Sumário: Introdução. 1 Da necessidade do nome e da medida das coisas: a iniqüidade da violência estatal sem limites e o conseqüente imperativo da “violência razoável” do Estado. 2 Dos horrores do passado: a violência ofertada em espetáculo – suplícios do corpo e desumanização do condenado. 3 Dos horrores atuais: a violência subtraída do olhar da multidão – suplícios do cárcere e desumanização do recluso. 4. Da necessidade da garantia do limite dado pela noção de “violência razoável” do Estado – impositividade da construção contemporânea de uma humanização da punição. 5 Da atual vulgarização da prisão como exercício de violência estatal não-razoável – O conflito social desumanizado e a necessidade de uma busca crítica da medida das coisas na punição criminal. Referências bibliográficas.
Introdução
A afirmação de que a violência está ligada à natureza do homem é passível de ser encontrada, direta ou indiretamente, nos mais autorizados escritos filosóficos. Exemplos há desde os clássicos aos pensadores da contemporânea Filosofia do Direito. De Hobbes(1) a Tercio Sampaio Ferraz Junior,(2) registra-se a constatação, também aferível no quotidiano de nossas relações, de que a agressividade do comportamento humano, assim como a violência em todas as sociedades humanas, é um dado palpável.
É preciso que se diga desde o início, entretanto, que aqui não se trata de fazer referência apenas às infindáveis rusgas diárias entre seres que dividem o mesmo espaço e recursos relativamente escassos, nem mesmo à explícita violência das ruas ou aos comportamentos agressivos criminalizados pelo Estado. Considera-se, mais do que qualquer outra, a violência – enquanto “força” coativa – que inevitavelmente permeia e sustenta as organizações humanas, as próprias instituições sociais, ou seja, em última análise, o próprio Estado.
Sucede que, nos dizeres de Tercio Sampaio Ferraz Junior, a violência é “ambígua”, na medida em que “tanto sustenta a ordem social, como pode destruí-la”.(3) Se o natural agir absolutamente livre dos homens deve ser contido, ainda que minimamente, pelos limites de uma ordem estabelecida para garantir uma convivência possível entre eles, sem que se instaure o insustentável e desagregador reinado da lei do mais forte, é conseqüência natural que o Estado disponha e use de força para tanto. Daí o inevitável uso da violência, em variados graus e formas, como elemento ou expressão desse poder pelo próprio Estado. A violência, mesmo estatal, é, pois, ineliminável de nosso convívio – ao menos no atual nível do desenvolvimento humano.
Conquanto seja essa a dura – e, porque não dizer, lastimável – realidade de nossa atual limitada condição humana, bem como de nossas próprias instituições, o fato é que nem tudo está perdido. De fato, não estamos, só por tais condicionantes insuperáveis, necessariamente condenados a estabelecer uma convivência baseada no medo e na ameaça da prática institucionalizada de inomináveis brutalidades como garantia de alguma ordem. Basta considerar, por exemplo, que já o propósito de uma organização social e de um Estado que se pretendam legitimamente orientados pelo Direito e pela Democracia acaba por impor, por si só, um duro golpe às possibilidades da violência estatal: a necessidade de que a sua aplicação seja mediada, no mínimo, por critérios de razoabilidade, compromissados com limites dados por aquilo que, de uma forma ou de outra, tenha sido contratado socialmente.
Daí nasce, no mínimo, o compromisso do Estado com um exercício de sua força que não transcenda determinados limites extremos em nenhuma circunstância. Essa garantia de uma limitação absoluta do exercício da força, a priori, contida no imperativo de uma “violência razoável” do Estado, já impede, por si só, que tenham curso legítimo determinadas práticas excessivas e discursos extremistas que hoje ressurgem como lugar comum, especialmente no campo das práticas e dos discursos da punição criminal.
Todavia, quando essa noção do limite da “violência razoável” do Estado como garantia passa a ser informada por um conteúdo humanista mínimo, extraído de um Contrato Social como aquele do qual dispõe o Brasil atualmente, emerge ainda muito mais evidente a imperiosidade de que se rediscutam criticamente aquelas práticas e discursos à luz dessa noção. Isso porque, nesse contexto, tal idéia de um imperativo de “violência razoável” do Estado passa a adquirir corpo e relevo diferenciados, já que o “razoável” ganha nobre conteúdo valorativo mínimo, passando a ser informado pelos ditos vetores humanistas – postos, em nosso caso, na Constituição Federal –, em muito contrastantes com uma certa tendência hodierna de globalizado “endurecimento” das penas e de sua execução para fins de “segurança” e retribuição, em detrimento de reintegração e apaziguamento social.
Por aí começa a se descortinar a real amplitude e possível significado de tal noção no ordenamento jurídico pátrio, bem como a se justificar a afirmação de que é necessário se trabalhar, no campo da aplicação e da execução das sanções de natureza criminal, pela construção de um imperativo de garantia da observância dessa noção limitante do exercício da força estatal.
Contribuir, então, na tentativa de descobrir o que significa essa abstrata e complicada noção de “violência razoável” do Estado, na prática, e de como construí-la efetivamente em sociedade a partir dos limites de atuação do Poder Judiciário na sociedade contemporânea, particularmente no que concerne ao Direito Penal e, mais especificamente, no que diz respeito à seara da punição criminal, é uma das idéias centrais que permeiam este trabalho.
Para tornar tal tarefa factível, entretanto, recorre-se à fixação de um objetivo bem mais modesto e concreto do que a vã tentativa de conceituar genérica e abstratamente um tal agir estatal: o de iniciar uma discussão que busque investigar, ao menos em alguma medida, como é possível trabalhar com a dita noção de violência estatal razoável na realidade da prestação jurisdicional criminal quotidiana, segundo o ordenamento jurídico pátrio atual, como forma de contribuição para a construção de uma sociedade mais justa, porque humanizada, nos termos do que preconizam os artigos 1º e 3º da Constituição Federal.
Com esse desiderato é que também se busca, neste breve ensaio, encaminhar as bases para uma releitura das formas de punição penal tradicionais, bem como para uma futura rememoração(4) das teorias que dão suporte ao chamado direito de punir e para uma breve investigação sobre o modo de se aplicar a pena e dar respostas punitivas diferenciadas ou alternativas, considerando-se o que atualmente existe posto no ordenamento jurídico pátrio, a partir dos fundamentos e objetivos visados pelo Estado brasileiro – tal como explicitados na vigente Constituição Federal. Isso, com vistas a sugerir que a maximização desta visão humanista da punição criminal e da utilização do instrumental teórico-prático que pode lhe dar base hodiernamente, consiste na forma central de realização deste ideal da prática da mínima violência estatal possível e, pois, de uma prestação jurisdicional criminal mais justa, por próxima do reconhecimento das limitações humanas de todos os atores envolvidos nos conflitos inerentes ao convívio social.
A relevância – e a dificuldade – desta discussão, por fim, surge clara quando se considera que vivemos em tempos de insistentes reclamos, por determinados setores da sociedade e pela mídia de massa, pela adoção de medidas do tipo “tolerância zero”, com prantos generalizados pelo recrudescimento da violência estatal na seara punitiva criminal.
E se torna ainda mais evidente quando se percebe que já se vive, desde os anos finais do século XX, um verdadeiro incremento, na esfera legal e extralegal, dessa tendência de recrudescimento do agir punitivo estatal na área criminal, como conseqüência mesma dos fenômenos sociais, políticos e econômicos vivenciados pelo mundo desde então (globalização, com compactação de espaço e tempo do indivíduo e das sociedades, incremento extremo da complexidade das relações humanas na sociedade contemporânea, homogeneização dos discursos políticos tendentes a um certo “neoconservadorismo”, reflexos econômicos e políticos desse processo todo deletérios aos sistemas ditos social-democratas etc.)(5) – o que é bem representado pela inversão da tendência (ao menos no mundo ocidental) de se considerar o encarceramento “como um mecanismo punitivo anacrônico, no estado de bem-estar dos anos 60”, passando-se a um progressivo aumento da utilização desse recurso como forma de punição retributiva e de controle social a partir dos anos de 1970 (ALVAREZ, 2007: 236).
Por derradeiro, justamente em razão das dimensões inabarcáveis do problema em consideração, se faz questão de destacar que o que segue é pouco mais do que um pequeno manual de “auto-ajuda pessoal”, ora compartilhado, que está voltado, antes de mais nada, a sedimentar idéias e consolidar estudos que permitam uma prestação jurisdicional mais sujeita a contribuir com a realização da justiça ao menos tendente ao ideal; que auxilie na prevenção contra os discursos justificadores do abandono da Constituição como norte do agir do juiz investido de jurisdição criminal; que se preste a servir, até mesmo, quase como um verdadeiro “amuleto” contra o seriíssimo risco que todo o dia se corre, quando se desempenha a função judicante nessa diferenciada área do Direito, de fazer engrossar, pelo inadvertido uso desmedido ou acrítico da força, o rol de infindáveis iniqüidades cometidas sob o sol.
É, pois, com o sincero e bem intencionado propósito de apenas tentar articular algumas reflexões sobre a justificação e aplicação do poder punitivo estatal, na esfera criminal, que guardem equilibrado compromisso com uma “humanização” desta problemática, que se passa à apresentação de tão complexa discussão nos singelos termos que seguem.
1 Da necessidade do nome e da medida das coisas: a iniqüidade da violência estatal sem limites e o conseqüente imperativo da “violência razoável” do Estado
As coisas devem ser tratadas pelos seus devidos nomes. No exame de tema da relevância do presente não cabem eufemismos. Assim, submeter alguém a torturas excruciantes ou suplícios inominados como forma de exercitar pública e exemplarmente um poder estatal absoluto é, sem sombra de dúvida, a expressão de uma máxima violência. Ninguém duvidará de que o Estado causar a morte de outrem, seja por qual método for, por motivos similares, também o é. Por que deveria haver questionamento ou receio, então, de se tratar abertamente da privação da liberdade, bem intrinsecamente ligado à dignidade de todo o ser humano, e, pois, ao que chamamos de vida, como manifesto exercício estatal da violência? Inquestionavelmente é o que se dá quando se exerce, mesmo pela ação do Estado, qualquer forma de restrição ao bem fundamental da liberdade, seja pelo encarceramento, seja, inclusive, sob a forma de outra restrição qualquer a tal direito fundamental.
A questão central, portanto, não é se há violência na ação punitiva e repressora encetada pelo Estado, eis que ela indubitavelmente sempre está presente em tal agir – até mesmo fora da seara criminal –, mas qual é a medida da violência justificável e como ela deve ser exercida.
Nesse passo, é bom que fique desde logo claro: é assim mesmo, de forma absolutamente “crua”, que deve o tema ser abordado. O juiz, o promotor ou qualquer operador do direito, e mesmo qualquer outro cidadão, não deve perder de vista jamais esta realidade: lida-se aqui com a violência. Com a violência legalizada, institucionalizada e orientada a valores – e, mesmo, como já se admitiu lisamente como premissa, em alguma medida, certamente necessária no atual estágio de desenvolvimento humano –, mas, ainda assim, com a violência. Daí, repita-se, a crua indagação fundamental: qual a sua medida?
E, ainda, formulem-se os demais questionamentos que se lhe seguem necessariamente: em que ponto o Estado perde a sua legitimidade ao exercitar esse necessário, mas terrível poder-dever? E mais, a conceituação da dita “violência razoável” diz apenas com um critério de necessidade circunstancialmente demonstrado pelo estado geral das coisas na sociedade ou por um determinado caso concreto, ou há limites absolutos para a sua definição, que não podem ser transpostos sob quaisquer hipóteses? E, se há limites, pelo que são dados?
Ora, essas são as difíceis indagações sobre as quais esta breve investigação proporá um início de reflexão. Aqui é de adiantar-se, entretanto, apenas a título de orientação inicial, algumas premissas que fundarão esta abordagem: primeiro, pelo que deflui de atuais noções humanísticas de traço universal e do ordenamento jurídico pátrio em vigor, o Estado deve existir hodiernamente como garante da convivência harmonicamente possível entre os diferentes; segundo, no exercício desse papel fundamental, ele deve se guiar pelos objetivos, valores ou princípios fundamentais previamente estabelecidos – em nosso caso, contratados explicitamente numa Constituição; terceiro, o exercício autorizado de uma “violência razoável” mede-se, mais do que por qualquer outro fator, pelo grau de comprometimento mantido com os ditos compromissos contratados constitucionalmente; quarto, qualquer excesso desviante desse comprometimento representa a perpetração de desautorizada iniqüidade, que deslegitima o agir estatal e, no campo da punição criminal, encaminha a pena à sua desqualificação para a condição de mera medida cruel (quiçá comprometida com inconfessáveis finalidades extrajurídicas de ilegítimo controle social) e, portanto, inaceitável; quinto, cabe ao juiz, no exercício da jurisdição criminal, aperceber-se e efetivamente orientar-se por essas premissas no seu dia-a-dia, na máxima medida possível, sob pena de ser o inescusável responsável direto e último pela perpetração institucionalizada da violência injusta e desumanizante de um Estado que, então, nessas condições, não merecerá este nome senão seguido de adjetivações pertinentes ao que é do arbítrio e do terror.
2 Dos horrores do passado: a violência ofertada em espetáculo – suplícios do corpo e desumanização do condenado
Neste tópico abre-se espaço para a narrativa de algumas ocorrências relativas ao estabelecimento e à execução de penas de índole criminal havidas no passado relativamente recente da humanidade. Como a maior parte delas é mais ou menos bem conhecida – até em função da célebre fonte da qual foram extraídas(6) –, já se descortina desde logo que o objetivo de sua inclusão neste texto não é necessariamente o de chocar. O intuito é apenas o de contribuir para uma útil eliminação dos eufemismos, como já se disse – e para isso é preciso rememorar Foucault.
O fato é que ninguém, após a leitura do que segue, haverá de duvidar do ponto a que pode chegar o Estado na área da fixação e aplicação das sanções criminais, se lhe for dado o poder absoluto – seja sob que circunstância ou pretexto for –, se não forem fixados sérios limites ao exercício da violência institucionalizada por valores compromissados com um tratamento do homem como ente que deve ser necessariamente respeitado a partir de sua intrínseca dignidade.
Parte-se da mais explícita e maximizada forma de violência institucionalizada e legalizada – ou seja, daquela exercida como espetáculo nos tempos em que o soberano detinha o inquestionável poder de dispor livremente não só da vida, mas, da forma mais ampla imaginável, da dignidade do súdito que desrespeitasse suas ordens ou leis – para se chegar, ao fim, na situação da violência velada, mas ainda assim patrocinada pelo Estado e pela sociedade, que denota uma trágica e insuspeita manutenção em tempos atuais do núcleo de pensamento garantidor da brutalidade das penas.
Para tanto, o método utilizado será o da citação de casos “reais”, na medida do possível já brevemente comentados pela fonte autorizada original, eis que nada fala mais do que a experiência do fato (principalmente em tempos de tanto gosto pelos realities shows).
Na primeira situação está, pois, exposta a dita forma de disposição total do corpo e do ser do condenado, aviltado ao nível da transmutação em coisa. Destaca-se, nesta passagem, inclusive a ostentação desse poder absoluto como forma de obter a prevenção geral a partir do terror que infundia a todos a concreta possibilidade de qualquer homem vir a ser literalmente reduzido ao nada. O encaminhamento da descrição da pena aplicada e de sua execução, para este caso e para os próximos – à exceção do que for ressalvado –, é de MICHEL FOUCAULT, em sua célebre obra “Vigiar e Punir”, por naturalmente insubstituível sem grande prejuízo:
“Como ritual da lei armada, em que o príncipe se mostra, ao mesmo tempo e de maneira indissociável, sob o duplo aspecto de chefe da justiça e de chefe da guerra, a execução pública tem duas faces, uma de vitória, outra de luta. De um lado, ela é o desfecho entre criminoso e o soberano, cujo resultado é conhecido antecipadamente; ela deve manifestar o poder sem medidas do soberano sobre aqueles que ele reduziu à impotência. A dissimetria, o irreversível equilíbrio das forças fazem parte das funções do suplício. Um corpo liquidado, reduzido à poeira e jogado ao vento, um corpo destruído, parte por parte, pelo poder infinito do soberano, constitui o limite não só do ideal, mas do real castigo. Atesta este fato o famoso suplício de la Massola, aplicado por Avignon, e que foi um dos primeiros a citar a indignação dos contemporâneos: suplício aparentemente paradoxal, pois se desenrola quase inteiramente depois da morte, e a justiça não faz outra coisa que não estender sobre um cadáver seu teatro magnífico, a louvação ritual de suas forças:
‘O condenado é amarrado a um poste, com os olhos vendados; em toda a volta, sob o cadafalso, estacas com ganchos de ferro. O confessor fala com o paciente ao ouvido, e, depois que ele lhe dá a benção, imediatamente o executor, com uma maça de ferro, das que são usadas nos matadouros, descarrega um golpe com toda força na têmpora do infeliz, que cai morto. No mesmo instante, o mortis exactor lhe corta o pescoço com uma grande faca, banhando-se de sangue: num espetáculo horrível para os olhos, corta-lhe os nervos até os dos calcanhares e, em seguida, abre-lhe o ventre de onde tira o coração, o fígado, o baço, os pulmões, pendurando-os num gancho de ferro, e o corta e disseca em pedaços, que põe em outros ganchos à medida que vai cortando, assim como se faz com os de um animal. Quem puder que olhe uma coisa dessas.’
Na forma lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo: cada pedaço é exposto no balcão.” (7)
Ainda na mesma linha, dando trágico sentido ao adágio de que “a força não perde a sua presa”,(8) considere-se também o célebre caso Damiens, que abre a notável obra de Foucault. JULES MICHELET, autor contemporâneo da revolução francesa, dando como exemplo das iniqüidades francamente respaldadas pelo Poder Judiciário francês às portas da dita revolução, geradoras da desconfiança do povo naquele poder – por sua vez, atuante como mais um estopim para a precipitação da revolta civil daqueles tempos –, menciona o suplício infligido a Robert Fraçois Damiens em 1757, em razão de condenação por parricídio.(9) A narrativa do horrendo suplício aplicado a Damiens foi tornada célebre, como se disse, por sua transcrição realizada por MICHEL FOUCAULT em “Vigiar e Punir” e não pode deixar de ser reproduzida aqui:
“[Damiens fora condenado a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde deveria ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí seria erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barriga das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpos consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.
[O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço, preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade de arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.
Depois desses suplícios, Damiens gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços.
(...)
Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direto à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum.
Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. (....)
Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda a força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir, fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e as axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda a força, arrebentaram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.
Uma vez retiradas estas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha.
...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. (....).”(10)
Por fim, demonstrando como era relativamente comum a fixação de tais horrendas punições, transformando-se a sua execução em verdadeiros espetáculos públicos, quase teatralizados, numa estulta e canhestra forma de retributividade levada às raias do ridículo – não fosse o trágico da situação –, tudo mesmo naqueles tempos em que já se avizinhava a revolução, não é demasiada a seguinte citação:
“Enfim, encontramos às vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado: mesmos instrumentos, mesmos gestos. Aos olhos de todos, a justiça faz os suplícios repetirem o crime, publicando-o em sua verdade e anulando-o ao mesmo tempo na morte do culpado. Ainda no final do século XVIII, em 1772, encontram-se sentenças como a seguinte:
‘Uma criada de Cambrai, que matara sua senhora, é condenada a ser levada ao lugar do suplício numa carroça ‘usada para retirar as imundícies em todas as encruzilhadas; lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona onde estava sentada a senhora Laleu, sua patroa, quando foi assassinada; e sendo colocada lá, o executor da alta justiça lhe cortará a mão direita e em sua presença a jogará ao fogo, e lhe dará imediatamente quatro facadas com a faca utilizada por ela para assassinar a senhora Laleu, a primeira e a segunda na cabeça, a terceira no antebraço esquerdo, e a quarta no peito; feito o que, será pendurada e estrangulada na dita forca até à morte; e depois de duas horas seu cadáver será retirado, a cabeça separada ao pé da dita forca sobre o dito cadafalso, com a mesma faca que ela utilizou para assassinar sua senhora, e a cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai, junto ao caminho que leva a Douai, e o resto do corpo posto num saco e enterrado perto do dito posto, a dez pés de profundidade.’”(11)
Dir-se-á, então: coisas de outro tempo. Violência irracional de um absolutismo superado pelas luzes humanistas que se seguiram a esta época obscura, de impossível paralelo útil para tempos mais recentes. Tais considerações, todavia, teriam mais a ver com o desejo de não se render à realidade lamentável das coisas do que com um compromisso mínimo com a análise dos fatos efetivamente verificados.
Nem se fale do próprio terror que se seguiu à revolução, comum em tempos de exceção. Trate-se apenas de analisar a progressivamente mais sutil incorporação da violência, ainda igualmente brutal, nos mecanismos de homogeneização da punição dos delitos promovida pelo Estado. E, para tanto, o discurso da “igualdade na guilhotina”, dourado pela representação da supressão dos suplícios longos e cruéis(12) de outrora, é inigualável, falando por si só:
A guilhotina utilizada a partir de março de 1792 é a mecânica adequada a tais princípios [morte igual para todos, obtida de uma só vez e sem recorrer a esses suplícios longos e cruéis]. A morte é então reduzida a um acontecimento visível, mas instantâneo. Entre a lei, ou aqueles que a executam, e o corpo do criminoso, o contacto é reduzido à duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso.
‘A experiência e a razão demonstram que o modo em uso no passado para decepar a cabeça de um criminoso leva a um suplício mais horrendo que a simples privação da vida, que é a intenção formal da lei, para que a execução seja feita num só instante e de uma só vez; os exemplos provam como é difícil chegar a esse ponto. É preciso necessariamente, para a certeza do processo, que ele dependa de meios mecânicos invariáveis, cuja força e efeito possam ser igualmente determinados... É fácil fazer construir semelhante máquina de efeito infalível; a decapitação será feita num instante de acordo com a nova lei. Tal aparelho, embora necessário, não causaria nenhuma sensação e mal seria percebido.’
Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os bens. Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito jurídico, detentor, entre outros direitos, de existir. Ela devia ter a abstração da própria lei.”(13)
Ora, essa é uma destacada demonstração de como o espírito da violência desmedida, a intenção da punição brutal como demonstração da força aniquiladora do Estado, sobreviveu à derrocada do absolutismo. E mais: de como esse espírito e essa intenção, em seu núcleo essencial, subsistiram através dos tempos, nos mais variados locais, seja mediante a sua progressiva subtração aos olhos do público, em geral, como espetáculo de martírio banalizado e teatralizado – já não mais tolerável à exposição a partir de dado momento –, no caso das execuções de penas capitais e situações odiosas similares, seja através da transmutação da brutalidade ínsita à pena de morte diretamente executada pelo Estado noutras formas de punição, somente em aparência menos graves ou aniquilantes do indivíduo.(14)
Ainda tratando do passado, basta ver que nem mesmo a guilhotina funcionava realmente de forma tão “limpa” quanto o prometido, cabendo lembrar as célebres anotações de VITOR HUGO no prefácio de sua obra “O último dia de um condenado à morte” a respeito disso;(15) ou basta analisar o que de fato ainda ocorria no Brasil, ainda muito tempo depois da revolução francesa. A manutenção de uma brutal violência no julgamento e na aplicação da sanção penal, já no encaminhamento final do século XIX, em nosso país é ainda evidente, como se vê da narrativa da execução do fazendeiro Manuel Mota Coqueiro,(16) no município de Macaé, Estado do Rio de Janeiro – em clamoroso erro judiciário que ensejou fosse proscrita, de fato, a pena de morte no país em tempos de paz:
“Eram duas horas da tarde, pontualmente. O escrivão de execuções, seguindo os meneios de cabeça do juiz, perguntou a Coqueiro por sua última vontade; com a fisionomia visivelmente conturbada, ele ignorou a multidão apinhada à frente da forca e selecionou uma a uma, como se quisesse fotografá-las com as retinas (...). Com voz trêmula, gritou o mais que pôde (...):
– Eu sou inocente. Minha maldição é que esta cidade vai pagar cem anos pelo que me faz.
O fazendeiro recusou o copo de vinho que um subalterno veio lhe oferecer, como era tradição nas raras execuções de pessoas de trato social mais elevado. O carrasco não esperou: arrebatou o copo, levantou um pouco o capuz negro e tomou tudo de uma só talagada. Cuspiu para o lado, baixou o capuz e olhou para o juiz que assentiu com um ominoso olhar e um breve meneio de cabeça; pegou no braço direito de Coqueiro e o tangeu no sentido da escada. Coqueiro parecia congelado. (...)
Quando chegou no alto, as caixas de guerra começaram a rufar e aquele foi o último ruído que Manoel da Motta Coqueiro ouviu na vida, além de sua respiração arfante e as palpitações descompassadas do coração (...). O capuz lhe foi colocado na cabeça, ajeitado de forma rude pelo carrasco; sentiu quando o homem ajeitava a corda do lado esquerdo do pescoço, ajustando o laço pouco abaixo da orelha, como mandavam os ensinamentos portugueses. Seus pensamentos nervosos foram bruscamente cortados pela abertura do alçapão.
O corpo projetou-se no espaço vazio e ficou balançando de um lado para outro, como metrônomo invertido, mas o pescoço não quebrou. O carrasco percebeu isso e hesitou por uns segundos. Depois, num gesto felino e estúpido, resolveu repetir a ação que aprendera alguns anos antes, numa execução em Minas Gerais, inventada pela criatividade macabra do conhecido carrasco cearense Pareça: pendurou-se à trave superior, escalou-a para frente, até chegar no ponto onde a corda pendia; agarrou-se a ela, postou seus dois pés imensos sobre os ombros de Coqueiro e começou um balanço macabro, jogando seu peso sobre aquele corpo inerte e imobilizado, semi-escondido no buraco do estrado de madeira; demorou uma eternidade até que se ouvisse um estalo formidável que atravessou o silêncio repugnando a multidão – e a coluna se rompeu. O carrasco soltou bruscamente a corda e desceu pesadamente sobre o assoalho de tábuas do cadafalso. Se alguém olhasse no sentido contrário ao dos assistentes – da forca para a multidão –, certamente veria um milhar de fisionomias conturbadas, hipnotizadas pela visão macabra daquela cabeça coberta pelo capuz, brotando alguns centímetros acima do alçapão e jazendo torta para o lado esquerdo. Na ponta da corda, o corpo de Coqueiro se contraía em espasmos terminais. (...)”.
Por fim, a quem possa imaginar que a dita manutenção do germe da violência estatal incontida só poderia ser encontrado no âmbito da aplicação e da execução das penas capitais, basta relembrar, para contraditar essa superficial impressão, que também a prisão já serviu a funestos espetáculos públicos, plenos da mesma contaminação que dava cor aos vetustos suplícios do corpo, mesmo no século XIX:
“A cadeia, tradição que remontava à época das galeras, ainda subsistia sob a monarquia de julho. A importância que parece ter adquirido como espetáculo no começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só manifestação dois modos de caminho para a detenção se desenrolava como um cerimonial de suplício. Os relatos da ‘última cadeia’ – na verdade, as que cruzaram a França em todo o verão de 1836 – e de seus escândalos permitem encontrar esse funcionamento, bem estranho às regras da ciência penitenciária. À saída, um ritual de cadafalso; é a selagem das coleiras de ferro e das cadeias, no pátio de Bicêtre: o forçado fica com a nuca virada sobre a bigorna, como uma estaca de ferro; mas desta vez a arte do carrasco, ao martelar, é não esmagar a cabeça – habilidade invertida que sabe não dar a morte.
‘O grande pátio de Bicêtre exibe os instrumentos do suplício: várias fileiras de cadeias com suas gargantilhas. Os ‘artoupans’ (chefes dos guardas), ferreiros temporários, dispõem a bigorna e o martelo. À grade do caminho da ronda estão coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida, e que o operador vai rebitar. Mais alto, em todos os andares da prisão, vêem-se pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos, parecendo um bazar de carne humana; são os detentos que vem assistir à toalete dos seus companheiros de véspera... ei-los na atitude do sacrifício. Estão sentados no chão, emparelhados ao acaso e de acordo com o tamanho; esses ferros de que cada um deve levar 8 libras por seu lado pesam-lhes sobre o joelho. O operador passa-os em revista tomando as medidas das cabeças e adaptando os enormes colares de uma polegada de espessura. Para rebitar a gargantilha é necessário o concurso de três carrascos: um agüenta a bigorna, o outro mantém reunidos os dois lados do colar de ferro e preserva com os dois braços estendidos a cabeça do paciente, e o terceiro bate com pancadas redobradas e achata o cravo sob seu martelo maciço. Cada golpe abala a cabeça e o corpo... aliás, não se pensa no perigo que a vítima poderia correr se o martelo se desviasse; esta impressão é nula, ou antes ela se desfaz diante da impressão profunda de horror que se experimenta ao contemplar a criatura de Deus num tal rebaixamento.’”(17)
Não é necessário muito esforço, outrossim, para que se perceba, adiante, que também aqui ocorreram grandes transformações de forma, mas reduzidas alterações de essência, com o passar dos tempos. Ainda nos dias de hoje, as prisões, sobretudo as de nosso país, são, por tudo o que já é escandalosamente de conhecimento comum, como se verá adiante, o dado concreto e eloqüente disso. Há a manutenção de uma visceral brutalidade patrocinada, ou no mínimo consentida, pelo Estado, com a utilização indiscriminada do encarceramento como verdadeira “solução final” para o criminoso, que não pode ser tida nem de longe como expressão de uma violência dita “razoável” e que justifica a busca de urgentes melhorias e de soluções complementares – como, por exemplo, a maximização da aplicação das penas alternativas – que, inclusive, passem a legitimar adequadamente o direito de punir.
Senão, anote-se, em conclusão deste ponto e corroboração do afirmado, as considerações de Michel Foucault sobre a questão da prisão:
“O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente após o século XIX. Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício, como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito. Porém, castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. Conseqüências não tencionadas, mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. A crítica ao sistema penitenciário, na primeira metade do século XIX (a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos têm menos fome, menos frio, menos privações que muitos pobres ou operários), indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado: é justo que o condenado sofra mais do que os outros homens? A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física. Que seria então um castigo incorporal?
Permanece, por conseguinte, um fundo ‘suplicante’ nos modernos mecanismos da justiça criminal – fundo que não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal.”(18) (destaque aposto)
Isso é o que o ponto seguinte procurará cruamente desnudar, ao menos para a nossa realidade pátria, encaminhando a discussão sobre a legitimidade dessa forma de violência velada (a permanência do dito “fundo suplicante”) – por vezes nem tão oculta assim – que remanesce presente no sistema de justiça criminal atual (e até se incrementa), quando se trata de punir, sem qualquer justificativa explícita e, muito menos, razoável à luz do que prevê a Constituição Federal em vigor, o todo do ordenamento jurídico ou qualquer consideração de ordem filosófica e jurídica que se prenda minimamente a noções de humanismo.
3 Dos horrores atuais: a violência subtraída do olhar da multidão – suplícios do cárcere e desumanização do recluso
Como já foi mencionado a partir da citação de Foucault, a prisão parece ser, por si mesma, um dos principais instrumentos de manutenção, mesmo nos dias de hoje, de medidas de sofrimento físico, de um certo “fundo suplicante” ainda muito presente e infiltrado no agir punitivo do Estado.(19) Por princípio, portanto, haveria de ser repensada, ao menos como medida exclusiva ou preponderante de punição, mesmo na sua forma “ideal”, talvez, precisamente, à luz da idéia de estrita aplicação da violência estatal razoável quando se trata de aplicar sanção criminal – noção a ser melhor examinada adiante. Assim, adiante-se, haveria de ter sua utilização reduzida a um mínimo razoável, nas situações em que realmente alternativa não houvesse que não a segregação.
Logo, se mesmo sob condições ideais, já pelo puro exame filosófico e jurídico da questão, só pelo que já se disse, a prisão não se justificaria como modelo exclusivo ou mesmo preponderante de punição, o que se dizer do instituto quando se procede à sua análise à luz da realidade pura e simples das coisas, sem os floreios da legalidade utópica que encontram gosto pela proliferação em nosso economicamente depauperado (ou vilipendiado, por falta de investimentos) país?
Ora, a abstração ideal da Lei de Execuções Fiscais(20) ou do Código Penal já não pode encobrir o que é notório não só para as autoridades do Estado, como para o mais desinstruído popular desta terra: a prisão no Brasil, no mais das vezes – ao menos para quem não detenha alguma forma de privilégio –, significa real e verdadeiro suplício do corpo e, por não raras vezes, a morte. Isso sem se falar na outra morte, a da dignidade mínima da pessoa humana.
A situação, por esse prisma, de um ponto de vista prático, chega a poder ser comparada, então, com aquela em que eram praticadas as centenárias atrocidades já descritas, sem exageros.
E nem se diga, nesse ponto, que não é possível estabelecer um adequado termo de comparação entre uma suposta violência desautorizada pela lei(21) – até porque muitas vezes praticada pelos próprios encarcerados ou por agentes do Estado em desautorizado desvio de conduta, tudo no cometimento de novos crimes e infrações –, e a violência institucionalizada e legalizada de outrora. Isso, por vários motivos, aqui apenas passíveis de exemplificação: primeiro, porque não basta a instituição de leis para isentar o Estado de suas responsabilidades; se hipocritamente se “dá com uma mão (a garantia legal) e se tira com a outra (a garantia real)”, o Estado não pode se isentar de culpa, escudando-se sob a mera existência de leis não-efetivas, na prática, apenas figurativas; segundo, porque a própria idéia de atribuir os malefícios da carceragem aos próprios encarcerados e ao seu (“merecido”) entorno nada mais é do que um retorno à idéia já referida por Foucault, em voga no século XIX (e aqui, ainda hoje, no mínimo nos meios populares), de que a cadeia seria quase um beneplácito oferecido ao criminoso pelo Estado e, portanto, qualquer sofrimento que lá exista deve mesmo fazer parte de um incremento punitivo merecido por ele – até porque ela deve, segundo essa desviada visão, ser mesmo o lugar daqueles que transgridem e que vivem segundo outras regras, as da violência absoluta; terceiro, porque não é pouco crível ou desarrazoado acreditar que a nova violação da lei havida constantemente no ambiente carcerário seja fruto não só das difíceis condições econômicas de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, mas sim, também em grande medida, das condições que sempre se criam, inevitavelmente, nesses ambientes para o desenvolvimento de um novo ordenamento de regras e valores, baseado na lei do mais forte; e, nesse ponto, a perversa idéia que no fundo permeia sempre a banalização do encarceramento: a de que o “diferente” (e, nesse caso, a criatura mais diferenciada de todas, “o criminoso”) deve mesmo ser submetido a um regramento radical e essencialmente distinto – ainda que a Constituição seja uma só, para todos.
É por tudo isso, então, que não parece desautorizada a comparação e a conclusão de que há verdadeira manutenção consentida pelo Estado e pela sociedade da essência dos horrores do passado ainda nos dias de hoje, representada não só pela idéia e pela aplicação de punição restritiva da liberdade como regra geral e maximizada, ainda que sob as conhecidas desumanas condições adiante abordadas, como pelos clamores da mídia, dos populares e mesmo de certos discursos profissionais e acadêmicos da área do Direito e afins, pelo recrudescimento da aplicação da “solução” do encarceramento.
E não é preciso ir muito longe para demonstrar a manutenção tolerada, senão estimulada – pela sociedade e pelo Estado –, dos suplícios corporais e, até mesmo, da pena capital, mais do que à margem da lei formal, à margem dos valores ou princípios maiores constitucionalmente postos.
Propositalmente aqui o embasamento único para tal afirmação não se dá, em essência, por meio de nenhuma elaborada pesquisa sociológica, fundada na observância rigorosa de cânones científicos. Tampouco se recorre ao exame da realidade alienígena, quiçá de países supostamente desprovidos de adequado desenvolvimento de seu ordenamento jurídico, no que diga com uma certa consonância com o senso comum do mundo ocidental a respeito de direitos humanos. Para bem demonstrar o que se disse, são extraídos excertos de relato feito por DRAUZIO VARELLA, em seu livro “Estação Carandiru”, médico que se dedicou por anos a fio ao trabalho na, até alguns anos, maior unidade carcerária do país, o Carandiru – complexo presidiário terrivelmente celebrizado pelo massacre de detentos promovido em seu interior após a invasão do local pela Polícia Militar paulista para controlar uma rebelião. Trata-se de obra não-científica, composta em tom de prosa, à disposição de qualquer cidadão, por preço razoável, em qualquer livraria mediana do país. Trata-se, pois, da prova exposta à náusea de que tudo é ou pode facilmente ser do conhecimento de todos.
Eis o que é narrado por ele no capítulo muito propriamente intitulado “pena capital”, acerca, por exemplo, do destino dos mais “diferentes” dentre os diferentes, os estupradores, no ambiente dos presídios:
“É universal o ódio aos estupradores. Os ladrões aceitam tudo: agressão física, estelionato, roubo, exploração do lenocínio e assassinos torpes – menos o estupro. A ojeriza a este crime é compartilhada pelos próprios funcionários e pela sociedade em geral. Na periferia de São Paulo, um homem abusou de um menino de oito anos e o matou. Os jornais publicaram fotografias do assassino e da criança. Numa tarde de sexta-feira, por aparente descuido burocrático, um grupo de presos veio transferido para a Casa sem a direção se dar conta de que o criminoso estava no meio. Do momento em que ele desceu do camburão na Divinéia, até sua morte no pavilhão Cinco, passaram-se exatos cinqüenta minutos. Tomou tanta facada que quase lhe desarticularam o braço direito. Marcolino, apontador do jogo do bicho e comerciante de dinheiro falso, que estava para ser libertado naqueles dias, disse que a chegada do marginal no pavilhão não foi surpresa:
– Nos estávamos para lá de prevenidos. Tinha recorte de jornal espalhado nos andares, com a foto dele escrachada. Os manos esfaqueavam e emprestavam a faca para quem vinha atrás na fila. Tomou mais de setenta golpes e, ó, acredite se quiser, morreu sem dar um grunhido. (...).”(22)
Outro caso similar, que evoca explicitamente os suplícios corporais de outrora, com manifesta e inquestionável conivência do Estado, quer pela participação direta de seus agentes – ainda que ilegal –, quer pela notoriedade de tais ocorrências cotidianas em todo o país, acompanhada de lapidar e geral omissão silenciosa:
“Outra vez, Gilson, um representante de vendas de trinta anos, deu carona no fusca para uma estudante de quinze anos e fez de tudo para levá-la ao motel. Quando se convenceu de que ela não iria, puxou o revólver e não adiantou choro, dizer que era virgem, nada. Com a menina na mira, dirigiu para um lugar ermo e a estuprou. À noite, enquanto ele assistia ao ‘Jornal Nacional’ com o filhinho adormecido no colo, a esposa e a sogra lavando a louça do jantar, tocou a campanhia. Era a polícia:
– Este fusca parado na porta foi roubado hoje?
Respondeu que não. Quiseram saber, ainda, se ele havia emprestado o carro para algum amigo. Gilson negou e foi algemado.
No distrito, disse aos colegas de infortúnio que havia assaltado um feirante. No dia seguinte, na cela coletiva, um craqueiro iletrado pediu-lhe para escrever uma carta de desculpas à mãe, que havia prometido abandoná-lo definitivamente caso fosse preso outra vez. O representante, no capricho, assim iniciou a missiva: ‘Querida mãezinha, é de joelhos, com o coração pungente, que peço humilde perdão à senhora. Errado estou, não nego, mas arrependi-me ao cerne de meu ser...’.
Ao terminar a redação o vendedor leu-a para o outro, que, emocionado com a beleza das palavras, não pôde conter o choro.
No meio da leitura, chegou o carcereiro com uma garrafa de uísque pela metade:
– Quem é fulano de tal? Qual é teu artigo?
– 157. Assalto de feirante.
– Feirante, porra nenhuma! Estuprou uma menina de quinze anos, com o revólver na cabeça da coitadinha. Se tivesse malandro com vergonha na cara nesse xadrez, te zoava bem zoado e ainda ganhava meio Drurys de presente.
Irrefutável. Trazia o boletim de ocorrência e tudo.
O rapaz da carta foi o primeiro. Ainda com lágrimas nos olhos, ficou em pé e chutou-lhe a cara. Em seguida, vieram os outros; dezoito no xadrez. O estuprador apanhou até perder os sentidos. Acordou com um balde de água suja no rosto. Estava amarrado às grades da cela:
– Me fizeram segurar uma lâmpada na mão e encostaram um fio descascado na grade. A água que jogaram era para conduzir melhor a corrente. Choque de 220. Só desligavam quando a luz acendia na minha mão. Dava um tranco horrível no corpo, a língua enrolava, depois aquele clarão na lâmpada. Achei que ia morrer. Só pedi a Deus que fosse logo.
Quando cansaram da brincadeira, o vendedor desabou semiconsciente, cheio de sangue no rosto deformado. Nessa hora, urinaram em cima dele.
Aí o Barriga, um ladrão que tinha sido preso entalado na clarabóia do forro de uma casa na qual esperava encontrar uma fortuna em jóias contrabandeadas, abaixou-lhe as calças:
– Agora vai sentir que nem a mina que você estuprou!
O representante de vendas diz que Barriga não conseguiu penetrá-lo. Cilinho, um ladrão do Cinco que matou a amante infiel e o sócio traidor que planejava fugir com ela e o dinheiro do assalto, testemunha dos fatos no distrito, desmente, discreto:
– Conseguiu sim. Mesmo no estado deplorável em que o cidadão se encontrava. (...).”(23)
E, se não bastasse, depõe ainda o próprio autor:
“Muitas vezes, ao estuprador é dada a oportunidade de conviver pacificamente com a massa por longos períodos. Um dia, no anonimato da rebelião, a turba enfurecida descarrega nele o ódio represado. Nessas ocasiões, são atirados do telhado, esfaqueados ou torturados com requintes de crueldade, como um catarinense que atendi na enfermaria com a língua queimada por uma faca em brasa e infectada pelos micróbios presentes nos excrementos que o obrigaram a ingerir a cada trinta minutos.
A imprevisibilidade do ajuste de contas torna a vida do estuprador um sobressalto permanente. Qualquer movimento fora da rotina pode prenunciar o castigo fatal.”(24)
Mas veja-se: também não são só os criminosos odiados pelos próprios detentos em virtude da natureza de seus crimes que sofrem atrozes penas não-escritas e complementares.(25) As próprias condições em que são “depositados”(26) os seres humanos nas prisões, como é notório, cuidam de garantir o caráter de verdadeiro suplício que tem a pena cumprida nestas condições. DRAUZIO VARELLA assim descreve as condições do pavilhão que concentrava a maior parte da massa carcerária do Carandiru, o Pavilhão Cinco:
“É o que está em pior estado de conservação. Fica do lado oposto ao Quatro, vizinho do Dois. Tem escadas com degraus desbeiçados, fiação elétrica por fora das paredes infiltradas pelos vazamentos, água empoçada e lâmpadas queimadas na galeria. Nas janelas, a malandragem hasteia mastros para secar a roupa. Clima de cortiço.
É o pavilhão mais abarrotado da cadeia. Movimento intenso nos corredores. Há momentos em que não se consegue alojar um preso a mais sequer. Moram ali 1600 homens, o triplo do que o bom senso recomendaria para uma cadeia inteira. Para tomar conta deles, a Detenção escala de oito a dez funcionários durante o dia e cinco ou seis à noite, às vezes menos.
No primeiro andar, além da Carceragem, da enfermaria e da sala de aula com uma biblioteca pobrezinha, fica a Isolada, um conjunto de vinte celas que guardam de quatro a dez homens espremidos em cada uma. São detentos pegos em contravenções locais, como porte de arma, pinga, tráfico, desrespeito aos funcionários, plano de fuga. Cumprem trinta dias nesse lugar abafado, escuro, com a janela coberta por uma chapa perfurada igual à Masmorra. Tranca dura, permanente. Os trinta dias sem sol.
Seu Lupércio, com mais de oitenta anos e dezenas de entradas e saídas na Casa, por fumar e vender maconha, diz que isso não é nada:
– Antigamente trancavam tantos numa cela, que precisava fazer rodízio para dormir. Metade ficava em pé, quietinho para não acordar os outros. Na troca de turno é que aproveitava para urinar. Precisava comer pouco, porque não podia evacuar o intestino no xadrez. Só quarta e sábado, quando destrancava por uma hora para o banho e as necessidades. Castigo durava noventa dias, não era essa moleza de trinta como agora.” (27)
Atente-se, ainda, a descrição da chamada “masmorra”:
“A Masmorra fica em frente à gaiola de entrada do pavilhão. É guardada por uma porta maciça, ao lado da qual uma placa avisa que é terminantemente proibida a entrada de qualquer pessoa não autorizada. São oito celas de um lado da galeria escura e seis do outro, úmidas e superlotadas. O número de habitantes do setor não é inferior a cinqüenta, quatro ou cinco por xadrez, sem sol, trancados o tempo todo para escapar do grito de guerra do crime:
– Vai morrer!
Ambiente lúgubre, infestado de sarna, muquirana e baratas que sobem pelo esgoto. Durante a noite, ratos cinzentos passeiam pela galeria deserta.
A janela do xadrez é vedada por uma chapa de ferro fenestrada, que impede a entrada de luz. Por falta de ventilação, o cheiro de gente aglomerada é forte e a fumaça de cigarro espalha uma bruma fantasmagórica no interior da cela. Tomar banho exige contorcionismo circense embaixo do cano na parede ou na torneira da pia, com uma caneca.
A Masmorra é habitada pelos que perderam a possibilidade de conviver com os companheiros. Não lhes resta outro lugar na cadeia; nem as alas de Seguro, como o Amarelo do Cinco, por exemplo. Mofam trancados até que a burocracia do sistema decida transferi-los para outro presídio.”(28)
A obra dá conta de explicitar também um rosário de outras mazelas a que são submetidos e expostos os encarcerados, também de conhecimento comum de qualquer um do povo: um sem-fim de doenças, proliferando-se indiscriminadamente dentre a massa humana aglomerada pelo Estado, tais como os males da AIDS, da tuberculose, da leptospirose, das doenças dermatológicas...; o vício em drogas, que inevitavelmente circulam entre os detentos, que incontrolavelmente se dissemina nessas condições; a sujeição às repetidas rebeliões, invariavelmente ocorrentes nessa deplorável situação, e a sujeição à ameaça ou efetiva ocorrência de eventuais invasões policiais para o seu controle;(29) a submissão às regras do “mundo cão” dos homens diminuídos à condição de detentos disputando cada espaço e cada mínimo bem,(30) bem como, talvez mais recentemente, do próprio crime organizado instalado nas celas.(31)
E há, ainda, o ócio imposto pelo sistema, em que pese a previsão legal do direito ao trabalho e do benefício da proporcional redução de pena daí decorrente, a contribuir com o rompimento de qualquer possibilidade de exercício de livre-arbítrio do encarcerado no envolvimento mais íntimo com o nefasto quadro descrito:
“A rotina do Casarão é tocada pelos detentos, sem eles seria o caos.
Algumas empresas empregam mão-de-obra local para costurar bolas de couro, chinelos, colocar espiral em cadernos, varetas em guarda-chuvas, parafusos nas dobradiças e trabalhos similares. Teoricamente, os presos deveriam receber pelos serviços prestados, o que poderia ajudar a família desamparada ou servir de poupança para quando fossem libertados. Na prática, porém, a burocracia para retirar o dinheiro recebido é tanta que muitos aceitam o pagamento em maço de cigarro, a moeda tradicional.
Como trabalho é privilégio de poucos, passam o dia encostados, contam mentiras nas rodinhas do pátio, levantam peso na academia, jogam capoeira no cinema, andam para baixo e para cima, inventam qualquer bobagem para se entreter e, principalmente, arrumam confusão.”(32)
Ora, não é preciso que mais se diga. Se esse não é um quadro de manutenção de suplícios e horrores inominados, de visceral quebra da dignidade da pessoa humana, custeado e mantido pelo Estado, com o beneplácito da sociedade, que novo nome eufemístico haverá de se dar a esse dantesco estado de coisas?
4 Da necessidade da garantia do limite dado pela noção de “violência razoável” do Estado – impositividade da construção contemporânea de uma humanização da punição
Retome-se a noção de “violência razoável” do Estado.
Depois de tudo o que já se disse talvez agora a expressão soe menos eivada de preconceito e se apresente mais na sua correta acepção, de uma verdadeira garantia do indivíduo, principalmente nos tempos de hoje.
Se é inegável que o Estado praticou e pratica inomináveis atos de violência desmedida no campo extremo do controle, repressão e repulsa dos atos violadores dos bens jurídicos supostamente mais relevantes para a sociedade (ações criminosas), identificar um impositivo atrelamento da ação estatal a um compromisso com a dita “violência razoável” é determinante para que se finquem limites comprometidos com o humanismo nesta área. Se o exercício da força como expressão do poder,(33) manifestamente nesta seara, é ineliminável, que seja sempre o mínimo possível, não apenas a partir de um critério de necessidade prática, mas também a partir de um limite valorativo fixo, que não possa ser ultrapassado sob qualquer circunstância, dado pelo compromisso de não-agressão de valores fundamentais. E, sublinhe-se: é extrema a relevância atual da afirmação de uma tal noção, estreitamente ligada com esse compromisso.
Tudo o que já se viu e a realidade social e política do momento histórico que a própria humanidade atravessa, em âmbito global, nos tempos de hoje, que contribui inegavelmente para o fortalecimento das doutrinas de “lei e ordem”(34) em toda a parte, só pode deixar claro que não passaria de uma pueril ilusão acreditar que o simples passar dos séculos tenha garantido por si só esse limite e este compromisso com a utilização bem aquilatada da força.(35) Muito pelo contrário,(36) ainda que algumas noções de respeito ao próximo tenham se universalizado e em alguma medida se sedimentado, o “outro” e, principalmente, o “diferente” são ainda objeto de temor e de rejeição, o que tem justificado o dito uso desmedido da força de forma ampla e irrestrita, com incrementos sucessivos,(37) na medida em que as sociedades se tornam mais complexas.(38) Nesse sentido é, inclusive, a lição de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR:
“Em todas as sociedades humanas a violência é um dado. Historicamente, inclusive, quanto mais complexa é a comunidade, maior é a importância e a independência da violência como base do poder constituído. O poder, é verdade, não se apóia apenas na violência, mas também no prestígio, no conhecimento e na lealdade. Um dado, porém, não pode ser ignorado: à medida que a complexidade social aumenta, a violência tende a sobrepor-se aos outros componentes do poder.
Em outras palavras, nas sociedades complexas, a violência passa a ser a base do prestígio, do conhecimento e da lealdade. Com isso, o único instrumento eficiente contra a violência torna-se a própria violência. Neste caso ela chega a libertar-se do direito, constituindo uma organização própria.”(39)
Daí, mais do que nunca, a necessidade do limite.(40)
Mas o que, afinal, então, pode ser considerado como “violência razoável”? É o mesmo jusfilósofo que encaminha a resposta, ao esclarecer que se trata de uma noção decisiva, mas complicada, que pressupõe a compreensão de uma correlação de variados fatores para a sua adequada compreensão. A questão é por ele posta nos seguintes termos:
“Portanto, o que define o caráter jurídico de um ato concreto de autoridade é, também, o grau de consenso público que ele admite. Tal consenso pode ser obtido de vários modos.
Por procedimentos políticos (como as eleições), por procedimentos interindividuais (como o contrato), por procedimentos avaliativos (como a sentença judicial). São estes procedimentos que garantem às normas a aceitação de que elas necessitam, para que possam ter valor jurídico, no caso concreto.
Assim, a violência legal – aquela cujo uso é regulado por lei – adquire caráter jurídico na medida em que corresponde a certos procedimentos institucionais capazes de presumir o consenso de terceiros. O policial que abate o criminoso em resposta a uma agressão, nesse sentido, não está apenas amparado na lei, mas por procedimentos institucionalizados que garantem certa estabilidade e reconhecimento à polícia no seu papel social.
Mas mesmo esse fator institucional não basta por si. Organizações ilegais como a Máfia, por exemplo, são verdadeiras instituições com normas próprias. E o que distingue seus atos da ação do poder constituído é a presença de certos valores a informá-los. As instituições e as normas são avaliadas em nome de ideais e não são meras opiniões, às vezes irrealistas, mas que exercem a função social de servir de parâmetros para julgamento social das ações. Por isso mesmo, numa sociedade onde o valor da ordem prepondera, os dirigentes tendem a julgar os demais valores de um ponto de vista superior, entendendo a inovação, a transformação e a mudança como subordinados à ordem.
A violência não entra no direito pela porta da lei, nem da instituição, nem dos valores. Ela pressupõe os três fatores numa só correlação. O ato legal que viola a instituição por medida violenta, ou o ato violento amparado nas instituições criminosas que desrespeitam os valores socialmente aceitos são, todos eles, antijurídicos. Como são, também, os atos de força que se amparam em valores sem amparo legal. Todos correm o risco de entrar na escalada da violência, à medida que seja baixa sua quota de legitimidade legal, institucional e valorativa.”(41) (destaque aposto)
Contudo, mesmo que seja efetivamente da existência dessa correlação de fatores que se possa extrair a noção da “violência razoável”, parece claro que sobressai dentro dessa dita correlação, para fins de se tornar mais palpável tal noção, a relevante idéia de orientação finalística da ação legal e institucional do Estado ao cumprimento de determinados valores, não entendidos estes como conceitos morais arbitrários, mas como verdadeiros princípios maiores ou idéias-forças – erigidos como tal pelo ordenamento jurídico – de uma coletividade organizada com vistas a uma determinada finalidade. Ou, numa outra frase: os valores cristalizados previamente no contrato social que dá as bases fundamentais da convivência em sociedade, por insertos no ápice do ordenamento jurídico de uma tal sociedade, são os elementos rígidos, o núcleo duro da demarcação conceitual da dita “violência razoável”.
E particularmente no caso do ordenamento jurídico brasileiro tornam-se mais evidentes a utilidade de tal afirmação e a clareza que decorre da apreensão de tal noção, uma vez que é expressa a adoção de determinados valores ou princípios, em sentido lato, para fundamentar o Estado brasileiro já ao início da Constituição Federal. Também assim, em se considerando o fato de que lá houve ainda uma clara eleição desses objetivos comuns a serem alcançados pelo Estado. Com efeito, o artigo 1º da Constituição Federal expressamente refere que a República Federativa do Brasil tem como fundamento, dentre outros, o valor da dignidade da pessoa humana (inciso III), noção que notadamente se destaca para o trato do tema da conceituação e limitação da violência, da forma como ora tratada. Outrossim, adiante, o artigo 3º da CF estabelece explicitamente, dentre outros objetivos da República Federativa do Brasil, os de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), com a promoção do bem de todos sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação (inciso IV). Logo, se no ápice desse ordenamento jurídico, fruto de um concerto prévio de vontades dos integrantes da coletividade nacional, se estabelecem tais fundamentos valorativos e nortes principiológicos a serem perseguidos pela ação estatal, de plano se percebe que a “violência razoável”, no caso brasileiro, somente poderá ser aquela que não afronte a dignidade da pessoa humana, que não viole o atingimento de tais objetivos almejados pela sociedade, em suma, que não colida com a concretização desses ideais, aí assumidos como “valores” (“juridicizados”) ou princípios diretivos a serem preservados e cultivados.
Eis então uma proposta mais palpável para uma definição por aproximação do que é a violência estatal razoável: trata-se da força do Estado usada nos limites da não-agressão à dignidade da pessoa humana e à construção de uma sociedade que cultive a liberdade, a justiça, a solidariedade e o respeito pela diferença, sob qualquer circunstância; e, mais, ainda, utilizada, sempre que possível, de forma voltada a auxiliar no respeito a tal dignidade e na consecução dos ditos objetivos.
A proposição fundamental a que aqui se chega é a seguinte então: toda a violência estatal, entendida como o uso necessário da força no exercício do poder, somente será razoável e, portanto, aceitável e legítima quando – e enquanto – não ultrapassar os limites indiretamente estatuídos pelos artigos 1º e 3º da Constituição Federal e não representar desvios de tais fundamentos e objetivos traçados para o Estado. Quer porque aí, então, a violência será não só destituída de apego aos fundamentos maiores do Estado e de uma finalidade valorada como desejável pelo concerto havido por ocasião da contratação da dita Carta Magna, quer porque será ela visceralmente ilegal, por inobservância à Lei Maior.
Daí por que, em resumo, a violência razoável, no nosso caso, é aquela que possa ser estipulada, não só por necessidades de ordem pragmática de uma situação ou de um caso dado, mas, principalmente e em última instância, justificada e autorizada por sua observância concreta do respeito à dignidade da pessoa humana e por sua efetiva contribuição na construção de uma sociedade concebida nos moldes do artigo 3º da Constituição Federal. Se houver desacordo com tais conteúdos, principalmente na condição de marcos limitantes extremos do uso da violência, há ilegitimidade da ação e iniqüidade manifesta no agir estatal. E nada poderá justificar à suficiência a quebra de tais compromissos maiores.
5 Da atual vulgarização da prisão como exercício de violência estatal não-razoável – O conflito social desumanizado e a necessidade de uma busca crítica da medida das coisas na punição criminal
Fixada, portanto, a noção de violência razoável, bem como estabelecido que da não-observância de tal noção pelo Estado decorre a sua própria deslegitimação, torna-se óbvia a necessidade de indagar em que medida a privação de liberdade, como expressão de exercício da força estatal, pode ser tida por legítima, mormente à luz do que se expôs no subitem anterior.
Nesse passo, o questionamento deve ser enfrentado sob dois enfoques: primeiro, é possível que a previsão do encarceramento seja considerada, ainda hipoteticamente, como expressão de violência razoável do Estado ante a sua noção já referida? Depois, se, na prática – principalmente em países como o nosso –, as condições de encarceramento são tão notoriamente deploráveis, como já observado, ainda que seja em tese legítimo o instituto da prisão como exercício de violência razoável, continua autorizada e legítima a sua utilização mesmo nessas circunstâncias (mormente quando se considerem para tanto somente argumentos de “defesa” dos interesses gerais da coletividade)?
Pois bem. Em primeiro lugar há de se explicitar ainda mais a idéia de que a prisão é de todo algo indesejável, por princípio e já em tese, por força de seus manifestos efeitos deletérios sobre a natural condição humana. Nesse sentido, basta recordar o que já foi extraído das considerações de Foucault a respeito do tema, mencionadas anteriormente, e, talvez, agregar as considerações de Zaffaroni a respeito do instituto em consideração,(42) ao compreender as “cadeias como máquinas de deterioração” humana.
No entanto, assim como a própria violência em si mesma considerada é algo indesejável a priori, mas necessita de uma utilização “razoável”, se se quiser falar da existência de um Estado, a prisão é a necessária expressão do limite extremo, ainda tolerável, do exercício dessa violência, para fins de garantia da existência de uma sociedade organizada justamente segundo os valores fundamentais já referidos, onde nenhuma outra resposta puder ser suficiente e eficaz frente à gravidade do ato criminoso. O que determinará, portanto, a legitimidade ou não de sua utilização será a observância pelo Estado do compromisso implícito de ser tratada como medida extrema que é – e, portanto, tendente a regular um número menor de casos, representativo de situações realmente mais danosas aos mesmos valores fundamentais –, dentro de determinadas condições que garantam uma privação de parcela mínima dos elementos constituintes de tal dignidade – redução da liberdade, por exemplo, ao mínimo suficiente e necessário –, por só aí ser possível se identificar ainda o compromisso do Estado com os ditos valores inalienáveis antes mencionados.
Com efeito, a simples determinação de segregação por tempo determinado do indivíduo agressor de bens jurídicos extremamente valiosos (por exemplo, a vida) não pode significar, por si só, uma desconsideração da dignidade ínsita à sua condição humana, tampouco ser tida por afronta aos objetivos de uma sociedade justa e solidária, eis que em tais situações não há necessariamente – conforme a compreensão da finalidade das penas que se tenha – o tratamento do agressor como “coisa” diferente de pessoa humana ou a consideração da medida de segregação como mero “meio” de garantir uma sociedade mais segura,(43) mas, antes sim, há o tratamento do dito agente agressor como ente dotado de autonomia ética e de acordo com o comportamento de violação do direito do semelhante, também pessoa humana detentora de dignidade a ser preservada, bem como um agir que se encarrega de garantir na prática a preservação do dito valor – tudo mediante a menor redução possível dos elementos essencialmente caracterizadores da dignidade humana do infrator, que assim é preservada em seu núcleo essencial.
Logo, bem se vê que tudo o que se explanou não guarda qualquer compromisso com idéias abolicionistas extremas, mas sim com uma visão da pena que seja expressão real de um Direito Penal mínimo, por mais comprometido com a idéia geral de preservação da humanidade nas relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado. A prisão é possível, mas simplesmente indesejável por princípio, devendo ser reduzida a casos mais graves. Daí o real comprometimento com idéias do teor daquelas expostas por LUIS FLÁVIO GOMES em sua obra “Penas e medidas alternativas à prisão”,(44) bem sintetizadas na seguinte passagem, ora transcrita por essencial:
“Se de um lado não podemos concordar com os postulados da postura político-criminal neo-retribucionista, até porque hoje ninguém discute que temos uma estonteante ‘inflação legislativa’ no âmbito criminal, o que permite, em tese, que o Estado ingresse excessivamente no âmbito da liberdade do cidadão, e se de outro lado não reivindicamos a ruptura total e absoluta da desinstitucionalização das respostas possíveis contra a conduta desviada (o que é sustentado pelo abolicionismo radical), não nos resta outro caminho senão nos inscrevermos dentre os adeptos do Direito Penal mínimo, que tem por fundamento três constatações irrefutáveis: (a) a falência das prisões e da ideologia do tratamento reabilitador dentro das prisões; (b) o elevadíssimo custo da operacionalização do sistema penal que, pelo que representa socialmente em termos de ‘benefícios’, ostenta mais efeitos negativos que positivos; (c) a deslegitimação do sistema em virtude de sua inerente e irremediável seletividade e discriminatoriedade, seja frente ao ‘selecionado’, seja frente à vítima.”
Nessas circunstâncias é que o que se pode ter então, a priori, como violência desarrazoada do Estado, quando se trata da questão da prisão, é a “banalização” de tal pena, tanto na sua previsão, como na sua aplicação. Sob esse enfoque, não é a existência da pena de prisão, mas a generalização dessa pena como “solução final” para a manutenção da ordem e da segurança devidas à sociedade, desapegada da realização dos valores e objetivos constitucionalmente fixados, que deslegitima a atuação estatal.
É assim, antes de mais nada, essa verdadeira vulgarização do encarceramento – que deveria ser, bem ao contrário, medida de cunho extremo e excepcional –, tão em voga hodiernamente,(45) que a transmuta em expressão de punição verdadeiramente cruel, já quando considerada em tese; é a utilização da pena restritiva da liberdade de forma indiscriminada, sem uma tentativa realmente interessada e efetiva de se reduzir a prisão aos casos em que ela se mostre realmente imprescindível, que gera a transmutação de tais penas, aceitáveis em determinadas condições extremas (em exercício de “violência estatal razoável”), em penas verdadeiramente cruéis noutras tantas, por manifesto exercício de força bruta desapegada de comprometimento com os valores constitucionais (em sentido lato), mormente com um “princípio de humanidade”.(46)
A generalização do uso da prisão é, portanto, antes mesmo das más condições físicas ou materiais do cárcere, o mal maior a ser combatido, por várias razões: quer porque, de um ponto de vista mais abstrato, se trata de elemento do problema logicamente anterior à questão do concreto tratamento desumano dos já aprisionados, quer porque, de um ponto de vista mais pragmático, tende inclusive a resultar no esvaziamento dos cárceres, com natural melhoria de suas condições, ou, ainda, porque um tal combate, a partir da atuação jurisdicional criminal comprometida com a realização dos ditos valores constitucionais, é o que jurídica e materialmente está ao alcance do juiz fazer desde logo, por dizer diretamente com a sua atividade-fim, no estrito âmbito de suas competências.
Se, por exemplo, é possível identificar distorções na eleição feita pelos próprios legisladores acerca dos bens jurídicos passíveis de serem garantidos pela pena de prisão (inclusive com a utilização ideológica da referida “seletividade” e “discriminatoriedade” de agentes e vítimas do crime já apontada), se é possível concluir pela falta de condições materiais para que os administradores executem concretamente tudo aquilo que abstratamente está previsto na Lei de Execuções Fiscais e se é possível afirmar que o primeiro problema diz com defeito de atuação do Legislativo e o segundo com as insuficiências ou imprevisões do Executivo, jamais se poderá negar que o Judiciário, no exercício do poder-dever de punir, pode e deve intervir naquilo que lhe cabe fazer para contribuir com a mitigação dessa banalização do aprisionamento e com a recondução da utilização desse instituto extremo à sua expressão de exercício de “violência razoável” do Estado.
Uma prestação jurisdicional que busque angariar incremento de legitimidade, pela justificada redução do encarceramento à luz dos valores constitucionais, sempre que isso se mostrar possível, mesmo ante a este quadro de deficiências importantes do sistema noutras partes que não são passíveis de serem alcançadas pela ação do Judiciário, será, assim, fundamental para afastar a iniqüidade da violência estatal desmedida e tornar o sistema mais justo para todos os que, queiram ou não, dele participam.
Nesse passo é que surge a necessidade de se abordar o segundo aspecto da discussão sobre a legitimidade da prisão, já apontado antes. Mas, afinal, mesmo que haja justificativa teórica para a utilização do instrumento da prisão, a sua aplicação, ainda que reduzida a casos extremos, onde as condições de encarceramento são tão notoriamente deploráveis, não continuaria sendo ilegítima nestas circunstâncias?
Em princípio, é fato que não se poderia utilizar legitimamente uma conta utilitarista, no sentido de garantir o maior benefício de todos em detrimento do direito de um indivíduo, para justificar o aprisionamento em tais condições daquele que efetivamente devesse ser segregado, acaso se pretenda realmente levar a sério o conceito de violência estatal razoável, estribado no fundamento da dignidade da pessoa humana. Entretanto, também parece evidente que não seria possível concluir pela simples inércia estatal nesta situação, que justificasse o não-aprisionamento generalizado com base na idéia de preservação da dignidade da pessoa humana do agente do delito, por uma tal omissão do Judiciário representar, então, afronta aos mesmos valores e objetivos fundamentais da Constituição Federal, considerado o direito de cada um dos demais indivíduos integrantes da sociedade.
Nesse caso, surgiria evidente a necessidade das seguintes distinções, para resolver esse aparente paradoxo: enquanto o Estado age determinando encarceramento de massas, de forma indiscriminada, age contra a lei (Maior, inclusive); enquanto o Judiciário determina que exceções vão ao cárcere, não para a submissão aos cruéis vilipêndios do corpo e da dignidade, mas para o cumprimento da sanção extrema mediante execução comprometida de forma mínima com os ditos valores constitucionais, age de acordo com a lei.
As violências e brutalidades inomináveis praticadas no interior das prisões do Brasil são manifestas ilegalidades que, mesmo com tal determinação de encarceramento só no caso extremo, continuam a ter a natureza de ilicitudes a serem reprimidas com rigor. No entanto, cabe aí, nesse momento, nova luta, agora do Juiz responsável pela execução da pena – para se permanecer apenas no âmbito do que o Poder Judiciário pode fazer –, para que ela se dê de forma a garantir minimamente os direitos do condenado segundo os valores constitucionais referidos. É estabelecido, nesse ponto, um novo embate, agora para que se dê efetividade às leis que garantem uma execução de pena comprometida minimamente com a dignidade humana, eis que elas, como já se disse, de fato existem.
O fato é que, com essas posturas do Judiciário, ao menos não mais se poderia falar da falta de legitimação do Estado, no que tange a este Poder, decorrente de uma inação frente à notória realidade infamante da maioria dos presídios ainda nos dias de hoje, eis que comprometida ação passaria a haver, bem como seria indubitável a ocorrência, ainda que indireta, de uma contribuição significativa para resolver esta caótica situação mediante o ingresso de um número muito menor de prisioneiros no sistema carcerário. A luta pela crítica e efetiva realização do Direito tomado nestas bases – entendido como aquele transformado pelo rigor da aplicação do contrato social, pela filtragem hermenêutica constitucional e consideração dos reais problemas da sociedade contemporânea –, quando da prestação jurisdicional, então, legitima o agir.
A verdade, de qualquer forma, é que um simples vislumbre dessa realidade, a mera aceitação da necessidade destes combates, o singelo exame destas noções antes abordadas, por parte do Juiz, já se presta ao encaminhamento da eliminação da injustiça visceral que representa ainda hoje a cruel idéia de imposição generalizada da privação da liberdade – por insubmissa sequer a um compromisso com um princípio de humanidade – como forma de solução de questões regidas pelo Direito Penal.
Por isso é fundamental, nesse momento, deixar muito bem explicitada também a profunda e ampla extensão de tal iniqüidade. A vulgarização da prisão como exercício da violência estatal desarrazoada é intrinsecamente injusta com os condenados atingidos por tal massificação, porque enseja o desrespeito ao fundamental direito ao tratamento do indivíduo como homem, e não como “coisa” ou “meio”; é intrinsecamente injusta com a sociedade, porque não obedece aos reclamos de um seu aperfeiçoamento segundo o acordado constitucionalmente, vendendo ilusões de segurança contra um poderoso inimigo sem face – “o criminoso”, corporificado sempre na pessoa do “outro”, estranho ou diferente; é intrinsecamente injusta com as vítimas, porque lhes põe às costas o peso de uma ação estatal cruamente retributiva, que é excessiva e infamante, ainda que, talvez, contra a sua vontade; é, por fim, visceralmente injusta com o julgador, por acabar por desvirtuar os mais nobres propósitos na realização da justiça criminal que possa ter, garantindo que, ao fim de tudo, não passe mesmo de um burocrático operador de um sistema capaz das maiores iniqüidades, se não for submetido a um rigoroso controle e filtragem constitucional, e, o que é pior, de um agente desse sistema – em verdade, via de regra, de denominação social de excluídos – embalado pela falsa ilusão de dispor de um poder quase divino do qual, na verdade, não desfruta nem pode mesmo deter e gozar.(47)
Por derradeiro, é de se dizer que, exposta a iniqüidade inerente ao exercício da violência estatal desmedida, representada pela resposta prisional como meio de sanção ainda primordial e (cada vez mais) abrangente no Direito Penal pátrio hodierno, é possível, por tudo o que foi exposto, identificar claramente o compromisso das visões que garantem o exercício desta violência desarrazoada com uma “desumanização” dos conflitos sociais, em que surgem as situações passíveis de encaminhamento criminal, e dos seus atores.
Assim, o crime é sempre praticado pelo “outro”, essencialmente diferente de mim, que não merece as considerações de regras humanitárias – que se aplicam somente aos meus semelhantes “não-criminosos”; o julgador é um terceiro investido de um poder que lhe garante onisciência e infalibilidade sobre-humana, apto a julgar sem culpas ou erros o vil ato do criminoso; a sociedade é um palco neutro, sem conflituosidade prévia alguma, onde somente aqueles que optaram pela ação criminosa escolheram, de forma absolutamente livre e incondicionada, desempenhar o papel do bandido.
Nada disso, entretanto, condiz com a complexa realidade do homem, de suas relações intersubjetivas ou com a coletividade e com o Estado, e muito menos com o incremento desta complexidade ínsita ao próprio mundo moderno – ou seja, com o mundo cambiante de premências e pleno de conflitos da sociedade contemporânea em transição.(48)
Há, portanto, que se deixar, além dos eufemismos, os maniqueísmos e as ilusões metafísicas de lado, se o objetivo for construir uma real Justiça criminal (em lugar de meros aparatos arbitrários de dominação social), legitimada por compromissos democráticos verdadeiros. Há de se trabalhar, árdua e criticamente, pela construção dessa Justiça criminal, também a partir da prestação jurisdicional devida nessa área, que realmente seja dos homens e para os homens. Há, enfim, que se humanizar as discussões e práticas referentes à punição criminal.
Referências bibliográficas
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Notas:
1. Para tanto, as lições de HOBBES (158-1679), no “Leviathan”, no que possa essa obra ser interpretada “como um projeto de justificação racional da autoridade” [BARBOSA FILHO, Balthazar. Condições da autoridade e autorização em Hobbes. In: BARBOSA FILHO, Baltazhar et.al. Filosofia política 6. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 63-75].
2. In Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o poder, a justiça, a liberdade e o direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.71, onde se lê: “A violência (enquanto ‘vis’, força) está ligada à natureza do homem e não resta dúvida de que a agressividade do comportamento humano é um dado palpável. Daí a importância da fixação de limites no seu uso, quando sabemos que, no ser humano, em princípio, ela não tem limites.”
3. Op. cit., p.72.
4. Investigações a serem encaminhadas noutro escrito, dado o limitado fôlego do presente trabalho.
5. O artigo intitulado “O sistema prisional: um debate necessário”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 67 (jul./agos. 2007), é de diferenciada valia para uma adequada compreensão e contextualização da problemática ora posta em discussão e por isso mesmo será objeto de várias citações no curso da exposição que segue. Tal trabalho foi elaborado por estudiosos do Direito e da Sociologia vinculados à USP e membros da Comissão sobre Sistema Prisional do IBCcrim (Alessandra Teixeira, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Salla e Marcos César Alvarez). Quanto à questão da “construção de uma perspectiva crítica” sobre o tema “prisão e punição”, à luz das incessantes transformações da sociedade contemporânea, faz o registro de instigantes posições de alguns autores nessa área, o que impõe uma transcrição de tal registro neste momento, para fins de estimular o espírito crítico na consideração do que seguirá adiante: “Muitos autores, desde então, têm seguido a trilha aberta por trabalhos como os de Rusche e Kirchheimer e de Michel Foucault, mostrando os impactos e significados das políticas penais para muito além dos efeitos assumidos em termos de combate ao crime.
Zygmunt Bauman (1999) [BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.], por exemplo, se situa mais próximo de explicações como a de Rausche e Kirchheimer, ao mostrar que o novo paradigma punitivo da atualidade poderia ser explicado a partir das transformações econômicas e sociais que estão redesenhando as próprias sociedades contemporâneas em âmbito global. Para Bauman, com a assim chamada globalização da economia, o horizonte da ética do trabalho, que havia definido o paradigma da correção prisional, entra em crise e com ele a prisão como instrumento de correção das classes trabalhadoras. Se o modelo da prisão no século XIX e na maior parte do século XX nunca deixou de ser a workhouse – casa de correção e trabalho, cujo objetivo era moldar o trabalhador disciplinado –, na contemporaneidade a prisão torna-se um instrumento singular de imobilização e neutralização daqueles grupos sociais excluídos da nova economia globalizada.
Loïc Wacquant (2001 a, 2001 b) [WACQUANT, L. Os condenados da cidade: estudos sobre a marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan, 2001; As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.] adota uma explicação mais política do que exclusivamente econômica. Se o ideal de recuperação, no âmbito das políticas penais, passa a ser paulatinamente abandonado em prol de um novo paradigma punitivo, voltado mais para a imobilização e neutralização dos criminosos do que para a correção e recuperação, tal redirecionamento coincide com a onda conservadora que, a partir da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, redesenha o jogo político mundial, inclusive com uma crítica acentuada às conquistas do Welfare State. Assim, para Wacquant, é o Estado Penal – Estado que passa a encarcerar um número cada vez maior de indivíduos, a partir do endurecimento das políticas punitivas – que substitui o Estado Social, já que a atrofia dos direitos sociais, por um lado, e a hipertrofia das políticas duras de controle social e o crescimento alarmante do encarceramento, por outro, são ‘transformações complementares e correlativas que fazem parte da instituição de um novo governo da miséria’ (Wacquant, 2001 a , p.221).
David Galard, por sua vez, busca construir uma explicação mais sistemática em torno destas questões, colocando-se ao mesmo tempo como historiador da punição, ao traçar a história das políticas penais do Welfare State (Garland, 1985) [GARLAND, David. Punishment and Welfare: a history of penal strategies. Burlington: Ashgate, 1985], como teórico da ‘Sociologia da punição’, ao reconstruir os argumentos dos principais autores que, no âmbito da teoria social, procuraram distinguir o fenômeno da punição (Garland, 1993) [Punishment and modern society: a study in social theory. Chicago: Oxford University Press, 1993], e, finalmente, como analista das transformações contemporâneas, do novo paradigma punitivo (Garland, 2001) [The Culture of Control: crime and social order in contemporany society. Chicago: University of Chicago Press, 2001]. Ao analisar as mutações das políticas de controle do crime na modernidade tardia, Garland considera que, com as mudanças estruturais ocorridas a partir do início dos anos de 1970, entram em crise as políticas de bem-estar, que são substituídas por uma nova cultura do controle, a partir da qual o crime passou a ser visto não mais a partir de uma agenda da solidariedade e direitos, mas sobretudo como quebra de ordem.
Inúmeros autores podem ser citados, sendo que o que há em comum entre eles é a busca de novas formas de análise crítica das políticas punitivas que contribuam para o rompimento do consenso em torno das políticas de lei e de ordem e do novo paradigma punitivo que as sustenta. Em contrapartida, é preciso aprofundar a discussão pública das opções existentes em termos das práticas e políticas penais, tendo em vista as garantias do Estado de Direito, a afirmação dos direitos humanos e a expansão da cidadania no âmbito de uma humanidade globalizada, não apenas por mecanismos de controle e vigilância globais.” (ALVAREZ, 2007 : 243-244).
6. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
7. Op. cit., p. 44.
8. Op. cit., p. 45.
9. Em nota de rodapé à edição da obra de Michelet mencionada, o consultor menciona que Damiens teria sido condenado, em verdade, por regicídio, por ter agredido Luis XV, “ferindo-o muito levemente com um canivete, na intenção de advertir o rei, para que cumprisse melhor seus deveres”, fazendo referência à célebre transcrição do suplício realizada por Michel Foucault em “Vigiar e Punir”, aqui parcialmente reproduzida – que, entretanto, refere-se a parricídio (op. cit., p.188). Já José A. Paganella Boschi, em seu “Das penas e seus critérios de aplicação”, menciona que Damiens teria sido executado por parricídio (BOSCHI, 2004: 99).
10. Op.cit., pp. 9-10.
11. MICHEL FOUCAULT, op.cit., p. 40
12. Que é de se dizer, aliás, nem era de todo verdadeiro, como historia o próprio Michel Foucault noutra passagem digna de nota: “Sem dúvida, algo dos suplícios prevaleceu, por algum tempo, na França, à sobriedade das execuções. Os parricidas – e os regicidas, a eles assemelhados – eram conduzidos ao cadafalso, cobertos por um véu negro, onde, até 1832, lhes cortavam a mão. Assim, restou apenas o ornamento de crepe, tal como aconteceu para Fieschi, em novembro de 1836: ‘Será conduzido ao lugar da execução, em camisão, pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro; será exposto, em um cadafalso, enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executando.’ Devemos nos lembrar de Damiens e comparar que o derradeiro implemento à morte penal foi o crepe. O condenado não deve ser visto. Só a leitura da sentença punitiva mostra um crime que não deve ter rosto. O último vestígio dos grandes espetáculos de execução é sua própria anulação: um pano para esconder um corpo. Exemplo disso foi a execução de Benoit, três vezes criminoso – matador da mãe, homossexual, homicida –, o primeiro parricida cujas mãos a lei não cortou. ‘Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação, estava de pé no cadafalso, sustentado pelos carrascos. Era horrível aquele espetáculo: envolto em grande mortalha, a cabeça coberta por um crepe, o parricida estava fora do alcance dos olhares da silenciosa multidão. E sob aquelas vestes, misteriosas e lúgubres, a vida só continuava a manifestar-se através dos gritos horrorosos, que se extinguiram logo, sob o facão.’” (Michel Foucault, op.cit., p.16)
13. MICHEL FOCAULT, op.cit., p.16.
14. Veja-se no caso do Brasil de hoje, no capítulo seguinte, a degradação humana promovida pelo massivo encarceramento em condições precárias e a própria transmutação indireta da pena restritiva de liberdade, em alguns casos, para penas não-escritas de suplícios corporais e, até, de morte, como ocorre sabidamente com os condenados por estupro.
15. VITOR HUGO narra o insucesso da guilhotina nesta empreitada “humanizante” e supostamente igualitária da aplicação da pena de morte na seguinte impressionante passagem: “No sul, pelo fim de setembro passado, não lembramos exatamente o lugar, o dia, o nome do condenado, mas podemos citá-los se o fato for contestado, e achamos que foi em Pamiers [na realidade, foi em Albi. Tratava-se de Pierre Hérbrard, cuja execução, no dia 12 de setembro de 1831, tinha sido registrada na ‘Gazette des tribunaux’, de onde Hugo retirou os detalhes]; lá pelo fim de setembro, foram buscar o homem na prisão onde estava tranqüilamente jogando cartas, notificam-no de que ele tem de morrer dentro de duas horas, com o que ele começa a tremer da cabeça aos pés, pois, depois de seis meses no mais completo esquecimento, já não contava mais com a morte; raspam-no, tosam-no, amarram-no, confessam-no; após o que jogam-no num carrinho de mão entre quatro gendarmes e, passando pela multidão, levam-no ao lugar da execução. Até aqui, tudo muito simples. É assim que acontece. Chegando no cadafalso, o carrasco toma-o do padre, leva-o, amarra-o no básculo, ‘l’enfourne’ [enforna-o], aqui estou usando a gíria, e solta a lâmina. O pesado triângulo de ferro desprende-se com dificuldades, cai aos solavancos entre os trilhos, e aqui começa o horrível, corta o homem sem matá-lo. O homem dá um grito medonho. Desconcertado, o carrasco puxa a lâmina e solta-a novamente. A lâmina entalha o pescoço do paciente pela segunda vez, mas não separa o corpo. O paciente dá urros, a multidão também. O carrasco torna a levantar a lâmina, esperando sair-se melhor da terceira vez. Nada. O terceiro golpe faz jorrar um terceiro rio de sangue do pescoço do condenado, mas não trincha a cabeça. Para encurtar, a lâmina subiu e desceu cinco vezes, por cinco vezes cortou, por cinco vezes o condenado soltou urros sob o golpe e sacudiu a cabeça gritando, pedindo perdão! O povo indignado armou-se de pedras e pôs-se, na sua justiça, a apedrejar o miserável carrasco. O carrasco foge por baixo da guilhotina, agacha-se atrás dos cavalos dos gendarmes. Mas a história ainda não acabou. O supliciado, vendo-se sozinho no cadafalso, tinha se levantado da tábua e, em pé, pavoroso, o sangue escorrendo pelo corpo, segurando a cabeça parcialmente cortada que caía no seu ombro, pedia com gritos fracos que viessem soltá-lo. A multidão, tomada de piedade, estava a ponto de forçar os gendarmes e prestar ajuda ao coitado a quem tinham aplicado cinco vezes a sentença de morte. É nesse momento que um ajudante do carrasco, um jovem de vinte anos, sobe no cadafalso, pede para o paciente virar-se para que possa soltá-lo e, aproveitando-se de posição do moribundo que estava se entregando a ele sem desconfiar, pula nos ombros dele e começa a cortar o que restava de pescoço com não sei que faca de açougueiro. Isto aconteceu. Isto foi visto. Sim. Nos termos da lei, um juiz deve ter assistido a essa execução. O que estava fazendo este homem, no fundo de sua carruagem, enquanto um homem estava sendo massacrado? O que fazia este punidor de assassinos, enquanto alguém estava sendo assassinado, em plena luz do dia, debaixo de seus olhos, sob o sopro de seus cavalos, debaixo do vidro de sua portilhola? E o juiz não foi submetido a julgamento! E o carrasco não foi submetido a julgamento! E nenhum tribunal inquiriu essa monstruosa exterminação de todas as leis na pessoa sagrada de uma criatura de Deus!”
16. Mota Coqueiro foi acusado de mandante da mutilação e assassinato cruel de uma família de colonos, supostamente motivado por um caso amoroso que teria tido com uma das filhas da dita família, passando a ser designado pelo povo, em virtude da repercussão do caso, como a “fera de Macabu”. Essas informações e o excerto transcrito a seguir foram extraídos do texto de RENÉ ARIEL DOTTI, “Rituais e martírios da pena de morte”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, a. 7, n. 26, p. 267-285, abr./jun. 1999.
17. MICHEL FOUCAULT, op.cit., p. 215.
18. Op.cit., p. 18.
19. “O mérito das análises de Foucault consistiu em mostrar que a prisão moderna implicava novas formas de controle social cujo alcance extrapolava seus muros, configurando assim uma verdadeira tecnologia de poder, e não apenas uma forma de execução das penas. Os castigos físicos e psicológicos impostos na prisão, por sua vez, não seriam necessariamente formas mais humanizadas de punição e, por isso, seria preciso refletir se, na atualidade, a prisão não seria tão intolerável quanto foi o suplício no momento da queda do Antigo Regime.” (ALVAREZ, 2007 : 242-243).
20. Naquilo a que também já não tenham cedido, principalmente a LEP, ao movimento atual de endurecimento “legal” da punição vivenciado também no país, a partir da década de 1990 (ALVAREZ, 2007: 247), com abandono progressivo de ideais de ressocialização e assunção da lógica de um sistema mais puramente retributivo e segregacionista.
21. E até porque o dito “endurecimento” atual da punição criminal que vem ganhando espaço também na forma de inovações legislativas orientadas muito mais para a pura retribuição e segregação do condenado para a segurança da coletividade do que para uma ressocialização do apenado bem demonstra não só a preservação do germe da violência sem limites de outrora no próprio ordenamento jurídico de hoje, como explicita o seu desenvolvimento contemporâneo. Isso tudo estimulado pelas circunstâncias do mundo moderno e pela ausência de consideração pelos operadores do Direito e detentores de poder de um real imperativo absoluto de limitação pela “violência razoável” do Estado. Isto é, pela falta de uma clara e robusta limitação da força do Estado, não sujeita a considerações circunstanciais de necessidade e conveniência a partir de determinado ponto, por um proceder razoável orientado e imposto pelo contrato social inscrito constitucionalmente. E apenas para ilustrar uma possível demonstração da pressão constante exercida sobre os limites da violência estatal tolerada, que acabam se tornando indevidamente frágeis e cambiantes, ao contrário do desejável, ALVAREZ e outros citam, a título de exemplos de intensificação da violência institucional, corporificada no espaço do legalmente previsto – ainda que a questão aqui possa ser passível de maiores questionamentos –, o surgimento da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e a criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), incorporado pela própria Lei de Execução Penal a partir de sua reforma, em dezembro de 2003, pela Lei 10.792/2003 (ALVAREZ, 2007:247-148).
22. VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.144.
23. VARELLA, 1999 : 145-146.
24. VARELLA, 1999 : 146-147.
25. Sobre o extremo destas punições não-escritas, eis os impressionantes dados registrados no artigo “O sistema prisional: um debate necessário”, de autoria de estudiosos do Direito e da Sociologia vinculados à USP, ao início já citado: “Contudo, além dessa dimensão legal, a dinâmica das prisões vai se constituindo cada vez mais como campo de imposição de penalidades extralegais. Os maus-tratos e a tortura são alguns exemplos, dentro de um amplo espectro de práticas que hoje caracterizam as prisões brasileiras, como a superlotação, a quase total ausência de serviços para os presos e a precariedade dos alojamentos e da alimentação.
Desse quadro sinistro resultam dados mais incisivos que revelam algumas das principais facetas da violência nas prisões brasileiras, como, por exemplo, o número de mortes por agressão. Um dos poucos dados publicados pelo Ministério da Justiça, em 1994, através do Censo Penitenciário, indicou que haviam ocorrido no Brasil 131 homicídios nas prisões brasileiras, o que representava a elevada taxa de 1,01 homicídio por grupo de mil presos. Segundo o Census de 1995 [“US Departament of Justice – Bureau of Justice Statistics” – www.ojp.usdoj.gov/bjs; Ministério da Justiça do Brasil – www.mj.gov.br, nos EUA, ocorreram 82 homicídios no interior das prisões, para uma população encarcerada de cerca de um milhão de indivíduos, resultando numa taxa de 0,08 para cada grupo de mil encarcerados. A taxa brasileira era, portanto, 13 vezes superior à norte-americana.
A pesquisadora Julita Lemgruber [LEMGRUBER, Julita (coord.) Arquitetura Institucional do SUSP/Sistema Penitenciário. Firjan/Pnud, não publicado, 2004. Disponível no site http://www.segurancahumana.org.br/home.htm. apurou que, em 2002, tinham ocorrido 303 homicídios nas prisões brasileiras, o que correspondia a uma taxa de 1,2 morte para cada grupo de mil presos. A média para todo o Brasil esconde cenários mais graves, como o de São Paulo, que em 1999 teve 117 mortes com a taxa de 2,2 presos mortos para cada grupo de mil, à medida que no ano de 2002 foram 97 os mortos, correspondendo a 1,1 mil presos por mil, uma vez que a população havia crescido consideravelmente no período.” (ALVAREZ, 2007 : 248-9 – Destaques e inserções de notas apostas).
26. “Muitos dos principais problemas do sistema carcerário no país estão relacionados a um crônico déficit de vagas, fazendo com que boa parte da população encarcerada fique submetida a péssimas condições de habitabilidade. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em 2005, o déficit de vagas no Brasil era da ordem de 145.492, para uma população de 361.402 presos. Havia, portanto, apenas 215.910 vagas disponíveis distribuídas por estabelecimentos que não possibilitavam o acesso do preso a serviços essenciais, como cuidados médicos, escolarização e assistência judiciária” (ALVAREZ, 2007 : 250).
27. VARELLA, 1999 : 27-28.
28. VARELLA, 1999 : 24.
29. “Embora não existam dados de boa qualidade sobre as rebeliões e incidentes graves nas prisões brasileiras, a imprensa traz com relativa freqüência notícia sobre tais ocorrências que costumam evidenciar a baixa capacidade de as autoridades controlarem o cotidiano das prisões e evitarem fugas e motins. As intervenções de contenção por parte das forças policiais são muitas vezes violentas e agravam ainda mais a situação.” (ALVAREZ, 2007 : 249).
30. E a demonstração mais recente e explícita, por absolutamente chocante mesmo para aquele detentor da mais empedernida sensibilidade, de até onde se conseguiu chegar nas prisões brasileiras no referente à permissividade quanto à instalação deste “mundo cão”, vem sendo bastante noticiada pela mídia nacional e internacional. Trata-se da “descoberta”, a partir de um caso ocorrido na remota localidade de Abaetetuba, Estado do Pará, da existência, pelo menos naquele estado, de uma série de encarceramentos (inclusive de cunho provisório) de mulheres em celas masculinas, com as óbvias e nefastas conseqüências decorrentes desta prática desumana e absolutamente ilegal. Nesse sentido, as seguintes manchetes jornalísticas: “Descoberto quarto caso de mulher presa entre homens no Pará – Prisão teria acontecido em São José de Pirabas, no Nordeste do estado. Em Abaetetuba, polícia mostrou documento em que informa a presença da mulher à Justiça.” (Fonte: http://g1.globo.com/Notícias, consulta em 26.11.2007); “Girl ‘raped and tortured’ in cell with 20 men” – onde se lê, em reportagem datada de 23.11.2007 e assinada por Tom Phillips, correspondente do jornal britânico “The Guardian” no Rio de Janeiro, de forma introdutória, o seguinte: “Authorities in the Brazilian Amazon have come under fire after reports that a 16-year-old girl was repetedly raped and tortured while being held in a prision cell with at least 20 men.” (Fonte: http://www.guardian.co.uk, consulta em 26.11.2007). Ainda que provavelmente se trate de caso extremo isolado no Brasil, ao menos no que diz com essa aparente “institucionalização” prática dessa terrível ilegalidade, dificilmente haverá exemplo mais eloqüente do grau de violação da dignidade humana, de “desumanização” mesmo do detento, atingido no sistema prisional nacional.
31. Vide a referência, no artigo “O sistema prisional: um debate necessário”, à megarrebelião de 18 de fevereiro de 2001 envolvendo 27 unidades prisionais no estado de São Paulo, como evidenciadora da existência da facção criminosa denominada PCC – Primeiro Comando da Capital – e demonstração a toda a sociedade de sua força no amotinamento das massas carcerárias, capacidade de mobilização até então conhecida somente intramuros (ALVAREZ, 2007 : 248).
32. VARELLA, 1999 : 142.
33. FABIO KONDER COMPARATO leciona em sua obra “Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno”: “O poder é uma realidade multifária, que deve ser compreendida sempre em seu duplo aspecto: objetivo e subjetivo. Objetivamente, o poder se apresenta de várias formas. É a posse e o uso dos instrumentos de coação, física ou mental; o prestígio ou autoridade moral; a aprovação majoritária do grupo social; a propriedade ou a posse de bens econômicos; o conhecimento científico e o saber tecnológico. Essas diferentes formas de poder combinam-se para constituir, também aí, um sistema no qual todas elas se influenciam reciprocamente, muito embora, conforme as épocas históricas e as diferentes culturas, uma espécie de poder exerça ação aglutinadora das demais. (...) Subjetivamente, alcançar ou manter o poder é um desejo que anima um número incontável de pessoas.” (COMPARATO, 2006 : 26-27).
34. O mesmo autor da nota anterior, FABIO KONDER COMPARATO, na mesma obra citada, esclarece: “O sistema ético em vigor na sociedade exerce sempre a função de organizar ou ordenar a sociedade, em vista de uma finalidade geral. Não existe ordem social desvinculada de um objetivo último, pois é justamente em função dele que se pode dizer se o grupo humano é ordenado ou desordenado; se se está diante de uma reunião ocasional de pessoas, ou de uma coletividade organizada. Ordem é um conceito relacional, subordinado à definição de uma finalidade. Essa verdade lógica elementar é, no presente, desconhecida pelos ideólogos da ordem por si mesma (law and order). O que se esconde, por trás dessa fórmula de propaganda, é obviamente o favorecimento de determinadas classes sociais ou corporações específicas, em detrimento do bem comum de todo o povo.” (COMPARATO, 2006 : 23).
35. Como refere JOSÉ PAGANELLA BOSCHI, em seu “Das penas e seus critérios de aplicação”: “O momento atual é de incerteza quanto aos rumos da política criminal. Os ataques terroristas e a onda de violência e criminalidade convencional que inferniza a população de países periféricos, como é o caso do Brasil, está sugerindo a inversão da tendência mundial em favor das penas alternativas. Em face do trágico 11 de setembro, quando terroristas puseram abaixo as torres gêmeas, nos Estados Unidos, receia-se que os governos conservadores, como parece estar sendo, aliás, a tendência, reaqueçam o movimento Lei e Ordem, que, em nome da ‘tolerância zero’, da Lei e da Ordem, reduz as liberdades fundamentais, maximiza o direito penal, desvia recursos orçamentários para o aparelhamento bélico e militar e, assim, reproduz a desigualdade e a exclusão social, fontes de violência e de criminalidade.” (BOSCHI, 2004 : 97).
36. Nesse ponto, fundamental a excepcional e sintética exposição sobre esta questão do “novo cenário da punição”, mesmo após tudo o que foi construído durante e após o Iluminismo, com referência direta à contemporaneidade, encontrada no aqui já multicitado “O sistema prisional: um debate necessário”, que, por valiosa, não se pode deixar também de transcrever: “A década de 1970 desencadeou uma alteração profunda no perfil das políticas penais do mundo contemporâneo. Desde o Iluminismo, a idéia de que a punição deveria ser não um castigo cruel e, sim, um mecanismo de correção e recuperação foi uma diretriz-chave para as reformas das prisões e para a humanização das penas em inúmeros países do mundo. Tais concepções, de acordo com as quais a punição deveria estar atrelada a uma perspectiva não só de reparação e de recomposição das relações sociais, mas também de reintegração do indivíduo criminoso à sociedade, ganharam fora e se transformaram em políticas penais concretas ao longo de grande parte do século XX. De diversas formas, predominava nessas políticas o reconhecimento de que a sociedade tinha ampla responsabilidade sobre os crimes e os criminosos.
Já o novo padrão punitivo que emerge nas últimas décadas do século XX tem se mostrado mais intransigente e segregador, baseado sobretudo num discurso da necessidade do endurecimento das penas, sendo que as unidades especiais de encarceramento são as instituições exemplares desse novo paradigma punitivo, instituições que abandonam quase totalmente a perspectiva de recuperação do indivíduo criminoso para seu retorno à sociedade.
Simultaneamente a esse novo rigor punitivo, o Estado contemporâneo foi esmaecendo a sua agenda protetora dos direitos dos cidadãos. Novas preocupações em termos de políticas de segurança deslocaram a pauta ‘welfarista’, ao menos onde esta era hegemônica, para uma pauta mais coercitiva, policial, penal, voltada especialmente para o controle social. Os efeitos dessa recomposição econômica e política têm se mostrado graves: a violência, a criminalidade, as questões gerais de segurança pública entraram na agenda das inquietações da população e das prioridades governamentais em detrimento de outros temas. O encarceramento, por sua vez, que chegou a ser visto como mecanismo punitivo anacrônico no estado do bem-estar nos anos 1960, retomou suas forças na dinâmica social e política de controle. A partir dos anos 1970, as taxas de crescimento da população encarcerada não deixaram de ter ritmo acelerado.”(ALVAREZ, 2007 : 235-236 – negritos apostos).
37. Diz GUILHERME PORTUGAL BRAGA, mestre e professor de Direito Penal e Criminologia no Rio de Janeiro, no artigo intitulado “Eu não suporto o outro. Ele não sou eu”, publicado na revista “Veredas do Direito”, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 98-9, jan./jun. 2005: “Das páginas dos jornais, salta a sensação de estarmos em uma guerra, nunca explicada e genericamente definida como guerra ao narcotráfico, repercutindo os interesses geopolíticos daqueles que pretendem desempenhar importante papel político na América Latina, da qual roubaram até o nome. A war on drugs é vendida como solução. Os movimentos de lei e ordem cada vez mais pedem o aumento de penas, mas poucos percebem a raiz do problema, uma sociedade que se pretende democrática, mas que pouco sabe sobre alteridade e não consegue abandonar as normas da intervenção moral. No direito de matriz ibérica, a primeira destas normas é do séc. IV e punia as pessoas pelo porte de determinadas coisas (Batista, 2000). Àquela época eram os livros do judaísmo que poderiam lesar a integridade moral das pessoas e da sociedade, pois a sociedade visigótica, romanizada e cristianizada, já dificultava a existência da diferença. A diferença gera uma impressão de desordem. Tais normas significam a completa negação da alteridade, pois, além de não reconhecerem a diferença, estas normas pretendem eliminá-las pela lei. (....) Como o cristão que não suporta o judeu, o conservadorismo das políticas de lei e ordem não liga para as conseqüências maléficas de legislação que não respeitem o direito à diferença. E estas legislações são frutos de um eu que não suporta o outro, a não ser que o outro seja como desejo que ele seja. E o medo continua nosso companheiro cotidiano ante a dificuldade de aceitar e conviver com a diferença.” (destaques apostos).
38. Sobre possíveis causas diretas do extraordinário crescimento contemporâneo do encarceramento no Brasil e no mundo (o que, no contexto deste escrito, representa justamente a essência do incremento da iniqüidade da violência estatal desmedida), veja-se o seguinte: “O que impulsiona esse impressionante crescimento da população encarcerada no Brasil [referindo-se a um incremento de 186,5% desta população entre os anos de 1993 e 2005] e no mundo é um conjunto de medidas legislativas e de práticas nas instituições de internação e reclusão articuladas com políticas penais cada vez mais severas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a adoção em vários estados de leis que seguem o princípio do Three strikes and you’re out [nota do original: “Esse tipo de legislação foi aprovada originalmente em 1993 no estado de Washington e logo em seguida, em 1994, no estado da Califórnia. Nos dois Estados, as leis foram aprovadas em reação a crimes cometidos por condenados que estavam em liberdade condicional. Em 1997, além desses dois estados, outros 24 haviam aprovado leis seguindo o princípio do three strikes and you’re out, ou seja, a condenação à pena de prisão perpétua para os criminosos que cometam três quebras graves da lei (Austin, 1999)”]; a proliferação das já citadas unidades especiais de confinamento, como as supermax [nota do original: “Unidades prisionais especialmente destinadas à contenção de presos indisciplinados e violentos e com regimes disciplinares próprios surgiram nos EUA no início dos anos 1970, especialmente com a prisão de Marion, em Illinois. Em 1998, cerca de 20 mil presos norte-americanos estavam em supermax, ou alas especiais de penitenciárias para controle de presos violentos (King, 1999).”]; e políticas como as de ‘tolerância zero’ são reveladoras do sentido de punição adotado. São abandonados os princípios da requalificação do criminoso e de conseqüente utilização da pena de privação de liberdade para tanto; da mesma forma que a severidade punitiva, o rigor disciplinar no interior das prisões ganha centralidade em estabelecimentos que imobilizam presos de 22 a 23 horas na cela; a intransigência com o menor desvio é autoritária, ajusta crianças, jovens e adultos a normas, padrões de comportamento rígidos que nem mesmo podem ser questionados ou revistos.” E conclui-se sobre esse quadro atual de incremento da violência estatal desmedida no exercício da punição criminal: “Esse conjunto de transformações no paradigma contemporâneo da punição tem recolocado em discussão o papel do sistema de justiça criminal diante das transformações do mundo contemporâneo e, em particular, o lugar da prisão como instituição de controle social. Na verdade, desde meados do século XX, diversos autores têm buscado analisar tal instituição para além das discussões estritamente jurídicas e problematizar o seu lugar como instituição-chave da punição moderna. Esses autores e seus seguidores contemporâneos têm ressaltado a necessidade de crítica do sistema prisional, o que pode viabilizar novas soluções que não necessariamente sigam a direção mais geral de punição severa e generalizada, cada vez mais presente no mundo contemporâneo.” (ALVAREZ, 2007 : 238-239).
39. FERRAZ JÚNIOR, 2003 : 72.
40. Refere BRAGA (2005: 95): “O ‘medo branco’ em face dos trabalhadores pobres e negros cria um ambiente psicossocial em nível real, imaginário e simbólico, tendente à exacerbação do ‘aumento da criminalidade e da violência’. Assim, generaliza-se o conflito e surgem propostas emergenciais, repressoras fundamentadas num ideário conservador. As estratégias formais de controle social, a partir do Estado republicano, forjaram uma garantia de exclusão do pobre e do negro, culminando com um apartheid entre a ‘cidade quilombada’ e a ‘cidade européia’ (Neder, 1997).”
41. FERRAZ JÚNIOR, 2003 : 73.
42. ZAFFARONI, em seu “Em busca das penas perdidas”, discorre sobre o tema, no item “cadeias como máquinas de deterioração”, nos seguintes termos: “A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante: ‘gera uma patologia cuja principal característica é a regressão’, o que não é difícil de explicar. O preso ou o prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privado de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais, etc). Por outro lado, o preso é ferido na sua auto-estima de todas as formas imagináveis, pela perda de privacidade, de seu próprio espaço, submissões a revistas degradantes, etc. A isso juntam-se as condições deficientes de quase todas as prisões: superpopulação, alimentação paupérrima, falta de higiene e assistência sanitária, sem contar as discriminações em relação à capacidade de pagar por alojamentos e comodidades. O efeito da prisão, que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante e submerge a pessoa numa ‘cultura da cadeia’, distinta da vida do adulto em liberdade. Esta ‘imersão cultural’ não pode ser interpretada como uma tentativa de reeducação ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado da ‘ideologia do tratamento’; suas formas de realização são totalmente opostas a este discurso, cujo caráter escamoteador é percebido até pelos menos avisados. A mera circunstância de que 70% dos presos da região não estejam condenados mostra a evidente confissão da falsidade do discurso ressocializante. A prisão não deteriora por deteriorar, mas o faz para condicionar: ‘invade’ o indivíduo com suas exigências do papel que também lhe são formulados pelas outras agências do sistema – e que a prisão apenas exacerba – em uma continuidade deteriorante realizada por todas as agências, incluindo a judicial. Trata-se de uma verdadeira ‘lavagem cerebral’, da qual fazem parte, inclusive, os demais prisioneiros que interagem com aquele submetido ao tratamento criminalizante.” (ZAFFARONI, 2001: 135-136).
43. Vide tratamento mais detalhado acerca de questões afins em artigo a ser publicado em momento futuro, cuidando mais especificamente de uma abordagem sobre as teorias da pena e da questão da necessidade atual de humanização da punição criminal a partir de uma reconsideração crítica daquelas teorias e do sentido, formas e limites da punição criminal, tudo à luz do que aqui também exposto sobre a problemática da fixação do imperativo da limitação da violência estatal ao razoável.
44. In Penas e medidas alternativas à prisão, 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p 56.
45. Como noticiado no já mencionado artigo “O sistema prisional: um debate necessário”, a partir dos anos 70, as taxas de crescimento da população carcerária passaram a crescer em ritmo acelerado, em fenômeno que atingiu e atinge boa parte do mundo, inclusive o Brasil. Senão atente-se às considerações e dados trazidos pelo dito artigo acerca deste ponto: “Em 2005, por exemplo, havia nos Estados Unidos 2.320.359 pessoas encarceradas em diferentes tios de estabelecimentos, como prisões federais e estaduais para adultos, cadeias municipais, locais para o controle de imigrantes, prisões militares e instituições para jovens, dentre outros. Consideradas sob custódia – em prisões destinadas para adultos, estaduais e federais – eram 1.525.924 pessoas, mais 747.529 detidas em cadeias locais. O total, portanto, de pessoas sob custódia alcançava 2.193.798 pessoas em 2005, com uma taxa de 737 presos por 100 mil habitantes. Em 1995, o total de pessoas sob custódia nos EUA era de 1.585.586, correspondendo à taxa de 601 presos por 100 mil habitantes. O crescimento da população encarcerada, de 1995 a 2005, teve média anual de 3,3% e um acúmulo de mais de 30%, portanto. Um em cada 136 norte-americanos residentes estava sob custódia, em 2005, numa prisão para adultos federal, estadual ou local.
O fenômeno do crescimento da população encarcerada nos EUA pode ser encontrado também em praticamente todas as regiões e países do mundo. Na Europa Ocidental, dentre os principais países que fogem a essa regra, a Alemanha, de 2000 a 2005, não teve crescimento da população encarcerada e a Suíça apresentou um decréscimo de encarcerados. No entanto, a maior parte dos países apresentou taxas expressivas de crescimento para o período: Holanda (48,6%), Polônia (28,1%), Áustria (28,6%), Espanha (24,9%), Dinamarca (24,2%), Suécia (22,1%), Inglaterra e Escócia (15,1%), França (14,6%), Noruega (14,0%), Itália (10,1%) [AEBI, Marcelo F.B. & STADNIC, Natalia. “Council of Europe – Space I, Survey 2005.” “Council of Europe Annual Penal Statistics”. Disponível no site http://www.coe.int. Os autores apresentam uma análise mais detalhada dos dados deste survey no número de março de 2007 do informativo “Questions pénales”. http://www.cedisp.com.
De acordo com esse levantamento do Conselho da Europa, em 2005, os países escandinavos apresentavam as menores taxas de encarceramento: Islândia (40 por 100 mil habitantes), Suécia (78), ao passo que as taxas mais elevadas estavam nas antigas repúblicas que integravam a ex-União Soviética: Estônia (327,4 presos para cada grupo de 100 mil habitantes) e Letônia (313,4).
O Brasil não é uma exceção a essa tendência verificada em quase todo o mundo. Pelo contrário, o crescimento da população encarcerada vem sendo bastante intenso e trazendo reflexos consideráveis para o conjunto das instituições do sistema de justiça criminal.” (ALVAREZ, 2007 : 237-237). E a partir daí cita o mesmo artigo que entre 1993 e 2005 houve um crescimento da população em geral de 18,5% no Brasil, sendo que o crescimento da população carcerária, no mesmo período, foi dez vezes maior. Os números apresentados a respeito são os seguintes: a) População em geral no Brasil: em 1993: 151.546.289; em 2005: 179.576.925 (variação de 18,5%); b) População encarcerada: em 1993: 126.152 pessoas; em 2005: 361.402 pessoas (variação de 186,5%). [Fonte: IBGE e MJ] (ALVAREZ, 2007 : 237-238).
46. ZAFFARONI, em seu “Manual de Direito Penal Brasileiro – parte geral”, esclarece, sobre o ponto: “Há um princípio geral de racionalidade que deriva da Constituição ou do princípio republicano, que exige certa vinculação entitativa entre o delito e sua conseqüência jurídica, mas este princípio vincula-se intimamente também como princípio de humanidade, que se deduz da proscrição da pena de morte, perpétua, de banimento, trabalhos forçados e penas cruéis (art. 5º, XLVII, da CF). Justamente o antônimo de ‘pena cruel’ é a ‘pena racional’ (e não a pena ‘doce’, é claro). Do princípio da humanidade deduz-se a proscrição das penas cruéis e de qualquer pena que desconsidere o homem como pessoa. O § 2º do artigo 3º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. A essa conseqüência contribui também o princípio da soberania popular, posto que este pressupõe necessariamente que cada homem é um ser dotado de autonomia ética pelo mero fator de ser homem, ou seja, que por esta circunstância é capaz de escolher entre o bem e o mal e decidir a respeito. O princípio da humanidade é o que dita a inconstitucionalidade de qualquer pena ou conseqüência do delito que crie um impedimento físico permanente (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica etc.), como também qualquer conseqüência jurídica indelével do delito. (...) a república pode ter homens submetidos a penas, ‘pagando as suas culpas’, mas não pode ter ‘cidadãos de segunda’, sujeitos considerados afetados por uma capitis diminutio para toda a vida. Toda a conseqüência jurídica de um delito – seja ou não uma pena – deve cessar em algum momento, por mais longo que seja o tempo que deva transcorrer, mas não pode ser perpétua no sentido próprio da expressão.” (ZAFFARONI, 2004 : 171-172).
47. Nesse sentido, basta ver o que aponta ZAFFARONI, a respeito da utilização do aparelho judicial como elemento garantidor de tais iniqüidades no âmbito criminal, em seu “Em busca das penas perdidas”, no tópico intitulado “As agências judiciais como máquinas de burocratizar”: “A seleção recrutadora dos agentes e operadores das agências judiciais verifica-se, de maneira geral, entre os setores médios e médios-baixos da população, embora, eventualmente, possa operar-se alguma excepcional seleção e entre pessoas da classe média alta. O processo de treinamento a que é submetido é igualmente deteriorante de sua identidade e realiza-se mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder: solenidades, tratamentos monárquicos, placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc. (...) De acordo com a forma pela qual se estrutura a agência, os ‘cadetes’ judiciais são treinados como juízes de menor valor ou municipais ou como empregados administrativos. O certo é que, ao alcançar a categoria equiparável à de oficial das agências militarizadas, o indivíduo já deve ter internalizado os modelos da agência e deve responder às exigências do papel que for atribuído a partir de uma adequada manipulação da opinião pública: assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobriedade em tudo, suficiência e segurança de resposta e, em geral, um certo modelo de ‘executivo sênior’ com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem de que, na devida idade, responderá a esse modelo. A manipulação da imagem pública do juiz pretende despersonalizá-lo e reforçar sua função supostamente ‘paternal’, de maneira a ofuscar e ocultar sue caráter de operador de uma agência penal com limitadíssimo poder dentro do sistema penal. Esta imagem é introjetada pelo próprio operador porque foi treinado nela, de modo a alimentar a sua onipotência – sinal de imaturidade, próprio da adolescência –, e o impede de perceber as limitações do seu poder. Dentro desta lógica, duvidar de seu poder significa lesão a seu ‘narcisismo treinado’, expressão do resultado deteriorante de sua personalidade. Em determinado momento o operador da agência judicial percebe a si mesmo em função de seu cargo e hierarquia e constrói uma identidade assentada nestas bases. Recusa os lampejos de consciência sobre as limitações de seu poder, em razão do sofrimento que lhe provocam (afetam seu narcisismo, sua onipotência e sua auto-estima; observe-se que se trata de características regressivas iguais às que condicionam os processos de criminalização e de policialização); não lhe resta outro recurso senão evitar conflitos com outras agências para preservar sua identidade falsa ou artificial, produto do treinamento regressivo próprio da agência, e, também, para conservar sua função: o único caminho é a ‘burocratização’, ou seja, as respostas esteriotipadas, a conformidade com modelos ‘de sempre’, a ‘ineficácia treinada’ através da elevação dos meios a categoria dos fins, etc., isto é, tudo o que é bem conhecido e descrito como ‘comportamento obsessivo’ (embora esta definição seja demasiado psicologista e nem sempre coincidente com a realidade da burocratização judicial). Sem dúvida, este comportamento debilita o poder da própria agência judicial, mas, por outro lado, apresenta-se perfeitamente funcional ao exercício de poder configurador positivo das agências restantes do sistema penal. Nada melhor podem desejar estas que uma agência judicial que retire um discurso que justifique todas, composta por onipotentes que crêem exercer um poder – que, na realidade, está sendo exercido por elas – e por operadores que procuram evitar qualquer conflito com as agências, inventando-se tarefas sem incomodá-las muito. Incontestavelmente esta realidade não responde a um esquema simplista de divisão de poderes do estado, mas parece ser funcional para todas as agências. O juiz parece ser uma pessoa que se acha mais ameaçada em sua identidade do que em sua estabilidade funcional entendida como fonte salarial, pois costuma ter um papel muito mais internalizado do que o próprio policial, uma vez que seu lado ‘paternalista’ parece mergulhar as raízes em estratos mais profundos do inconsciente. Se a deterioração que o sistema penal produz nos policiais tem sido pouco estudada, a burocratização, como forma de deterioração dos operadores das agências judiciais dos sistemas penais, diretamente, nunca foi estudada e, por conseguinte, a situação de violação dos direitos humanos que acarreta não tem tratamento porque os poucos afetados não a percebem. Poucas vezes é adequadamente observada a situação de extrema vulnerabilidade na qual se colocam estas pessoas, e as tentativas de explicitá-la se estigmatizam numa espécie de ‘desacato’ que ‘destruiria as bases republicanas’ (ou qualquer outra expressão de obstrução autoritária do discurso). ‘Menos ainda se considera que muitas ‘teorias jurídicas’, a partir de outro ângulo, não passam de racionalizações ou mecanismos de fuga, explicáveis somente à luz deste fenômeno de deterioração, e não em nível consciente’.” (ZAFFARONI, 2001 :141-143).
48. A expressão “sociedade contemporânea ‘em transição’” foi extraída da obra “Da Tolerância”, de MICHAEL WALZER (São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.119). É utilizada aqui como forma de propositalmente se evitar a discussão sobre as denominações acerca da modernidade, que vão da modernidade tardia à pós-modernidade e suas variantes.
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