A formação de uma ética ambiental na sociedade de risco

Autor: Tiago Schneider de Jesus
Advogado
Publicado na Edição 21 - 19.12.2007

Desde a Revolução Industrial, nunca foi tão flagrante a perspectiva da proximidade de uma ampla mudança de comportamento na sociedade, tal como vem ocorrendo nas últimas décadas, em função do risco de possíveis catástrofes provocadas, sobretudo, pela atuação do ser humano na natureza. Demajorovic assegura que tais catástrofes, bem como os danos ao meio ambiente, “[...] não são surpresas ou acontecimentos inesperados, e sim conseqüências inerentes da modernidade, que mostram, acima de tudo, a incapacidade do conhecimento construído no século XX de controlar os efeitos gerados pelo desenvolvimento industrial”. (2003, p. 35)

A história evidencia que a razão instrumental que se seguiu da razão científica resultaram na fragmentação do conhecimento pela especialização. A racionalidade substituiu gradativamente a espiritualidade e os conhecimentos passaram a ser produzidos quase que exclusivamente pela ciência, exigindo-se a comprovação empírica das informações, as quais passaram a ser estruturadas e compartimentadas para que pudessem ser melhor analisadas. No entanto, apesar desta evolução científica e tecnológica, os cálculos dos riscos ambientais vêm se demonstrando inexitosos, fazendo da complexidade uma das principais características da sociedade atual. (DEMAJOROVIC, 2003)

Assim como tudo aquilo que vive foi dividido possibilitando que fosse melhor estudado, tempo e espaço tornaram-se mensuráveis. A possibilidade de fragmentar o tempo na menor fração possível, de medi-lo e relacioná-lo às atividades humanas influenciou na eliminação de fatores que mantinham as pessoas com uma certa igualdade, submetendo-o como condicionante de um novo modelo de produção. O tempo passou a ser considerado como ferramenta, encurtando distâncias e permitindo que aqueles que soubessem administrá-lo melhor e dispusessem de mais recursos para tanto pudessem produzir e acumular cada vez mais, no menor período possível, tornando a sociedade desigual, sob diversos aspectos. O controle do tempo tornou-se, então, um dos principais pressupostos da modernidade. (BAUMANN, 2001)

O mecanicismo, de Descartes e Bacon, e a materialização da natureza, por Marx, permitiram que esta pudesse ser apropriada e mercantilizada, de forma tal que servisse de instrumento à valoração do trabalho e de imperativo à formação de um homo economicus, investido pela necessidade de utilizar seu tempo e os recursos naturais disponíveis para a geração de riqueza. O meio ambiente acabou perdendo seu valor intrínseco e passou a ser considerado segundo a quantidade de capital que era capaz de gerar (LEFF, 2006). O homem, desta forma, afastou-se do ambiente natural e a mítica que os relacionava deu lugar ao tratamento mercantil, baseado no consumo irracional. Durante pelo menos dois séculos esta relação manteve-se comprometida pela sede de acúmulo de capital, impulsionada pela possibilidade real que o sistema econômico oferece de uma pessoa com poucos recursos ascender economicamente. Entretanto, este modelo de desenvolvimento vem sendo constantemente criticado por um emergente e importante movimento ambientalista que, depois de uma fase romancista, a partir da metade do século XX, vêm fincando profundas raízes na sociedade no sentido da construção de um novo paradigma. Este movimento desenvolve-se, segundo Capra (apud PELIZZOLI), em razão de a sociedade estar sofrendo uma “[...] crise profunda, complexa, multidimensional, que afeta todos os níveis de nossa vida” (2003, p. 52). Esta crise, fundada na perspectiva dos riscos gerados pela sociedade, vai além da superação do atual modelo produtivo e perpassa valores morais e éticos que a amparam, exigindo um novo paradigma de vida, voltado a busca de novos valores e idéias. O primeiro obstáculo a ser enfrentado pela sociedade é o fato de ter que aceitar que, realmente, uma grave crise está ocorrendo e que é preciso que, urgentemente, sejam repensados os comportamentos dos homens frente aos seus semelhantes e destes com a natureza. (PELIZZOLI, 2003)

A crise ambiental, de certo modo, permitiu que fosse evidenciado o esgotamento de um sistema que já não basta em si para justificar-se. O insucesso do atual modelo econômico é perceptível na falta de coerência ao se administrar os recursos naturais, utilizando-se uma racionalidade que não traz outras conseqüências senão as já conhecidas dos povos mais pobres do mundo, quais sejam, a desigualdade social, a corrosão dos valores morais e éticos, a indiferença aos famigerados, a ganância intolerável, enfim, a gama de sentimentos e posicionamentos que tornam grande parte dos homens seres insensíveis aos grandes problemas da humanidade.

