Regime disciplinar diferenciado e efetividade do sistema penal: solução ou retrocesso?

Autora: Vanessa Padilha Catossi
Advogada,
Professora da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro
,
e da Universidade Estadual do Norte do Paraná

Publicado na Edição 21 - 19.12.2007

Sumário: Introdução. 1 Mecanismos do regime disciplinar diferenciado. 2 As finalidades da pena. 3 O paradoxo do atingimento das finalidades da pena. Considerações finais. Referências bibliográficas.

Introdução

A vida em sociedade traz como pressuposto de sua existência a necessidade de serem instituídas regras para disciplinar as relações dos indivíduos entre si, como forma de garantir que a satisfação das necessidades de alguns seja feita de modo a não ofender ou lesar a esfera de interesses de outrem, tutelando-se, por meio de normas, valores que devam ser preservados a bem do corpo social.

Reconhecido o Direito como forma de controle social de condutas, decorreu que, dada a complexidade das relações humanas, especializações foram ocorrendo, conforme o tipo de relação jurídica considerada e o valor envolvido, sem que isso, contudo, prejudicasse o caráter unitário do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, coube ao Direito Penal a tutela dos bens e valores tidos como os mais relevantes da sociedade e, por via reflexa, é por meio de seus mecanismos que as sanções tidas como mais gravosas são impostas àqueles que violam os comandos normativos a ele afetos.

Assim é que, teoricamente, ao Direito Penal compete, através da imposição de sanções, tutelar, de modo efetivo, segundo regras e princípios próprios, valores como a vida, a propriedade, a integridade física, a liberdade, os costumes, dentre outros, por meio da imposição de penas.

Contudo, na prática, não é isso o que se verifica. De fato, o aumento desenfreado da criminalidade, aliado a fatores de ordem social, econômica e política, tem evidenciado uma situação de crise no sistema penal, potencializada, atualmente, pela mídia que, difundindo magistralmente o sangue, o cadáver, o terror, o sofrimento da vítima, vem contribuindo, de maneira eficaz, para a disseminação do medo e a formação de uma mentalidade social de que o sistema penal deveria passar por modificações, de molde que as medidas punitivas sofressem um recrudescimento, tanto em seu aspecto qualitativo como também quantitativo, como tentativa de contensão dos alarmantes índices de criminalidade.

Esse aumento das taxas de criminalidade, por seu turno, não é exclusivo das grandes metrópoles e capitais. Cidades interioranas não são mais consideradas pacatas e tranqüilas como o eram há não muito tempo. Aliás, não é difícil constatar que, tanto nos grandes centros como também no interior do país, tem ocorrido um recrudescimento da pobreza material e intelectual, bem como um afastamento cada vez maior de valores morais básicos, o que tem contribuído sensivelmente para o aumento da criminalidade, em todas as suas formas. Tal fenômeno, por seu turno, ao contrário do que se imagina, não encontra cenário apenas nas camadas sociais menos favorecidas, já tão massacradas pelos graves problemas socioeconômicos que assolam o país, dentre os quais destaca-se a péssima distribuição de renda; mas, também, referido desvio de conduta é praticado por membros da elite e representantes das três esferas do Poder Público, consoante se verifica por meio da mídia.

Diante dessa conjuntura, de disseminação da criminalidade, poder-se-ia pensar que uma das formas de se promover a sua contenção seria o aumento do rigor nas punições, orientado pela noção de que, quanto maior for a pena e maior for a severidade no regime de seu cumprimento, mais se desestimulará o cometimento de crimes.

Entretanto, não se pode olvidar que o problema da criminalidade e da falência do sistema penal tem raízes profundas e alimenta-se de uma série de fatores, dentre os quais podem ser citados, exemplificativamente, a crônica desigualdade social (que pode ser reputada, inclusive, como seu principal fator), a possibilidade de rápida ascensão e retorno financeiro advindos do crime, inatingíveis por meio do trabalho honesto, a ganância desenfreada, o desrespeito pelas gerações futuras, a falta de consciência das classes dirigentes, o alijamento da ética, a morosidade da Justiça, tudo isso aliado às dificuldades do Estado brasileiro para manter uma estrutura capaz de garantir a segurança e o cumprimento das leis e dos preceitos constitucionais.

Entretanto, ainda é forte a crença pela qual o endurecimento no tratamento dos infratores contribuiria para o combate à criminalidade. Nessa conjuntura surgiram, tanto no campo teórico como também na realidade prática, concepções e medidas legislativas voltadas justamente a fundamentar e promover um maior aumento da severidade e rigor do sistema penal, notadamente quanto ao mecanismo de imposição da pena e sua execução.

Dentre tais concepções, merecerá destaque, no presente estudo, o regime disciplinar diferenciado, instituído no Brasil por meio da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Tal medida, por seu turno e consoante será investigado com mais vagar em tópico apartado, tem como traço principal o maior rigor que é dispensado ao detento que se enquadre nas possibilidades de inserção no referido regime e representa uma tentativa de solução ou, ao menos, minimização da séria crise do sistema penal brasileiro.

Contudo, a aceitação do regime disciplinar diferenciado como medida realmente eficaz no cumprimento de seu desiderato não pode ser feita com base em impulsos que a caótica realidade possa despertar, por força da disseminação do medo e dos sinais de estagnação e fracasso demonstrados pelos mecanismos vigentes de combate ao crime; antes, tal aquiescência demanda uma perquirição a respeito do mecanismo do regime disciplinar diferenciado; bem como uma análise e ponderação em torno do instituto da pena e de suas finalidades, em cotejo com a realidade prisional brasileira, além de se indagar sobre sua compatibilidade com as modernas tendências da execução penal.

Assim é que ditos temas serão percorridos para que, ao final, seja possível concluir se o aumento do rigor e da severidade para com os envolvidos em práticas delituosas, por meio da implantação do regime disciplinar diferenciado, constitui realmente o caminho adequado para se lidar com a crise do sistema penal brasileiro.

1 Mecanismos do regime disciplinar diferenciado

O regime disciplinar diferenciado (RDD) foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei nº 10.729, de 1º de dezembro de 2003,(1) que, além de promover alterações no Código de Processo Penal, também modificou a Lei nº 7.210/84 – Lei de Execuções Penais –, dando nova redação ao art. 52,(2) que, a partir da edição da aludida lei, passou a encerrar o novel instituto.

A teor do referido comando legal, podem ser apontadas como características do regime disciplinar diferenciado: a) duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição por nova falta grave, até o limite de um sexto da pena; b) recolhimento em cela individual; c) visitas semanais de duas pessoas, excluídas crianças, com duração de duas horas; d) duas horas diárias de banho de sol. Além disso, podem ser submetidos ao regime disciplinar diferenciado tanto os presos condenados como também os provisórios, ou seja, aqueles sem condenação definitiva, sejam eles nacionais, sejam estrangeiros.

Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete:

“Pela Lei nº 10.729, de 1º de dezembro de 2003, foi instituído o regime disciplinar diferenciado, que não constitui um regime de cumprimento da pena em acréscimo aos regimes fechado, semi-aberto e aberto, nem uma nova modalidade de prisão provisória, mas sim um regime de disciplina carcerária especial, caracterizado por maior grau de isolamento do preso e de restrições ao contato com o mundo exterior, a ser aplicado como sanção disciplinar ou como medida cautelar, tanto ao condenado como ao preso provisório, nas hipóteses previstas em lei. (2004, p. 149, grifo do autor)”

A inclusão no referido regime, por sua vez, processa-se através de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa, apresentado ao juiz da execução penal, que deve, em despacho fundamentado, decidir sobre a medida, depois de ouvido o Ministério Público e a Defesa.(3)

No que diz respeito às hipóteses de cabimento do regime disciplinar diferenciado, cumpre salientar que três são elas,(4) assim sintetizadas por Guilherme de Souza Nucci:

“Enfim, três são as hipóteses para a inclusão no RDD: a) quando o preso provisório ou condenado praticar fato previsto como crime doloso, conturbando a ordem e a disciplina interna do presídio onde se encontre; b) quando o preso provisório ou condenado representar alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; c) quando o preso provisório ou condenado estiver envolvido com organização criminosa, quadrilha ou bando, bastando fundada suspeita. (2005, p. 931)”

Nesse ponto, digna de destaque é a observação pelo autor, segundo a qual:

“A esse regime serão encaminhados os presos que praticaram fato previsto como crime doloso (note-se bem: fato previsto como crime, e não crime, pois se esta fosse a previsão dever-se-ia aguardar o julgamento definitivo do Poder Judiciário, em razão da presunção de inocência, o que inviabilizaria a rapidez e a segurança que o regime exige), considerado falta grave, desde que ocasione a subversão da ordem ou da disciplina internas, sem prejuízo da sanção penal cabível.” (2005, p. 930, grifo do autor)

Segundo Rejane Alves de Arruda (2005, p. 37), nas hipóteses previstas nos parágrafos 1º e 2º do art. 52, o regime disciplinar diferenciado adquiriria um caráter distinto daquela modalidade prevista no caput, aproximando-se de um cunho cautelar. Sobre ele, Mirabete leciona que:

A inclusão no regime disciplinar diferenciado com fundamento nos §§ 1º e 2º do art. 52 da Lei de Execução Penal constitui medida preventiva, de natureza cautelar, que tem por finalidade garantir as condições necessárias para que a pena privativa de liberdade ou a prisão provisória seja cumprida em condições que garantam a segurança do estabelecimento penal e a ordem pública, que continuaria ameaçada se, embora custodiado, permanecesse preso em regime comum. Exige-se, portanto, que o preso apresente alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal, no sentido de que sua permanência no regime comum possa ensejar a ocorrência de motins, rebeliões, lutas entre facções, subversão coletiva da ordem ou a prática de crimes no interior do estabelecimento em que se encontre ou no sistema prisional, ou, então, que, mesmo preso, possa liderar ou concorrer para a prática de infrações penais no mundo exterior, por integrar quadrilha ou bando ou organização criminosa. (2004, p. 151, grifo do autor)

E conclui ainda o citado autor que, por motivo de coerência, “dada a natureza cautelar da medida, o alto risco mencionado no § 1º deve estar presente também na hipótese regulada no § 2º do art. 52.” (2004, p. 151)

Verifica-se, portanto, ora secundarizando o debate acerca de sua constitucionalidade, que o regime disciplinar diferenciado caracteriza-se, principalmente, por um substancial endurecimento na execução da pena, que pode atingir, inclusive, presos provisórios, cuja inocência é, por imperativo constitucional, presumida até trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o que, desde logo, permite concluir pela necessidade de redobrada cautela, por parte do magistrado, na determinação de inclusão de um detento em sua sistemática. Inegável, pois, o rigor do instituto, restando saber, entretanto, se tal severidade harmoniza-se com os preceitos norteadores da execução penal, bem como se contribuirá, efetivamente, para a solução ou o abrandamento da crise do sistema penal brasileiro.

2 As finalidades da pena

Antes de se adentrar na investigação sobre as finalidades da sanção criminal, mostra-se oportuno apresentar uma definição, ainda que desprovida de maiores pretensões de esgotar o assunto, do aludido instituto jurídico. Nesse sentido, as lições de Damásio Evangelista de Jesus prestam-se com eficiência a tal objetivo. Leciona o célebre penalista que a pena pode ser entendida como

“a sanção punitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração penal, como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos.

Apresenta a característica de retribuição, de ameaça de um mal contra o autor de uma infração penal.

Tem a finalidade preventiva, no sentido de evitar a prática de novas infrações”. (1999, p. 519)

Eugenio Raúl Zaffaroni, por sua vez, visualiza na pena a materialização das “conseqüências jurídicas que impliquem provação de direitos ou sofrimento e que não pertençam, como modelos de solução, a outros ramos de direito.” (1991, p. 206)

No que tange a suas finalidades, a pena, doutrinariamente, admite uma classificação que a desdobra em três teorias (MIRABETE, 2004, p. 25). A primeira delas, dita teoria absolutista ou retribucionista, defende posicionamento segundo o qual se estabelece um sistema de compensação entre o mal praticado através do crime e a pena a ser suportada pelo criminoso, imposta como exigência moral e sem qualquer conotação ideológica. Essa teoria tem como contexto a Escola Clássica, pela qual o crime era considerado um ente eminentemente jurídico, não havendo nenhuma preocupação com a pessoa do delinqüente, visto que a sanção objetivava apenas restabelecer a ordem pública abalada pelo delito.

Para a segunda corrente, com berço na Escola Positivista, a pena possui um fim eminentemente prático, que reside exatamente na idéia de prevenção, que abrange tanto o aspecto geral, no sentido de abranger a toda a sociedade, como também o prisma especial, voltado para a pessoa do criminoso. Nos termos dessa teoria – dita relativa ou utilitarista –, como o homem é foco das conceituações doutrinárias, a sanção criminal perde seu cunho eminentemente punitivo e passa a ser encarada como uma oportunidade de ressocialização daquele que cometeu uma infração penal, justificando-se, contudo, a segregação social do infrator nos imperativos de proteção da sociedade.

Por derradeiro, a chamada teoria mista, eclética ou intermediária parte do pressuposto de que a pena, por força de sua natureza, goza de caráter retributivo e possui, de igual forma, um certo aspecto moral; entretanto, sua finalidade não se resume simplesmente à prevenção, mas concentra um misto de educação e correção.

Gilberto Ferreira,(5) em síntese feliz, condensa a essência de cada uma dessas correntes da seguinte maneira:

“No grupo das teorias absolutas encontram-se aqueles que entendem que o fundamento da punição é exclusivamente moral e ético. A pena é justa em si e sua aplicação se dá sem qualquer preocupação quanto à sua utilidade. Pune-se quia peccatum est.

A pena tem caráter exclusivamente retributivo: malum proter malum, bonum proter bonum.

Os defensores das teorias relativas pregam a punição exclusivamente como meio de defesa, atingindo o delinqüente não para lhe impingir mal, senão para evitar que volte a delinqüir ou que incentive outros a fazê-lo. A punição visa à prevenção, como meio de segurança social e defesa da sociedade. A pena, pois, não é retribuição, e sim um instrumento útil, capaz de evitar o crime, pelo temor que impõe, voltada, portanto, ao futuro. Pune-se ne peccetur.

Por fim, há os que, conciliando, formam uma corrente eclética, integrando as chamadas teorias mistas. Estes atribuem duplo fundamento à pena: a retribuição, manifestada através do castigo; e a prevenção, como instrumento de defesa da sociedade.” (1995, p. 235-236)

A essas três teorias, deve ser acrescida uma quarta, assim enunciada por Mirabete:

“Com Fillippo Grammatica, Adolfo Prins e Marc Ancel, toma vulto a Escola do Neodefensismo Social ou a Nova Defesa Social, com que se buscou instituir um movimento de política criminal humanista, fundado na idéia de que a sociedade apenas é defendida à medida que se proporciona a adaptação do condenado ao meio social (teoria ressocializadora). A finalidade das penas privativas de liberdade, quando aplicadas [...], é ressocializar, recuperar, reeducar ou educar o condenado, tendo uma finalidade educativa que é de natureza jurídica.” (2004, p. 25)

Sobre essa mudança de norte, descreve-a Augusto Thompson da seguinte maneira:

“Enquanto anteriormente a tônica do confinamento carcerário recaía sobre o alvo escarmento, já a partir do século passado, pelo menos, passou a merecer ênfase especial a meta reabilitação. Designada, indiferentemente, por terapêutica, cura, recuperação, regeneração, readaptação, ressocialização, reeducação e outras correlatas, ora é vista como semelhante à finalidade do hospital, ora como à da escola.” (2002, p. 3-4)

Essa última teoria, é dizer, a ressocializadora, é a que, hodiernamente, goza de maior prestígio, podendo-se dizer, ademais, que, de certa forma e ao menos formalmente, penetrou no sistema normativo brasileiro, consoante se observa do teor dos artigos 1º e 10, da Lei de Execução Penal.(6) A ela, contudo, é de observar o pertinente questionamento de René Ariel Dotti:

“Na atualidade questiona-se muito a intervenção estatal na esfera da consciência do presidiário. Tem o Estado o direito de oprimir a liberdade interna do condenado, impondo-lhe concepções de vida e estilos de comportamento? Os programas de reeducação são legítimos ou autoritários?” (1983, p. 316)

De toda a sorte, é evidente que ao Estado Democrático de Direito é vedado impor ao condenado os modelos de vida e de comportamento, bem como as formas de pensar que são dominantes na sociedade. Cumpre-lhe – e isso sim se harmoniza com seus fins e valores – propô-los e sugeri-los ao recluso, que poderá, contudo, refutá-los, se assim lhe aprouver, desde que isso não implique reincidência criminosa, sendo certo, ademais, que mais importante que apontar tais rumos ao infrator é o oferecimento de condições para que ditos postulados transmudem-se de meros enunciados teóricos e possam se concretizar na realidade fática.

Poder-se-ia, portanto, à luz do que foi até aqui exposto acerca das finalidades da pena, afirmar que esta teria, em tese, as funções de, ao mesmo tempo infligir uma sanção ao delinqüente, como forma de punir-lhe pelo mal causado, gozando de “cunho intimidativo, geral ou particular, com vistas a evitar, tanto quanto possível, a ocorrência delituosa” (MIRABETE, 2004, p. 27), uma vez que os fins de punição e intimidação não foram afastados (THOMPSON, 2002, p. 4), assim como ressocializá-lo de molde a assegurar seu retorno satisfatório à vida social, a ser garantido mediante o oferecimento, pelo Estado, de condições concretas para que essa reinserção social de fato ocorra.(7)

Referidas premissas, por sua vez, quando aproximadas, são objetos de críticas e ponderações, as quais revelam e dão nascimento a uma verdadeira situação paradoxal, ainda mais quando se leva em conta a realidade carcerária brasileira, o que será analisado mais detidamente no tópico seguinte.

3 O paradoxo do atingimento das finalidades da pena

Ao debruçar-se sobre o problema das contradições envolvendo as finalidades da pena, Mirabete conclui que:

“A afirmação de que é possível, mediante cárcere, castigar o delinqüente, neutralizando-o por meio de um sistema de segurança, e, ao mesmo tempo, ressocializá-lo com tratamento já não se sustenta, exigindo-se a escolha de novos caminhos para a execução das penas, principalmente no que tange às privativas de liberdade.” (2004, p. 25)

Realmente, é de clareza solar que o atingimento de tais metas, no sistema penitenciário brasileiro, está longe de ser concretizado. Essas dificuldades ganham contornos mais nítidos quando se volta o olhar para os estabelecimentos penais e penitenciários brasileiros e as peculiaridades internas desses centros. Nesse passo, Cézar Roberto Bitencourt é conclusivo ao asseverar:

“A ressocialização não pode ser obtida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias tendem a converter-se num microcosmos no qual se reproduzem e se agravam as graves contradições que existem no sistema social exterior. É impossível conseguir a adaptação à vida que existe fora de uma instituição total como a prisão. A única adaptação possível é a adaptação aos regulamentos disciplinários que são impostos rigidamente.” (1990, p. 250)

Dessa forma, o que se infere é que, a bem da verdade, nos moldes em que se encontra desenhado o sistema penal, a pena acaba por provocar efeitos diametralmente opostos às suas finalidades,(8) notadamente a ressocializadora, produzindo, como se não bastasse, reflexos que ultrapassam os muros das cadeias, penitenciárias e casas de detenção, os quais alimentam um processo de exclusão social que, ironicamente, decorre do próprio sistema penal. Francesco Carnelutti, com elogiável precisão, narra o seguinte fenômeno social verificado mesmo após o cumprimento da sanção penal:

“Esta, a esperança de retornar ao convívio humano, de desvestir finalmente o horrível uniforme, de reassumir o aspecto de homem livre, de retornar ao seu lugar na sociedade, é o oxigênio que alimenta o encarcerado. Do momento no qual entrou no cárcere, esta é a razão de sua vida. No privá-lo desta está a desumanidade da condenação à vida. O encarcerado perpétuo não tem nem o conforto de contar os dias. E contar os dias é a vida do encarcerado.

Infelizmente, porém, na maior parte dos casos, também este esperar é uma falácia. O processo, sim, com a saída do cárcere, está terminado; mas a pena não: quero dizer, o sofrimento e o castigo.

Podem-se imaginar, especialmente para as condenações de longa duração, as dificuldades ocasionadas ao libertado do cárcere pelas mudanças dos hábitos, pelas relações interrompidas, pelos ambientes mudados; tudo isso não pode deixar de determinar uma crise, que poderia chamar-se crise do renascer. Se não fosse mais que isso, ainda sim seria pouca coisa.

Ao invés, na maior parte dos casos, não se trata de uma crise. A questão é muito mais grave. O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas, ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado; nessa fórmula está a crueldade do engano. A crueldade está no pensar que, se foi, deve continuar a ser. A sociedade fixa cada um de nós ao passado. O rei, ainda quando, segundo o direito, não é mais rei, é sempre rei; e o devedor, porquanto tenha pago o seu débito, é sempre devedor. Este roubou; condenaram-no por isso; cumpriu sua pena, porém...” (1995, p. 75)

E arremata o mestre italiano:

“Nem aqui seja dito, ainda uma vez, contra a realidade que se quer de fato protestar. Basta conhecê-la. A conclusão de havê-la conhecido é esta: as pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação, e não é verdade; as pessoas crêem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas crêem que o cárcere perpétuo seja a única pena perpétua; e não é verdade. A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não.” (1995, p. 77)

Destarte, a pena de prisão, longe de colimar com o atingimento de suas metas e propostas teóricas, tem sido uma ferramenta útil na estigmatização do detento, contribuindo para obstacularizar ainda mais seu retorno à sociedade, a mesma sociedade que, aliás, sofrerá as conseqüências negativas desse fenômeno. Forçoso, pois, reconhecer a insuficiência dos atuais mecanismos de cumprimento da pena, o que demanda e conduz os esforços dos estudiosos para a investigação de possíveis soluções, uma vez que, como bem observa Rômulo de Andrade Moreira,

“o modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, baseado na idéia de prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Em todo mundo, passa-se gradativamente de uma política paleorrepresiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas privativas de liberdade, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas etc.), para uma tendência despenalizadora.” (2004, p. 39, grifo nosso)

Claus Roxin, levando em conta as contradições próprias da vida social, sugere que um sistema penal que não queira limitar-se a abstrações ou ter sua eficácia circunscrita ao âmbito teórico deve

“reconhecer essas antíteses inerentes a toda existência social para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na realidade, um Direito Penal só pode fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido de prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo delinqüente também é afinal o mais proveitoso para ela;(9) e só se pode ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade social de uma forma igualmente frutífera para ele e para a comunidade se, a par da consideração de sua debilidade e sua necessidade de tratamento, não se perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.” (apud BITENCOURT, 1990, p. 255, grifo nosso)

Dessa forma, ao lado da função ressocializadora da pena, deve-se admitir uma humanização do tratamento penal dispensado aos detentos, no sentido de que a execução penitenciária abarque medidas visando a uma maior eficácia de seus objetivos, que se encontram capitulados logo no artigo primeiro da Lei de Execução Penal, de tal sorte que institutos como as penas alternativas, o trabalho externo, a assistência ampla, a valorização dos vínculos familiares, afetivos e sociais e, de um modo geral, o acesso a meios capazes de conduzir ao retorno à sociedade passem a integrar, de modo efetivo e satisfatório, o ferramental utilizado na execução da pena.

Assim, à guisa de remate, não é demais relembrar a lição de Mirabete que, com base no pensamento de Miguel Reale Junior, faz as seguintes considerações sobre as atuais inclinações da execução da pena:

“A idéia moderna é a de que a execução da pena deve estar programada de molde a corresponder à idéia de humanizar, além de punir. Deve afastar-se a pretensão de reduzir o cumprimento da pena a um processo de transformação científica do criminoso em não criminoso. Nem por isso, diz Miguel Reale Junior, deve deixar-se de visar à educação do condenado, criando-se condições por meios das quais possa, em liberdade, resolver os conflitos próprios da vida social, sem recorrer ao caminho do delito.” (2004, p. 26)

O caminho, portanto, deve ser trilhado a partir dos postulados da ressocialização do criminoso, com a valorização de medidas alternativas destinadas a promover uma humanização da execução penal, como forma de garantir o retorno do apenado ao convívio social, o que, aliás, reverterá em benefício da própria sociedade.

Considerações finais

Após se investigarem os mecanismos do regime disciplinar diferenciado em cotejo com as finalidades da pena a as modernas tendências que vêm sendo observadas na evolução do pensamento penal, a conclusão a que se pode chegar, a respeito do referido instituto, é de que ele, a bem da verdade, revela-se como um meio absolutamente ineficaz para combater a criminalidade.

E isso é dito porque, em primeiro lugar, não se deve, na esperança de se obter uma solução para a crise do sistema penal brasileiro, depositar todas as responsabilidades dessa busca nos ombros da legislação penal e no disciplinamento mais rigoroso da execução das penas pois, assim agindo, estar-se-á, na realidade, buscando-se a solução do problema por meio de ações tendentes a erradicar suas conseqüências, e não sua causa. Demais disso, não se deve esquecer que a Lei de Execução Penal, como obra humana que é, certamente está longe da perfeição, de tal sorte que medidas legislativas, ainda que tenham sim sua importância no combate à crise do sistema penal, não são, por si só, a única atitude a ser tomada. De fato, as origens da criminalidade, como se sabe, repousam na desigualdade social que, infelizmente, no nosso país, atinge patamares alarmantes. Aliás, nesse ponto, conforme observado ao longo da presente exposição, o regime disciplinar diferenciado, na realidade, contribuirá para um agravamento da situação, porque potencializa uma medida que tem o condão de acentuar – e não mitigar – as dificuldades de reinserção social do apenado, eis que, dado o endurecimento – de constitucionalidade no mínimo duvidosa – por ele promovido, colabora para uma estigmatização ainda maior do detento.

Dessa forma, além de medidas legislativas, no que é afeto ao problema do sistema penal, a solução está a desafiar outros esforços para o atingimento da meta suprema, que é a reintegração social, consistente em políticas públicas sérias, bem como engajamento da própria sociedade como um todo, tudo com vistas a se reduzirem as desigualdades sociais.

A previsão legislativa do regime disciplinar diferenciado nasceu no afã de satisfazer a opinião pública e como uma resposta à violência no interior de presídios. Entretanto, como já previa Beccaria: “Os homens, entregando-se às suas primeiras impressões, amam as leis cruéis, se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas, pois eles próprios estão submetidos a elas”.

Por outro lado, mesmo que se apresentem sedutores seus mecanismos como solução imediata ao grave problema da falta de eficiência do sistema penal, é certo que tal postura não se coaduna com os modernos postulados da criminologia, além de não se apresentar como razoável o sacrifício de direitos fundamentais em nome das necessidades de funcionamento dos estabelecimentos carcerários.

Destarte, levando-se em consideração que o primeiro objetivo da prisão deve ser o de evitar a manutenção do recluso à margem do convívio social, a solução a ser buscada vai no rumo de que seja suprimida, ao máximo possível, a estigmatização decorrente do cumprimento da pena, no que o regime disciplinar diferenciado efetivamente não contribui em nada, mas antes conduz a um desajuste na execução da pena e acelera o já adiantado processo de falência do sistema penal brasileiro.

Referências bibliográficas

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Notas:

1. Na verdade, o regime disciplinar diferenciado, quando de seu surgimento, restringia-se ao âmbito estadual, sendo instituído pela Portaria SAP nº 26, da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, como resposta às rebeliões ocorridas nas penitenciárias do Estado, cuja inconstitucionalidade foi ferrenhamente levantada por muitos, questão esta que foi superada, contudo, com o advento de sua previsão em âmbito federal.

2. Art. 52 A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina interna, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II – recolhimento em cela individual;

III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV – o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol.

§ 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que representem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

3. Os traços do regime disciplinar diferenciado, como já era de se esperar, também levantaram fortes vozes na doutrina, no sentido de sua inconstitucionalidade, com fundamento no princípio constitucional da vedação de penas cruéis, estabelecido no art. 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal de 1988, além da garantia ao preso do respeito à integridade física e moral (inc. XLIX) e da proibição de submissão a tratamento desumano ou degradante (inc. III). Nesse sentido, Rômulo de Andrade Moreira (2004, p. 38) faz os seguintes questionamentos: “Quem seria essa outra autoridade administrativa? O secretário de Estado da Justiça? O Governador do Estado? Estariam eles então, agora, a figurar como partes ou sujeitos do procedimento jurisdicional da execução penal? [...] Será que manter um homem solitariamente numa cela durante 360 ou 720 dias, ou mesmo por até um sexto da pena (não esqueçamos que temos crimes com pena máxima de até 30 anos), coaduna-se com aqueles dispositivos constitucionais?”

4. Em artigo publicado na Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal (nº 33, ago.-set. de 2005), Rejane Alves de Arruda levanta questionamento relativo às hipóteses de cabimento do regime disciplinar diferenciado pelo qual, invocando o critério sistemático, indaga se as hipóteses previstas nos parágrafos 1º e 2º estariam atreladas ao caput do art. 52, é dizer, vinculadas à ocorrência de fato previsto como crime. A mesma autora, porém, conclui negativamente, admitindo não ter sido essa a intenção do legislador.

5. Para Damásio (1999, p. 519-520), nos termos do art. 59, do Código Penal, teria a pena uma finalidade mista, é dizer, retributiva e preventiva, possuindo ainda como características ser personalíssima, ter sua aplicação disciplinada em lei, a inderrogabilidade e a proporcionalidade ao crime.

6. Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Art. 10 A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

7. Nesse sentido são os dizeres de Augusto Thompson (2002, p. 3), que assim preleciona acerca das funções da pena: “Propõe-se, oficialmente, como finalidade da pena de prisão, a obtenção não de um, mas de vários objetivos concomitantes:

– punição retributiva do mal causado pelo delinqüente;

– prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e de pessoas potencialmente criminosas;

– regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não criminoso.”

8. Por certo que a problemática relativa às contrariedades e antagonismos das metas da pena de prisão desafiam discussão mais rica que aquela que ora é realizada no presente artigo, cujos limites, porém, não comportariam a análise da temática em maiores proporções. A respeito dela, veja a obra “A questão penitenciária”, de Augusto Thompson, notadamente o capítulo 2, intitulado “Fins contraditórios atribuídos à pena de prisão”; e o artigo “Paradoxos da pena”, de autoria de Francisco César Pinheiro Rodrigues, publicado na RT 651/381.

9. Séculos atrás, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (2002, p. 49), já chamava a atenção para a circunstância segundo a qual: “Poderão os gritos de um desgraçado nas torturas tirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já praticada? Não. Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus concidadãos do caminho do crime.” (grifo nosso)

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2007. Disponível em:
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Acesso em: .