Um olhar reconstrutivo da modernidade e da “crise do Judiciário”: a diminuição de recursos é mesmo uma solução?

Autor: Flávio Quinaud Pedron
Advogado, Mestre em Direito pela UFMG, Professor na PUC-Minas e no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix
Publicado na Edição 22 - 28.02.2008

Resumo: O presente artigo desenvolve uma leitura reconstrutiva da “crise do Judiciário” a partir dos seus fatores históricos e sociológicos, bem como da teoria desenvolvida por Jürgen Habermas, a fim de demonstrar que as crises desempenham um papel fundamental da Modernidade, não podendo – nem devendo – ser sanada. Na realidade, do ponto de vista funcional, a “crise” é fruto de uma colonização da racionalidade sistêmica (principalmente do Mercado) que desaloja a ação comunicativa do seu hábitat, trazendo prejuízo para a legitimidade do Direito moderno.

Palavras-Chave: “crise do Judiciário”; Modernidade; paradigmas e legitimidade do Direito.


A afirmação da existência de uma “crise” no Poder Judiciário brasileiro não é nova e, antiteticamente, parece acompanhar a história dessa instituição como uma constante. A surpresa se revela mais clara, todavia, quando se tem em mente que a palavra crise tem sua origem na palavra grega krísis, tão comum no vocabulário médico. Representaria, então, um estágio súbito no curso de uma determinada patologia, que coloca em dúvida os poderes de autocura do organismo afetado. Daí, pode-se compreender o significado de crise como uma “força objetiva, que priva um sujeito de alguma parte da sua soberania normal” (HABERMAS, 2002:12).

Mas, se uma outra compreensão do termo for procurada, é possível encontrar referência no campo estético, principalmente na literatura. Nesse caso, a crise adquire o significado de uma encruzilhada que permanece como perspectiva interna à identidade das pessoas que lutam por uma salvação, ou seja, o sujeito tem de se debater internamente em razão de um conflito normativo que vai de encontro à sua identidade.

Transportando esse conceito para as ciências sociais, pode-se encontrar menções ao conceito teórico sistêmico de crise, fornecido por Habermas:

“Conforme esta perspectiva sistêmica, as crises surgem quando a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessárias para a contínua existência do sistema. Neste sentido, as crises são vistas como distúrbios persistentes da integração do sistema.” (2002:13)

As crises em sistemas sociais são, portanto, o resultado de uma incompatibilidade dos imperativos funcionais inerentes a cada sistema. Mas, para melhor compreender essa afirmativa, faz-se necessário identificar quais dentre os imperativos funcionais são essenciais para a manutenção da identidade de um dado sistema.

Segundo Buzaid (1972:144), a idéia de crise do Judiciário está ligada a um desequilíbrio entre o aumento do número de demandas ajuizadas e o número de julgamentos proferidos. Em razão do maior número de demandas propostas em face do número de julgados, tem-se um acúmulo de demandas que se sedimentam, congestionando o fluxo normal da tramitação processual e prejudicando a observância regular pelo Poder Judiciário dos prazos processuais fixados na legislação processual brasileira.

Dentro da problemática traçada nesta pesquisa, a questão acima adquire uma forma específica, uma vez que tal identificação depende da compreensão adequada da função que deverá ser assumida pelo sistema do Direito na sociedade moderna – qual seja a de estabilizar as expectativas de comportamento generalizadas dentro de uma determinada sociedade.(1)

Dessa forma, a proposta lançada aqui é identificar como a “patologia” que assola o Judiciário brasileiro foi percebida ao longo do transcurso histórico, bem como quais foram as medidas tomadas até agora para sua superação. Em seguida, proceder-se-á a uma reconstrução paradigmática a fim de avaliar se as atuais medidas de contenção da “crise” se mostram não apenas eficazes, mas adequadas ao atual paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

As raízes históricas da “crise” podem ser identificadas ao longo do desenvolvimento da República, sendo o Supremo Tribunal Federal (STF) o órgão que primeiro a percebeu(2) através do Decreto nº 20.889, de 23 de novembro de 1931, que fixava o número obrigatório por semana de seções de julgamento, até que fosse esgotada a pauta das causas judiciais já marcadas (BUZAID, 1972:145). Nessa época, o número de feitos não atingia a casa anual de duzentos,(3) mas as pautas, que não se esgotavam, já representavam uma preocupação, o que levou os estudiosos a afirmarem a existência de uma “crise no Supremo Tribunal Federal”.(4)

Com a Constituição de 1934, acreditou-se que a criação da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar e de um mecanismo administrativo de resolução de contenciosos ligados à matéria trabalhista representassem uma solução para o problema enfrentado pelo STF. Além disso, o art. 76, 2, III, do Texto Constitucional, ao disciplinar a figura do recurso extraordinário,(5) traçou contornos mais próximos dos atualmente existentes – apesar de ainda não haver recebido a nomenclatura atual. Ao utilizar o termo julgar em vez da expressão consagrada no Texto Constitucional anterior (haverá recurso), ficou encerrada uma discussão existente em razão do novo art. 76,(6) entendendo-se que o STF não funcionaria como uma corte de cassação – que anularia as decisões proferidas pelos órgãos inferiores e determinaria que os mesmos proferissem outra substituta – e optando-se pelo modelo da corte de revisão, de modo que seus ministros teriam poderes para reexaminar toda a matéria, aplicando o direito a um determinado caso em litígio, o que, operacionalmente, poderia representar uma diminuição dos trabalhos do Tribunal. Essa polêmica já é suficiente para caracterizar uma preocupação sobre o acúmulo de serviço mesmo quando os feitos endereçados ao STF somavam anualmente 800, sendo 286 o número de recursos extraordinários propostos (NAVES, 2001:11). Uma tentativa encontrada para agilizar os julgamentos foi a divisão do Tribunal em turmas de cinco juízes, por meio do Decreto-Lei nº 6, de 16 de novembro de 1937.

Outras medidas “desafogadoras” do STF foram, então, tomadas nos anos posteriores: (1) a Constituição de 1946 criou o Tribunal Federal de Recursos (TFR), substituindo o STF como segunda instância para as causas de interesse da União; (2) a Lei nº 3.396/58, que alterou os artigos 864 e 865 do Código de Processo Civil, determinando a necessidade de fundamentação das decisões do Presidente do Tribunal a quo que admitem ou denegam recurso extraordinário – o que possibilitou a denegação do recurso, não apenas segundo critérios formais de admissão; e (3) em 1963, por influência do Min. Nunes Leal, o STF aprovou suas primeiras súmulas de jurisprudência dominante (370 verbetes ao todo), visando a externar a posição majoritária do Tribunal para que a mesma fosse seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

Foi, sobretudo, a partir de 1964 que medidas pautadas mais em razões meramente pragmáticas para solucionar a “crise do Supremo Tribunal Federal” ganharam destaque: (1) através da alteração do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), foram consideradas prejudicadas todas as causas pendentes de julgamento há mais de dez anos, caso não houvesse manifestação expressa das partes após convocação; (2) a introdução do controle concentrado de constitucionalidade, por meio da Emenda Constitucional nº 16, consagrando o instituto da representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, quando encaminhada pelo Procurador-Geral da República;(7) e por fim, através da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, (3) a argüição de relevância da questão federal, condicionando para o conhecimento do recurso a demonstração de reflexos na ordem jurídica e aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, julgados como um incidente prévio ao conhecimento do recurso extraordinário em seção secreta e irrecorrível.(8)

Com o movimento de redemocratização, consagrado na Constituição da República de 1988, modificações sensíveis puderam ser notadas no tocante à preocupação em não sobrecarregar o STF. A principal modificação foi a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja atribuição seria a de “guardião” da legislação federal, deixando ao STF a atribuição de proteção da esfera constitucional. A Carta Magna, contudo, deixou de consagrar o polêmico requisito da argüição da relevância para os recursos extraordinários.