A racionalidade científica e tecnológica percorreu sem precedentes as possibilidades da evolução, entretanto ignorou completamente os sistemas ecológicos, desde os mais elementares até os extremamente complexos. Durante a sociedade industrial, a racionalidade da economia, aliada à instrumental, baseou-se no crescimento econômico sem limites e na necessidade de consumir cada vez mais, retirando da natureza recursos fundamentais ao seu próprio equilíbrio, como se estes fossem inesgotáveis (LEFF, 2007). Os riscos, nessa fase, foram relegados a um segundo plano, pois o modelo econômico gerava benefícios capazes de tornarem estes aceitáveis (DEMAJOROVIC, 2003). Por incontáveis anos, o homem não avaliou seus atos e não calculou os riscos de suas intervenções no meio ambiente. As conseqüências disso estão, aos poucos, se tornando evidentes, sendo possível, no entanto, minimizá-las, para que se possa proporcionar uma vida saudável aos filhos desta geração. Para tanto, é necessário que se constitua uma nova ética, fundada na vida, não só do homem, mas de tudo aquilo que vive, redescobrindo seu sentido e tudo que há de espetacular nisso. Leff resume o que se quer aqui expor: “A ética é uma filosofia de vida, é a arte da vida; arte e filosofia não da vida orgânica, mas da boa vida, da qualidade de vida, do sentida da vida” (2007, p. 446). A qualidade de vida deve ser pressuposto desta nova ética, recriando princípios e valores que o homem, ao longo dos tempos modernos, esqueceu, devendo ser sobreposta aos anseios por crescimento econômico e desenvolvimento. Esta ética precisa reconhecer os saberes, não somente enquanto seu caráter científico, mas também cultural, e sua relação entre seus detentores, compartilhando os conhecimentos tradicionais e reescrevendo o diálogo entre estes com o intuito de promover a solidariedade entre os povos. Esta ética precisa ser, sobretudo, ambiental, substituindo a materialização da natureza pelo seu real valor, capaz de tornar as pessoas mais humanas e mais sensíveis ao que passa ao seu redor. Segundo Leff:

“A ética ambiental impugna a racionalidade depredadora e a ética utilitarista que constituíram os andaimes conceituais e estratégicos de um projeto epistemológico sem raízes na terra e sem destino para os homens e as mulheres que habitam territórios culturais e mundos de vida dentro deste planeta.” (2007, p. 450)

Os saberes devem ser utilizados para estimular a vida, superando-se a ética que provém da ciência e do mercado e, assim, promover a sustentabilidade. Isso somente será possível com o resgate de valores esquecidos pelo homem, que devem servir de fundamento para uma sociedade sustentável.

Novos rumos precisam ser construídos para a economia, primando-se pelos interesses coletivos ante os individuais. A lógica do consumo deve ser repensada, impondo-se uma nova moral diante da finitude dos recursos naturais. O acúmulo de dinheiro e bens materiais não deve ser mais a principal razão que move as pessoas no mundo, devendo dar lugar a novos estímulos de vida, a novos sentimentos que impulsionem as pessoas, como a felicidade, promovida pela qualidade de vida. A civilização do “ter” deve dar lugar à civilização do “ser” (SACHS, 1993). Os mercados devem pautar-se por uma nova racionalidade produtiva, em que a relação entre este e os consumidores possa ser saudável, sem imposições nem engodos. Os bens considerados supérfluos e aqueles gerados pelo mercado, exclusivamente para alimentar o consumo, devem ser suprimidos, dando lugar ao consumo racional, com base em recursos renováveis, que não sejam produzidos mediante a exploração de mão-de-obra, nem gerem concentração de riquezas e desigualdade social, implicando a solidariedade durante a produção e uma real distribuição dos recursos obtidos. Esta reestruturação do mercado formará novos consumidores, ambientalmente corretos e socialmente solidários, que serão responsáveis pela nova trajetória da economia.

A concepção de consumo deve ser reavaliada e o sucesso das pessoas deve passar a ser medido pelo desenvolvimento das aptidões pessoais e pela verdadeira satisfação e realização de viver e não pela quantidade de bens materiais que estas possam acumular. O prazer obtido com o consumo deve ser substituído pelos prazeres das relações pessoais, pelo bom convívio familiar, pela prática de esportes e atividades culturais, valorizando a vida simples, sem desperdícios, mas com a garantia das necessidades essenciais a vida humana. (SINGER, 2006)

As necessidades humanas precisam ser imediatamente revistas, permitindo que estas possam ser satisfeitas de igual forma por todos, almejando-se, quiçá, a supressão das desigualdades sociais. A redefinição das necessidades, segundo Stahel (2001), é essencial para que a eliminação da pobreza e a busca do bem-estar das pessoas sejam possíveis. Em uma sociedade que preza o consumo em massa, tal discussão exige que seja discutido também o atual sistema econômico, fundamentado na produção de excedentes. Um novo modelo econômico sustentável deve analisar tais questões e considerá-las basilares para sua construção, se quiser tornar-se sustentável. Estas mudanças, para terem sentido, devem vir precedidas de uma ressignificação de valores e de novos sentidos para a vida humana, priorizando aqueles que remetam à solidariedade entre os povos e a uma nova percepção da existência do ser humano, possibilitando, assim, que uma nova ética seja formada e que o sonho de um mundo sustentável possa tornar-se realidade.

Referência Bibliográficas

BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. O consumo de massa e a ética ambientalista. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 11, n. 43, jul.-set. 2006. p.177-202.

BAUMANN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 2002.

BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária. São Paulo: Ática, 1995.

CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de realização econômica. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. 3.ed. São Paulo: Cortes, 2001.

DEMAJOROVIC, Jacques. Sociedade de risco e responsabilidade socioambiental: Perspectivas para a educação corporativa. São Paulo: Senac, 2003.

DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 2001.

LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

_________. Saber Ambiental. Sustentabilidade. Racionalidade. Complexidade. Poder. 4. ed. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2007.

_________. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Tradução de Jorge Esteves da Silva. Blumenau, SC: Edifurb, 2000.

PELIZZOLI, Marcelo L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis: Vozes, 2003.

PENNA, Carlos Gabaglia. O Estado do planeta: Sociedade de consumo e a degradação ambiental. São Paulo: Record, 1999.

SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

STAHEL, Andri Werner. Capitalismo e entropia: os aspectos ideológicos de uma contradição e a busca de alternativas sustentáveis. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. 3.ed. São Paulo: Cortes, 2001.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2007. Disponível em:
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