Sumário: Introdução. 1 Evolução do conceito de família. 2 As famílias da Constituição. 3 As uniões homoafetivas como entidades familiares. 4 Parcerias homossexuais e adoção. Conclusões. Referências bibliográficas.
Introdução
No presente trabalho abordaremos a possibilidade de enquadramento jurídico das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares.
Iniciaremos nossa exposição com uma retrospectiva das transformações operadas no conceito de família ao longo do último século.
A seguir, examinaremos os aspectos relacionados à adoção de crianças e adolescentes por casais homoeróticos.
Buscaremos demonstrar a compatibilidade desses institutos com os princípios esculpidos em nossa Constituição (em especial os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana), propondo uma hermenêutica construtiva que preencha as lacunas deixadas pelo legislador.
1 Evolução do conceito de família
A evolução do conceito de família acompanha a evolução cultural, política, econômica e religiosa da própria sociedade. Considerando os limites deste trabalho, concentraremos nossa análise na realidade brasileira do início do século XX até os dias atuais.
Em uma sociedade cujos membros residiam, em sua maioria, na zona rural, a família constituía-se em uma unidade produtiva, fornecendo a mão-de-obra necessária ao cultivo da terra. A descendência, não raro, era vista como força de trabalho, a tal ponto que o “crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos, havendo um amplo incentivo à procriação”.(1) Ao homem competia administrar os bens e negócios do grupo, atribuição que lhe outorgava papel proeminente e o status de “chefe” da família, cuja autoridade era inquestionável. À mulher cabia a função de mera reprodutora, limitada ao ambiente doméstico, às “idas regulares à missa e à Igreja”(2) e ao cuidado dos filhos. Esses “deviam ater-se ao respeito ao pai, atitude que se projetava no meio social mediante o respeito devido ao patrão e ao Estado”.(3)
Tal modelo de organização familiar se erguia sobre a instituição do casamento, que “tinha como objetivo precípuo, além da concentração e transmissão de patrimônio, a geração de filhos, especialmente homens, que sucedessem os pais, herdando seus negócios”.(4)
De fato:
“[...] era tão forte e arraigada no seio da sociedade essa concepção de casamento como forma de constituição de uma prole, que os casais que não podiam ter filhos sofriam discriminações, sentiam-se envergonhados e humilhados por não poderem gerar seus próprios filhos. Também os filhos havidos fora do casamento eram discriminados, a ponto de serem denominados de ‘filhos ilegítimos’ e sofrerem uma série de restrições no que se refere ao direito sucessório.”(5)
O divórcio não encontrava previsão no ordenamento jurídico, circunstância que revela a forte influência da Igreja – sobretudo a Católica – no período, expressa “na máxima canônica Quod Deo coniunxit, homo non separet”.(6)
Esse contexto foi absorvido pelo Código Civil de 1916, que consagrava, entre outros institutos, a desigualdade entre os cônjuges (art. 233) e os filhos havidos dentro e fora do casamento (arts. 337 a 367), a supremacia da autoridade paterna (art. 380) e a indissolubilidade do vínculo matrimonial (art. 315, parágrafo único).
O passar dos anos e as transformações sociais daí advindas, no entanto, proporcionaram o surgimento de uma nova concepção da família. O fenômeno da industrialização, aliado ao movimento feminista, incentivou o ingresso da mulher no mercado de trabalho, passando ela, gradativamente, a desempenhar funções e a ocupar postos antes destinados apenas aos indivíduos do sexo masculino. O êxodo rural e as novas oportunidades de emprego nas cidades mudaram o perfil da população economicamente ativa, que, pouco a pouco, foi substituindo o modo de produção familiar pela produção em larga escala das empresas. A formação de grandes conglomerados urbanos e os problemas deles decorrentes (em especial a violência e o aumento do custo de vida), além da difusão dos métodos anticoncepcionais, tornaram as famílias menores. O enfraquecimento do poder da Igreja relativizou a importância do casamento, ensejando a aparição cada vez maior de uniões extramatrimoniais. A evolução dos meios de comunicação e a expansão das redes de ensino primário, médio e superior aguçaram o espírito crítico dos jovens, passando eles a contestar a autoridade dos pais. Novas técnicas de fertilização e o aperfeiçoamento da engenharia genética fomentaram as chamadas “produções independentes”, redimensionando os conceitos de maternidade, paternidade e filiação.