Com a nova Constituição, ainda se tinha a idéia de que a “crise” persistia mesmo com a criação do STJ. E não se tratava mais de uma endemia restrita ao âmbito do Supremo Tribunal Federal, mas que rapidamente havia se alastrado aos demais órgãos do Poder Judiciário, o que conduzia à constatação de que havia uma “crise” não somente no STF, mas uma crise generalizada em todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Dados estatísticos acusam que, após um ano de sua criação, o STJ recebeu 14.087 processos para julgamento, conseguindo decidir apenas sobre 11.742.(9) O mesmo aconteceu com o Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, no mesmo período, julgou 20.473 processos.(10) Contudo, tal problema não é restrito à realidade dos Tribunais Superiores. A primeira instância – englobando tanto as Justiças Estadual e Federal, Comum e Especiais – recebeu, em 1990, 5.117.059 causas, sentenciando apenas 3.637.152.(11)

Após a Constituição da República de 1988, no nível infraconstitucional, a legislação processual sofreu diversas alterações, principalmente no sentido de concentrar a tomada de decisões em figuras individuais, como o caso do aumento dos poderes do relator dos acórdãos perante os Tribunais.(12)

Outra medida foi o uso experimental da figura da “transcendência” no recurso de revista como requisito de admissibilidade – com pretensão de propagação para todos os demais recursos para Tribunais Superiores – por meio da Medida Provisória nº 2.226/01.(13) Tal medida foi questionada judicialmente com a proposição da ADI nº 2.527-9 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. De maneira bem sintética, pode-se afirmar que o objetivo da “transcendência” é fornecer ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) a possibilidade de desenvolver um filtro de seleção de recursos, através da demonstração pelo recorrente de que aquela causa transcende – econômica, política, social ou juridicamente – os limites do caso concreto e do interesse privado das partes processuais. Segundo seus defensores (MARTINS FILHO, 2000; SILVA, 2001), tal artifício autorizaria os Tribunais a negar o conhecimento de “causas menos importantes e repetitivas”, que tanto abarrotam as estantes dos Tribunais, dando fim precoce – ou mais célere, na definição dos mesmos – à tramitação dessas, supostamente “pacificando” o conflito pelo proferimento da decisão judicial final.

Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, duas inovações ganharam destaque como propostas para a solução da “crise”: a possibilidade de o STF publicar súmulas de efeito vinculante(14) (art. 103-A)(15) e a necessidade de se demonstrar, em sede de recurso extraordinário, a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso (art. 102, §3º),(16) funcionando como um requisito de admissibilidade desse recurso. Sobre esse último, é importante destacar que muitos estão compreendendo-o como um retorno da antiga argüição de relevância da CR/69, da mesma forma que a transcendência no recurso de revista – tratar-se-ia, então, de uma mera troca de etiquetas nas perspectivas, por exemplo, de Martins da Silva (2005:195) e de Tavares (2005:213-214; 2004:55).(17)

Se se adotar, todavia, a perspectiva da análise de Buzaid (1972:147), lançando mão do termo crise conforme o seu significado médico, parece equivocado considerar o aumento de volume de trabalho nos Tribunais Superiores como a causa da patologia denominada de “crise do Poder Judiciário”. O que se sugere como adequado é a compreensão dos mesmos fenômenos como meros sintomas, ou seja, apenas como uma conseqüência verificável empiricamente da incapacidade do próprio sistema jurídico de gerar respostas funcionais satisfatórias.(18)

Dessa forma, a “cura” para tal condição não decorreria simplesmente de uma solução pragmática com vistas a reduzir de forma drástica o número de recursos julgados, principalmente nos Tribunais Superiores, mas de uma tentativa de lançar um olhar mais amplo sobre a questão. Isso porque a sobrecarga não decorre de um simples aumento no número de recursos dirigidos aos Tribunais Superiores, mas de uma litigiosidade que começa desde a primeira instância e apenas segue seu curso normal. Assim, as causas da “crise” estariam no aumento demográfico (BUZAID, 1972:149) ou no processo de industrialização e urbanização brasileiro (SADEK, 2004:11).(19) Um olhar complementar a esse é apresentado por Oliveira Filho e confirmado por Buzaid em citação de Baptista (1976:40): o acúmulo de processos, fator gerador da “crise” do STF, seria resultado da grande confiança que os litigantes estariam depositando naquela Corte.

Importante ainda lembrar que os estudos sociológicos sobre a administração da justiça, em autores como Faria e Souza Santos (1989; SOUZA SANTOS, 2005:177), vêm destacando – ainda que em perspectiva diversa da adotada nesta pesquisa – o fato de que o problema da “crise” do Judiciário decorre não somente de uma sobrecarga quantitativa, mas também da incapacidade do mesmo em “absorver” novas demandas sociais que passam a exigir uma mudança de paradigma quanto ao papel da jurisdição e do poder judiciário.

Todavia, parece estar ausente, em diversas pesquisas, a necessidade de uma compreensão do Direito que leve em conta uma reconstrução em paradigmas.(20) Se assim se procedesse, ficaria mais clara a noção de que as “crises” representam movimentos constantes na modernidade, resultantes justamente do aumento de complexidade no interior da sociedade; não podendo ser, portanto, eliminadas. Deve ser lembrado ainda que cabe às instituições existentes, incluindo o próprio Judiciário, a manutenção dessa complexidade (HABERMAS, 1998:406).

Tais paradigmas são resultado não apenas da leitura dos textos legais, mas principalmente do compartilhamento de um horizonte de pré-compreensão, “sendo que essa interpretação é também uma resposta aos desafios de uma situação social percebida de uma determinada maneira” (ROCHA, 2004:232-233). Por isso mesmo que

“[...] o conceito de paradigma incorpora, na ciência, a compreensão da impossibilidade humana de um conhecimento absoluto, de um saber total, perfeito e eterno, precisamente em razão do nosso inafastável e constitutivo enraizamento social, histórico-cultural. [...] Só podemos observar algo com os olhos que temos, marcados socialmente e historicamente datados, e não com supostos olhos divinos e atemporais.” (CARVALHO NETTO, 2003b:151)

Assim, poder-se-ia identificar, após a superação da concepção pré-moderna, uma nova fórmula de legitimação do poder político com o advento da Modernidade, o Estado Democrático de Direito.(21) Ao longo da existência deste, dois paradigmas adquiriram maior sucesso: o Estado Liberal (Estado de Direito) e o Estado Social (Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social). Todavia, desde os fins do século XX, uma nova compreensão começa a ganhar relevância, indicando para um novo paradigma. Dentro da proposta de Habermas, então, está a reconstrução dos paradigmas anteriores, para que até mesmo se torne possível traçar os contornos do que seja um paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

A principal característica da concepção pré-moderna é a percepção de que Direito, Política, Religião, Moral, tradição e costumes são justificados por uma ordem transcendente, não apresentando diferenciações, de modo a formar um amálgama. A concepção de Direito estava, então, associada à coisa que era devida a uma pessoa em decorrência de sua posição dentro de um determinado sistema de castas. E a justiça era um produto da sabedoria e da sensibilidade do aplicador (CARVALHO NETTO, 1999:476-477). Como conseqüência de tal compreensão, o Direito funcionava como elemento de consagração e conservação dos privilégios de cada casta, de modo a ensejar uma aplicação casuística e individual, desligada de um caráter universalizável, ou seja, proveniente de um ordenamento jurídico integrado por normas gerais e abstratas válidas para todos os membros dessa sociedade.

Com a Modernidade,(22) entretanto, novas luzes são lançadas. Assim,

“[...] o que conhecemos com o nome de modernidade começa quando desaparece a idéia de uma ordem universal – seja ela imanente ao cosmos ou transcendente a ele. Em outras palavras, a modernidade começa quando termina a idéia de ‘mundo’ (espaço infinito, dotado de centro e de periferia e de ‘lugares’ naturais) e de hierarquia natural dos seres, cedendo para as idéias de universo infinito, desprovido de centro e de periferia, e de indivíduo livre, átomo no interior da Natureza e para o qual já não possuímos a definição prévia de seu lugar próprio e, portanto, de suas virtudes políticas. [...] A modernidade afasta a idéia (medieval e renascentista) de um universo regido por forças espirituais secretas que precisavam ser decifradas para que com elas entremos em comunhão. O mundo se desencanta – como escreveu Weber – e passa a ser governado por leis naturais racionais e impessoais que podem ser conhecidas por nossa razão e que permitirão aos homens o domínio sobre a Natureza.” (CHAUÍ, 1992:350)

O primeiro paradigma jurídico do Estado Democrático de Direito ficou conhecido como o Estado Liberal, que se assentava sobre três princípios básicos: igualdade, liberdade e propriedade. Esses princípios se relacionavam ainda com um novo elemento: o indivíduo. Isso porque, desde a Grécia Antiga até a Idade Média, havia um centro orientador e aglutinador da vida em sociedade, ou melhor, em comunidade – primeiro, tem-se a polis, que foi substituída, no período medieval, pela Igreja Católica. Como decorrência, identifica-se um deslumbramento da sociedade diante da declaração de igualdade de todos os indivíduos – marcando o fim dos antigos privilégios de nascimento – e a possibilidade de que cada um possa definir, a partir exclusivamente dos ditames de sua própria razão, os rumos que sua vida deve tomar (BAHIA, 2004:304).(23) Tem-se, então, uma compreensão no sentido de afirmar uma divisão entre a esfera privada e a esfera pública (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:55), principalmente em razão da interpretação dos direitos fundamentais como garantias negativas, isto é, como garantia da não-intervenção do Estado na esfera da sociedade, deixando principalmente a Economia a cargo das leis mecânicas do Mercado e garantindo que cada indivíduo possa buscar por si sua felicidade (HABERMAS, 1996b:772; QUADROS DE MAGALHÃES, 2002:63). A Constituição é, então, compreendida como um “instrumento de governo”, o estatuto jurídico-político fundamental que organiza a sociedade política e limita o poder político do Estado (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:56). O Direito, como um Direito formal burguês, assume a perspectiva de um sistema fechado de regras que determina o limite e a garantia da esfera privada de cada indivíduo;(24) portanto, adquire uma compreensão formal, privatística, de modo que percebe os conflitos sociais exclusivamente sob a perspectiva interindividual (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:9).(25) Movidos pela idéia de uma razão “absoluta”, os legisladores acreditavam poder positivar o conteúdo do Direito Natural – agora não mais transcendente, mas de índole racional – em Códigos, capazes de regular toda a complexidade da vida em sociedade de modo a não deixar lacunas, no máximo obscuridades aclaradas pelo trabalho dos “comentadores”. Ao Judiciário, cabia o papel de dirimir conflitos interparticulares, ou entre esses e a Administração Pública mediante provocação; para tanto, esclarece Carvalho Netto (1999:479), o magistrado exercia uma atividade mecânica de aplicação do direito ao caso concreto através de uma subsunção do caso às hipóteses normativas identificadas mediante uma leitura direta do texto normativo, razão pela qual o juiz foi considerado por Montesquieu a bouche de la loi (boca da lei).

Todavia, percebe-se que, ao alicerçar a liberdade na propriedade, restringiu-se a participação na esfera pública aos sujeitos que já integravam a ordem econômica. Além disso, essa interpretação de liberdade acabou por alimentar a eliminação da livre concorrência e uma sempre crescente exclusão social. Como conseqüência, o Estado Liberal entrou em colapso, pois explodiram revoltas operárias que buscavam o reconhecimento de condições mínimas de trabalho, bem como foram difundidas as idéias de Marx e Engels, incentivando a organização proletária, o que forçou o Estado Liberal a empreender diversas mudanças em sua estrutura (QUADROS DE MAGALHÃES, 2002:64).

Compreendeu-se, principalmente, que os direitos, até então positivados, não mais eram suficientes para garantia real de liberdade e igualdade. A principal queixa foi a necessidade de materialização dos direitos consagrados constitucionalmente, como meio não apenas de garantia da igualdade formal, mas como proteção ao menos favorecido.(26) Segundo Habermas (1998:471), essa materialização, que já havia sido explorada por Weber, ganhou relevância ao final da Segunda Guerra, mas foi compreendida inicialmente como uma crise do Direito, que dissolveria a unidade e a estrutura sistemática da ordem jurídica, sobrepondo-se à concepção liberal e vindo a substituí-la.

Um marco inicial do paradigma jurídico do Estado Social pode ser identificado com o chamado constitucionalismo social, movimento que ganha maiores contornos após a Constituição alemã de Weimar (1919), apesar de a Constituição mexicana de 1917 ser considerada a primeira Constituição Social (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:58; CARVALHO NETTO, 1999:480; QUADROS DE MAGALHÃES, 2002:65). Como principal conseqüência dessa ruptura, tem-se uma ampliação no conjunto dos direitos fundamentais, resultante não somente de um acréscimo de direitos, mas também de uma completa alteração nas bases de interpretação dos direitos anteriores.(27) Nesse sentido, assevera Carvalho Netto:

“Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direito de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material.” (1999:480)

Na seqüência, Leal (2002:27) alerta para uma mudança de posição estatal: a posição negativa é abandonada para se assumir uma posição positiva, isto é, o Estado passa a agir efetivamente na garantia dos direitos sociais mínimos e da autonomia privada dos cidadãos.(28) O Estado não mais pode ser tomado como um elemento “neutro”, distante dos conflitos sociais; passa agora a atuar no sentido de assumir-se “como agente conformador da realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de vida concretas, impondo pautas ‘públicas’ de ‘vida boa’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:59). Na esfera econômica, o Estado passa a desempenhar ações que visam a uma proteção artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, além de compensar a desigualdade através de prestações sociais de serviços.(29) Com isso, de cidadãos, os indivíduos se transformam em clientes.

As alterações são sentidas no Direito, que passa a ser interpretado como um sistema de regras e princípios otimizáveis (valores) – a serem realizados no “limite do possível” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:59).(30) A preocupação com a materialização do Direito levanta a exigência de novas teorias hermenêuticas que libertem o juiz da aplicação mecanizada da norma ao fato (CARVALHO NETTO, 1999:480; BAHIA, 2004:308). Nessa ótica, o Judiciário passou a representar uma peça fundamental no processo de densificação social das normas, visando à concretização de direitos carentes de políticas públicas (CARVALHO NETTO, 2003:99).

Ganha relevo a teoria de Kelsen como tentativa de construção de uma Ciência do Direito “pura”,(31) isto é, livre de qualquer elemento moral, econômico ou valorativo. Um ponto importante foi a teoria kelseniana da interpretação, que diferenciou interpretações “autênticas” (feitas pelo legislador ou pelo juiz) de “não autênticas” (feitas principalmente pela dogmática jurídica).(32) Uma teoria da interpretação estaria diretamente vinculada a uma compreensão escalonada de normas jurídicas. A interpretação jurídica está vinculada à existência de uma autorização dada por um nível superior do ordenamento a um nível inferior para que este possa produzir atos normativos. Isso porque, para Kelsen (1999:387), a decisão judicial é também uma forma de produção de norma, porém uma norma individual.(33) Ela está, então, vinculada à atividade de aplicação de uma dada norma jurídica. Contudo, Kelsen (1999:388) entendia que haveria sempre um espaço de livre apreciação a ser preenchido pelo aplicador.

Poderiam ainda surgir situações em que essa margem para interpretação não decorresse de um ato intencional do nível superior, mas de uma mera eventualidade, como uma ambigüidade surgida na leitura do próprio texto ou entre outros textos. Como conseqüência, surge a possibilidade de uma pluralidade de interpretações sobre a aplicação de uma dada norma. Reconhecendo isso, Kelsen (1999:390) acaba por afirmar que seria possível conter todas as interpretações jurídicas sob uma mesma moldura de modo que tudo o que ficasse em seu interior seria considerado como juridicamente possível e teria igual importância, deixando a cargo do órgão aplicador a decisão como uma questão de livre preferência.(34) Caberia, então, à dogmática jurídica descrever todas as possíveis interpretações que poderiam estar contidas na moldura, sem, contudo, emitir qualquer juízo de valor sobre qual seria a correta, para influenciar a escolha do órgão aplicador.

Todavia, a partir da edição de 1960, Kelsen lança uma outra proposta – um giro decisionista, segundo Cattoni de Oliveira (2001:47; BAHIA, 2004:311) – defendendo que o órgão aplicador – principalmente os mais altos Tribunais – possuiria liberdade não apenas para escolher interpretações possíveis, previstas na moldura, mas estaria autorizado a ir além, produzindo uma nova interpretação e, como conseqüência, criando um direito novo (KELSEN, 1999:395).

Como bem destaca Carvalho Netto (2003:100), a estupefação das ciências em geral – e, no caso da Ciência do Direito, ainda presa à tradição positivista – diante da indeterminação da linguagem percebida com o giro lingüístico levou à necessidade de uma compreensão modificada da racionalidade humana. A ciência, hoje, só pode ser reconhecida quando se assume como um sistema de conhecimento histórico e precário (2003:92). A necessidade de garantia da certeza e da segurança jurídica (entendida como previsibilidade) não mais poderia se dar através de métodos da ciência e foi solucionada por Kelsen na forma da consagração de uma discricionariedade do órgão aplicador, identificando na sua vontade a da sociedade.

O desgaste do paradigma do Estado Social tem início a partir dos anos 60, entrando em colapso a partir da década que se segue (BAHIA, 2004:312).(35) O paternalismo estatal, já denunciado anteriormente, se mostra como um dos entraves para o processo de cidadania que ele próprio pretendia resolver.(36) Habermas (1994:123) lembra que, para a sua manutenção, o Estado Social necessitou desenvolver uma enorme rede normativa e burocrática, cobrindo toda a vida cotidiana da sociedade.

Desenvolve-se ainda uma preocupação de garantia de direitos cujos titulares não são mais facilmente identificáveis (os chamados direitos difusos, como, por exemplo, direito ao meio ambiente, direito do consumidor e direito da criança e do adolescente). Os direitos individuais e sociais ganham uma nova leitura: uma conotação processual, como destaca Carvalho Netto (1999:481). Passam a ser vistos como garantias de participação no debate público, marcando a preocupação pluralista e aberta de uma nova leitura – agora procedimental – do Direito. Uma característica importante é a necessidade de redefinição de autonomia pública e autonomia privada a partir de uma coesão interna, no sentido de que direitos privados só são assegurados conjuntamente com os direitos políticos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:10). Além do mais, o estatal não é capaz de identificar a sociedade, que por meio de organizações civis passa a exigir uma maior participação; não mais depende da postura burocratizante (instrumentalizante) do Poder Administrativo nas decisões sobre direitos. Logo, “somente através de espaços de discussão pública, formais ou não, em que se assegure igual participação de diferentes grupos, agindo discursivamente é que se poderá lidar com as desigualdades” (BAHIA, 2004:315). A cidadania é agora entendida como um processo, bem como a democracia, que conduz a um aprendizado social, de modo a não necessitar de pré-requisitos (CARVALHO NETTO, 1999:481-482).

“Pois, da mesma forma que cidadania não é algo natural, que se garante tão-somente pelo reconhecimento de direitos privados e de uma esfera de livre-arbítrio, cidadania não se ganha nem se concede, mas se conquista. Exige luta, reconhecimento recíproco e discussão, através de todo um processo de aprendizado social, capaz de corrigir a si mesmo, todavia, sujeito, inclusive, a tropeços.” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:10)(37)

Como conseqüência, o Direito também demanda uma (re)construção mais voltada à participação social na tomada de decisões públicas.(38) Como lembra Häberle (1997), afirma-se a existência de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” em substituição ao “intérprete autêntico” de Hans Kelsen. A necessidade de legitimidade das decisões passa a ser uma preocupação constante,(39) não mais podendo tais decisões se prenderem a uma racionalidade instrumental, voltada para aspectos meramente de eficiência (SADEK, 2004:27). Todavia, tal questão parece ter ficado em segundo plano nas continuações das propostas de reformas para a solução da “crise do Judiciário”.

Essa nova abordagem teórica é fundamental para o presente trabalho, pois revela que a “crise”, na realidade, não se trata tanto da inflação de demandas perante o Judiciário, mas sim de uma “crise” decorrente da compreensão do paradigma do Estado Social. Em outras palavras, essa crise, em sua inteireza, traz à tona o fato de que múltiplas interpretações, provindas não apenas dos canais formais do Estado, passam a adentrar o cenário das discussões do Judiciário, buscando ressonância e reconhecimento (SOUZA SANTOS, 2005:177).

Todavia, o que representaria uma contribuição para a democratização dos processos de tomada de decisões institucionais, atendendo a uma preocupação com a legitimidade dessas, é interpretado como um risco de dissenso que deve ser eliminado a todo custo para que se possa (re)estabelecer o primado da “segurança jurídica” (aqui entendida como previsibilidade). Assim, retoma-se a crença, já presente em Kelsen, de que a solução decorreria do estabelecimento de uma única interpretação autorizada – no caso, a do STF – como forma de simultaneamente garantir a segurança jurídica e o desafogamento em relação às demandas.(40)

Porém, outra ainda pode ser a explicação – que não necessariamente exclui a hipótese anterior, mas complementa-a: o resultado de uma intervenção instrumental por parte do poder econômico do Mercado (sistema econômico) no sistema do Direito. O sistema econômico regido pelo medium do dinheiro atua nos processos de integração social de maneira diversa do que acontece com o Direito. Os pressupostos comunicativos são substituídos por uma forma de ação não intencional, que segue uma lógica instrumental (HABERMAS, 1998:102). Tanto o mundo da vida quanto o Direito são elementos fundamentais para o funcionamento e para a reprodução da sociedade (FREITAG, 2002:239). Todavia, pode-se identificar como “patologia da modernidade” a chamada colonização do mundo da vida.(41) De uma maneira parasitária, o sistema econômico intervém nos processos de decisões jurídicas através de sua própria lógica de racionalidade (adequação de meios a fins), buscando a sua expansão, mas sob pena de perda da legitimidade do Direito como conseqüência da expulsão da ação comunicativa de seu habitat natural (FREITAG, 2002:239).

