"Os homens, não podendo esquecer a morte, inventaram o divertimento”.
Pascal, Pensamentos
Segundo o filósofo Clemént Rosset, o aspecto trágico da existência humana decorre de uma “incapacidade” intelectual partilhada por todos: ninguém engana a si próprio. Em termos mais abstratos, significa dize de fato aos temas de suas crenças, por não poder precisar o objeto mesmo da crença. Com isso fica patente o caráter vão de todas as “filosofias” idealistas, as aspas denotando a impossibilidade mesma de uma filosofia – um saber
comprometido
com a verdade – que se funde em outro plano que não o experimentado cotidianamente.
Recentemente, parcelas da sociedade brasileira têm defendido a redução da menoridade penal como remédio para a violência. As justificativas são de duas ordens: a suposta “brandura” com que o sistema trata os menores de 18 anos, a barbárie hoje verificada a infundir medo generalizado. Os discursos em defesa de tal redução vêm acompanhados de exemplos dramáticos, envoltos em boa dose de sentimentalismo. Não se disfarça, porém, a crença de que a resposta (?) penal seja a ideal.
Alguns fatos, no entanto, parecem relegados a um esquecimento, diria, conveniente. Espécie de “amnésia seletiva” que, à semelhança do divertimento em Pascal, não oculta o lado trágico daquilo que procura esquecer. A resposta penal já é aplicada aos menores de 18 anos no Brasil. Posta nesses termos a afirmação pode soar exagerada ou, mesmo, infundada. De fato, à luz da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, a estes estaria reservada uma resposta não-penal. Ocorre que a mal chamada medida socioeducativa tem apresentado os mesmos efeitos deletérios da sanção penal, notadamente da privação de liberdade: o afastamento do adolescente do convívio social, substituindo a família (ou o que resta dela) pela companhia de outros “menores infratores”. No fim das contas, os estabelecimentos reservados aos menores de 18 anos apenas reproduzem o sistema prisional e suas mazelas. São também “escolas do crime”. Mas, se a resposta penal já existe de fato – sem qualquer perspectiva de melhora no atual contexto –, por que a preocupação com sua “juridicização”?
Deixemos de lado, por um momento, essa questão. O propósito do presente artigo não é a conscientização. Considerando que não é dado a ninguém lograr a si mesmo, tal propósito revela-se absurdo, estando bem cientes do que fazem os que advogam a redução da menoridade penal. Apenas para fomentar o debate, tendo em vista o caráter político (isto é, da Pólis) que a questão assume, lanço outros argumentos.
A afirmação de que a norma contida no art. 228 da Constituição da República não seria cláusula pétrea, admitindo alteração por emenda constitucional, merece melhor formulação. Primeiro, é preciso ter em mente que norma e texto não se confundem (a distinção pode ser conferida em Kelsen). Disso decorre que, ao arrolar os direitos e garantias individuais, o texto do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição não aponta “apenas” para os constantes do art. 5º. Considerando que tais direitos têm como função primária estabelecer limites à atuação estatal, fica claro que a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos é um direito individual, portanto, cláusula pétrea. Aqui vale a advertência já surrada entre os constitucionalistas: não se interpreta a Constituição “em tiras”, mas de modo a harmonizar seus dispositivos. Nesse sentido, cabe perguntar: e quanto às obrigações previstas nos artigos 226, 227 e 229 da Constituição?
O argumento de que o crime, especialmente o organizado, recruta menores de 18 anos em razão de sua inimputabilidade é contraditório. Pergunta-se: uma vez reduzida a “maioridade penal” para 16 anos, deixará o crime de recrutar menores? Duvidoso. Mais provável que o recrutamento se dê mais cedo.
O argumento de que o adolescente de hoje é mais informado que o de décadas atrás prova mais do que o necessário. Trata-se de um truísmo, uma afirmação que dispensa prova. Mas não é menos verdadeiro que o crime também se modernizou, exigindo conhecimentos especializados, como no caso de alguns crimes econômicos ou no meio eletrônico. “Mas adolescentes não cometem crimes deste tipo” – diriam, ao que cabe rebater: a “maioridade penal’ é uma só, a redução vale para todos os delitos ou não vale para nenhum.
A definição da maioridade penal é atrelada à noção de consciência potencial da ilicitude – a possibilidade de o indivíduo saber que o que faz é errado. Por certo não é preciso ter 18 anos para saber que é errado matar, roubar ou estuprar – para ficarmos no velho “rosário” –, mas para saber que o preenchimento de um formulário padronizado (na Internet, em uma repartição pública ou em um banco) pode implicar algum tipo de fraude é preciso mais que “discernimento” – é preciso informação, nem sempre disponível ou adequada, apesar dos 17 anos de vigência do CDC.
A comparação com a “maioridade eleitoral” também não vinga: o que justifica a participação no processo eleitoral não é um suposto “discernimento”. Quem advoga tal tese tem de aceitar a exclusão dos analfabetos do processo eleitoral e – por que não? – pode-se sentir confortável com a estipulação de exigência de formação superior para concorrer à Presidência da República. A participação no processo eleitoral é determinada pela capacidade de escolher, dentre as propostas apresentadas, aquela que se considera melhor para o País – segundo as convicções de cada um. Se os menores de 18 anos estão sujeitos ao “engano”, os adultos não o estão em menor grau.
O argumento de que o “sentimento de impunidade” levaria os jovens a delinqüir peca pelo silêncio: a delinqüência juvenil não tem em tal sentimento, de resto não demonstrado, a única causa. A falta de perspectiva, a desestruturação familiar e o próprio encarceramento – rectius: “internação’ – são causas da delinqüência juvenil freqüentemente negligenciadas.
Por fim, uma crítica a um aspecto específico da proposta de redução da imputabilidade penal para 16 anos, qual seja o de cumprimento da pena em estabelecimento “adequado e separado” dos demais presos comuns. Considerando que o sistema “ideal” previsto na Lei de Execuções Penais não é efetivado, particularmente quanto aos estabelecimentos penais, como esperar a criação de estabelecimentos “adequados” para menores? E qual o modelo?
Ante a impossibilidade do auto-engano, cabe a cada cidadão – em especial aos juristas – perguntar-se para que (ou a quem) serve o Direito Penal. Tido como ultima ratio ou resposta extrema do Estado, ele exprime o sintoma de um mal social: a incapacidade de resolver, pacificamente, os conflitos sociais.
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