A família – que antes era “hierarquizada, patriarcal, matrimonializada e transpessoal”(7) – mudou. O poder-dever de sustento, guarda e educação dos filhos foi dividido entre o homem e a mulher, que passaram a exercê-lo em igualdade de condições, o mesmo se podendo dizer quanto à administração dos bens e negócios do casal. A família deixou de ser um espaço destinado à conservação e à transmissão de patrimônio, aparências, nome, tradições e laços de sangue – onde a felicidade do grupo precede a felicidade dos indivíduos que o compõem – para se tornar um círculo de carinho, respeito e satisfação pessoal. O afeto tornou-se o principal elemento constitutivo e aglutinador da instituição familiar, substituindo o casamento, embora não seja com ele incompatível.
Enfim, a família passou a ser plural, diárquica e eudemonista, destinando-se a promover a igualdade substancial (e não apenas formal), a felicidade e a dignidade de seus membros.
Nesse sentido é a opinião de Maria Berenice Dias:
“Ainda que se quisesse considerar indiferentes ao Direito os vínculos afetivos que aproximam as pessoas, são eles que dão origem aos relacionamentos que geram as relações jurídicas, fazendo jus ao status de família. Imperioso reconhecer o surgimento de uma nova família, a chamada família ‘eudemonista’, expressão dicionarizada como doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral.”(8)
Assim também escreveu Eduardo Silva, citando Guilherme de Oliveira e João Batista Villela:
“A alteração mais profunda, portanto, no conceito de família decorre do reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, mas não independente do bem-estar da própria instituição familiar. A felicidade da família passa a ser o somatório do bem-estar de cada um dos seus integrantes, da felicidade que o agregado familiar pode proporcionar a cada um de seus membros. A família despe-se da sua condição de unidade econômica e passa a ser uma unidade afetiva, uma comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias. A comunhão plena de vida a que faz menção o primeiro artigo do livro de direito de família privilegia esta concepção e esta inovação em direito de família.”(9)
Outras não são as palavras de Luiz Edson Fachin:
“A família por isso mesmo se definia: matrimonializada, hierarquizada, patriarcal e de feição transpessoal. Um tempo, outra história e contexto político-econômico. Na Constituição, outra família é apreendida: pluralidade familiar (não apenas a matrimonialização define a família), igualdade substancial (e não apenas formal), direção diárquica e de tipo eudemonista.”(10)
2 As famílias da Constituição
A Constituição brasileira de 1988 não ignorou as transformações acima referidas, declarando que a “família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput). Além disso, salientou que, para “efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (art. 226, § 3º). Também admitiu “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, § 4º), consagrando as chamadas famílias monoparentais. Finalmente, proclamou que os “direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (art. 226, § 5º).
Como se pode observar, nossa Carta Magna não se manifestou de forma expressa quanto à possibilidade jurídica de uniões entre pessoas do mesmo sexo, tampouco quanto à possibilidade de tais uniões constituírem uma família sujeita à tutela estatal.
De fato, consoante relata Maria Berenice Dias:
“A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento, mas, na tentativa de exercitar certo controle social, se limitou a emprestar juridicidade às relações heterossexuais. Por absoluto preconceito de conteúdo ético, deixou de regular certas espécies de relacionamentos que não têm como pressuposto a diversidade de sexos.”(11)
Tal omissão do legislador constituinte não impediu que a matéria chegasse ao Poder Judiciário. Assim, perguntas outrora incogitáveis passaram a despertar a atenção de nossa comunidade jurídica. Que efeitos podem ser extraídos das uniões homoafetivas? São elas entidades familiares? Qual é o regime jurídico aplicável à solução de controvérsias envolvendo parceiros do mesmo sexo? Na tentativa de fornecer uma resposta a essas e outras indagações, incansáveis foram os esforços interpretativos da doutrina e da jurisprudência, alguns dos quais passamos a referir abaixo, em linhas gerais.
3 As uniões homoafetivas como entidades familiares
A primeira questão a ser enfrentada no exame da juridicidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo diz respeito ao caráter taxativo ou exemplificativo das comunidades familiares previstas na Constituição. Noutros termos, nossa Carta Magna – ao assegurar a proteção do Estado à família resultante do casamento, à família derivada da união estável e à família monoparental – estaria ou não excluindo da tutela estatal outras espécies de convívio interindividual tais quais as uniões homoafetivas?