Melo Filho (2003:79) e Silva Candeas (2004:18) alertam para a intervenção do capital estrangeiro, através do Banco Mundial e de seu plano de padronização do Judiciário de toda a América Latina, sob o pretexto de “construção de uma nova ordem” favorável ao capital e à integração econômica. Tais tendências e expectativas foram materializadas no documento técnico nº 319, denominado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma, datado de junho de 1996.(42) O próprio documento reconhece a necessidade de uma reforma econômica para que o Judiciário funcione bem, isto é, aplique as leis de maneira previsível e eficiente – em sua leitura, o mais célere possível – e atue na garantia da propriedade privada (DAKOLIAS, 1996:3).(43) Diante de uma ordem econômica de proporções globais,(44) o Judiciário pode se tornar um “parceiro” do Mercado, se levar a cabo a defesa da propriedade e atuar dentro de uma margem de previsibilidade:

“[...] o Estado é essencial para a implantação dos fundamentos institucionais apropriados para os mercados, e a credibilidade do governo – a previsibilidade de suas normas e políticas e a constância de sua aplicação – pode ser tão importante para atrair investimentos privados quanto o conteúdo dessas normas e políticas.” (SILVA CANDEAS, 2004:21-22)

O Estado, então, por meio do Judiciário, proporcionaria uma ordem de estabilidade causada pela previsibilidade e celeridade na aplicação de normas jurídicas e pela garantia da obrigatoriedade dos contratos, minimizando o risco das atividades econômicas. Assim,

“[a] interpretação que se depreende dos textos é que o Judiciário pode tornar-se mais eficiente ao concorrer com outros mecanismos para a resolução de litígios. Por isso, o Banco estimula a aplicação dos MARD (mecanismos alternativos de resolução de disputas), quais sejam, arbitragem, mediação, conciliação e os juízes de paz, para romper com o ‘monopólio do poder judicial’.” (SILVA CANDEAS, 2004:28)

Mas o valor previsibilidade é ainda mais almejado que a eficiência:

“Para o Banco Mundial, o Estado deve atuar como vetor de certezas. Na opinião do organismo, se um Estado muda freqüentemente as regras ou não esclarece as regras pelas quais ele próprio se guia, as empresas e os indivíduos não podem ter certeza hoje do que amanhã será lucrativo ou não lucrativo, lícito ou ilícito. Nesse caso, tendem a adotar estratégias arriscadas para se protegerem contra um futuro incerto – ingressando, por exemplo, na economia informal ou enviando capital ao exterior, prejudicando a economia nacional.” (SILVA CANDEAS, 2004:33)

É a partir desse prisma, ou seja, racionalidade voltada aos interesses do capital despersonalizado, que também pode ser compreendido o processo de centralização das decisões jurídicas, como a súmula vinculante ou mesmo a adoção de mecanismos de filtragem de recursos para os Tribunais Superiores. Ao se limitar a interpretação jurídica, centrando-a em órgãos especializados entendidos como os únicos autorizados a decidir, minimiza-se o risco de dissenso, mas assume-se, por outro lado, o risco de perder de vista o papel comunicacional presente nos processos de decisões jurídicas, responsável pela manutenção de sua legitimidade democrática.

A conseqüência da implementação dessa proposta, segundo Melo Filho (2003:81), é fornecer mais subsídios para a hipertrofia do Poder Executivo a custo da submissão do Judiciário, que se transformaria em mero órgão chancelador das políticas públicas propostas pelo primeiro,(45) com a subseqüente redução da órbita de ação do Poder Judiciário. Tal diagnóstico parece ser confirmado quando se percebe a tentativa de defesa de uma concentração do controle de constitucionalidade por parte de STF, principalmente com o uso da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) com efeito vinculante, após 1993.

Além disso, o Executivo acaba por quase monopolizar faticamente a atividade do Judiciário. Grinover (2005:501) lembra que, no plano das demandas individuais, o principal “cliente” do Judiciário é o próprio Estado. Com base nas análises da pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, a pedido do Ministério da Justiça, constatou-se que

“[...] 79% dos processos em tramitação perante o Supremo envolvem o Poder Executivo (64% da União, 8,2% dos Estados e 6% dos Municípios; só a Caixa Econômica Federal é responsável por 44% das causas em andamento no Supremo Tribunal Federal).”

Na grande maioria desses casos, o que se percebe é o uso dos procedimentos jurisdicionais, contando com a morosidade como forma de retardar a satisfação de direitos já reconhecidos, até mesmo pela própria parte recorrente. Logo, uma solução mais democrática é a proposta por Souza Cruz (2004:412): utilizando os próprios instrumentos processuais existentes, dever-se-ia voltar a atenção para a coibição de posturas estratégicas que desnaturem o conteúdo comunicativo inerente aos recursos, tornando-os meros subterfúgios para protelações. Uma vez que o exame do caso específico em juízo pode demonstrar a existência de um abuso do direito processual, o que se teria é uma situação não tutelada pelo Direito, que, ao contrário, coíbe quando caracterizada em ilícito.

Outra questão que não pode ser olvidada é que, simultaneamente ao fato de as instituições ligadas ao Estado de Direito contribuírem para a redução da complexidade social, essas, em movimento contrário, são também responsáveis por mantê-la (HABERMAS, 1998:405-406). No caso, então, da “crise” do Judiciário, a mesma se mostra como elemento fundamental – e, por isso mesmo, sem solução, uma vez que atua no sentido de colocar o Judiciário em evidência, como tema permanente dos debates públicos. Isso adquire uma perspectiva positiva, já que incentiva permanentemente a fiscalização e a crítica pública das decisões judiciais, lembrando aos aplicadores jurídicos que eles são meros representantes do papel que desempenham (GÜNTHER, 1995:52-53).

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Notas:

1. Ao fazer referência ao sistema do Direito, o presente estudo se apóia nos trabalhos desenvolvidos por Habermas, principalmente, em sua obra Facticidade y Validez (1998). Contudo, não se pode furtar a menção aos estudos de Luhmann sobre os sistemas sociais, inclusive o sistema do Direito. Para tanto, ver LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Universidad IberoAmericana, 2002. (Colección Teoria Social). É, contudo, oportuno esclarecer que as divergências habermasianas sobre a teoria de Luhmann não serão objeto de discussão.

2. Criado pelo decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, o Supremo Tribunal Federal seguiu os moldes do modelo norte-americano, tendo suas atribuições definidas pela Constituição de 1891, de forma a caber-lhe o papel de defesa da unidade e autoridade da Constituição e das leis federais (VILLELA, 1986:236).

3. As referências estatísticas apresentadas baseiam-se no texto de Alfredo Buzaid (1972:145), que, por sua vez, baseia-se nos Arquivos do Ministério da Justiça, v. 16, p. 37.

4. Todavia, conforme Almeida Santos (1989:122), durante a reforma constitucional de 1926, uma proposta para diminuição de julgados já havia sido feita, mas não materializada: limitar o cabimento dos recursos extraordinários – previstos inicialmente sem essa nomenclatura – apenas às hipóteses de questionamento sobre vigência ou validade das leis federais em face da Constituição, excluindo, assim, a possibilidade de questionamento da aplicação errônea da lei.

5. O instituto do recurso extraordinário, bem como os demais recursos destinados a Tribunais Superiores, não será objeto de análise aqui, por necessitar de uma abordagem maior, escapando ao escopo da presente pesquisa. Mesmo assim, já se indica a leitura da pesquisa feita por Bahia (2003:331), que, em sua dissertação de mestrado em direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FDUFMG), reconstrói o instituto do recurso extraordinário com vistas ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

6. A Constituição da República de 1934, ao estabelecer a competência do STF, assim dispôs: “Art. 76 - A Corte Suprema compete: [...] III - em recurso extraordinário, as causas decididas pelas Justiças locais em única ou última instância: a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do Tribunal local negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos Governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do Tribunal local julgar válido o ato ou a lei impugnada; d) quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva da lei federal entre Cortes de Apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um destes Tribunais e a Corte Suprema, ou outro Tribunal federal”. Diferentemente é o Texto Constitucional anterior: “Art. 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete: [...] II - julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos Juízes e Tribunais Federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1º, e o art. 60”.

7. Segundo parte da doutrina constitucional brasileira, com destaque às lições do Min. Gilmar Mendes (2004:263), a introdução do controle concentrado de constitucionalidade, pautado no modelo europeu, representaria uma evolução para o sistema brasileiro, substituindo a “obsoleta” técnica de decisão caso a caso, caracterizadora do sistema difuso, por uma técnica de decisão em tese, que, devido aos efeitos erga omnes, seria capaz de abranger mais situações concretas através da discussão do que seria um processo objetivo e que garantiria não somente um desafogamento do STF, como ganhos em segurança jurídica. Tais ganhos são ainda ressaltados após a publicação da Lei nº 9.868/99 e da Lei nº 9.882/99, que inovaram quanto à possibilidade de modulação dos efeitos temporais e pessoais e de concessão dos mesmos efeitos em sede de medida liminar, determinando a suspensão de causas que tramitem na primeira e segunda instância. Todavia, desde já destaca-se que pesam críticas sobre tal leitura no que tange a obediência ao princípio democrático e a legitimidade dessas decisões sobre a constitucionalidade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002).

8. Mesmo com o desrespeito explícito ao princípio do devido processo legal, como denuncia Calmon de Passos (1977:13), diversos juristas, seguindo a linha de raciocínio do Min. Nunes Leal, consideram a argüição de relevância da questão federal um instrumento mais eficiente para diminuir o número de recursos, defendendo o seu retorno ao Direito brasileiro com aplicação não apenas para o recurso extraordinário, mas estendida ao recurso especial e ao recurso de revista, por considerarem ideal o modelo de jurisdição discricionária da Suprema Corte norte-americana (NAVES, 2001; MARTINS FILHO, 2000; MANCUSO, 2003, entre outros). Ao longo da presente pesquisa, objetiva-se demonstrar que a noção de efetividade – principal argumento dos defensores de tal instrumento, na realidade, pauta-se no modelo de racionalidade instrumental (teleológico) weberiano – adequação dos meios a um fim determinado – sem, contudo, observar a dimensão comunicativa existente na linguagem, voltada à garantia da legitimidade do Direito.

9. Conforme valores fornecidos pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, disponíveis em < http://www.stf.gov.br/bndpj/tribunaissuperiores/STJ3A1.asp >, é possível perceber que a atuação do STJ, após o ano de 1996, tem sido sempre no sentido de julgar mais demandas do que o montante que lhe é distribuído. Todavia, esse diferenciado contraste estatístico entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal não pode ser tomado como um resultado positivo, como adverte Ribeiro Costa (2004:295), pois representa uma média de 300 processos mensais por Ministro do STJ – 8 demandas julgadas, em média, por dia trabalhado pelo Ministro, prejudicando uma análise mais aprofundada das questões discutidas.

10. Segundo informações do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário – disponíveis em < http://www.stf.gov.br/bndpj/tribunaissuperiores/TST4A1.asp > – e atualizadas até o ano de 2003.

11. Disponível em < http://www.stf.gov.br/bndpj/movimento/MovimentoB6.asp >, atualizado até o ano de 2003.

12. Trata-se do art. 557 do Código de Processo Civil brasileiro (CPC), cuja redação foi modificada com a Lei nº 9.756, de 17 de dezembro de 1998, autorizando, no caso de recursos especiais ou extraordinários, o relator a negar seguimento de plano a recurso que seja manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de outro Tribunal Superior. Com a Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, alterou-se o texto do art. 527 do CPC, permitindo que o relator no caso agora de agravo de instrumento possa fazer uso desse dispositivo, antes restrito aos recursos especiais e extraordinários. Essa mesma lei também foi responsável por aumentar os poderes do relator, permitindo que o mesmo, ao receber um agravo de instrumento, também possa: convertê-lo em agravo retido (art. 527, II); atribuir efeito suspensivo ou deferir antecipação dos efeitos pretendidos com a tutela legal, de maneira total ou parcial (art. 527, III), entre outras possibilidades.

13. Não serão feitos muitos comentários no presente tópico, haja vista ser esse o assunto que serve de mote para toda a discussão a ser ventilada pela presente pesquisa, de modo que uma melhor análise do instituto será feita mais à frente.

14. Já a respeito da súmula vinculante, deve ser lembrado que esse não é o objeto da presente pesquisa, de modo que não há espaço aqui para maiores colocações ou, até mesmo, uma análise crítica do instituto, sob pena de se fugir à temática inicialmente proposta. Todavia, mostra-se importante compreender que tal mecanismo obedece à mesma lógica da transcendência/relevância – e, como querem alguns juristas, também, o mesmo acontece com a repercussão geral das questões constitucionais discutidas.

15. “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso".

16. “Art. 102. [...] § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

17. O presente trabalho se propõe a discutir tal tese, posicionando-se em sentido contrário e tentando fornecer uma compreensão procedimentalmente adequada do dispositivo constitucional à luz dos pressupostos incorporados pela Teoria do Discurso de Habermas, de modo a manter íntegra a tensão entre facticidade e validade inerente ao Direito moderno.

18. Theodoro Júnior lembra que a “crise do Judiciário” não é uma questão que assola apenas o Brasil, mas todo o Mundo Civilizado: “Por mais que juristas e legisladores se esforcem por aperfeiçoar as leis de processo, a censura da sociedade ao aparelhamento judiciário parece sempre aumentar, dando a idéia de que o anseio de justiça das comunidades se esvai numa grande e generalizada frustração” (2005:61).

19. Para estudiosos da Ciência Política (VIANNA et alli. 1999:149; SORJ, 2004:61), tratar-se-ia de um deslocamento de eixo, do Legislativo e do Executivo para o Judiciário, como novo centro de discussão sobre a concretização de direitos – movimento fruto do Estado Social, a ser explicado um pouco mais à frente no presente tópico. Importante destacar a ocorrência de uma mudança de percepção ao longo das pesquisas de Vianna e Burgos (VIANNA e BURGOS, 2002) em relação às pesquisas anteriores (VIANNA, CARVALHO et alli, 1999:149). Através dos fenômenos de judicialização da política e das relações sociais, o Poder Judiciário estaria ampliando sua esfera de atuação por via de um poder de revisão dos atos originados dos Poderes Executivo e Legislativo, em razão do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) e da constitucionalização ou juridificação de direitos, deslocando os discursos do âmbito da esfera de representação política para a atuação decisória dos Tribunais, como órgão estatal encarregado da resolução de disputas na sociedade (SORJ, 2004:60-61; SOUZA JÚNIOR, 2004:102; MACIEL e KOERNER, 2002:114).

20. O termo paradigma pode ter sua existência desde o período grego, aparecendo em escritos platônicos, mas foi principalmente a partir dos estudos de Kuhn, em sua obra Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962, que adquiriu o sentido atualmente difundido. Kuhn objetivou apresentar a tese de que o conhecimento científico não decorre de um acúmulo evolutivo e pacífico de informações, mas, ao contrário, forma-se por processos de rupturas, saltos cognitivos, como verdadeiras revoluções. Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2002:82) afirma ser o conjunto “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Por isso mesmo, todo membro de uma dada comunidade científica está envolto por um paradigma, de modo que não pode sair sem aderir a outro paradigma, como resultado do advento de novas práticas sociais. O paradigma corresponde metaforicamente a um filtro, ou seja, a óculos que filtram a visão, moldam a maneira como uma pessoa percebe a realidade. Logo tudo o que se vê e a forma como se compreende estão condicionados por vivências sociais concretas, que limitam ou condicionam a ação e a percepção do indivíduo no mundo (CARVALHO NETTO, 1999:476). Todavia, aqui se deve marcar uma distinção importante na compreensão de Kuhn para a compreensão a ser levada a cabo por Habermas (1998:263, 1996b:771) quanto aos paradigmas jurídicos. Para o primeiro autor, um paradigma representa uma noção voltada para a possibilidade de se alcançar um consenso acerca de uma pretensão normativa voltada para a verdade; para o autor alemão, a questão é deslocada do âmbito da Filosofia da Ciência e do Mundo Objetivo para a Teoria do Direito e a Filosofia Política, conseqüentemente, para o campo do universo normativo intersubjetivamente compartilhado, ou seja, de correção normativa. As distinções entre a verdade e a correção podem ser encontradas em Habermas (2004:267): a verdade diz respeito à existência (ou não) de estados de coisas, ao passo que a correção reflete o caráter obrigatório dos modos de agir (Moral, Direito). Nesse sentido, os paradigmas jurídicos são definidos, por Habermas (1998:263-264), como conjunto de visões exemplares de uma comunidade jurídica acerca de como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais que podem ser considerados no contexto percebido de uma dada sociedade. Um paradigma jurídico, portanto, delineia, como princípios e regras, devem ser considerados e implementados para que cumpram, num dado contexto, as funções a eles normativamente atribuídas pela sociedade.

21. É também comum denominá-lo como Estado de Direito Democrático, conforme a tradição portuguesa (CANOTILHO, 2003), entendendo-se que o termo democrático deveria adjetivar Direito, ao invés de Estado. Contudo, o art. 1º da atual Constituição da República brasileira fez uso da outra expressão, muito possivelmente para realçar a ruptura com a postura autocrática assumida pelo Estado Brasileiro a partir de 1964. Todavia, a partir de uma compreensão procedimentalista, como faz Habermas (1998), é possível ainda defender que tanto democrático quanto de Direito representam adjetivações simultâneas de Estado. Com isso, caracteriza-se a relação de tensão de ambos os conceitos (HABERMAS, 2003:171-172; CARVALHO NETTO, 2003:81), em substituição à noção de oposição, que transparece no debate entre as tradições liberais e republicanas, no sentido de procurarem estabelecer uma relação de prioridade entre Estado de Direito (constitucionalismo) e Democracia (soberania popular).

22. Segundo Chauí (1992:346), a modernidade traz a marca do pensamento racionalista, em substituição à compreensão mítica da pré-modernidade: “A modernidade, nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditando no processo linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais de universalidade”.

23. Galuppo (2002:20-21) identifica o fenômeno do pluralismo, ou seja, da pluralidade de concepções de vida boa concorrentes em uma sociedade, como tema eminentemente ligado à Modernidade: “Com o advento da Modernidade, a sociedade torna-se uma sociedade complexa, na qual, ao contrário das sociedades antigas e medievais, convivem projetos de vida e valores culturais não raro antagônicos. Enquanto o Estado Liberal procurava eliminar os projetos e valores divergentes pela imposição dos projetos e valores ‘dominantes’ e o Estado Social procurava impor um ‘projeto alternativo’ e arbitrário ao poder econômico, integrando, mais que incluindo, aqueles historicamente excluídos do projeto majoritário, o Estado Democrático de Direito reconhece como constitutiva da própria democracia contemporânea o fenômeno do pluralismo e do multiculturalismo, recorrendo preferencialmente à técnica da inclusão do que da integração. Por isso mesmo o Estado Democrático de Direito não pode eliminar qualquer projeto ou qualquer valor, mas ao contrário, deve reconhecer todos os projetos de vida, inclusive os minoritários, igualmente valiosos para a formação da auto-identidade da sociedade”. Lançando mão de uma malha argumentativa diversa, Michel Rosenfeld (2003:23) também irá reconhecer a impossibilidade de um fechamento do sujeito constitucional, devendo o mesmo permanecer como um constante hiato, fruto de um contínuo processo de inclusão e exclusão de identidades.

24. “Since the principle of legal freedom implied equal protection for all persons, this principle seemed to satisfy the normative expectation that, by delimiting spheres of individual liberty through guarantees of negative legal status, social justice could be concomitantly produced. The right of each person to do as he or she pleases within the limits of general laws is legitimate only under the condition that these laws guarantee equal treatment. This legitimating force, found in equal treatment, appeared form a liberal point of view, to be already guaranteed through the formal universality of legal statues, that is, through the grammar and the semantic form of conditional legal programs.” (HABERMAS, 1996b:772)

25. No mesmo sentido, Cattoni de Oliveira afirma que, no paradigma do Estado Liberal, o Direito era compreendido como “[...] uma ordem, um sistema fechado de regras, de programas condicionais, que tem por função estabilizar expectativas de comportamento temporal, social e materialmente generalizadas, determinando os limites e ao mesmo tempo garantindo a esfera privada de cada indivíduo” (2002:57). Ele, então, se mostra como a limitação da liberdade de cada indivíduo, como condição da liberdade de todos, nos moldes do pensamento de Kant.

26. “El derecho privado, considerado en conjunto, parecía ahora haber de ir más allá del aseguramiento de la autodeterminación individual y servir a la realización de la justicia social.” (HABERMAS, 1998:480, grifo no original)

27. É muito difundido, no Brasil, o entendimento de que os direitos fundamentais poderiam ser divididos em gerações, por exemplo, como faz Bonavides (2002:517). Todavia, o presente trabalho, tributário da posição defendida por Cattoni de Oliveira (2002:103), considera imprópria a divisão dos direitos fundamentais em gerações, pois, a cada paradigma jurídico, assiste-se a uma redefinição completa dos direitos fundamentais.

28. Importante ter em mente que a noção de autonomia privada como direito ao maior grau de iguais liberdades subjetivas possíveis não sofreu mudança significativa (HABERMAS, 1998:482); a mudança foi, na realidade, quanto aos contextos sociais nos quais essa autonomia pode se realizar plenamente. Assim, com a autonomia privada “[...] queda garantizado a cada cual su status de persona jurídica; pero éste está muy lejos de fundarse solamente en la protección de un ámbito de vida privada en sentido sociológico aun cuando sea sobre todo en él donde la libertad jurídica pueda acreditarse como posibilitación de la libertad ética. El status de un sujeto jurídico libre, autónomo en el sentido del derecho privado, viene constituido por la totalidad de todos los derechos relativos a acciones y relativos a status, que resulten de la configuración políticamente autónoma del principio de libertad jurídica.” (HABERMAS, 1998:482-483, grifos no original)

29. Habermas (1998:497-498; 2000:171) identifica o desenvolvimento de um paternalismo por parte do Estado, no paradigma do Estado Social, em razão da adoção de programas políticos compensatórios às necessidades de uma “sociedade de massas”, que se mostra incapaz de se autodeterminar, de definir para si suas necessidades. Logo, torna-se massa facilmente modelada por um Estado nos moldes do Leviatã hobbesiano (CARVALHO NETTO, 1999:480). A proposta por cidadania permanece nesse paradigma como uma espera irrealizada.

30. A Corte Constitucional Alemã, reconhecendo a existência dos princípios, entendeu que esses funcionariam como valores, isto é, como comandos otimizáveis, fato que também conduziu à ampliação de poder por parte do Judiciário, especialmente da Corte Constitucional, como denuncia Ingeborg Maus (2000). Não cabe, no presente momento, tecer maiores considerações e críticas à Jurisprudência de Valores alemã, sob pena de se fugir do objetivo proposto para o presente tópico.

31. Segundo Kelsen (1999:1): “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental”.

32. Não é objetivo do presente trabalho fazer uma análise mais aprofundada sobre a teoria kelseniana, mas é importante lembrar que essa distinção, entre interpretações “autêntica” e “não autêntica”, não está prevista na primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, nem no seu ensaio sobre a teoria da interpretação, também da década de 30, aparecendo apenas a partir da edição francesa da Teoria Pura do Direito, em 1953.

33. Todavia, Derzi (2003:152) reconhece que a pirâmide normativa kelseniana é “drasticamente redutora, incapaz de apreender a complexidade do objeto, que implica uma reprodução em rede entrelaçada. Ademais, os traços de contato entre o diferenciado sistema normativo e o restante indiferenciado ficam implícitos e obscuros, quer nos pontos limites da norma fundamental, quer naqueles de eficácia da norma no plano social ou, ainda, no estreito espaço hierarquizado com que se criam novas normas a partir de outras, segundo as várias possibilidades de sentido”.

34. Importante ter em mente que Kelsen (1999:391) rejeitava a tese sustentada pela “Jurisprudência Tradicional”, que procurava desenvolver métodos capazes de, com o uso da razão humana, descobrir a interpretação verdadeira. Para o pensador austríaco, isso era uma proposição desprovida de sentido, pois o Direito não pode ser tomado apenas como um ato de conhecimento, mas também como um ato de natureza volitiva. Segundo colocação de Cattoni de Oliveira (2001:44): “Para Kelsen, mais que uma atividade de cognição, que somente levaria à descrição das interpretações possíveis, a interpretação que acompanha a aplicação da norma superior e a produção da norma inferior é um ato de vontade. É através de um ato de vontade que o órgão autorizado fixa qual dentre as interpretações possíveis da norma superior é a que terá curso na produção da norma inferior”.

35. “No esteio dos novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o pacifista, o ecologista e os de luta pelos direitos das minorias, além dos movimentos contraculturais, que passam a eclodir a partir da segunda metade da década de 60, a ‘nova esquerda’, a chamada esquerda não-estalinista, a partir de duras críticas tanto ao Estado de Bem-Estar – denunciando os limites e o alcance das políticas públicas, as contradições entre capitalismo e democracia – quanto ao Estado de socialismo real – a formação de uma burocracia autoritária, desligada das aspirações populares [...]” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:62, grifos no original).

36. Segundo Habermas (1994:124), o paradigma do Estado Social padece de uma contradição entre seu objetivo e o meio que escolhe para concretizá-lo. O que seria o seu objetivo – a construção de formas de vidas estruturadas igualitariamente, que fossem capazes de exercer uma auto-regulação espontânea – se vê frustrado pelos obstáculos levantados pelo Poder Administrado, regido pela lógica da burocracia jurídico-administrativa, que acaba contaminando os programas políticos.

37. Um exemplo dessa “luta por reconhecimento” bem sucedida pode ser encontrado nas políticas feministas de equiparação: “[...] os diretos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.” (HABERMAS, 2002b:297)

38. Diversas são as propostas para essa empreitada. Como já colocado anteriormente, a presente pesquisa assume como marco teórico a Teoria do Discurso de Habermas (1998), que se propõe a refletir o Estado Democrático de Direito a partir de uma teoria procedimentalista. “Ese paradigma procedimental del derecho parte de las premisas de que (a) está cerrado el camino de vuelta que el neoliberalismo propugna bajo la tesis de un ‘retorno de la sociedad civil y de su derecho’, de que, sin embargo, (b) la consigna de ‘redescubrimiento del individuo’ viene provocada por un tipo de juridificación ligada al Estado social que amenaza con convertir en lo contrario lo que es su objetivo declarado, a saber, el restablecimiento de la autonomía privada; y de que (c) el proyecto que es el Estado social ni simplemente hay que ratificarse en él, ni tampoco se lo puede interrumpir, sino que debe proseguirse en un plano suprior de reflexión. La intención rectora sigue siendo la de domesticar el sistema económico capitalista, es decir, la de ‘reestructurarlo’ social y ecológicamente por una vía por la que simultáneamente quepa ‘refrenar’ a éste desde puntos de vista de efectividad y eficacia en formas modernas de regulación y control indirectos, así como reconectarlo retroalimentativamente con el poder comunicativo desde puntos de vista de legitimidad, inmunizándolo al propio tempo contra el poder ilegítimo.” (HABERMAS, 1998:492)

39. Segundo Habermas (1998), a legitimidade decorre do fato de as normas terem sido produzidas conforme um procedimento que assegure a participação potencial daqueles que sofrerão os seus efeitos, para que esses concordem com a norma produzida na qualidade de co-autores da mesma. Para tanto, se faz necessário observar uma racionalidade comunicativa, muito diferente da mera racionalidade instrumental.

40. De Giorgi (2003), em célebre conferência no Instituto Max-Planck, lembra que a história é constituída da memória. Todavia, essa última não pode ser compreendida como resultante de um processo de organização de informações puro e simples, mas sim permeado de invenções e criações inventivas. Um sistema social, como o Direito, necessita de uma autocompreensão histórica, que, por meio da memória, isola as operações que pode considerar relevantes, a partir de uma diferenciação entre o “recordar” e o “esquecer”; mas o “recordar” evolve o “inventar” e, com isso, o sistema do Direito cristaliza determinadas criações como se fossem “fatos” históricos. Essa pode ser uma forma de compreender a noção de uma “crise” no Judiciário – sempre tomada como algo do presente, uma vez que os autores viram as costas para uma dimensão temporal – considerando-a como extensão de algo provindo de um passado. Resumindo: a noção de “crise do Judiciário” é uma “invenção” fundamental para que o sistema jurídico preserve sua ligação ao paradigma do Estado Social, sem com isso tornar consciência da ruptura necessária para o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

41. A colonização do mundo da vida é explicada por Freitag (2002:239) como o processo resultante da expansão da racionalidade instrumental utilizada pelos imperativos funcionais do sistema econômico e do sistema político-burocrático que invade o mundo da vida desalojando e expulsando a racionalidade comunicativa. Assim, onde antes havia processos de interação sociais regidos por uma racionalidade comunicativa, passa-se a ter uma racionalidade instrumental. Como conseqüência, aponta uma crise de legitimidade das decisões jurídicas, o que põe em risco o processo de integração social, uma vez que o Direito não somente mantém contato com o código proveniente da linguagem coloquial ordinária, como por ele ainda transitam mensagens provenientes dos códigos do sistema econômico e do sistema político-burocrático (HABERMAS, 1998:146).

42. O Documento Técnico nº 319 é o que apresenta o maior nível de detalhamento quanto às propostas e expectativas do Banco Mundial para a reforma dos Judiciários latino-americanos, mas não é o único. Merece menção ainda o relatório anual nº 19, de 1997, “O Estado num mundo em transformação”, e o nº 24, de 2002, “Instituições para os mercados”. Conforme Silva Candeas (2004:19), o relatório de 1997 “discute o novo papel do Estado diante de acontecimentos como desintegração das economias planejadas da ex-União Soviética e da Europa Oriental, a crise fiscal do Estado-Providência, o papel do Estado no ‘milagre’ econômico do leste da Ásia, a desintegração de Estados e as emergências humanitárias em várias partes do mundo. Já o relatório de 2002 trata da criação de instituições que promovem mercados inclusivos e integrados e contribuem para um crescimento estável e integrado, para melhorar a renda e reduzir a pobreza”.

43. Como alerta Melo Filho (2003:80): “O que a agência financeira internacional pretende, na realidade, é redesenhar as estruturas dos Poderes Judiciários da América Latina, a partir das premissas neoliberais, com o fito de adequá-las à prevalência do mercado sobre qualquer outro valor”.

44. Segundo Quadros de Magalhães (2002:73), globalização é “[...] expressão [que] designa um movimento complexo de abertura de fronteiras econômicas e de desregularização, que permite às atividades econômicas capitalistas estenderem seu campo de ação no planeta”. Todavia, não há um consenso sobre o termo de modo a serem possíveis ainda múltiplas tentativas de conceituação.

45. Melo Filho (2003:84) lembra que: “Em países como a Argentina, a Bolívia e a Venezuela, tais propósitos foram plenamente alcançados, chegando-se ao extremo de atribuir ao Ministério da Justiça o controle da magistratura”.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , fev. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .