerada em torno das pesquisas, no que diz respeito a questões éticas e religiosas, justamente pelo alcance que pode ser dado às pesquisas genéticas, a partir do genoma humano.
O projeto, que inicialmente estava previsto para durar 15 anos, ou seja, até 2005, antecipou-se com a conclusão do mapeamento de todo o código genético humano, o que ocorreu no ano de 2000.
A grande importância do genoma humano é a possibilidade de se traçarem as diferenças entre os seres humanos, desde as mais óbvias, como a cor dos cabelos e da pele, até as mais sutis, como a propensão a determinadas doenças, muitas delas que se manifestarão apenas no final da vida da pessoa.
Com isso, chegará o momento em que os diagnósticos médicos serão tão avançados e antecipados que será possível prevenir doenças muito antes das manifestações de seus primeiros sintomas, ou mesmo adequar as diversas terapias existentes de forma personalizada para cada indivíduo, potencializando o seu resultado.
Os grandes benefícios trazidos, porém, não superam os anseios da humanidade por respostas às mais diferentes perguntas, desde questões propriamente científicas até questões envolvendo crenças e moral.
Ante esse quadro, é necessário que se posicione o genoma humano dentro do direito. Sabemos que o direito sempre é posterior às mudanças socioculturais. Obviamente, as revoluções sociais acontecem antes das alterações jurídicas e regulamentações, muitas vezes fruto da jurisprudência.
Com efeito, a UNESCO, em 1997, adotou o que se conhece como o primeiro instrumento universal no campo da biologia: A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos do Homem.
Tal instrumento tem seu mérito por oferecer, ao mesmo tempo, o equilíbrio entre a salvaguarda do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e a necessidade de assegurar a liberdade de pesquisa.
“Mas, a despeito de esse panorama estar contaminado por um alto grau de disponibilidade, há características singularizantes que podem ser observadas quando se está a analisar o genoma humano. Uma delas é a possibilidade de os efeitos dessa declaração individual poderem atingir a esfera de outros sujeitos, uma vez que o genoma, nos termos da própria Declaração [Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos] (art. 1º.), ‘subjaz à unidade fundamental da família humana e também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes’. Seu acesso, ainda que consentido por um só indivíduo, pode pôr em risco a biodiversidade e a sobrevivência da própria espécie. E esse aspecto pode ser adequadamente tutelado, quando se estabelecer, por premissa, que o homem pertence a determinada comunidade biológica (espécie humana), que compreende uma das espécies que encontram guarida no meio ambiente”.(13)
Entendemos, portanto, que o genoma humano enquadra-se, por toda sua extensão, no rol dos direitos da personalidade, que, por sua vez, por vezes gozam de uma flexibilização, no que tange à contratualização desses direitos, ou mesmo à disposição de partes do corpo, por exemplo, em doações de órgãos.
No Brasil, a pesquisa genética passou a obter respaldo por meio do artigo 225 da Constituição Federal, o qual dispõe que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em 1995, com o advento da Lei 8.974, foram regulamentados os incisos II e V do artigo 225 da Constituição. A lei estabelece normas para o uso da engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados.
Entretanto, os debates acerca do tema ainda não chegaram perto de conclusões. Muitos consideram o biodireito como uma quarta geração dos direitos fundamentais. O fato é que muita discussão se travará acerca do tema e muitos avanços científicos neste campo obrigarão o enquadramento jurídico e ético a respeito dessas inovações.
4 Clonagem
A rapidez com que as pesquisas científicas avançam é fenomenal. O que há apenas alguns anos seria tema de filme de ficção científica hoje é uma realidade discutida até por crianças em escolas.
Um dos mais intrigantes e fascinantes avanços da ciência genética é a clonagem, que é a possibilidade de se “fabricar” um outro ser idêntico à sua matriz. Seria uma verdadeira cópia, com todas as suas características idênticas às do ser matriz.
A palavra clone deriva do grego klón, que significa broto. Pressupõe, portanto, a existência de um indivíduo gerador e a ocorrência de reprodução assexuada, o que pode ocorrer naturalmente ou induzido artificialmente. Mais recentemente, tivemos a definição legal de clonagem, por meio da Lei 11.105/05, em seu artigo 3º, VIII, nos seguintes termos: “clonagem: processo de reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em um único patrimônio genético, com ou sem utilização de técnicas de engenharia genética”.
A revolução, por assim dizer, teve início em 1839, quando o cientista Theodor Schwann criou a teoria celular. Essa teoria estabeleceu que os organismos são formados por células que se organizam em tecidos. Mais tarde, em 1855, o cientista Rudolf Wirchow criou o conceito omnis cellula e cellula, o que significa que toda a célula vem de outra célula.
Portanto, há mais de cem anos já se conhece a teoria celular, que diz que as células-filhas herdam as características das células-mães, apenas se diferenciando posteriormente para exercerem as diversas funções no organismo.(14)
Posteriormente, descobriu-se que as informações genéticas estavam no núcleo de cada uma das células e que pelo menos as primeiras dezesseis células que se duplicarem tinham a mesma capacidade de, quando separadas, formarem novas e idênticas células.
Porém, a questão principal a respeito do tema surgiu em 1938, com o cientista Hans Spemann, um grande estudioso e desenvolvedor de algumas teorias a respeito do assunto. O cientista questionou se o núcleo de uma célula de adulto retém o mesmo potencial das células embrionárias.
Cinqüenta e oito anos após, em 1996, nasceu a ovelha Dolly, comprovando que a resposta à questão de Spemann é positiva. Porém, antes disso já se tinha notícias de uma clonagem bem-sucedida de mamíferos, em 1988, pelos cientistas Kal Hillmensee e Peter Hoppe, que clonaram um rato.(15)
De lá pra cá, a questão tornou-se um dos mais modernos debates em todos os ramos científicos e filosóficos ou mesmo religiosos. A possibilidade de se clonar um mamífero é assustadora e fascinante.
Freqüentemente, há a clonagem de vegetais, de microorganismos, sem que isso cause grandes polêmicas. Aliás, as técnicas são utilizadas na agronomia desde a década de 60. Mas a possibilidade de se clonar um ser humano envolve questões éticas e legais, o que gera discussões em vários âmbitos sociais.
4.1 A clonagem de seres humanos
Como vimos, a clonagem é uma técnica já utilizada pela ciência desde a década de 60 para plantas e vegetais, sendo que em 1988 tivemos notícias do primeiro clone de um mamífero. O ponto crucial dessa possibilidade é: até onde a ciência pode chegar sem que fira a ética e os direitos individuais, especificamente os direitos da personalidade? Responder a essa questão não é uma tarefa fácil, pois têm de ser cotejados valores morais e éticos com a necessidade do avanço científico, principalmente em relação à medicina e à genética.
Mesmo em relação à bioética, ainda não há consenso a respeito de quais procedimentos devem ser adotados nesses casos, sendo certo que a proibição da clonagem humana é, na maior parte dos lugares, a principal vertente a ser seguida.
No seminário internacional “Clonagem Humana: Questões Jurídicas”, o Ministro Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite abriu a solenidade com o seguinte discurso:
“O primeiro passo dessa reflexão consiste em admitir que a clonagem hoje é uma realidade. Pertence ao mundo real, seguindo dois métodos, como nos ensina a ciência: no primeiro, provoca-se a cisão das células de um embrião, processo semelhante àquele que gera, na natureza, gêmeos univitelinos; o resultado serão dois seres compartilhando a mesma herança genética, porém diferentes de qualquer outro.
A segunda forma, talvez a mais polêmica por se tratar de reprodução assexuada, também denominada duplicação, produz um indivíduo pela substituição do núcleo de um óvulo pelo núcleo de uma célula diplóide retirada de outro ser; o resultado, como se viu no experimento que gerou a ovelha Dolly, será um indivíduo não apenas com a mesma herança genética de outro, mas exatamente igual ao ser que lhe deu origem. Eis aí a diferença essencial entre os dois métodos: naquele, o novo ser será portador de uma combinação gênica cujo produto ainda é desconhecido; neste, as características do novo ser não trazem novidade, pois já é conhecido o adulto que vai originar o clone”.(16)
Podemos perceber que o tema vai muito além do questionamento a respeito da existência ou não de uma alma humana, mas esbarra nos direitos da personalidade, já que o artigo 5º da Constituição Federal assegura o direito à privacidade e à individualidade como direitos fundamentais da pessoa humana.
A questão é: até onde vai a possibilidade de disposição dos direitos da personalidade? Pode a pessoa autorizar a clonagem de si própria, flexibilizando o seu direito à individualidade?
O filósofo e eticista da Brown University Daniel Brock traz um questionamento a respeito da clonagem como forma de reprodução, defendendo que se trata de uma liberdade de cada indivíduo, porque o direito à reprodução não pode ser suprimido.(17) Brock compara a clonagem para fins de reprodução à reprodução propriamente dita, defendendo que o governo não deve interferir em tal liberdade.
Além disso, outra questão importante a ser destacada é em relação à identidade genética do clone. Muitos eticistas, como Ruth Macklin, do Albert Einstein College of Medicine, defende que nenhum indivíduo adulto deve ser clonado sem o seu consentimento.
Entretanto, caso deseje, não pode ser impedido. Afinal, nunca se questionou a questão da identidade dos gêmeos univitelinos, pois eles têm a mesma identidade genética.(18) Com efeito, a legislação brasileira é rígida nesse sentido. A Lei 11.105/05, já citada anteriormente, regulamentou os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados.
O artigo 6º da aludida lei proíbe a clonagem humana, bem como o artigo 26 prevê como crime a conduta, apenada com reclusão de dois a cinco anos e multa. A lei é, sem dúvida, um avanço legislativo, pois regulamenta não apenas a clonagem, mas toda a atividade de engenharia genética no País.
Porém, até que ponto a atividade legislativa pode proibir a flexibilização de certos direitos da personalidade? Como bem sabemos, muitos direitos da personalidade são passíveis de flexibilização, como por exemplo o uso da imagem, da voz, dos direitos autorais, dentre outros. Portanto, obedecidos certos limites, tais direitos são passíveis de se tornar objetos de contrato, gerando, até mesmo, reflexos patrimoniais.
Indo mais além, a comercialização de órgãos e tecidos é uma realidade. Em muitos casos, chega a ser uma aberração, como no caso de venda de um dos rins de uma pessoa viva. Porém, em outros casos, não nos causa tanta estranheza, como por exemplo o comércio de sêmen e óvulos, permitido em alguns países, como Estados Unidos.
Muitos países possuem uma legislação rígida em relação ao comércio de órgãos, como é o caso do Brasil e de muitos outros. Porém, em alguns países, as normas legais ainda não contemplam tais práticas, o que dá margem a um comércio que pode até ser considerado imoral e antiético, mas não ilegal. Porém, no caso da clonagem, a rigidez legislativa ajuda ou atrapalha o desenvolvimento da ciência e as liberdades individuais?
Há situações em que, por exemplo, há a possibilidade de se clonar uma pessoa para desenvolver não um outro ser humano, mas um determinado órgão, necessário para a terapia do ser que concedeu a célula-mãe. Trata-se da clonagem terapêutica.
Eticamente, é questionável a possibilidade de se sacrificar uma vida para salvar outra. Por outro lado, o avanço da ciência permite que utilizemos técnicas de clonagem não para desenvolvermos novos seres humanos, mas para obtermos novos órgãos e tecidos, salvando vidas que, até então, estariam condenadas.
A igreja também condena a clonagem humana, especificamente para fins terapêuticos, como podemos ver na reportagem “A clonagem sob o olhar da religião”, nas palavras do Padre Júlio Monari, ex-assessor de Dom Paulo Evaristo Arns:
“A vida humana é um dom de Deus, só Ele é senhor da vida, nesse sentido ela reveste-se de um caráter sagrado. O mandamento bíblico não matarás é indicador desta sacralidade, abrange a vida desde a fecundação até a morte natural. Não é permitido, portanto, destruir um embrião para obter células-tronco, como tampouco abreviar a vida de um ser humano para extrair órgãos para um transplante, a fim de salvar outra vida (...). O embrião já é uma vida, que deve ser respeitada por inteiro”.(19)
Por outro lado, os cientistas alegam que a clonagem humana com finalidade terapêutica se justifica pelo fato do benefício trazido ao paciente que padece de uma doença e necessita de um transplante de órgão, as primeiras 32 células do embrião ainda não foram determinadas para ser este ou aquele órgão e, se manipuladas, podem se tornar um órgão idêntico geneticamente ao que o paciente necessita, não havendo o risco de rejeição.
Com efeito, em que pesem tais argumentos, muito utilizados, aliás, pela comunidade científica, a legislação brasileira se desenvolveu num outro sentido, preferindo a rigidez em relação à proibição da clonagem humana, não a admitindo em nenhum caso.
5 Células-tronco
Outra das questões polêmicas em relação aos avanços científicos se dá em relação às células-tronco. Podemos definir células-tronco como sendo “células mestras que têm a capacidade de se transformar em outros tipos de células, incluindo as do cérebro, coração, ossos, músculos e pele”.(20)
No Brasil, a Lei 11.105/05 definiu o que são células-tronco embrionárias, para fins legais, em seu artigo 3º, XI, conforme segue: “células-tronco embrionárias: células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo”.
As células-tronco podem ser obtidas tanto em embriões como em algumas células adultas. Porém, as células embrionárias são capazes de se transformar em qualquer órgão do corpo humano, o que não ocorre com as células-tronco obtidas a partir de células adultas.
Temos, portanto, que as células-tronco que melhor atendem às necessidades médicas e científicas são aquelas obtidas por meio de embriões, muitas vezes gerados por meio de inseminação artificial ou clonagem.
Entretanto, a polêmica toda gira em torno de quando se dá o início da vida. Podemos destacar, sucintamente, quatro correntes quanto ao início da vida humana: a) a que defende que o início da vida começa com a fecundação; b) a que defende que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero; c) a que defende que o início da vida começa com o início da atividade cerebral; e d) a que defende que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião.
As mais difundidas, porém, são as duas primeiras, nas quais nos fixaremos. A medicina, em sua maioria, entende que a vida intra-uterina se inicia com a fixação do embrião nas paredes do útero, ou nidação, conforme defende a maior parte da doutrina penal.(21) (22)
Todavia, a maioria das religiões, sobretudo a católica, defende que a vida se inicia com a fecundação do óvulo, independente da nidação.
Essa questão gera uma polêmica em relação à possibilidade da utilização de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos, pois, pela visão religiosa, não menos importante que a jurídica, já há uma vida humana no momento em que a célula será extraída. Por outro lado, se levarmos em consideração os critérios jurídico e médico, temos que a nidação nunca será possível em um embrião gerado em laboratório e, portanto, não há possibilidade de vida para essas células.
Se compararmos, por exemplo, com métodos contraceptivos, como por exemplo a pílula do dia seguinte e o Dispositivo Intra-Uterino (DIU), chegaremos à conclusão de que o embrião, antes da fixação nas paredes do útero, ainda não tem vida e, portanto, pode ser utilizado para fins terapêuticos.
Afinal, os métodos acima citados não são considerados abortivos pela doutrina e pela jurisprudência. Por outro lado, as questões éticas e morais são trazidas à baila, visto haver uma série de valores envolvidos em torno do assunto.
O grande paradoxo é com a questão da reprodução assistida em que as inseminações são feitas In vitro . Muitas mulheres buscam a reprodução assistida como forma de conseguirem engravidar. A cada procedimento, vários óvulos são fecundados, gerando embriões, havendo uma seleção para que haja implantação no útero.
O resultado é um acúmulo de milhões de embriões congelados em nitrogênio, com uma possibilidade muito remota de virem um dia a serem implantados no útero de uma mulher.
Temos, portanto, de um lado a possibilidade de se gerarem em laboratório órgãos diversos para finalidades terapêuticas, salvando inúmeras vidas, e de outro questões éticas e morais que impedem a utilização desses embriões com tal finalidade.
Após muita polêmica e muita discussão, a legislação pátria avançou nesse sentido. A já citada Lei 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do artigo 225 da Constituição Federal, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados e dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança, prevê em seu artigo 5º as regras para a utilização de células-tronco embrionárias com finalidade terapêutica, no que temos uma clara inovação legislativa, no sentido de acompanhar a evolução da ciência, caminhando para a possibilidade de utilização de células-tronco embrionárias para fins terapêutico.
Entretanto, gerou manifestação dos defensores da teoria de que os embriões, ainda que não fixados na parede do útero, são seres vivos, como no caso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que condena a prática, comparando a utilização de embriões para tal finalidade a um verdadeiro crime.(23)
Com efeito, o citado artigo 5º da Lei de Biossegurança é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn, proposta em 30 de maio de 2005 pelo então Procurador-Geral da República, Claudio Fonteles.(24)
O Procurador-Geral é contra a utilização de células-tronco embrionárias porque, durante as pesquisas, o embrião de onde o material é retirado acaba sendo destruído. Ele já havia se posicionado no Supremo Tribunal Federal – STF contra a autorização judicial de aborto de bebês anencéfalos – sem a formação completa do cérebro.
Para o Procurador, como a vida começa na fecundação, a destruição de um embrião humano contraria o artigo 5º da Constituição Federal, que garante a todos o direito à vida. Além de pedir a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105/05, o Procurador quer que o STF realize audiência pública com especialistas sobre o tema. O Procurador defende, ainda, que a pesquisa com células-tronco adultas é mais objetiva e certamente mais promissora do que a pesquisa com célula-tronco embrionária.
Em contraposição aos argumentos do Douto Procurador-Geral, já houve manifestações no sentido da constitucionalidade do artigo 5º da Lei da Biossegurança, a exemplo do artigo publicado por Reginaldo Minaré, intitulado “O artigo 5º da Lei 11.105, de 2005, não é inconstitucional”.
Argumenta o ilustre advogado e mestre em direito que:
“Afirmar que para garantir a inviolabilidade do princípio do direito à vida seria necessária uma proteção absoluta e inflexível, inclusive para embriões congelados e inviáveis para a reprodução humana, sem dúvidas seria uma argumentação falaciosa. Pois, fazendo uma afirmação nesse sentido, seria difícil depois justificar a constitucionalidade do aborto em caso de gravidez oriunda de estupro, que é um procedimento garantido pelo Código Penal, o aborto no caso de anencefalia do feto, que já é uma prática autorizada em muitos casos pelo Poder Judiciário, onde caudalosa é a jurisprudência nesse sentido, e até mesmo os critérios utilizados para assegurar a preferência pela vida da gestante em casos onde a preservação das vidas do feto e da gestante não são compatíveis. Tudo isso sem falar que a própria Constituição relativiza a garantia do direito à vida ao permitir que, em caso de guerra declarada, seja adotada a pena de morte.”(25)
Vemos, portanto, que a questão está longe de se tornar pacífica, ainda que regulamentada por lei.
Ressaltamos, entretanto, que não há liminar concedida pelo STF, motivo pelo qual a lei continua válida para efeitos práticos, sendo possível, preenchidos os requisitos legais, a utilização de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos.
6 Gravidez de substituição
A gravidez de substituição é popularmente conhecida como “barriga de aluguel”, termo popularmente utilizado para denominar a mãe de aluguel, mãe substituta, mãe sub-rogada ou mãe portadora.(26) Essas mulheres locam seus úteros para gestar filhos de outras mulheres que têm problemas para ter filhos.
As mulheres que não têm capacidade para gestar uma criança geralmente têm problemas que se relacionam com incapacidade uterina ou tubária, ou ainda defeitos de formação da mulher.
A inseminação artificial pode ocorrer da seguinte forma: a) fertilização homóloga, que é a feita com gametas do casal; b) a fertilização heteróloga, em que é utilizado só o óvulo ou o espermatozóide pertencente ao casal; e c) o óvulo ou espermatozóide de terceiros e a mãe de substituição que é a mulher utilizada como meio para gestar um embrião fertilizado com gametas de outras pessoas ou do próprio casal.
Nos casos em que a gravidez de substituição é utilizada, geralmente ocorre a inseminação artificial. Sempre, porém, após o nascimento, a criança é entregue aos pais que locaram a barriga da mãe de aluguel.
Juridicamente, a situação só deve ocorrer quando a mulher não puder, em hipótese alguma, gestar seu próprio filho, necessitando de uma portadora de seu embrião ou, em última análise, uma doadora de óvulos e portadora de embrião.(27)
Temos, portanto, que uma mulher que não pode gestar seus filhos possa ter garantido o direito de maternidade, porém aquela que pode, mas se recusa a gestar, não pode fazer uso desse método.
No Brasil, ante a falta de regulamentação a respeito do tema, apenas podemos nos socorrer da Resolução 1358/92 do CFM, já citada anteriormente.
Diz a aludida resolução que:
“VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)
As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.
1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.”
Percebemos, portanto, que a ética médica impõe que a mãe de aluguel seja da família da mulher doadora genética, num parentesco até segundo grau, havendo necessidade de autorização do Conselho Regional de Medicina em casos diversos.
Além disso, a resolução impõe que jamais pode haver finalidade lucrativa ou comercial no procedimento da doadora do útero.
Ademais, o nosso ordenamento jurídico impede o contratualização de bens indisponíveis, como é o caso do direito à vida. Entretanto, como bem sabemos, alguns direitos da personalidade, também indisponíveis, podem ser flexibilizados.
Portanto, a tendência é que se analise o caso concreto, ante a ausência legislativa. Com efeito, é certo que a tendência é a de a jurisprudência e a doutrina acompanharem o entendimento do CFM, no sentido de não permitir a comercialização do útero.
Nos Estados Unidos, porém, é permitido o contrato de locação de útero, em que a mulher receptora recebe uma contraprestação em dinheiro para gestar uma criança de outra mulher.
Com efeito, o Projeto de Lei 90/99, anteriormente citado, traz em seu bojo disposições a respeito de útero, prevendo como crime a prática desse ato, como intermediário, beneficiário ou executor da técnica.
Na doutrina, encontramos algumas regras para que seja efetuado o procedimento de gestação em útero diverso do da mãe biológica.
Refere-se a doutrina a respeito da escolha da portadora, que fica a cargo do médico e deve ser, de preferência, um membro da família. Porém, na impossibilidade, deverá o médico tomar as precauções para evitar ao máximo o contato entre a portadora e os pais biológicos da criança.
Caso ocorra algum problema no procedimento, o médico será responsável, inclusive em relação à escolha da chamada mãe de aluguel. Além disso, prevalece o entendimento de que apenas as mulheres casadas ou que vivam em união estável podem utilizar-se do procedimento para gestarem seus filhos em úteros diversos. O citado projeto de lei inclina-se na mesma direção.
Com efeito, encontramos na doutrina quem defenda a possibilidade de a mãe de aluguel receber uma remuneração pela locação de seu útero.
Os que defendem tal posição alegam que:
“a remuneração não se refere à venda da criança, mas sim ao serviço prestado pela mulher que teve o útero utilizado para gestar criança que não é dela; a exploração da pobreza e da ignorância humana ocorre em todas as esferas das atividades humanas; a falta de cuidados também é comum entre mães e pais que geram para si próprios; os pais que contrataram o serviço da mãe de aluguel pelo contrato são obrigados a assumir a criança; e a mãe de aluguel é uma profissional que presta serviço a casais que não podem gestar seus filhos.”(28)
Com a devida vênia a posições contrárias, entendemos que a posição mais conservadora deve prosperar, por todos os argumentos já definidos em relação aos direitos da personalidade.
Além disso, haveria uma banalização da vida humana. O útero se transformaria em um bem disponível, gerador de lucro e objeto de atividade comercial. Ademais, se há a proibição de comercialização de órgãos e tecidos, porque haveria de haver a possibilidade de aluguel de útero?
Como já dissemos, a tendência legislativa, doutrinária e jurisprudencial se inclina no sentido de que a posição conservadora é a mais acertada em relação ao tema.
7 Sêmen
Vimos anteriormente que há a possibilidade de se gestar o embrião de uma mulher no útero de outra, no caso da gravidez por substituição. Sabemos que há diversas técnicas de reprodução assistida, graças a avanços da ciência e da medicina.
Todos esses avanços da medicina geram inúmeras situações ligadas à ética e ao direito, principalmente pelo fato de que a evolução social se dá muito antes da inovação jurídica, que naquela é baseada.
Ante a essa situação, temos uma outra questão a ser analisada: a doação de sêmen. O artigo 1.597, V, do atual Código Civil prevê a inseminação artificial heteróloga, ou seja, aquela em que o óvulo pertence à mulher, mas o sêmen não pertence ao marido ou companheiro.
Diz o citado artigo que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido.
Vimos, portanto, que a lei não obriga que o homem seja estéril, bastando que ele autorize a inseminação artificial para se tornar obrigado a assumir a paternidade.
O problema que enfrentaremos, portanto, diz respeito à possibilidade de comercialização de sêmen, bem como dos reflexos gerados em relação aos direitos da personalidade.
Em relação ao fato de se poder ou não comercializar sêmen, temos um comparativo com os demais assuntos abordados e concluímos pela impossibilidade de comercialização do sêmen humano.
Temos, portanto, que o sêmen, assim como órgãos ou sangue, não pode ser comercializado, por ferir princípios sociais, éticos e jurídicos em relação ao direito à vida e ao direito à disposição do próprio corpo.
Em relação às situações que podem ocorrer, destacamos as seguintes. A primeira delas diz respeito à mulher que faz uma inseminação artificial heteróloga com o consentimento do marido. Nesse caso, como já vimos, o homem não poderá negar a paternidade da criança, ainda que não seja seu pai biológico.
Outra situação ocorre no caso de a mulher fazer a inseminação artificial heteróloga sem a autorização do marido. Neste caso, não haverá a presunção de filiação e o ato poderá gerar a separação do casal, fundamentada em injúria grave contra o cônjuge varão.
A última situação ocorre no caso em que a mulher que não é casada deseja ter um filho, recorrendo a um banco de sêmen para proceder à inseminação artificial, por meio do sêmen de um doador.
Neste caso, a mulher terá o direito de fazer a inseminação, pois pode formar uma família monoparental. Porém, o doador do sêmen jamais poderá ser obrigado a assumir obrigações para com a criança, ainda que seja o seu pai biológico.
Temos aqui um comparativo entre a adoção e a doação de sêmen. No primeiro caso, o pai que deu seu filho para adoção abriu mão de seus direitos como pai. Da mesma forma, o doador de sêmen abre mão de todos os direitos a respeito de uma futura criança.
No entanto, a situação é um pouco mais complicada do que se apresenta. Em relação às obrigações para com a criança, fica claro quais são elas em todos os casos. Porém, em relação ao direito à identidade genética que a criança gerada tem, o que é diferente do direito de sucessão ou alimentos, entendemos que para preservar tal direito, que se vincula aos direitos da personalidade e, portanto, é indisponível, a pessoa gerada dessa forma pode ter seu direito à identidade genética reconhecido, sem que isso, contudo, gere direitos ou obrigações na esfera de outros direitos.
Em relação à doação de sêmen, o Conselho Federal de Medicina traz algumas diretrizes, visando a orientar o procedimento.
Uma das normas é a de que o doador seja conservado no anonimato, não podendo o médico revelar seus dados para a família da criança ou outras pessoas.
Porém, como reconhecemos que o direito à identidade genética deve ser preservado, entendemos que, em casos específicos, mediante autorização judicial, a pessoa tenha a possibilidade de acesso a tais dados.
Em relação à regulamentação legal a respeito da doação de sêmen, o Projeto de Lei 90/99 dispõe, em seu artigo 36, II, a proibição de que o sêmen de um doador seja utilizado por diferentes beneficiários, evitando, assim, uma procriação incontrolada.
Questões práticas, ao longo do tempo, surgirão a respeito do tema, como por exemplo a possibilidade de uma mulher, filha biológica de um doador de sêmen, vir a se casar com o filho biológico e reconhecido desse doador, sem que saiba dessa ligação.
Porém, como dissemos anteriormente, o direito evolui em passos diferentes do que a ciência, a medicina e a sociedade, restando aos seus operadores a interpretação dos casos concretos.
Conclusão
Conforme exposto, a contribuição da ciência é e sempre foi essencial ao ser humano, quer para a sua preservação, quer para melhorar a sua qualidade de vida. Porém, muitas vezes a ciência esbarra em questões éticas e jurídicas, dificultando seu desenvolvimento.
Em vários aspectos, como a doação de órgãos e a utilização de transgênicos, a legislação seguiu seu curso, permitindo a evolução da ciência, traçando limites válidos e eficazes.
Todavia, em outras questões como a clonagem humana terapêutica, pesquisas com células-tronco e gravidez de substituição, entendemos ser necessária uma maior atenção do legislador, para que a lei não seja um obstáculo intransponível na busca de curas e melhor qualidade de vida.
Em especial, a clonagem terapêutica deve ser mais bem apreciada pelos juristas e pelos legisladores, pois ela reflete a chance da cura de inúmeras doenças e de se proporcionar melhor qualidade de vida a pessoas que, até então, não tinham esperanças de cura ou de melhora.
Contudo, o direito se altera na medida em que a sociedade evolui, sendo certo que a lei não impõe a evolução, mas sim a sociedade impõe a alteração da lei. Entretanto, cremos que a sociedade, em vários aspectos, já deu o seu passo a frente, sendo agora necessária a contribuição do direito e da legislação.
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Notas:
1. <http://paginas.terra.com.br/saude/oconsultorio1/etica.htm> . Acesso em: 20 jul. 2005.
2. CONTI, Matilde Carone Slaibi. Biodireito: A norma da Vida. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 3.
3. Ibidem, p. 4.
4. SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito In vitro . Da Bioética ao Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen, 1997. p.10.
5. Raciocínio baseado na obra de Matilde Carone Slaibi Conti, op cit, p. 5.
6. COSTA Sérgio Ibiapina Ferreira; GARRAFA, Volnei; OSELKA, Gabriel. Apresentando a Bioética. In: Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p 15/16.
7. FRANCISCONI, Carlos Fernando. AIDS e Bioética. Obtido no site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2005.
8. KIPPER, Délio José; CLOTER , Joaquim. Princípios da Beneficência e da Não-Maleficência. Disponível em: <http:// www.
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9. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2005.
10. Ibdem, apud Immanuel Kant.
11. Paulo Luiz Netto Lôbo, op cit.
12. PENA, Sérgio Danilo J.; AZEVÊDO, Eliane S. O Projeto Genoma Humano e a Medicina Preventiva: Avanços Técnicos e Dilemas Éticos. In: Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 140/141
13. KALINOSKI, Markian. Genoma Humano: Um Bem Jurídico-Ambiental. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 292, 25 abr. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5057>. Acesso em: 07 ago. 2005.
14. Informações obtidas no site http://www.drauziovarella.com.br/artigos/clonagem_historia.asp. Acesso em: 27 jul. 2005.
15. Maria Helena Diniz. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 418.
16. Publicado na Revista do Conselho da Justiça Federal, n. 16, 2002. p. 8. Disponível em:<http://www.cjf.gov.br/revista/numero16/abertura1.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2005.
17. Adriana Diaféria. op cit. p. 138.
18. Ibdem, p. 139.
19. Reportagem publicada no site Com Ciência. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/clonagem/clone15.htm>. Acesso em: 28 jul. 2005.
20. Informação obtida no site . Acesso em:
site <http://www.biomania.com.br/biotecnologia/cel_tronco.php> 15 mar. 2005.
21. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. v. II. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 107.
22. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. II. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93.
23. Em entrevista, o arcebispo de Salvador e presidente da CNBB, cardeal Geraldo Majella Agnelo, alega que as pessoas doentes e portadoras de deficiências estão sendo usadas pelos políticos por conta da sua esperança de cura e o debate está só no campo emocional. Ele defende ainda mais debate, antes da aprovação de uma Lei deste porte: "Quem afirma que os cristãos são contrários ao progresso da ciência, antimodernos e coisas semelhantes, não está querendo dialogar, assume uma posição arrogante, tentando desqualificar o interlocutor", condena. Disponível no site < http://www.adital.com.br/site/noticias/15637.asp?lang=PT&cod=15637>. Acesso em: 01 ago. 2005.
24. Petição inicial da ADIn, disponível no site do STF . Acesso em: 03 ago. 2005.
25. Artigo publicado pelo advogado e mestre em direito Reginaldo Minaré, disponível no site . Acesso em: 04 ago. 2005.
26. ALMEIDA, Aline Mignon de, apudSAWEN, Regina Fiuza; Severo Hryniewicz. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2000. p. 45.
27. Há casos em que a mulher, além de não poder gestar uma criança, não pode concebê-la, motivo pelo qual o óvulo também é doado.
28. ALMEIDA, Aline Mignon de, apudSAWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. op cit. p. 49. |