Roger Raupp Rios refere a existência de defensores da tese de que, ao enumerar os tipos de comunidades familiares, o legislador constituinte estaria afastando a possibilidade do reconhecimento de outros, “sendo vedado ao legislador ordinário e ao Poder Judiciário avançar nesta questão”.(12)
Entretanto, adverte, lembrando Norberto Bobbio e Konrad Hesse:
“A interpretação da Constituição, em face deste problema, todavia, deve ser conduzida de outro modo. Na verdade, colocar o problema nestes termos em nada colabora para sua elucidação, na medida em que perquirir da natureza taxativa ou enumerativa das comunidades familiares previstas no texto constitucional seria concebê-lo de acordo com o dogma da completude, isto é, idéia de que a Constituição já tenha definido de antemão a resposta para o problema. No entanto, quando se trata de interpretação constitucional, deve-se partir de premissa diversa, segundo a qual a Constituição se caracteriza por sua abertura e amplitude, não se propondo de antemão ‘à pretensão de ausência de lacunas ou até de unidade sistemática’.”(13)
De fato, não parece que o silêncio do legislador constituinte quanto às uniões entre pessoas do mesmo sexo tenha sido um “silêncio eloqüente”, no sentido de excluí-las do sistema, negando-lhes qualquer juridicidade. Tal omissão, salvo melhor juízo, pode ser mais bem compreendida com o recurso ao conceito de fonte material do direito.
Segundo Maria Helena Diniz:
“Fontes materiais ou reais são não só fatores sociais, que abrangem os históricos, os religiosos, os naturais (clima, solo, raça, natureza geográfica do território, constituição anatômica e psicológica do homem), os demográficos, os higiênicos, os políticos, os econômicos e os morais (honestidade, decoro, decência, fidelidade, respeito ao próximo), mas também os valores de cada época (ordem, segurança, paz social, justiça), dos quais fluem as normas jurídico-positivas. São elementos que emergem da própria realidade social e dos valores que inspiram o ordenamento jurídico.”(14)
Ainda segundo a referida autora, tais fatores “decorrem das convicções, das ideologias e das necessidades de cada povo em certa época, atuando como fontes de produção do direito positivo, pois condicionam o aparecimento e as transformações das normas jurídicas”.(15)
Com efeito, a falta de previsão expressa, na Constituição, acerca das uniões homoafetivas não pode ser interpretada em prejuízo dessas relações. Tal lacuna do sistema, quer nos parecer, decorre das repercussões da matéria no contexto da Assembléia Nacional Constituinte de 1988, quando o país saía de um modelo de Estado conservador, no qual o debate de questões como a liberdade sexual e a convivência entre gays e lésbicas era restrito aos protagonistas dessas relações, não alcançando as dimensões necessárias a sua caracterização como fonte material de direito.
Alguns dados estatísticos, aliás, confirmam tal realidade: a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), por exemplo, órgão destinado a “fortalecer e organizar entidades de gays, lésbicas, travestis e transexuais para promover a construção de uma sociedade livre e igualitária”,(16) foi criada somente em 1995, quatro anos antes da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo (APOGLBT), grupo responsável atualmente pela maior manifestação do gênero no mundo, com cerca de 2,5 milhões de participantes.
A propósito, extrai-se do histórico da APOGLBT:
“A Parada do Orgulho GLBT de São Paulo nasceu com o objetivo de visibilizar a população GLBT e suas demandas e a princípio era organizada por uma comissão composta por representantes de vários grupos GLBT de São Paulo. Seu histórico pode ser dividido em três diferentes momentos:
1) Um primeiro momento vai de 1997 a 1999, quando a Parada enfoca principalmente temáticas ligadas à visibilidade GLBT e se consolida como manifestação política do movimento GLBT. Nesse período a Parada teve um crescimento de 2 mil para 35 mil participantes e foi criada a APOGLBT.
2) Entre 2000 e 2002, a Parada passou de 100 mil a 500 mil participantes e tomou por temática principal o trabalho com a idéia de diversidade, de modo a não somente visibilizar a população GLBT, mas envolver a sociedade como um todo a partir da idéia de respeito à diversidade. É nesse período que as atividades em torno da parada começam a se multiplicar, de modo a dar origem ao Mês do Orgulho.
3) A partir de 2003, alcançados os objetivos de visibilização da população GLBT e do envolvimento da sociedade como um todo, começa uma nova fase em que a Parada, já plenamente consolidada como manifestação de um campo social crescente que apóia direitos para GLBT, passa a ser utilizada a fim de refletir sobre as demandas da comunidade e como forma de pressão política pelo reconhecimento e garantia efetiva de direitos humanos de GLBT. Nesse período a Parada passou de 1 milhão de participantes em 2003 para 1 milhão e oitocentos mil em 2004 e mais de 2 milhões em 2005, sendo considerada desde 2004 a maior manifestação do gênero no mundo [...].”(17)
Como se vê, não havia, à época da elaboração da Constituição Federal de 1988, a efervescência necessária à inclusão expressa das uniões homoafetivas no texto constitucional. Isso, contudo, não significa que elas estivessem excluídas da tutela estatal, conclusão que se obtém já na leitura do preâmbulo de nossa Carta Magna, espaço onde os congressistas pontificaram:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil [...].”(18) (grifo nosso)
Pluralismo, ausência de preconceitos (CF/88, art. 3º, inc. IV), dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1º, inc. III), liberdade, justiça, solidariedade (CF/88, art. 3º, inc. I) e igualdade (CF/88, art. 5º, caput), eis alguns dos fundamentos constitucionais que podem ser invocados para se sustentar a juridicidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo e a necessidade de sua proteção pelo Estado.
Nesse sentido:
“A partida para a confirmação dos direitos dos casais homoeróticos está, precipuamente, no texto constitucional brasileiro, que aponta como valores fundantes do Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a liberdade e a igualdade sem distinção de qualquer natureza (CF, art. 5º), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (CF, art. 5º, X), que, como assevera Luiz Edson Fachin, formam a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa e que, assim, como direito fundamental, é um prolongamento de direitos da personalidade, imprescindíveis para a construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária.”(19)
Outra questão relevante a ser abordada diz respeito ao pressuposto da diversidade de sexos para a caracterização da união estável, conforme estabelece o art. 226, § 3º, da CF/88. Seria tal previsão – considerando que a doutrina e a jurisprudência rejeitam peremptoriamente a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo – um sinal de repúdio à juridicidade das uniões homoafetivas e ao seu reconhecimento como uma entidade familiar?
Maria Berenice Dias examina o problema sob duas perspectivas, argumentando que, em face dos princípios da igualdade e da liberdade individual,
“[...] a regra do § 3º do artigo 226 da Constituição, na parte em que condiciona à distinção de sexos o reconhecimento da união estável, ou é mera lei constitucional, que pode ser reformada até por lei ordinária, segundo preconiza Carl Schmitt, ou é norma constitucional inconstitucional, conforme sustenta Otto Bachof, que deve ser banida do ordenamento jurídico constitucional.”(20)
Registre-se, porém, que a tese da existência de normas constitucionais originárias inconstitucionais não é acolhida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consoante demonstra a ementa do acórdão proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 815/DF, de que foi relator o eminente Ministro Moreira Alves:
“EMENTA: - Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Constituição Federal. - A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida. - Na atual Carta Magna “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” (artigo 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. - Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.”(21)
Roger Raupp Rios aprecia a matéria de outro vértice. Para ele, o reconhecimento da pertinência das uniões homoafetivas ao direito de família prescinde da existência da união estável como espécie autônoma de comunidade familiar. Eis uma síntese de seu pensamento:
“Imagine-se, por hipótese, que emenda constitucional retirasse do texto constitucional a previsão da união estável, sem mais nada dispor. Tal procedimento não impediria que a legislação e a jurisprudência continuassem a desenvolver e a atualizar o direito de família, reconhecendo a pertinência tanto da referida união estável quanto das uniões homossexuais ao direito de família. Vê-se, portanto, que a qualificação jurídica familiar às uniões homossexuais não depende da existência da união estável. Trata-se, mais do que analogia, de comunhão de características típicas do conceito jurídico de família às duas situações.”(22)
Particularmente, entendemos que a referência a “homem” e “mulher” no § 3º do art. 226 da CF/88 não inviabiliza o reconhecimento oficial da convivência entre pessoas do mesmo sexo. Conforme já salientado, essa distinção é circunstancial, resultando antes do contexto sociocultural em que foi elaborada nossa Constituição do que de uma vontade consciente do legislador constituinte. Ademais, é preciso superar a concepção de que a solução dos problemas concretos está sempre a depender de um texto indicativo do caminho adequado para tanto. Se antes o direito era eminentemente normativo, hoje é cada vez mais principiológico, dotado de “conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, que são pontos de mobilidade e de abertura do sistema para as modificações da realidade”.(23) Nesse novo cenário a Constituição desempenha papel proeminente, seja em razão de sua “força ativa”,(24) seja em razão da multiplicidade de direitos que consagra. Não se justifica, pois, a manutenção de posturas herméticas, divorciadas da realidade e dos objetivos sociais da lei. Posturas que vêem o ordenamento jurídico como um fim em si mesmo, e não como um meio para a efetivação da liberdade, da igualdade e da paz; que vêem a Constituição como uma mera declaração de boas intenções, e não como um instrumento de realização da justiça.
Não se está defendendo, aqui, evidentemente, a adoção de ativismos judiciais irresponsáveis, mas tão-somente um despertar dos operadores do direito para as potencialidades de nosso sistema jurídico, em especial de nosso ordenamento constitucional, que elegeu como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil “a dignidade da pessoa humana” (CF/88, art. 1º, inc. III). Não propriamente – convém esclarecer – a dignidade do “ser abstrato, desvinculado da história”,(25) mas a dignidade do ser dotado de polaridade, atributo “que o singulariza pela possibilidade de ser para si e ser para outrem, de ser o que é e o que deve ser; de ser um eu e as suas circunstâncias; o que é imutável e o que se desenvolve no tempo”.(26) Esse “ser”, com o perdão do trocadilho, não pode ser privado de seus direitos por questões meramente semânticas, tampouco por lacunas ou anacronismos da lei. Menos ainda pelo preconceito daqueles encarregados de aplicá-la. Ao contrário, deve ser o centro do ordenamento jurídico, a razão do aperfeiçoamento da lei e o norte da atividade jurisdicional.
De qualquer forma, a falta de parâmetros legislativos expressos parece não ser mais desculpa para o não-reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, consoante se deduz da leitura do art. 5º da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha):
“Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.” (grifo nosso)
Ainda sobre a importância da discussão do tema das uniões homoafetivas, inclusive para efeito de sua subsunção ao conceito de entidade familiar, cumpre referir a decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello na ADI nº 3300 MC/DF. Tratava-se de demanda em que a Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo e a Associação de Incentivo à Educação e Saúde daquele Estado buscavam a declaração da inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.278/96, o qual, ao regular o § 3º do art. 226 da Constituição, reconheceu, unicamente, como entidade familiar, a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. As autoras da ação fundamentavam sua pretensão no argumento de que a norma questionada, em cláusula impregnada de conteúdo discriminatório, excluía, injustamente, do âmbito de especial proteção que a Lei Fundamental dispensa às comunidades familiares, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas por relações homoafetivas. A causa restou extinta de plano, ponderando o eminente relator ser incabível, na espécie, a instauração do processo objetivo de fiscalização normativa abstrata, pois o art. 1º da Lei nº 9.278/96 fora derrogado pelo art. 1.723 do novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), e esse não restara impugnado na inicial. Tal circunstância, porém, não o impediu de realizar profícua análise sobre o tema das uniões entre pessoas do mesmo sexo, que, por sua relevância, passamos a transcrever:
“[...] Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria – cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental –, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas (LUIZ EDSON FACHIN, Direito de Família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro, p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar; LUIZ SALEM VARELLA/IRENE INNWINKL SALEM VARELLA, Homoerotismo no Direito Brasileiro e Universal: parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, 2000, Agá Juris Editora; ROGER RAUPP RIOS, A homossexualidade no Direito, p. 97/128, item n. 4, 2001, Livraria do Advogado – ESMAFE/RS; ANA CARLA HARMATIUK MATOS, União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais, p. 161/162, Del Rey, 2004; VIVIANE GIRARDI, Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais, Livraria do Advogado Editora, 2005; TAÍSA RIBEIRO FERNANDES, Uniões homossexuais: efeitos jurídicos, São Paulo: Método; JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, A natureza jurídica da relação homoerótica, In Revista da AJURIS nº 88, tomo I, p. 224/252, dez. 2002, v.g.). Cumpre referir, neste ponto, a notável lição ministrada pela eminente Desembargadora MARIA BERENICE DIAS (União homossexual: o preconceito & a Justiça, p. 71/83 e p. 85/99, 97, 3. ed., 2006, Livraria do Advogado), cujas reflexões sobre o tema merecem especial destaque: ‘A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso. Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção. Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetivas – como já fez a maioria dos países do mundo civilizado –, incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. (...).’ (grifei) Vale rememorar, finalmente, ante o caráter seminal de que se acham impregnados, notáveis julgamentos, que, emanados do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, acham-se consubstanciados em acórdãos assim ementados: ‘Relação homoerótica – União estável – Aplicação dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade – Analogia – Princípios gerais do direito – Visão abrangente das entidades familiares – Regras de inclusão (...) – Inteligência dos arts. 1.723, 1.725 e 1.658 do Código Civil de 2002 – Precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas.’ (Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, 7ª Câmara Civil - grifei) ‘(...) 6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. 7. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana. 8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. 9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. 10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. 11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (...), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão.’ (Revista do TRF/4ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira - grifei) Concluo a minha decisão. E, ao fazê-lo, não posso deixar de considerar que a ocorrência de insuperável razão de ordem formal (esta ADIN impugna norma legal já revogada) torna inviável a presente ação direta, o que me leva a declarar extinto este processo (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175), ainda que se trate, como na espécie, de processo de fiscalização normativa abstrata (RTJ 139/67), sem prejuízo, no entanto, da utilização de meio processual adequado à discussão, In abstracto – considerado o que dispõe o art. 1.723 do Código Civil –, da relevantíssima tese pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas.”(27)
4 Parcerias homossexuais e adoção
Admitidas as uniões homoafetivas como entidades familiares, cumpre indagar acerca da possibilidade jurídica de adoção por parceiros do mesmo sexo, considerando que esse instituto, juntamente com a guarda e a tutela, é uma das modalidades de colocação de crianças e adolescentes em família substituta, nos termos do art. 28 da Lei nº 8.069/90 (ECA).(28)
Não são poucos os obstáculos opostos a tal hipótese. Argumenta-se, por um lado, que a falta de referências masculino-paternas ou feminino-maternas poderia prejudicar o desenvolvimento da identidade sexual do adotando, havendo o risco de ele se tornar homossexual. Por outro, alega-se que a criança (ou o adolescente), em razão das peculiaridades de seu grupo familiar, poderia ser alvo de chacotas de vizinhos e colegas de escola, com prováveis repercussões sobre a sua formação psíquica.
Tais objeções, data vênia, não parecem resistir a uma análise mais acurada da temática em questão.
De fato, a ausência de referenciais de ambos os gêneros não se constitui em óbice intransponível ao desenvolvimento da sexualidade do menor. Do contrário, as famílias monoparentais, formadas por um dos pais e seus descendentes, não teriam assento em nossa Constituição (art. 226, § 4º), e crianças e adolescentes institucionalizados seriam seres assexuados. Da mesma forma, a possibilidade de o adotando vir a se tornar homossexual não é um fator prejudicial em si. A uma, porque a orientação sexual dos pais parece não determinar a orientação sexual dos filhos (se assim fosse, pais heterossexuais teriam sempre filhos heterossexuais). A duas, porque a homossexualidade não é doença, não é crime, não é imoral e não significa desvio de caráter; ao contrário, imoral é o desrespeito às opções individuais que não causam prejuízos a terceiros e que envolvem o exercício de direitos inerentes à consagração da dignidade da pessoa humana, como é o direito à livre orientação sexual.
O risco de o menor ser alvo de preconceitos, igualmente, não deve contra-indicar a adoção por parceiros do mesmo sexo. Com efeito, o problema, aqui, estaria na própria sociedade, e não na opção sexual dos adotantes. Sociedade que deveria lutar para ser “livre, justa e solidária” (CF/88, art. 3º, inc. I), promovendo “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF/88, art. 3º, inc. IV), mas que, lamentavelmente, por intermédio de muitos de seus membros, ainda resiste a certas mudanças e ao estilo de vida de algumas de suas minorias. Sociedade que deveria lutar para ser “fraterna, pluralista e sem preconceitos” (CF/88, preâmbulo), mas que, não raro, se mostra aversa e inflexível.(29)
Corroborando o acima exposto, encontramos o escólio de Maria Berenice Dias:
“[...] não há como prevalecer o mito de que a homossexualidade dos genitores gera patologias. Não foram constatados [em estudos mencionados pela autora] quaisquer efeitos danosos ao desenvolvimento moral ou à estabilidade emocional decorrentes do convívio com pais do mesmo sexo. Não dispõe de qualquer sustentação o temor de que o par possa praticar sexo na frente ou com os filhos. Assim, nada justifica a visão estereotipada de que o menor que vive em um lar homossexual será socialmente estigmatizado ou terá prejudicado o seu desenvolvimento e muito menos que a falta de modelo heterossexual acarretará perda de referenciais a tornar confusa a identidade de gênero. O aspecto principal é a habilidade dos pais em propiciar para a criança um ambiente carinhoso, educativo e estável, como lembra Samuels.”(30)
A propósito de pesquisas científicas relacionadas à homossexualidade e à constituição de famílias com crianças, cumpre mencionar as conclusões de uma série de estudos da Associação Americana de Psicologia:
“[...] não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente doméstico promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento ‘psicológico das crianças’. A maioria das crianças, em todos os estudos, funcionou bem intelectualmente e não demonstrou comportamentos egodestrutivos prejudiciais à comunidade. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, auto-estima, habilidade de liderança, egoconfiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não demonstravam diferenças daqueles encontrados com seus pais heterossexuais.”(31)
Ressalte-se que a adoção, enquanto instrumento de garantia do direito à convivência familiar a inúmeras crianças e adolescentes, pressupõe estágio de convivência entre adotante e adotando (ECA, art. 46), o qual será avaliado por equipe multidisciplinar a serviço do Poder Judiciário, assegurada a participação do Ministério Público nesse processo. Logo, não se trata de um procedimento simples, que possa facilmente ser burlado. Ademais, a circunstância de ela não poder ser deferida “a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado” (ECA, art. 29) não exclui, por si só, os homossexuais. Primeiro, porque o cumprimento do dever constitucional que tem a família (aqui incluída a família substituta) de “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (CF/88, art. 227, caput), independe da orientação sexual de seus membros. Segundo, porque lares de parceiros homoeróticos parecem oferecer melhores condições de desenvolvimento e aprendizado do que ruas, praças e orfanatos;(32) não raro, até, do que residências de casais heterossexuais.
Outro óbice à adoção por parceiros do mesmo sexo é vislumbrado no art. 1.622 do Código Civil (Lei nº 10.406/02), que reza: “Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”.
O suposto entrave, porém, é afastado de forma exemplar pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, em julgado pioneiro,(33) pontificou:
“Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva da família eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade. É uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia esta acerca da qual a ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e, como tal, deve ser respeitada.
Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem é o amor. São relações de amor, cercadas, ainda, por preconceitos. Como tal, são aptas a servir de base a entidades familiares equiparáveis, para todos os efeitos, à união estável entre homem e mulher.
[...]
Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família, deve ser o mesmo que é atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a essas pessoas o direito de adotar em conjunto.” (grifo nosso)
Eis a ementa do acórdão:
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DO MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes.”
Enfim, impõe-se admitir a possibilidade jurídica da adoção em conjunto por parceiros do mesmo sexo. Se não em homenagem aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da vedação de preconceitos fundados em orientação sexual e da absoluta prioridade dos direitos das crianças e adolescentes, então por uma questão de tolerância e respeito ao direito de ser diferente. Tolerância que, infelizmente, parece estar em falta hoje em dia, cedendo lugar às mais variadas formas de fundamentalismo. Tolerância que, nas palavras de André Comte-Sponville,(34) é uma pequena virtude, mas necessária; uma pequena sabedoria, mas acessível.
Conclusões
A idéia da família como um núcleo de relações fundadas na supremacia da autoridade paterna, no matrimônio e na transpessoalidade mudou. Atualmente ela se revela plural, diárquica e eudemonista, destinando-se a promover a igualdade substancial, a felicidade e a dignidade de seus membros.
Esse novo conceito foi assimilado pela Constituição Federal de 1988, que, ao lado da família resultante do casamento, assegurou a proteção estatal à família decorrente da união estável entre o homem e a mulher, bem como à família monoparental, assim entendida a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
As uniões homoafetivas, embora não previstas expressamente no texto constitucional, podem e devem ser reconhecidas como entidades familiares à medida que apresentem características de publicidade, continuidade e estabilidade. Pluralismo, ausência de preconceitos (CF/88, art. 3º, inc. IV), dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1º, inc. III), liberdade, justiça, solidariedade (CF/88, art. 3º, inc. I) e igualdade (CF/88, art. 5º, caput) são alguns dos fundamentos constitucionais aptos a embasar tal assertiva.
Apresentando reais vantagens para o adotando e fundando-se em motivos legítimos, é juridicamente possível a adoção em conjunto por parceiros do mesmo sexo, seja em razão do princípio da absoluta prioridade dos direitos das crianças e adolescentes, seja em razão dos direitos à igualdade e à felicidade dos casais homossexuais, seja em razão dos deveres de tolerância e respeito à diversidade impostos a toda a sociedade.
Referências bibliográficas
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SILVEIRA, João Batista Pinto. Excerto do voto proferido no julgamento da Apelação Cível nº 2000.71.00.009347-0/RS. In: Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a. 16, n. 57, 2005, 479 p.
TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 270 p.
Notas:
1. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a Justiça. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 61.
2. GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 28.
3. CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. Apud GIRARDI, Viviane. Op. cit., p. 27.
4. SILVEIRA, João Batista Pinto. Excerto do voto proferido no julgamento da Apelação Cível nº 2000.71.00.009347-0/RS. In: Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a. 16, n. 57, 2005, p. 339.
5. SILVEIRA, João Batista Pinto. Op. cit., p. 339.
6. TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 8.
7. FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do Novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar, 2003. p. 78.
8. Op. cit., p. 68.
9. SILVA, Eduardo. A Dignidade da Pessoa Humana e a Comunhão Plena de Vida: O Direito de Família entre a Constituição e o Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 451.
10. Op. cit., p. 80.
11. Op. cit., p. 95-6.
12. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, ESMAFE, 2001, p. 116.
13. Op. cit., p. 116-7.
14. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do Direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 258.
15. Op. cit., p. 259.
16. Informação obtida na página da ABGLT na Internet. Disponível em: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 26 dez. 2006.
17. Disponível em:<http://www.paradasp.org.br/modules/articles/article.php?
id=6> Acesso em: 26 dez. 2006.
18. Consoante o magistério de Alexandre de Moraes (In Constituição do Brasil interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 119), o “preâmbulo de uma Constituição pode ser definido como documento de intenções do diploma e consiste em uma certidão de origem e legitimidade do novo texto e uma proclamação de princípios que demonstra a ruptura com o ordenamento constitucional anterior e o surgimento jurídico de um novo Estado”. Ainda segundo o mesmo autor, é de “tradição em nosso Direito Constitucional e nele devem constar os antecedentes e enquadramento histórico da Constituição, bem como suas justificativas e seus grandes objetivos e finalidades”.
19. GIORGIS, José Carlos Teixeira. A natureza jurídica da relação homoerótica. Revista da AJURIS, n. 88, tomo I, p. 242.
20. Op. cit., p. 80.
21. Tribunal Pleno, DJ 10.05.96, p. 15131.
22. Op. cit., p. 124.
23. MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 55.
24. GIORGIS, José Carlos Teixeira. Op. cit., p. 235.
25. MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 181.
26. REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. Apud MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Op. cit., p. 182.
27. Excerto extraído do Informativo nº 414 do STF. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/noticias/informativos/anteriores/info414.asp#transcricao2>.. Acesso em: 27 dez. 2006.
28. “Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei”.
29. Costuma-se freqüentemente polemizar acerca do seguinte paradoxo: o menor teria um pai-homem e uma mãe-homem ou um pai-mulher e uma mãe-mulher. Essa perplexidade, porém, decorre mais de uma postura preconceituosa do que da dificuldade de superar o problema. De fato, antes de se perquirir quem seria o pai ou a mãe do adotando, se deveria compreender e aceitar que o melhor, para ele, era ter “pais” ou “mães”. Ademais, não são poucos os exemplos de crianças e adolescentes criados por avós, irmãos, tios e outros parentes, o que demonstra que a identificação de quem seja o pai ou a mãe não é tão importante quanto se possa imaginar.
30. Op. cit., p. 116.
31. WALD, Michael S; REYNOLDS Jackson. An analysis of proposition 22. Disponível em: , pág. 29. Acesso em:
<http://lawschool.stanford.edu/faculty>,
22 ago. 2001. Apud GIRARDI, Viviane. Op. cit., p. 143.
32. Não se está, aqui, desqualificando a importância dessas instituições, que acolhem milhares de crianças e adolescentes em nosso país. O que se está tentando demonstrar é que a adoção por homossexuais assegura de forma mais efetiva o direito dessas crianças e adolescentes à convivência familiar.
33. AC nº 70013801592, 7ª Câmara Cível, Relator o Sr. Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, unânime. Registre-se que tal decisão ainda não transitou em julgado.
34. In Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Disponível em:
<http://br.geocities.com/mcrost04/pequeno_tratado_das_grandes_virtudes_
14.htm>. Acesso em: 6 jan. 2007.
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