O Direito Constitucional como Ciência de Direcção: o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (Contributo para a reabilitação da força normativa da “constituição social”)

Autor: José Joaquim Gomes Canotilho
Doutor em Direito,
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Publicado na Edição 22 - 28.02.2008

[Manteve-se a grafia original de lusitanismos como direcção, económico, colectivo, voltámos, carácter, ideia, europeia, controlo, equidade e acção]

§§ 1º
Retrospectiva

1 A análise estrutural da posição jurídico-prestacional

Ao fazermos o trabalho de casa para elaborar esta intervenção resolvemos interrogar-nos a nós próprios sobre o acerto teórico e dogmático das nossas anteriores incursões pelo tema da “socialidade estatal” e pela “constituição dos direitos económicos, sociais e culturais”. Temos de confessar que o resultado, em termos práticos, não é animador. Resolvemos, por isso, revisitar o tema, desde logo porque se assiste a inquietantes regressões, nos planos doutrinário, metodológico e jurisprudencial, quanto à concretização dos princípios da socialidade nos estados de direito democráticos.(1) Vejamos, per suma capita, as nossas anteriores posições sobre o problema. Num trabalho intitulado “Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais”(2) procuramos fazer um estudo analítico-estrutural sobre a “posição jurídico-prestacional”. O nosso objectivo era recortar uma posição jurídico-prestacional com a mesma densidade jurídico-subjectiva dos direitos de defesa. No entanto, e embora tenha sido reconhecido que o Estado, os poderes públicos e o legislador estão vinculados a proteger e a garantir prestações existenciais, a doutrina e a jurisprudência abraçaram uma posição cada vez mais conservadora: (i) as prestações existenciais partem do mínimo para uma existência minimamente condigna; (ii) são consideradas mais como dimensões de direitos, liberdades e garantias (direito à vida, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito ou princípio da dignidade da pessoa humana) do que como elementos constitutivos de direitos sociais; (iii) a posição jurídico-prestacional assenta primariamente em deveres objectivos, prima facie do Estado, e não em direitos subjectivos prestacionais derivados directamente da constituição.

Tal como se poderá ver na retórica argumentativa do Tribunal Constitucional Português no caso referente ao rendimento social de inserção (Ac. 590/02), a jurisprudência reconduz o direito ao rendimento social de inserção à ideia de “conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna” e acaba por colocar entre parêntesis os próprios direitos económicos, sociais e culturais.(3) A metódica jurisprudencial tende a transformar-se numa metodologia funcional de obtenção de vencimento decisório.

2 Os direitos sociais e “camaleões normativos”

Voltámos ao tema quase dez anos depois num trabalho intitulado “Metodologia ‘fuzzy’ e ‘camaleões normativos’ na problemática actual dos direitos económicos, sociais e culturais”.(4) Nesse estudo procuramos problematizar a dependência legal dos direitos constitucionais sociais tendo em conta com a “reserva de cofres financeiros”. De certo modo, a nossa perspectiva dirigia-se no sentido de salvar a dimensão normativa da socialidade através de dois esquemas: (i) procurar novas vias para a “des-introversão” da socialidade estatal; (ii) distinguir entre direitos constitucionais sociais e políticas públicas de realização de direitos sociais. A linha ideológica de fundo poderia ser resumida da seguinte forma: o carácter dirigente da Constituição Social não significa a optimização directa e dos direitos sociais, antes postula a graduabilidade de realização desses direitos. Graduabilidade não significa, porém, reversibilidade social.

O problema dessa posição é que ela foi rapidamente ultrapassada pela chamada “crise do Estado Social” e pelo triunfo esmagador do globalismo neoliberal. Em causa está não apenas a graduabilidade, mas também a reversibilidade das posições sociais.

3 O direito é política, o direito é economia

Quase na mesma altura do trabalho anterior, começamos a aprofundar as nossas dúvidas sobre o tom e o dom do nosso discurso.(5) Começou a ganhar centralidade metódica aquilo a que chamámos paradoxia da autosuficiência das normas jurídico-constitucionais, sobretudo o superdiscurso social em torno dos direitos fundamentais.

Tratava-se, como é óbvio, de uma proposta de leitura crítica da “constituição dirigente social”. As críticas dirigidas por quadrantes culturais opostos – pelos cultores da sociologia crítica e pelos adeptos da constituição quadro rebelde a programas constitucionalizados – levaram-nos a considerar que as “políticas constitucionalizadas” fecharam a comunicação com o direito responsável expresso na criação jurídica através de pactos e de concertação social com o direito reflexivo gerado na “rua”, no “asfalto”, no “emprego paralelo”, na “economia subterrânea”. Em boa medida, a socialidade constitucional dirigente estava colocada sob a pressão de dois antinormativismos: o das sociologias críticas e o dos teóricos liberais. O compromisso constitucional possível para manter a força normativa da constituição social passava, a nosso ver, por uma leitura mais pós-positivista da socialidade estatal.

4 O local incerto da socialidade

Voltamos recentemente ao tema dos direitos sociais e a socialidade estatal(6) e procurámos fazer o ponto da situação quanto à constituição portuguesa de direitos sociais. Os tópicos que salientámos foram os seguintes:

1. Continuação da crítica ideológica à “carta de direitos sociais”

A carta constitucional de direitos sociais mais não é do que um conjunto de preceitos sem determinabilidade aplicativa, impositivos de políticas públicas, caracterizadas pela mistura de “keynesismo económico” e de “humanitarismo socializante”.

2. Contestação do arquétipo antropológico

A dimensão estruturante da socialidade andava ligada (e ainda se mantém) a uma concepção antropológica complexa, cujo centro é o indivíduo como pessoa, como cidadão e como trabalhador. Essa “trindade antropológica”, por mais ontologicamente radicada que seja, vê-se confrontada com três deslocações contextualizadoras: (i) acentuação da dignidade da pessoa como princípio fundante da sociedade, mas simultaneamente dessubstantizador da autonomia jurídico-constitucional dos direitos sociais; (ii) dessubjectivização regulatória conducente à substituição da cidadania social pela cidadania do consumidor; (iii) dessolidarização liberal empresarial relativamente aos encargos sociais; (iiii) crítica da eficácia e eficiência dos serviços públicos sociais pelas correntes económico-reguladoras da boa governação.

Não vamos colocar o discurso no plano do ideologismo, hoje obsessivo nos quadrantes liberais que procuram um “revisionismo” sem fronteiras de forma a purificar as “constituições” através da expulsão dos direitos económicos, sociais e culturais. Interessa-nos mais a desconstrução do arquétipo antropológico. Comecemos pela hipertrofia da dignidade da pessoa humana.

Aparentemente, o recurso à dignidade da pessoa humana como princípio ontofenomenológico fundante da dignidade social da pessoa humana nada teria de problemático. O desenvolvimento da personalidade ancorado na dignidade da pessoa ainda é o fundamento mais inquestionável das prestações sociais a cargo do Estado. Mas o “teste dóxico” de jurisprudência constitucional portuguesa aponta para o “esvaziamento solidarístico” desta estratégia discursiva do Tribunal Português. O leading case é o Acórdão nº 509/02 sobre o rendimento de inserção social que veio alterar o anterior regime do rendimento mínimo garantido. O cerne argumentativo do Tribunal acabou por ser o da conformidade ou não do regime legislativo definidor do subsídio de inserção social com o princípio jurídico-constitucional fundante da dignidade da pessoa humana. Esse princípio postularia sempre um agasalho prestacional assegurador de uma existência minimamente condigna. A dignidade da pessoa só seria afectada se o regime jurídico-legislativo não garantisse os “mínimos” da dignidade. O problema é que a estratégia discursiva do Tribunal, sob a aparente solidez da dignidade da pessoa humana, acaba por proceder à redução eidética da socialidade, colocando entre parênteses os direitos económicos, sociais e culturais. Em toda a sua radicalidade, a orientação do Tribunal conduziria a este resultado desolador: não há direitos sociais autonomamente recortados, mas refracções sociais da dignidade da pessoa humana aferida pelos standards mínimos da existência.

A segunda deslocação da socialidade remete-nos para a problemática da dessubjectivação regulatória. De uma forma ou de outra, os figurinos do “service publique” à francesa e do “Daseinsvorsorge” à alemã justificavam a existência de serviços garantidores de cidadania social e económica quanto aos bens públicos essenciais. Subjacente à missão do Estado Social estava a ideia dos “bens sociais” (saúde, ensino, segurança, trabalho) como bens públicos que só excepcionalmente podiam ser prosseguidos por privados. A convergência das políticas liberalizadoras (globais e europeias) e privatizadoras juntamente com a atribuição a entidades independentes da competência regulatória conduz a uma rotação de trezentos e sessenta graus na qualificação desses bens. Agora são bens privados que só excepcionalmente devem ser prosseguidos por serviços públicos. A socialidade estatal é um lugar incerto. Por um lado, a ideia de serviços públicos de interesse económico geral é uma fórmula de manutenção do acesso a bens essenciais (energia, água, telecomunicações) não já na qualidade de cidadão social, mas sim na qualidade de utente ou de consumidor. É possível que, em termos de eficácia e eficiência, o “novo modelo” seja mais transparente e racional, mas não é líquido que lá onde falha o mercado o Estado Social possa ser substituído por um conglomerado de serviços privados aqui e ali sensíveis às responsabilidades sociais. Isso conduz-nos ao terceiro teste da socialidade.

Quem estiver atento às tendências políticas e económicas neoliberais facilmente compreenderá que o mercado de serviços tende a preencher o espaço social em domínios tão sensíveis como hospitais, estabelecimentos de ensino, sistemas de segurança social. A actual pressão no sentido de transformar os serviços públicos em indústrias de serviços não tem necessariamente de ser remetida para o campo dos malefícios económicos do neoliberalismo. Vamos dar dois exemplos, um relacionado com o direito à saúde e outro referente ao direito ao ensino.

A Lei Constitucional nº 1/97 (4ª Revisão) acrescentou ao art. 64º (direito à saúde) um novo inciso no qual se estabelece:

“Art. 64º, nº 3. Para assegurar o direito à saúde incumbe prioritariamente ao Estado:”

“d) – Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e qualidade.”

Esse inciso (sublinhado nosso) consagra a expressa valorização constitucional dos padrões de eficiência e qualidade que, além de estar em consonância com as disposições da União Europeia nas quais se estabelece como objectivo a garantia de um nível elevado de protecção da saúde humana, sugere o novo contexto do princípio da economicidade na prestação de serviços públicos. Além disso, aponta para diferentes esquemas organizativos do serviço público de saúde como gestão empresarial e regime convencional e para sistemas específicos de monitorização e controlo dos respectivos serviços. Por sua vez, o elevado nível de protecção pressupõe a excelência e governação clínica (“clinical governance”) como veículo de qualidade clínica e como instrumento de excelência assistencial. A progressiva especificação de padrões de qualidade, recortados em termos de gestão, regulação, procedimento e controlo, acaba por ter incidência materialmente positiva nos direitos dos doentes (direito à autonomia e informação, liberdade de escolha, direito à equidade no acesso, direito a tratamento em prazo clinicamente razoável com gestão racional e eficiente ajuste das listas de espera, direito à participação democrática dos doentes ou associações de doentes na definição de escalas de prioridades e sua definição de períodos de espera clinicamente aceitáveis). Devemos ter serenidade bastante para reconhecer que a optimização dos direitos sociais não deriva só ou primordialmente da proclamação exaustiva do texto constitucional, mas da good governance dos recursos públicos e privados afectados ao sistema de saúde.

O segundo exemplo relaciona-se com o direito ao ensino. O paradigma constitucional português do ensino assenta na centralidade de uma rede de estabelecimentos públicos de ensino. Mas a ideia de rede passou a ser interpretada por alguns sectores como rede de estabelecimentos de ensino, abrangente do ensino particular e cooperativo, em que é reconhecido a todos os estabelecimentos de ensino uma dimensão pública. O ensino é, em todos os sectores – público, privado e cooperativo –, um serviço público. É óbvio que essa interpretação só será uma interpretação em conformidade com a Constituição se ela não implicar a neutralização do imperativo constitucional de criação da rede de estabelecimentos públicos estatais de ensino público pois é essa a matriz republicana de ensino constitucionalmente consagrado. Vale a pena, porém, aprofundar as deslocações normativas de sentido insinuadas pelo conceito de rede ampliada de serviço público de ensino. Ao incorporar-se na rede o ensino particular e cooperativo procura-se, directa ou indirectamente, fomentar esquemas de concorrência entre os vários estabelecimentos de ensino à qual não é alheia a ideia de marketing comercial. Essa concorrência seria, de resto, um factor decisivo para aumentar a eficiência e a rentabilidade do ensino público, pois ela permitiria que os utentes directos do serviço – as famílias – se convertessem em árbitros do mercado de ensino através do exercício do direito à escolha de escola. Mais do que isso, ainda. A concepção jacobina de ensino, traduzida na unicidade e uniformidade da oferta escolar, seria substituída por um sistema plural marcado pela flexibilidade do sistema educativo mais apto para a concretização do livre desenvolvimento dos jovens (combatendo-se, inclusive, de forma mais eficaz, os fenómenos de abandono e de insatisfação escolar). Por último, o esquema em concorrência serviria de esteio à própria relegitimação do sistema de ensino através dos mecanismos de avaliação e controlo externos indispensáveis à promoção de qualidade e eficácia de toda a rede de estabelecimentos de ensino. É bom de ver que o núcleo central das novas propostas se reconduz à transformação de todo o sistema de ensino numa empresa educacional, centrada em problemas da utilização racional dos recursos e da gestão da qualidade. A teleologia intrínseca da liberdade de aprender e de ensinar através da escola pública dá lugar a uma outra compreensão finalística. O direito à escola é o direito à aprendizagem das leges artis de uma profissão inserida no mercado de trabalho. Em termos mais analíticos, dir-se-ia que o direito à escola é (1) o direito à obtenção de meios para estudar; (2) direito à aprendizagem das leis da profissão; (3) direito a resultados formativos em concorrência com as exigências da procura e da oferta do mercado de trabalho para jovens. O actual confronto de modelos – a “Universidade pública republicana” e a “universidade privada livre” – demonstra, com exuberância, que também neste domínio a socialidade estatal já não é o que era, embora continuemos fiéis à bondade da escola pública republicana, livre, igual e laica.

5 A “governance” do terceiro capitalismo e a constituição social

Com o título em epígrafe redigimos um trabalho que se destinava a ser discutido em São Paulo no passado mês de Setembro. Por motivos pessoais, não nos foi possível colocar a sua discussão no espaço público. Como irá ver-se, o campo da análise retoma alguns passos dos itinerários anteriores, mas procura também questionar o modelo de acção social universal insinuado pela governance do terceiro capitalismo.

1. Colocação do problema

Em substituição do Estado Social constitucionalmente conformado propõe-se – umas vezes de forma sub-reptícia, outras vezes em termos abertamente frontais – que o terceiro capitalismo com a sua sociedade aberta conduz necessariamente a um corolário lógico: a empresa privada, a actuar no mundo global, será o único sujeito capaz de responder a um modelo de acção social universal.(7) A demonstração dessa tese é feita de vários modos e presta-se a várias abordagens consoante a localização dos problemas. Por uma questão de economia discursiva partiremos aqui das seguintes proposições:

1. O Estado Social é o tipo de Estado que coloca entre os seus princípios fundantes e estruturantes o princípio da socialidade;

2. O princípio da socialidade postula o reconhecimento e a garantia dos direitos sociais;

3. A garantia dos direitos sociais pressupõe uma articulação do direito (de todo o direito, a começar pelo direito constitucional) com a economia intervencionista progressivamente neutralizada pela expressão do mercado global.

Vejamos, então, com mais pormenor, a sequência dessas proposições. Todos estaremos de acordo que o Estado Social – ou melhor, o “modelo social” tal como ele, de forma diversa, ganhou substância na Europa Ocidental – ergueu os direitos sociais à dimensão estruturante da juridicidade e da democracia. Por um lado, passadas que foram as disputas sobre a incompatibilidade entre Estado de Direito e Estado Social ou, se preferirmos, entre o princípio da juridicidade e o princípio da socialidade, ganhou relativa estabilidade a compreensão constitucional do Estado como Estado de direito social. Por outro lado, o reconhecimento e a garantia dos direitos sociais passaram à dimensão estruturante do próprio princípio democrático. Com efeito, a ideia de liberdade igual estrutura o princípio democrático, dado que: (i) arranca do postulado inquestionável (desde as primeiras declarações de direito) de que os homens nascem livres e iguais em direitos; (ii) a liberdade e igualdade começa pela garantia dos direitos de liberdade e, dentre estes, dos direitos fundamentais da pessoa humana (direito à vida, direito à integridade física e pessoal, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito à família); (iii) a liberdade igual passa pela progressiva radicação de uma igualdade real ou substancial entre as pessoas.

A articulação da socialidade com democraticidade torna-se, assim, clara: só há verdadeira democracia quando todos têm iguais possibilidades de participar no governo da polis.(8) Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ignorância, analfabetismo e exclusão. A democracia só é um processo ou procedimento justo de participação política se existir uma justiça distributiva no plano dos bens sociais. A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõem, assim, uma base jusfundamental incontornável, que começa nos direitos fundamentais da pessoa e acaba nos direitos sociais.

2. Os pressupostos económico-financeiros do Estado Social

Os direitos sociais são caros, já o dissemos. Algumas prestações indispensáveis à efectivação desses direitos devem ser assegurados pelos poderes públicos de forma gratuita ou tendencialmente gratuita. Ora, o Estado Social só pode desempenhar positivamente as suas tarefas de socialidade se se verificar em quatro condições básicas:

(1) provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coacção tributária;

(2) estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva);

(3) orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do défice das despesas públicas e a evitar que um défice elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda;

(4) taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado (3%, pelo menos, ao ano).

A verificação de todas as condições acabadas de enumerar coloca o Estado Social em reais dificuldades. Em primeiro lugar, o modelo social subjacente às premissas indicadas é, dizem alguns, um modelo dos países ricos. Em segundo lugar, mesmo nos países ricos ela pode ser posta em causa por vários motivos (desde o crescimento incontrolável das despesas com alguns serviços, como o serviço de saúde, passando pelo desequilíbrio das obras públicas regionais e locais e terminando na existência de défices estruturais – como, por exemplo, políticas de coesão económica e territorial, como acontece com a integração da ex-DDR na Alemanha Federal). É por isso que desde os anos setenta se insiste na crise fiscal do Estado e a partir da década de noventa do século passado o tema obsidiante é o da sustentabilidade do modelo social. As críticas ao Estado Social e às constituições programático-sociais inserem-se nesse contexto, insistindo uma significativa parte dos políticos e economistas influentes na reorientação das políticas das finanças e da despesa pública. No banco dos réus está a célebre política do deficit spending: endividamento do Estado com a finalidade de financiar a despesa pública, sobretudo a despesa social.

3. O Estado Social como instrumento da inclusão social

A crise do Estado Social tornou-se, para muitos, um problema do ocaso da socialidade. Nas sociedades funcionalmente diferenciadas não há lugar para políticas de inclusão. A chamada individualização da sociedade significa precisamente o indeclinável direito e dever de cada indivíduo colocar no seu plano de vida e condução da existência as responsabilidades que lhe cabem na luta pela sobrevivência. Dito por outras palavras: o risco da vida é também, e sobretudo, um risco individual.(9) Ainda por outras palavras, cada um deve assumir um papel activo para assegurar a sua inclusão nos novos sistemas diferenciados da sociedade.(10) O problema é o de que a diferenciação funcional individualizadora conduz a uma dependência organizativa mais forte. Individualmente responsável dentro dos vários sistemas funcionalmente diferenciados – família, trabalho, formação e qualificação, transportes, saúde, consumo –, a pessoa corre sempre o risco de não ter possibilidade de inclusão nos esquemas prestacionais dos vários sistemas.(11) Isso tanto mais quanto é certo que a necessidade de inclusão nos sistemas funcionais diferenciados começa muito cedo: o direito de nascer não se exerce em casa, mas na maternidade “incluída” no sistema de saúde; o desenvolvimento da criança não é um problema de crescer nos braços da ama, mas de socialização nos jardins de infância “incluídos” no sistema de ensino pré-escolar; o conhecimento e informação começa na escola e esta é parte integrante do sistema de ensino.

A liberdade igual é interpretada neste contexto como a igual possibilidade de inclusão num sistema social diferenciado. A realização deste princípio de igualdade de inclusão continua a colocar o nó górdio da socialidade: a inclusividade pressupõe justiça quanto às possibilidades iguais de acesso. Como garantir essa justiça? A resposta para muitos (nos quais nos incluímos) é a reinvenção do Estado Social. Os direitos sociais e os princípios socialmente conformadores significam, no actual contexto, a legitimação de medidas públicas destinadas a garantir a inclusão do indivíduo nos esquemas prestacionais dos sistemas sociais funcionalmente diferenciados.(12) Mesmo que esse Estado Social não seja mais, hoje, do que um simples “pendant” funcional de relações subjectivas interpessoais, ele continua a ter a indeclinável tarefa da inclusão social politicamente ponderada. Mas como poderá o Estado Social continuar a desempenhar essa função de inclusão num contexto global de progressiva carência de meios financeiros? Como alicerçar expectativas, sabendo-se, à partida, que é muito difícil preencher os pressupostos da sua realização? Na verdade, algumas das críticas mais persistentes contra o Estado Social e a constituição dos direitos sociais reconduzem-se a esta ideia básica: eles alicerçam expectativas normativas que não mais estão em condições de garantir. Isso pode ilustrar-se facilmente através de três tópicos, hoje correntes na literatura “globalizadora”:

a) O mercado global e a concorrência

Não há pacto de estabilidade e crescimento que escape à lógica da captação de investimentos directos, nacionais e estrangeiros. Mas o Estado que os atrai tem ele próprio de ser um Estado garantido da concorrência. As empresas privadas adoptam estratégias de deslocalização, de política de investimento e de mão-de-obra tendentes à redução dos custos de exercício e à maximização de lucros. O Estado, por sua vez, assume cumplicidade com essas estratégias através da criação de infra-estruturas, benefícios fiscais, legislação laboral. As políticas públicas optam por encaminhar os dinheiros públicos para grandes investimentos infra-estruturantes (aeroportos, vias férreas, auto-estradas) em vez de os desonerar para os serviços garantidores da efectivação de direitos sociais. Em quase todos os países se assiste à substituição de serviços públicos por empresas de interesse económico geral, muitas delas privatizadas.

b) A redução das despesas públicas

A redução das despesas públicas obriga a cortes orçamentais e ao drástico emagrecimento do aparelho organizativo do Estado. Alguns, em termos puramente ideológicos, combatem o Estado, empurrando-o para um Estado mínimo e subsidiário. Outros salientam a lógica económica: o equilíbrio do défice orçamental indispensável à criação de clima atractivo para investimentos não é compatível com uma administração pública herdade do “Estado máximo”.

c) O comércio electrónico e as transacções telemáticas

O impacto sobre os cofres do Estado do incremento do comércio electrónico e das transacções telemáticas permite uma fuga fiscal para os caminhos da a-nacionalidade internética relativamente à qual o sistema tributário nacional pouco pode fazer. Como se sabe, a evasão fiscal anda de mãos dadas, muitas vezes, com a fraude fiscal e a lavagem de dinheiro. Além de impotente no combate às actividades ilícitas, o Estado Social vê os seus recursos fiscais em permanente retrocesso.

§§ 2º
Desafios metódicos e metodológicos à sustentabilidade normativa do Estado Social

Um jovem constitucionalista brasileiro escreveu “que não há mais espaço para optimismo metodológico, isto é, para a crença de que o resultado da interpretação constitucional depende pura e simplesmente do método utilizado”.(13) Estamos de acordo. Mas o que se exige, hoje, ao jurista é que, sem deixar de ser um pessimista metodológico, dê positividade à sua retórica abrindo caminhos hermenêuticos capazes de auxiliarem a extrinsecação do direito constitucional. Ora, a nosso ver, a “floresta tem caminhos”. É necessário descobrir os caminhos da floresta.

1 A direcção através do direito

O primeiro ponto que merece nova suspensão reflexiva relaciona-se com o problema da capacidade de direcção do direito constitucional. Se a “lógica dirigente” está hoje posta em causa, isso não significa que o direito tenha deixado de se assumir como instrumento de direcção de uma comunidade juridicamente organizada. A constituição pode ter deixado de ser uma norma dirigente mas não está demonstrado que não tenha capacidade para ser uma norma directora. Mesmo tendo em conta as críticas dirigidas contra o normativismo constitucional (a que atrás fizemos referência) cremos que o direito continua a ser um instrumento fiável e incontornável de comando numa sociedade.(14) Esse ponto de partida justifica, desde logo, a clarificação do conceito de direcção. A simples convocação dogmática desse conceito para assumir um papel relevante na problemática metodológica de concretização do direito significa que não estamos em sintonia com as conhecidas teorias auto-referenciais do direito. Como se sabe, várias abordagens teóricas têm tentado demonstrar a mudança de paradigmas na compreensão do direito e da estabilidade. As fórmulas linguísticas escolhidas são sugestivas, embora nem sempre contenham rigor explicativo: “direito pós-intervencionista”, “direito regulatório”, “direito procedural”, etc. Em comum, têm todas elas o chavão da insuficiência, da ineficiência e improdutividade do direito intervencionista. A isso acrescenta-se a chamada décalage regulativa do normativismo: a crescente discrepância entre os fins das normas e os resultados fácticos e jurídicos. Embora isso não seja sempre salientado, o comando normativo é também considerado como um modo decisionista de resolver problemas a partir de um significado monocausal. Acresce que o modo normativo-intervencionista descura a necessidade de informação, quer no momento do impulso regulativo, quer na fase de controlo. Mas há mais. No que respeita às formas de interacção entre o estado e a sociedade subsiste a dominância da razão hierárquica, com completa indiferença e até ignorância relativamente aos destinatários. Não admira, assim, que em muitos sectores (incluindo o campo dos profissionais do direito) se venham acumulando imponentes fundamentações teoréticas e teóricas da perda de capacidade de direcção e de comando por parte do Estado e do direito.

Embora as teorias auto-referenciais tenham obrigado à revisão (por vezes dramática) dos esquemas de direcção do estado e do direito, entendemos que é possível manter tendencialmente a ideia de direcção: comando dirigido à conformação, regulação, alteração intencional e finalística de situações políticas, económicas, sociais e culturais através dos instrumentos jurídicos. À semelhança das teorias sistémicas, a direcção não deve conceber-se como ordem autocrática do Estado soberano juridicamente imposta, antes deve compreender esquemas múltiplos de mecanismos accionados por vários actores sociais. É nessa perspectiva que se orienta a análise neo-institucionalista centrada nos vários actores sociais e nos vários instrumentos de direcção. O conceito de direcção é, assim, um conceito analítico que engloba vários meios de direcção ao lado do direito (mercado, finanças, organizações). Daí que seja importante salientar a centralidade directora do direito num Estado de direito democrático, mas não a sua exclusividade, impondo-se mesmo a conjugação de vários instrumentos de direcção para se obterem os fins desejados. Em segundo lugar, a direcção pressupõe actores sociais mesmo que se reconheça – como salientam as teorias autopoiéticas – a existência de sistemas diferenciados dotados de uma dinâmica própria.(15) Diversamente, porém, da auto-refencialidade sistémica, o institucionalismo centrado nos actores depende de uma direcção político-social entendida como um sistema intencional e comunicativo de acção influenciadora da conformação de relações sociais orientadas para o bem comum. O que é absolutamente necessário, nesse modo de ver as coisas, é dar centralidade regulativa aos sistemas de interacção sociais através dos seus actores individuais ou colectivos. A partir desse conceito analítico de direcção, o institucionalismo centrado nos actores defende uma “nova estatalidade”, uma “nova arquitectura de Estado”, onde se recortem novas formas institucionalizadas de cooperação e de comunicação entre: (i) os actores sociais mais importantes e os interesses politicamente organizados; (ii) o Estado e as organizações políticas.

§§ 3º
Refracções metódico-metodológicas

Chegamos ao momento de perguntar pelo impacto praxeológico deste esquema de direcção no campo da interpretação e da concretização do direito directivo-constitucional. Antes de procedermos à exemplificação prática da metódica aplicadora, tentemos sintetizar algumas das dimensões a ter em conta:

(1) – as grandezas de referência são as instituições (sistemas) ao lado dos esquemas tradicionais das relações jurídicas e dos mecanismos jurídico-processuais e procedimentais;

(2) relevância dos novos modelos de direcção, designadamente os modelos de management desenvolvidos pela ciência económica no âmbito do mercado e da economia privada (particularmente importantes para as questões da modernização e eficiência dos mecanismos de direcção);

(3) pluralidade das regulações jurídicas, tendo sobretudo em atenção que a regulação directora pode convocar complexos normativos diversos como o direito dos contratos, o direito da lei, o direito da constituição, o direito europeu, o direito internacional; e

(4) mecanismos densificadores (boas práticas, excelência de serviços, standards) de normas de direcção constitucionais.

1 A determinação dos níveis essenciais de prestações sociais

Os esquemas de racionalização de prestações sociais no âmbito dos direitos sociais (saúde, segurança social, ensino) são o exemplo típico de que a constituição social directora precisa de novos arrimos jurídico-dogmáticos. A sua análise do modo como os juristas têm discutido o problema das prestações sociais leva-nos a algumas conclusões desconsoladoras. Em primeiro lugar, os anseios da constituição social vinculados às premissas típicas do positivismo legalista mais não fazem do que repetir até a exaustão o círculo vicioso de qualquer positivismo. Em termos simples, o círculo pode descrever-se assim: (i) as normas consagradoras dos direitos sociais, económicos e culturais consagram o direito à saúde, à segurança social, ao ensino; (ii) logo todos temos direitos por via da constituição a todas as prestações da saúde, da segurança social e do ensino; (iii) logo a política do direito constitucionalmente conforme no campo desses direitos é a que consagra a gratuitidade de todas as prestações reclamadas pela necessidade de realização desses direitos.

Em sentido diametralmente inverso, os ideólogos liberais partem das seguintes premissas: (i) os direitos sociais não são verdadeiros direitos porque não possuem a dignidade de direitos subjectivos; (ii) as normas constitucionais consagradoras desses direitos são normas programáticas que em rigor não deveriam estar no texto constitucional, pois as suas concretizações dependem das políticas públicas dos órgãos políticos legitimados para as desenvolver; (iii) os bens protegidos por essas normas são, em primeira linha, bens privados, cuja protecção só excepcionalmente deve ser confiada às entidades públicas. É bom de ver que não é por sermos positivistas constitucionais que os direitos sociais são realizados pelos poderes públicos e não é por insistirmos na mão invisível que os problemas sociais deixam de existir e, mais do que isso, são satisfatoriamente solucionados para todas as camadas da população. De qualquer modo, impõe-se discutir o modo como se assegura a direcção jurídica – política da concretização dos direitos constitucionais sociais. E já vimos que as recentes leituras jurisprudenciais portuguesas a pretexto de reconhecerem o “mínimo social” compatível com o “mínimo de dignidade” estão a reforçar indirectamente o retrocesso social do Estado. Vamos tentar uma recentração do problema com base na ideia central de direcção constitucional social. A ideia do direito como instrumento de direcção ao lado de outros instrumentos (financeiros, organizatórios) é, hoje, como dissemos, uma das premissas metodológicas de institucionalismo jurídico. Essa perspectiva neo-institucionalista mantém as tradicionais categorias jurídicas e hermenêuticas, mas introduz outras valências normativas. Testemos a sua operacionalidade prática.

a) A ideia de “núcleo essencial”

Trata-se de uma categoria central da dogmática jurídico-constitucional do último meio século. O recorte de um “núcleo essencial” de direitos, liberdades e garantias perfilava-se como o último reduto de garantia contra as leis e medidas agressivamente restritivas desses direitos. Hoje, parece reconhecer-se que a determinação da essência de um direito não é tarefa fácil, sobretudo quando eles se colocam perante os juízos de balanceamento de bens e direitos em caso de conflito. Por outro lado, defende-se, nalguns trabalhos, que a sua autonomia dogmática acaba por ser residual, dado que se trata apenas de um conceito-limite depois da operacionalização hermenêutica do princípio da justa medida e da razoabilidade. Em terceiro lugar, contesta-se a própria bondade jurídico-dogmática desse conceito, dizendo-se que como postulado nascido no pós-guerra pretendia apenas reforçar no plano geral a garantia da liberdade e dos direitos pessoais. Não é este o lugar para retomar a génese da essência das essências dos direitos, mas damos como jurídico-constitucionalmente adquirido que o núcleo essencial desempenha um papel relevante na garantia dos direitos. Mas de que direitos? Esse é o ponto central da presente nota.

A doutrina do núcleo essencial foi desenvolvida tendo em vista o regime de protecção de direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 187º da Constituição Portuguesa). Ora, o problema que se coloca é o de saber se ela não deve ser alargada aos direitos económicos, sociais e culturais, pelo menos em aspectos em que eles têm uma natureza análoga aos direitos de liberdade. Sendo assim, o punctum saliens da questão é este: como determinar o núcleo essencial do direito à saúde? Como o direito à saúde implica um feixe de prestações, como determinar o nível essencial de prestações sociais?

b) Os níveis essenciais de prestações sociais

Num recente trabalho tentam-se fornecer algumas pistas inovadoras a este respeito.(16) Os pontos de partida para a compreensão do chamado Lep (Livelli essenziali delle prestazioni) consagrada no art. 117º/2 da Constituição Italiana (revista) parecem formulados num linguajar clássico: (i) o nível essencial de uma prestação referente a um direito social consubstancia um autêntico direito individual irrestringível fundado nas normas constitucionais; (ii) a constitucionalização de um direito essencial de prestação constitui uma heterodeterminação constitucional à autonomia normativa e administrativa de todos os níveis de governo começando no governo central e acabando nos governos regionais e locais; (iii) o nível essencial de prestação condiciona as políticas económicas e financeiras. No entanto, os autores sujeitam um modelo unidimensional assente na definição de prestações e propõem uma aproximação multidimensional na determinação dos níveis essenciais das prestações que têm como ponto de partida a consideração de que as prestações transportam determinadas dimensões consideradas essenciais em relação a essas mesmas prestações. Por outras palavras que pertencem aos autores da obra: por cada prestação são especificadas e pormenorizadas as dimensões que asseguram a sua adequação. Se bem interpretamos as propostas multidimensionais, elas pretendem conseguir aquilo que as interpretações – concretizações doutrinárias e jurisprudenciais clássicas – não conseguiram até agora: assegurar a efectividade da disciplina constitucional ao nível das prestações sociais. A efectivação passa pelo recurso aos esquemas tradicionais de legislação e regulação porque se considera indispensável uma lei e um regulamento de execução. Aquela disciplinaria as prestações, os destinatários, os indicadores, o sistema informativo, os recursos financeiros, as acções estaduais de suporte, programas de intervenção extraordinária e o remédio para a inobservância de standards. O regulamento devia especificar a lista dos indicadores, individualizando, para cada um deles, o valor objectivo que as administrações devem respeitar.

O que há de novo é a tentativa de introduzir guide-lines de boas práticas ou de standards possibilitadores de controlo e que primariamente dirão respeito aos mecanismos de governance e de accountability, mas que poderão constituir também elementos de facto para a eventual jurisdicionalização dos conflitos prestacionais. Mas não só isso: perante a incontornável pressão dos custos dos serviços de saúde e consequentes políticas de racionalização, a metodologia mais segura para a garantia dos direitos não é a da subsunção positivista-constitucional, mas a de recortar o núcleo duro da subjectivização dos direitos sociais.(17)

c) Do direito à saúde aos direitos dos doentes

Outra forma de dar efectividade à direcção normativo-constitucional do direito fundamental à saúde é a de a metódica constitucional estar atenta aos outros instrumentos de direcção, designadamente os instrumentos reguladores e a carta de direitos dos utentes. Mesmo que se aceite a lógica sistémica da diferenciação e autonomização de sistemas – sistemas de saúde, sistemas de segurança social –, a direcção através do direito constitucional pode concretizar-se através de boas práticas(18) emergentes da clinical governance. A qualidade dos serviços de saúde – quer sob o ponto de vista clínico, quer do ponto de vista assistencial – com a consequente garantia dos direitos dos utentes, sobretudo dos doentes, pode resultar mais da observância dos padrões técnicos e humanos definidos em códigos de boas práticas do que da execução hierárquica de regulamentos e procedimentos administrativos. Não foi a exegese da constituição e o platonismo subsuntivo que permitiram individualizar os direitos dos utentes (autonomia, informação, vontade previamente manifestada, liberdade de escolha, privacidade, acesso à informação da saúde, não discriminação e não estigmatização, acompanhamento espiritual, primado da pessoa sobre a ciência e a sociedade, direito de queixa e reclamação, equidade no acesso, acessibilidade em tempo útil).(19) Se o direito constitucional quiser continuar a ser um instrumento de direcção e, ao mesmo tempo, reclamar a indeclinável função de ordenação material, só tem a ganhar se introduzir nos seus procedimentos metódicos de concretização os esquemas reguladores e de direcção oriundos de outros campos do saber (economia, teoria da regulação). E a conclusão parece-nos clara: a governação clínica (clinical governance) é um esquema de boas práticas concretizador do direito à saúde.

d) Direcção constitucional e metódica de concretização dos direitos sociais

A metódica de concretização através de instrumentos normativos e de instrumentos reguladores de boas práticas não significa que ponhamos de lado a metódica de concretização judicial. O que os anteriores exemplos pretendem demonstrar é que o direito constitucional como ciência de direcção não pode ficar alheio a esquemas novos de concretização. E não deixa de ser um bom “teste” à metodologia jurídico-constitucional a caracterização, em sede judicial, do nível essencial de prestações sociais.

O simples reconhecimento de um núcleo essencial de prestações sociais, equivalente ao núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias, impõe uma revisão do carácter prestacionalmente dependente dos direitos sociais. Não tanto porque isso não seja juridicamente correcto, mas porque de uma forma ou de outra todos os direitos – desde os direitos, liberdades e garantias pessoais aos direitos, liberdades e garantias – apresentam dimensões caracterizadamente regulativo-prestacionais. Lembramos tão-somente o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, o direito de participação na vida política (financeiramente, por exemplo, dos partidos e das campanhas eleitorais), da liberdade de ensino da religião (com professores pagos pelo Estado). Em segundo lugar, se há um núcleo essencial de prestação, então deve colocar-se o problema da aplicabilidade directa das normas constitucionais garantidoras das prestações essenciais constitutivas desse núcleo.(20) Esgrimir aqui com as tradicionais “reservas” – “reserva de lei” constitutiva das prestações e “reserva do possível” em termos económicos e financeiros” – significaria que bastaria o legislador e todos os órgãos responsáveis pela concretização ficarem silentes, para se negar a existência de um núcleo essencial de prestações sociais. Afinal, a direcção da constituição, ou melhor, a direcção dos direitos sociais constitucionalmente garantidos ficaria neutralizada pelas omissões legislativas e executivas. A “reserva de lei” transmuta-se em inimigo dos direitos sociais que, no fundo, são dimensões constitutivas da igual dignidade social e da justiça distributiva.

É óbvio que os tribunais não podem ficar alheios à concretização judicial das normas directoras da constituição social. Não pode é impor-se à metódica constitucional a criação de pressupostos de facto e de direitos claramente fora da sua competência ou extravasando os seus limites jurídico-funcionais. Os tribunais não podem neutralizar a liberdade de conformação do legislador,(21) mesmo num sentido regressivo em épocas de escassez e de austeridade financeira. Isso significa que a chamada tese da “irreversibilidade de direitos sociais adquiridos” deve entender-se com razoabilidade e com racionalidade, pois poderá ser necessário, adequado e proporcional baixar os níveis de prestações essenciais para manter o núcleo essencial do próprio direito social.(22)

e) E o que dizem os juízes quanto ao nível essencial de prestações sociais?

As jurisprudências comuns e constitucionais ao serem confrontadas com o “direito ao mínimo existencial”(23) orientaram a sua estratégia hermenêutica no seguinte sentido: (1) direito ao mínimo prestacional para uma existência condigna é um direito prestacional originário fundado num direito fundamental da dignidade da pessoa; (2) os direitos, liberdades e garantias transportam uma dimensão objectiva conducente à ressubjectivização de posições prestacionais, configurando-se, assim, eles próprios em esquemas de garantia dos direitos sociais.(24) Temos dúvidas quanto a esse ponto de partida. Em primeiro lugar, o uso e abuso do recurso à dignidade da pessoa humana (de resto sendo problemática a sua estrutura como direito autónomo) corre o risco de “dessubstantivar” todos os outros direitos, quer de liberdades, quer sociais. Mesmo quando não se convoca apenas a dignidade da pessoa humana e se apela para outros direitos e liberdades (ex.: direito à vida, direito ao desenvolvimento de personalidade) insinua-se que há uma função prestacional geral inerente a todos os direitos negativos de liberdade. Em terceiro lugar, uma jurisprudência aparentemente amiga da dignidade humana e das suas refracções sociais pode, afinal, ser uma jurisprudência que encapuçadamente se recusa a olhar de frente para o direito à igual dignidade social (e não apenas dignidade da pessoa humana), o direito à igualdade distributiva, o direito ao desenvolvimento da personalidade, o direito a níveis essenciais de prestações sociais inerentes aos direitos sociais. O problema é, afinal, neste contexto o de saber se os juízes têm instrumentos metódicos e metodológicos para concretizarem a direcção constitucional de direitos sociais.(25) O limite que os tribunais constitucionais invocam, em geral, é o de que não lhes pertence interferir nas políticas públicas. Resta saber se o ecological approach da função judicial não vai entrar decisivamente na extrinsecação dos direitos sociais. Aqui a resposta é clara: o juiz participa na política porque desempenha um papel considerado adequado para assumir a cumplicidade de partilhar os valores e interesses dos grupos e indivíduos que perante ele reivindicam direitos e posições prestacionais negados ou bloqueados pelos decisores político-representativos.(26) Isso obrigará a desenvolvimentos doutrinais que estão fora da economia deste trabalho.

Notas:

1. Veja-se numa incisiva discussão do problema no trabalho colectivo coordenado por M. Bovero, Quale Libertà. Dizionario mínimo contro i falsi liberali, Roma-Bari, Laterza, 2004.

2. Publicado inicialmente no número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1988, e republicado no nosso livro Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra, 2003, p. 35 e ss.

3. Veja-se a crítica deste Acórdão em Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 67.

4. Este trabalho foi preparado para um colóquio em Madrid, promovido pela Universidade Carlos III, sobre Derechos Economicos, Sociales e Culturales, em 22/26 de Abril de 1996. Está também publicado em Estudo sobre Direitos Fundamentais, p. 93 e ss.

5. Cfr., precisamente, o trabalho “O tom e o dom na teoria jurídico-constitucional dos direitos fundamentais”, in Estudos, p. 115 e ss. O texto inicial foi lido no Colóquio Internacional de Direito Constitucional realizado em Recife (22/24 de Agosto de 1996).

6. Cfr. o trabalho de 2006 30 anos de Constituição da República: a sedimentação dos direitos fundamentais e o local incerto da socialidade, texto inédito, embora com leitura em Coimbra (Curso de Direitos Humanos) e em São Paulo (Curso de Direito Social).

7. Cfr. o perturbador livro de Pietro Barcellona, Lo Spazio della Politica, Editora Riuniti, Roma, 1993, p. 11.

8. A indissociabilidade de democracia e direitos sociais tem sido posta em relevo por vários autores. Citaremos apenas A. Baldassare, Diritti della persona e valori costituzionali, Giappiehelli, Torino, 1997.

9. Vejam-se as considerações de U. Beck na sua conhecida obra sobre a sociedade de risco: Ulrich Beck, Risikogesellschaft, Frankfurt, 1986, p. 115.

10. De uma forma incisiva cfr. Beck/Beck-Gernsheim (org.), Riskante Freiheiten, Frankfurt/M, 1994, p. 12 e ss.

11. É o próprio Niklas Luhmann a salientar este problema de inclusão. Cfr. Niklas Luhmann, Politischen Theorie im Wohlfahrstaat, München, 1981, p. 25.

12. Neste sentido, cfr., por último, Thorsten Kingreen, Das Sozialstaatsprinzip im europäischen Verfassungsverbund, Tübingen, 2003, p. 207: “a autorização jurídico-constitucional para a inclusão de vários sistemas parciais sociais encontra-se no princípio do Estado Social”.

13. Cfr. Virgílio Afonso da Silva, “Interpretação Constitucional e Sincretismo metodológico”, in Virgílio Afonso da Silva, Interpretação Constitucional (coord.), São Paulo, 2005, p. 143.

14. Cfr., por último, Dietmar Braun, Die Politische Steuerung der Wissenschaft, 1997, p. 29 e ss; Gunnar Folke Shuppert, “Selbstverwaltung, Selbststeuerung, Selbstorganization”, in Archiv des öffentlichen Rechts, 114 (1989), p. 127; Florian Becker, Kooperative und Konsensuale Strukturen in der Normsetzung, Tübingen, 2005, p. 13 e ss.

15. Cfr., por todos, Fritz Scharpf, Interaktionsformen. Akteurzentrierter Institutionalismus in der Politikforschung, Opladen, 2000.

16. Referimo-nos à obra Welfare e federalismo, Bologna, 2005, elaborada por um grupo de peritos reunido na associação Astrid e coordenado por L. Torchia.

17. A efectividade da regulação da Lep assenta na individualização das dimensões básicas: 1) macroárea de intervenção; 2) prestações; 3) descrição sintética; 4) destinatários; 5) indicadores; 6) valor objectivo. Exemplo I: 1) macroárea de intervenção – assistência sanitária; 2) prestação – tomografia axial computadorizada; 3) descrição sintética – utilização de aparelho de alta precisão no diagnóstico tumoral; 4) destinatários – pessoas a quem é passada uma prescrição médica expressa para o caso; 5) indicadores – tempo que ocorre entre a prestação e a efectivação da prestação; 6) valor objectivo – até ao fim de 2006 (x dias).

18. Para o conceito de boas práticas cfr. Rosaleth Moss Kanter (coord), Best Practice Handbook, London, 2003, p.1: “best practice is a simple concept: measurable standards”.

19. Cfr. Rui Nunes, Regulação da Saúde, Porto, 2005, p. 142 e ss.

20. A doutrina italiana tem aprofundado o tema em trabalhos recentes: A. Giorgis, La costituzionalizzazione dei diritti all’equaglianza sostanziale, Napoli, 1999, p. 87ss; C. Salazar, Dal riconoscimento alla garanzia dei diritti sociali. Orientamenti e tecniche decisorie della Corte Costituzionale italiana, Milano, 1999.

21. Cfr. Virgílio Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spelräume, Baden-Baden, 2003, p. 113 e ss.

22. Cfr., por último, I. Massa Pinto, “Contenuto minimo essenziale dei diritti costituzionali e concezione espansiva della Costituzione”, in Diritto Pubblico, 2001, p. 1095 e ss.

23. Cfr., para o caso português, Jorge Reis Novais, Os princípios estruturantes, cit., p. 291 e ss; José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2. ed., 2001, p. 371 e ss.

24. Cfr. os trabalhos de W. Neumann sobre a problemática do mínimo garantido de existência a partir da dignidade da pessoa humana: “Menschenwürde und psychischer Krankeit”, in NVWZ, 1995, p. 426 e ss; “Sozialstaat und Grundrechtsdogmatik”, in DVBL, 1997, p. 92 e ss.

25. A doutrina mostra-se reticente. Cfr., por exemplo, C. Salazar, Dal riconoscimento alla garanzia dei diritti soziali, cit., p.150; Wolfram Cremen, Freiheitsgrundrechte, Tübingen, 2003, p. 360 e ss.

26. Veja-se este ecological approach em H. Jacob, “The Governance of Trial Judges”, in Law and Society Review, 31, 1, p. 3 e ss.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .