O princípio constitucional da adequada proteção previdenciária: um novo horizonte de segurança social ao segurado aposentado

Autor: : José Antonio Savaris
Juiz Federal, Professor de Direito Previdenciário da ESMAFE-PR, Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR, Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário
Publicado na Edição 22 - 28.02.2008

Talvez seja importante começar um artigo em tema de direito previdenciário com a seguinte pergunta retórica: seria a justiça um valor de segunda importância no direito à segurança social, desde que cedeu sua primazia à conveniência de um arranjo normativo propício à eficiência econômica e à geração de excedentes?

Admitida a resposta como afirmativa, teremos por esclarecida a razão pela qual, ao tempo em que não é computada a contrapartida contributiva da União na condição de empregadora do regime de previdência que instituiu, o servidor público inativo e o pensionista do Regime Próprio são chamados a contribuir para esse mesmo regime de previdência, em nome de valores como a universalidade do custeio e a solidariedade (Emenda 41/03 e ADIN 3105). Também assim entenderíamos por que motivo o segurado aposentado do Regime Geral da Previdência Social que permanece ou volta a exercer atividade remunerada deve contribuir para a seguridade social sem que qualquer contrapartida efetiva lhe seja oferecida pelo sistema previdenciário (Lei 8.213/91, art. 18, § 2º, e RE 437.640/RS, DJ 02.03.2007) ou mesmo porque o Supremo Tribunal Federal “tem sido rigoroso, algumas vezes impiedoso, com os economicamente frágeis”.(1)

Se as instituições de uma sociedade já não guardam a necessidade de serem justas – a ponto de construírem uma trajetória desviante de recursos da seguridade social para pagamento, por exemplo, de encargos financeiros da União e seus campeoníssimos juros –, não há porque mantermos perplexidades. Seria então razoável que fosse potencializada a problemática alusiva ao custeio da previdência social, “sempre às voltas com questões ligadas ao caixa”, a ponto de se colocarem em plano secundário os constrangimentos constitucionais.(2) Com menos dificuldades também receberíamos os desafios de um país de muitos pobres e de uma seguridade social em estágio inicial de desenvolvimento em face do irreparável prejuízo ocasionado ao orçamento da saúde, da assistência e da previdência social pelas desvinculações das receitas da seguridade social, em nome do princípio neoliberal dos orçamentos equilibrados.(3)

Quando se parte do pressuposto de que o fim ou a conseqüência que se pretende alcançar é a eficiência econômica do sistema de previdência social, quando já não se recorda que essa eficiência não é um fim em si mesmo, antes, pela ampliação e diversidade da base de financiamento (CF/88, art. 194, V), serve como instrumento para a mais perfeita segurança social, a justiça não passa de um detalhe e o melhor funcionamento do aparato de segurança social é frustrado: não há prioridade do justo sobre o bem; deixa-se de tratar o ser humano como um fim em si mesmo e ele então – pretende-se – é um meio à incerta e errática utilidade de todos. A seguridade social pode então justificadamente deixar de amparar o cidadão para que este, mesmo ao custo de sua vida – e quando menos ao custo de uma doença evitável ou de uma desnutrição alimentar –, ampare o Estado para que este, segundo critérios esotéricos, promova, com a alcançada disponibilidade de recursos, a maior utilidade possível, a maior segurança possível para a presente geração e para a próxima.

O presente artigo pretende trazer luzes sobre a mais elementar derivação do direito à previdência social, qual seja, o direito a uma cobertura previdenciária adequada, que também pode ser lido como o direito a uma proteção social suficiente ou o direito a um nível justo de proteção social (as expressões são intercambiáveis). É evidente que, se a leitura que se faz do sistema de seguridade social é aquela que presta homenagem cega à segurança positivista ou a que encerra um compromisso (consciente ou não) com o canonizado slogan conservador “equilíbrio atuarial” (seja lá o que para alguns isso signifique), o princípio da justa proteção social tende a ser reduzido a um direito a uma contrapartida atuarial, com todo rigor de um seguro privado no que de sinalagmático e meritocrático expresse, mas sem a “virtude” privada de não exigir o prêmio sem correspondente cobertura ou contrapartida, tal como o faz nossa previdência social beveridgiana, em nome de uma solidariedade que agiganta os grandes e aproxima os pobres dos mais pobres.

Se, todavia, persiste a meta constitucional de bem-estar e justiça sociais, se persevera o ânimo de fazer prevalecer os fundamentos republicanos de igualdade, cidadania e dignidade da pessoa humana, a proteção previdenciária encontra terreno para cumprir sua finalidade, qual seja, a de prover meios indispensáveis e suficientes para manutenção digna de seus segurados e dependentes, de acordo com a justiça.

A conseqüência principal que se pretende extrair do princípio da justa e adequada proteção previdenciária é a de que a previdência social, por imperativos constitucionais, deve oferecer uma proteção social que corresponda especificamente à contingência social em que se encontra o segurado.

Mas esse seu propósito constitucional não será jamais alcançado e a segurança social que representa será insuficiente e injusta enquanto for percebida como um seguro social que nega eficaz cobertura previdenciária pela circunstância de o segurado já se encontrar na titularidade de uma aposentadoria espontânea e vitalícia. A cobertura previdenciária, ainda que realizada por meio de uma aposentadoria em princípio vitalícia (aposentadoria por tempo de contribuição, especial ou por idade), não pode ser concedida uma vez por todas.

A concessão de um benefício previdenciário – mesmo uma aposentadoria – não isenta a previdência social de prosseguir cumprindo o dever fundamental de proteção adequada a seus segurados, de maneira que a superveniência de um fato grave, imprevisto e indesejado pelo segurado aposentado pode conduzir à alteração do mecanismo específico de cobertura e, especialmente, do nível de proteção social.

A estruturação dos argumentos justificadores da hipótese acima exposta respeita o seguinte seqüenciamento: a primeira seção é dedicada à elaboração de uma categorização ou ordenação das prestações previdenciárias de acordo com o grau de gravidade da contingência social e de sua essencialidade para a subsistência digna do beneficiário.(4) Já se disse que não há classificações certas ou classificações erradas. Importa que a classificação seja útil e para os objetivos desse trabalho ela se revelou importante, na medida em que permitiu a identificação de uma relação de prioridade entre os benefícios previdenciários, representada em uma imagem de círculos concêntricos.

A segunda seção trata de um princípio implícito fundamental da segurança social, que diz respeito especificamente à previdência social: o princípio da adequada proteção social (previdenciária).

A expressão que se empresta a um princípio não é o mais importante, mas o valor que ele exprime, a inteligência que hospeda, os constrangimentos que impõe e a normatividade que irradia. A expressão ora adotada – que não se pretende inflexível – é compreensiva, pois uma adequada proteção previdenciária apenas é alcançada quando atendidas suas notas ou dimensões de especificidade, suficiência e imediatidade.

Na realidade, percebe-se que outras duas dimensões compõem a chave da adequação de segurança social previdenciária. A primeira destas diz respeito à necessidade da atuação previdenciária, que tem especial significado quando se trata das prestações outorgadas em face de contingências que se realizam independentemente da vontade do segurado. Sob essa perspectiva, a concessão de pensão por morte à mãe do segurado, por exemplo, somente se justificaria se comprovada a dependência econômica. Outrossim, será inadequada (e indevida) a concessão de uma aposentadoria por invalidez ao segurado que se encontrar apto ao exercício de determinada atividade que possa lhe garantir subsistência.

A segunda dimensão diz respeito à razoabilidade das condições de acesso à determinada prestação previdenciária. Percebida institucionalmente, uma proteção previdenciária apenas será adequada na medida em que, de um lado, os requisitos de acesso se encontrem ao efetivo alcance do segurado e de seus dependentes e se, de outro lado, o modo de comprovar o cumprimento desses pressupostos legais não inviabilizar o gozo do benefício previsto em lei para determinada contingência.

Neste artigo, o que se pretende colocar em exame é a adequação da proteção social sob a perspectiva da ação previdenciária desencadeada em virtude de uma dada contingência, razão pela qual não serão tecidas outras considerações sobre a correção do que se pode dizer adequação “para” a cobertura previdenciária (adequação quanto à necessidade e adequação quanto às condições de acesso). O que se busca avaliar aqui é a resposta de proteção previdenciária desencadeada pela contingência, e não as exigências que condicionam essa ação de proteção.

De outra parte, ainda que a presente análise seja operada sobre a atuação protetora da previdência social, não será enfrentado senão ocasionalmente o atraente tema da adequação do sistema de previdência social na perspectiva da eleição das contingências em relação às quais se oferece proteção, do nível de proteção da rede de segurança social e do campo subjetivo de aplicação. Este artigo não pretende trazer resposta à pergunta de quão generosa deve ser a nossa rede de proteção social ou se o esquema de seguridade social é plenamente adequado em seu conjunto.

Pretende-se que a temática da adequação do sistema previdenciário seja tocada na medida em que esse leque de questões se conecte com a preocupação primeira de nosso trabalho: a pertinência da atuação previdenciária à sua pretensão de segurança social, isto é, a adequação, em face de uma dada contingência, da proteção que se diz oferecida pelo sistema e que se diz devida quando cumpridas as condições de acesso definidas pelo legislador.

Se a ação previdenciária não se limita a uma cobertura formal ou a um socorro de faz de conta, deverá proteger seus beneficiários (uma vez e sempre) de modo imediato, por meio de prestação especificamente planejada para uma dada contingência e entregando-lhes recursos materiais suficientes ao suprimento de suas necessidades.

Na terceira parte, vislumbra-se a dinâmica do princípio da adequada proteção social previdenciária e, para o que agora nos interessa mais de perto, de como ele autoriza o trânsito do segurado aposentado por entre as faixas dos benefícios previdenciários, em direção aos prioritários (benefícios sensíveis). Esse trânsito encontra fundamento no direito do segurado de receber, enquanto se encontrar em determinada contingência, a cobertura previdenciária que lhe é devida, ainda que já seja titular de uma aposentadoria voluntária.

1 Classificação das prestações previdenciárias segundo o grau de gravidade da contingência social e de sua essencialidade para a subsistência digna do segurado

Segundo a Constituição da República, a previdência social tem como finalidade primeira a cobertura de contingências sociais adversas que, em princípio, afetam a fonte de subsistência de seus filiados, minando as possibilidades de normalmente obterem recursos materiais destinados a suprir necessidades imediatas ou primárias, como alimentação, moradia, transporte, vestuário e medicamentos.

É claro que nem todos os dez benefícios previdenciários do Regime Geral da Previdência Social se destinam a oferecer cobertura a contingências sociais indesejáveis, gravosas ou imprevisíveis. Se já tivemos oportunidade de classificar as prestações previdenciárias entre aquelas “programáveis” e as outras as quais chamamos “de risco” (ou sensíveis), é porque fizemos perceber que nosso sistema previdenciário – tal como a maioria dos países que organizaram seus seguros sociais – não oferece tão-somente cobertura aos eventos que, ocorrendo contra a vontade do segurado, furtam-lhe a possibilidade de prover os meios de subsistência. Tínhamos em mente, então, as aposentadorias espontâneas (aposentadoria especial, por tempo de contribuição e por idade), que têm como requisito específico circunstância outra que não um fato imprevisto, indesejado e altamente grave ao segurado, com potencialidade para lhe retirar, de súbito, a possibilidade de autoprover-se.(5)

Ao lado dos benefícios que reputamos programáveis – assim denominados porque permitem ao segurado, em tese, planejar o melhor momento para o início da percepção –, podemos agora também verificar nos requisitos específicos do salário-família e do salário-maternidade uma circunstância em princípio não imprevista ou não indesejada que, tornada uma eventualidade previdenciária em razão de política familiar, conduz a concessão de uma prestação previdenciária.

Mas os demais benefícios previdenciários têm sua concessão condicionada a fatos que se colocam além do plano das escolhas dos segurados e referem-se sem dúvida a pressupostos de fato imprevisíveis que podem repercutir gravemente na vida dos segurados e seus dependentes e que são, por isso, indesejados. São os casos da incapacidade parcial e temporária (auxílio-doença), a incapacidade para o exercício de qualquer atividade profissional que não oferece ao segurado prognóstico de recuperação (aposentadoria por invalidez), a redução da capacidade para o trabalho habitual decorrente de seqüelas deixadas por acidente de qualquer natureza (auxílio-acidente), a morte (pensão por morte) e a reclusão (auxílio-reclusão) do segurado.

Em face dessa comum constatação, é possível, especialmente para os fins do presente artigo, operar-se uma classificação dos benefícios previdenciários de acordo com o grau de gravidade da contingência social protegida e da importância da cobertura previdenciária para a subsistência do segurado ou do dependente. Segundo a classificação ora apresentada, atribui-se uma espécie de prioridade previdenciária que se estabelece dos benefícios que, em princípio, não atendem ao apelo da imediata cessação da fonte de subsistência, caso típico da aposentadoria por tempo de contribuição, para aqueles mais sensíveis e que correspondem a eventos que podem ser considerados verdadeiros infortúnios, como, por exemplo, a aposentadoria por invalidez ou a pensão por morte. Tanto mais grave o evento que rende ensejo à concessão do benefício, mais premente se torna a atuação da previdência social, pois mais dramaticamente o segurado (e/ou seu dependente) encontra-se exposto a uma adversidade que tem potencialidade para imediatamente lhe subtrair as condições indispensáveis à digna subsistência.

É razoável então argumentar que o sistema previdenciário tem um corpo de benefícios sensíveis, porque se destinam a cobrir contingências sociais mais graves, sendo que sua imprevisibilidade somente faz acrescer sua gravidade. É interessante observar de que modo o sistema internaliza esse traço urgente de alguns benefícios. De fato, na fixação – ou dispensa – do período de carência, na sistemática de cálculo da renda mensal (especificação do coeficiente e aplicação ou não do fato previdenciário, por exemplo), o que está a operar é a idéia de que alguns benefícios podem ser postergados, enquanto outros, porque urgentes, assumem destacada importância e guardam a idéia de serem absolutamente impostergáveis, reclamando maior sensibilidade do sistema normativo no que toca às suas condições de acesso.(6)

A classificação ora adotada atenderia a imagem de três círculos concêntricos, nos quais o salário-maternidade, o salário-família e o auxílio-acidente ocupariam a faixa periférica; as prestações programáveis (aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria especial e aposentadoria por idade) - que não consubstanciam uma cobertura previdenciária pela ocorrência de um risco propriamente dito – se encontrariam na porção intermediária, ao passo que os benefícios sensíveis (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio-reclusão) seriam encontrados em posições centrais (figura 01).

De fato, não se pode comparar a natureza urgente dos benefícios sensíveis em relação àquela dos benefícios programáveis. Por isso aqueles ocupam a porção central de nossa imagem. Parece evidente, de outra parte, a preferência das aposentadorias espontâneas em relação aos benefícios de aperfeiçoamento do sistema, assim considerados os que não substituem o rendimento do trabalhador (salário-família e auxílio-acidente) e o salário-maternidade, devido por prazo certo como amparo à gestante ou política familiar.

[Figura 01 – Ordenação dos benefícios previdenciários segundo grau de gravidade da contingência social e de sua essencialidade para a subsistência digna do beneficiário]

Ainda é possível discernir uma ordem de preferência entre os benefícios compreendidos em um mesmo grupo.

Tendo isso como tarefa, admite-se que a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte, reconhecidamente as prestações previdenciárias que oferecem cobertura aos eventos mais graves, devem compartilhar o ponto central de nossos traçados. A porção mais externa do primeiro círculo abrangeria benefícios sensíveis que (também) correspondem a contingências sociais adversas e graves, mas que são, em princípio, temporárias: o auxílio-doença e o auxílio-reclusão.

De sua parte, os benefícios programáveis comportam uma ordem prioritária que coloca a aposentadoria por tempo de contribuição na parte mais externa do grupo, porque – ao contrário, por exemplo, da aposentadoria por idade – ela se mostra desvinculada de qualquer contingência desfavorável ao segurado. A porção intermediária corresponderia à aposentadoria especial, pois se é certo que ela não exige o cuidado devido à aposentadoria por idade (avançada), ao menos tende a superar a aposentadoria por tempo de contribuição, já que não é recomendável que o trabalhador que já exerceu atividade especial pelo período determinado em lei (15, 20 ou 25 anos de contribuição, conforme o grau de ofensa à saúde ou à integridade física), permaneça no exercício dessa atividade. Essa é a lógica que tornou inaplicável o fator previdenciário à aposentadoria especial e também o raciocínio que subjaz à proibição do retorno ao exercício da atividade especial, sob pena de cancelamento (suspensão, mais propriamente) do benefício. A porção mais interna desse grupo deve ser ocupada pela aposentadoria por idade, tendo em conta que, se de um lado a idade avançada não impõe ao segurado, da noite para o dia, dificuldade inarredável para obtenção dos meios de sua subsistência, cristaliza, de outro lado, uma etapa de vida do ser humano a respeito da qual se pode presumir que as dificuldades físicas, as limitações profissionais e a realidade do mercado de trabalho formal fecham ao idoso, pouco a pouco, as chances de desempenhar uma atividade profissional.

Embora não seja fundamental para o propósito do presente trabalho, pode-se dizer que o salário-maternidade – que se fundamenta na interrupção temporária da carreira laboral da segurada em razão do parto ou da adoção –, tanto quanto os benefícios que não substituem o rendimento do trabalhador ou seu salário-de-contribuição (auxílio-acidente e salário-família), levando-se em conta os critérios de grau de gravidade da contingência social e essencialidade do benefício para a subsistência digna do segurado, ocupam posição periférica entre os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, destinando-se ao aperfeiçoamento do sistema de segurança social. Uma outra via para se chegar à conclusão quanto à posição externa desses benefícios seria aquela que percebe o salário-maternidade e o salário-família como prestações que traduzem políticas familiares, ao passo que o auxílio-acidente consiste em uma indenização – que pode ser paga em valor inferior a um salário-mínimo – pela redução da capacidade para o trabalho habitual após a consolidação das seqüelas decorrentes de acidente de qualquer natureza.

2 Princípio da adequada proteção social previdenciária

Quando se refere a uma proteção adequada no contexto da resposta previdenciária, o que se tem em mente, inicialmente, é que a proteção previdenciária deve atuar por meio de um mecanismo apropriado, isto é, um benefício especificamente ligado à contingência social. Fala-se aqui da pertinência específica da prestação à contingência.

Mas a especificidade, por si só, está ainda distante de caracterizar a adequação ou justiça da provisão previdenciária. Exige-se mais que a proteção previdenciária seja suficiente, de maneira a alcançar sua finalidade, qual seja, a de prover meios sem os quais o segurado não teria sua existência digna assegurada. A proteção previdenciária deve ser, assim, específica e suficiente.

Por fim, mas também essencialmente, a cobertura previdenciária que se pretende adequada deve ser imediata, no sentido de que deve ser outorgada de modo tão célere quanto possível, para o efeito de se minimizar o sofrimento do segurado ou do dependente que, necessitando e fazendo jus a uma prestação previdenciária, encontra-se destituído de recursos materiais para prover sua subsistência de modo digno (um estado de carência ou de privações irreversíveis) e em uma – de per se – danosa situação de incerteza jurídica pela demora na resposta estatal (administrativa ou judicial).(7)

Mas o objetivo principal deste artigo exige maior reflexão sobre duas dimensões da adequação previdenciária: a adequação quanto à especificidade e a adequação quanto à suficiência.(8)

Pela perspectiva da especificidade, se pretende realçar a necessidade de que a proteção social previdenciária seja primeiramente adequada no sentido de que faça operar o mecanismo legal específico de cobertura para o evento que reclama a atuação da previdência social. Cada contingência é lida como requisito específico a uma determinada prestação previdenciária. A título exemplificativo, será inadequada a cobertura previdenciária se o segurado fizer jus a uma aposentadoria por invalidez e for titular de um auxílio-doença. E da mesma forma será inadequada se estiver parcialmente incapacitado e se encontrar em gozo de aposentadoria por invalidez. Será ainda mais inadequada a proteção quando o segurado se encontrar apto para o trabalho e estiver em gozo de benefício por incapacidade; será gravemente inadequada a proteção previdenciária que nega cobertura ao segurado que cumpre os requisitos legais para sua concessão, encontrando-se incapacitado e, por isso, destituído de condições de prover seu sustento.

Pela perspectiva da suficiência, a ênfase é posta na adequação do nível de proteção, e não na espécie do benefício (ou na concessão do benefício adequado). O nível do benefício, isto é, a sua renda mensal, deve ser suficiente, de acordo com os limites das prestações do RGPS, para que a previdência social cumpra a finalidade de realmente providenciar os meios indispensáveis que assegurem a manutenção digna de seus beneficiários quando da ocorrência das contingências sociais.(9) Não será suficiente a proteção previdenciária, por exemplo, quando o cálculo da renda mensal inicial for operado de maneira a iludir a atualização monetária das contribuições do segurado ou quando não considerar alguns períodos de contribuição. Tampouco será suficiente quando o aposentado por invalidez que necessita de assistência permanente de outra pessoa não receber o acréscimo de 25%. No que consiste no propósito mais imediato do presente trabalho, também poderá ser insuficiente a proteção previdenciária realizada por meio de uma aposentadoria espontânea quando o segurado aposentado se encontrar incapacitado para o exercício de atividade que concorria (ou pudesse concorrer) para a garantia de sua subsistência.

Se a prestação não for prevista especificamente para a cobertura do evento social protegido ou se não for suficiente a atender as necessidades do beneficiário, de maneira a neutralizar ou, ao menos, minimizar os danos ou o prejuízo material que possa ter sofrido, a previdência social terá falhado em seu propósito primeiro.

Na Constituição da República é possível verificar a atuação do princípio da adequada proteção previdenciária (nas dimensões da especificidade e suficiência) na base de algumas de suas normas.

De um lado, uma adequada proteção previdenciária pode ser observada na previsão constitucional de eventos que reclamam cobertura previdenciária diferenciada, na determinação dos requisitos para obtenção das aposentadorias por idade e por tempo de contribuição e na ressalva à adoção de critérios diferenciados para concessão de aposentadoria especial. De outro lado, um conjunto de disposições constitucionais é tomado para assegurar a adequação por suficiência de cobertura, como nos casos da garantia do valor mínimo para os benefícios que substituem o rendimento do trabalhador ou o salário-de-contribuição, da correção monetária de todos os salários-de-contribuição considerados no cálculo do benefício e da incidência de contribuições previdenciárias sobre os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios. Essas duas últimas regras, averbe-se, impedem a fixação de uma renda mensal tão baixa que transforme os benefícios em prestações básicas, desvinculadas da remuneração dos segurados.

Interessa observar que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de reconhecer na garantia de valor mínimo de um benefício previdenciário a finalidade de assegurar a satisfação das necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, ex vi, do inciso IV do art. 7º da Constituição da República. Em outras palavras, a garantia do salário mínimo ao trabalhador procura evitar o aviltamento de sua condição socioeconômica (RE-AgR 215527/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 27.09.2002). Com esse pensamento está a se reconhecer o direito a uma proteção suficiente – ou proteção adequada por suficiência.

No plano infraconstitucional, as normas que disciplinam (i) as eventualidades motivadoras da atuação previdenciária, (ii) as espécies das prestações, (iii) as condições de acesso, (iv) as possibilidades de acumulação de benefícios, (v) a concorrência de cobertura entre benefícios e serviços, (vi) a classe de beneficiários que faz jus a determinadas prestações e (vii) a cessação dos benefícios emprestam uma forma mais ou menos precisa ao delineamento constitucional que é mais aberto (CF/88, art. 201), indicando os termos em que se tem uma adequada proteção previdenciária por especificidade.

Já a adequação por suficiência é verificada especialmente nas regras da legislação ordinária que determinam a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários, que têm sua legitimidade reconhecida na medida em que estas respeitem os diversos comandos constitucionais dos quais se podem inferir diretrizes à tarefa legislativa de quantificação dos benefícios previdenciários.

Pois bem. Se esse arcabouço normativo revela cuidado com a justa ou adequada proteção previdenciária “de partida”, isto é, a proteção adequada que se dá em um momento inicial, mediante a concessão de uma prestação específica de determinado conteúdo patrimonial, outras normas podem ser identificadas como instrumentos para se assegurar a adequação previdenciária em momento posterior à concessão do benefício, e isso parece óbvio quando se recorda que o período de manutenção da cobertura previdenciária está intimamente ligado com o princípio da adequação, quer na dimensão da especificidade, quer na dimensão da suficiência.

Deveras, a proteção previdenciária não é adequada uma vez por todas. Em outras palavras, a concessão de um benefício previdenciário não pode significar o fim do direito fundamental a uma justa cobertura previdenciária. Antes, é uma etapa que se destina a realizar esse objetivo. Uma vez que se concede uma prestação voluntária em determinada medida econômica, pressupondo-se a possibilidade do segurado de se valer de sua capacidade produtiva, não é razoável que se dê continuidade dessa relação nos termos inicialmente propostos quando a cobertura previdenciária for chamada a responder integralmente pela satisfação das necessidades primeiras do segurado, em razão da superveniência de uma contingência social mais grave.

Sem dúvida que o princípio da adequação (por suficiência) se encontra no alicerce da regra inserta no art. 58 do ADCT, que determinou a revisão dos benefícios mantidos pela previdência social até a data da promulgação da Constituição de 1988, a fim de que fosse restabelecido o poder aquisitivo, como também é inegável que esse mesmo princípio justifica o reajustamento periódico dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei. Os efeitos do princípio constitucional da adequação se irradiam necessariamente para momento posterior à concessão do benefício – sob pena de se comprometer o ideal de prover subsistência digna – e em um certo sentido pode ser compreendido na garantia de irredutibilidade (CF/88, art. 194, IV), este “direito adquirido qualificado”, na expressão de Sepúlveda Pertence (RE 298.694, Plenário, DJ 23.04.2004).

Igualmente o postulado da adequação da cobertura previdenciária (por especificidade) não deve ficar adstrito ao momento inicial de concessão de um benefício, como se neste momento se retirasse toda e qualquer obrigação da administração previdenciária sobre a sorte do segurado ou, da mesma forma, qualquer dever do segurado em relação à seguridade social. Uma cobertura previdenciária apenas “de partida” adequada não satisfaz a exigência de uma proteção justa ou adequada (imediata, específica e suficiente). A idéia de proteção justa, aliás, traz o pensamento de que a previdência social deve atuar se for verificada a necessidade, isto é, diante da ocorrência e permanência de uma contingência social. Alterando-se os fatos, a cobertura previdenciária deve ser adaptada (modulada), podendo cessar ou, ao contrário, ser intensificada.

É exatamente esse raciocínio que se encontra subjacente à lógica da concessão e manutenção dos benefícios por incapacidade. A concessão de um auxílio-doença é um ponto de partida para atuação de novos componentes na relação jurídica entre o segurado e o RGPS. Se antes imperava o dever do primeiro em contribuir e do último em oferecer cobertura previdenciária quando da ocorrência das contingências sociais, com a concessão do auxílio-doença surgem novos deveres ao segurado, como a sujeição a exames médicos periódicos, processo de reabilitação profissional e a tratamento médico gratuito, com exceção dos procedimentos enumerados por lei. De outra parte, novos deveres são impostos ao órgão gestor do RGPS, como o pagamento do benefício, realização de perícias periódicas para a verificação da persistência da incapacidade ou para estimativa de alta, encaminhamento do segurado à reabilitação profissional, concessão de aposentadoria por invalidez no caso de se verificar que a incapacidade é total e permanente, concessão de auxílio-acidente nas hipóteses em que devido e mesmo a cessação da prestação por incapacidade, na hipótese de se constatar a recuperação da capacidade laboral. Quanto mais intensamente necessite o segurado da cobertura previdenciária, maior deverá ser o grau de proteção previdenciária, por meio de mecanismos específicos e em valores suficientes. Assim, também na hipótese de cessação da necessidade deixa de existir razão para a persistência da atuação protetora, caso em que se justificará, por exemplo, a cessação de uma aposentadoria por invalidez ou de um auxílio-doença.(10)

No âmbito da seguridade social, há norma específica que tende a realizar a conformação da prestação previdenciária à contingência e ao nível de necessidade do servidor público federal aposentado pelo Regime Próprio: “o servidor aposentado com provento proporcional ao tempo de serviço, se acometido de qualquer das moléstias especificadas no art. 186, § 1º, passará a perceber provento integral” (Lei 8.112/90, art. 190). Uma vez que a aposentadoria por invalidez é devida com proventos integrais apenas quando decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável (Lei 8.112/90, art. 186, I), compreende-se que a conversão (para adequação) da aposentadoria com provento proporcional ao tempo de serviço em aposentadoria com provento integral somente tem sentido na hipótese referida pelo dispositivo de lei acima transcrito.

No universo do RGPS, uma específica irradiação legislativa do princípio da adequação previdenciária foi revogada pela Lei 9.032/95,(11) que revogou os artigos 122 e 123 da Lei 8.213/91, na sua redação original, os quais traziam hipóteses de transformação de benefícios que vinham ao encontro do princípio da adequada proteção previdenciária. Confira-se:

“Art. 122 – Ao segurado em gozo de aposentadoria especial, por idade ou por tempo de contribuição, que voltar a exercer atividade abrangida pelo Regime Geral da Previdência Social, será facultado, em caso de acidente do trabalho que acarrete a invalidez, optar pela transformação da aposentadoria comum em aposentadoria acidentária.

Parágrafo único – No caso de morte, será concedida a pensão acidentária quando mais vantajosa.” (Revogado pela Lei 9.032/95)

“Art. 123 – O aposentado pelo Regime Geral da Previdência Social que, tendo ou não retornado à atividade, apresentar doença profissional ou do trabalho relacionada com as condições em que antes exercia a sua atividade terá direito à transformação da sua aposentadoria em aposentadoria por invalidez acidentária, bem como ao pecúlio, desde que atenda as condições desses benefícios.” (Revogado pela Lei 9.032/95)

De todo modo, a reforma legislativa em questão deve ser compreendida no contexto dos demais ajustes que emprestou à legislação previdenciária, pois, a partir do momento em que a mesma Lei 9.032/95 determinou que os benefícios acidentários se sujeitariam aos critérios de cálculo da renda mensal dos benefícios previdenciários, a transformação da aposentadoria comum em aposentadoria acidentária não mais se afiguraria relevante.(12)

Mas atualmente se pode perceber um grande descompasso entre a sistemática de cálculo entre as aposentadorias espontâneas – destacadamente as aposentadorias por idade e por tempo de contribuição – e as prestações por incapacidade. De fato, a transformação de uma aposentadoria por tempo de contribuição em aposentadoria por invalidez deverá, via de regra, proporcionar uma cobertura previdenciária de mais elevado nível, especialmente nos casos em que houve aplicação do fator previdenciário com conseqüências negativas. Nas hipóteses em que a aposentadoria por idade é concedida no valor inferior a 100% do salário-de-benefício, também haverá maximização (para adequação) da proteção previdenciária com a transformação deste benefício em aposentadoria por invalidez e a sempre possibilidade de concessão do acréscimo de 25% devido no caso de incapacidade severa.

Com essas considerações se pode notar que o legislador buscava atender à necessidade de se oferecer uma cobertura previdenciária justa mesmo após o momento da concessão de uma aposentadoria por idade, tempo de contribuição ou especial, arrefecendo em seu ânimo apenas na medida em que o grau de proteção previdenciária parecia caminhar para uma equivalência. Essa equivalência, na realidade, não ocorre e isso tornou-se ostensivo com a introdução obrigatória do fator previdenciário na mecânica de cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição (integral ou proporcional).

Aqui é preciso destacar que o princípio da adequada proteção social é informado pelo princípio da prevalência do fim sobre o objeto. Como é de se concordar, as prestações previdenciárias estão impregnadas de uma idéia essencialmente finalista – provisão de meios suficientes para a manutenção digna do beneficiário – que preside necessariamente todo o desenvolvimento da relação jurídica previdenciária de proteção. O que se persegue com o benefício previdenciário é satisfazer da melhor maneira possível o interesse social de que o segurado ou o dependente da previdência social seja efetivamente resgatado de uma contingência que lhe ameaça a manutenção decente. Trata-se, antes de tudo, de conceder o benefício que demanda o interesse geral, nas condições que exijam a cada momento as necessidades individuais que a prestação previdenciária está chamada a cobrir. Se para conseguir esses fins, implícitos em uma prestação da previdência social, é necessário adaptá-la às novas necessidades, essa adaptação é obrigatória. A inalterabilidade do fim impõe ou pode impor a alteração parcial ou, melhor ainda, a adaptação do objeto.

Por isso é que se fala que o direito à proteção social justa (imediata, específica e suficiente), um dos fundamentos da seguridade social, não se extingue com a concessão de um benefício previdenciário e não se limita a assegurar uma prestação da segurança social apenas “de partida” adequada.

3 Direito a uma adequada proteção social e o segurado aposentado

Se a modulação da cobertura previdenciária após a concessão do benefício é bem percebida no que alude ao titular de uma prestação por incapacidade, o mesmo não se pode dizer a respeito do segurado titular de uma aposentadoria espontânea. Nesse último caso, há uma situação altamente peculiar.

De fato, após a concessão de uma aposentadoria por idade, tempo de contribuição ou especial, a previdência social entrega o segurado ao acaso da própria sorte, fazendo extinguir o direito à proteção previdenciária adequada, concedendo um benefício que se traduz em uma cobertura previdenciária insensível a qualquer fato superveniente que reclame grau mais elevado de proteção social.

O que se pretende sustentar é que por força desse direito fundamental a uma previdência social adequada, faz-se devida, mesmo após a concessão desses benefícios programáveis, a adequação da cobertura previdenciária no que toca ao mecanismo específico de proteção e ao nível da renda mensal. Para que seja legítima, a cobertura previdenciária deve passar a cada tempo pelo teste da adequação.

Se, após a concessão de uma determinada aposentadoria espontânea, sobrevém ao segurado uma contingência social adversa que, em tese, faz desencadear a proteção previdenciária por meio de um benefício reputado prioritário em relação ao concedido originariamente, ao segurado assiste o direito à adequação de sua proteção previdenciária, mediante a transformação do benefício de que era titular para o benefício previsto para a cobertura da contingência social de maior gravidade.

A transformação se dará mediante requerimento formal do segurado, não devendo o ato de requerimento ser confundido com renúncia ao benefício originário.(13) Assim como a cessação de uma aposentadoria por invalidez em face do postulado da proteção adequada não corresponde ao que se convencionou chamar de desaposentação (a melhoria da pensão do direito português), também aqui não se trata disso, pois não se desfaz nada, não se reaproveita tempo de contribuição e não se pretende nova concessão de aposentadoria espontânea em qualquer regime previdenciário.

A título ilustrativo, pode-se afirmar que é devida a transformação da aposentadoria por tempo de contribuição ou aposentadoria por idade em auxílio-doença ou em aposentadoria por invalidez quando o segurado aposentado for cercado, em tempo posterior à concessão de sua aposentadoria, por contingência fortuita, acidental, casual e que tem aptidão para lhe minar a capacidade (parcial ou total) para o exercício de atividade profissional. Corolário da proteção social justa ou adequada, será igualmente devido o acréscimo à aposentadoria por invalidez se o então titular de aposentadoria espontânea se encontrar inválido e depender de assistência permanente de outra pessoa.(14)

De acordo com a classificação levada a efeito na primeira seção deste artigo, impõe-se a adequação da proteção social, por força do direito a uma proteção previdenciária justa, adequada e suficiente. Tanto mais grave a contingência em que se encontre o segurado aposentado, maior é o grau de proteção previdenciária a que faz jus.

É evidente que somente deverá ser realizada a transformação do benefício quando a renda mensal da nova prestação for mais favorável ao segurado que se encontra nessa contingência social adversa. A necessidade de adequação do mecanismo de cobertura não justifica, por si só, a transformação do benefício.

O direito a uma segurança social adequada e justa não se extingue com a concessão de uma aposentadoria, e é nestes termos que emerge o direito à transformação do benefício em um outro que melhor propicie a cobertura previdenciária. E, em sobrevindo a recuperação da capacidade para o trabalho, cessa a prestação por incapacidade, dando lugar ao restabelecimento ex nunc da aposentadoria originariamente concedida.

O postulado da proteção previdenciária adequada e suficiente pode, assim, conduzir os titulares de benefícios que ocupam posição nos círculos externos de nossa imagem classificatória à titularidade das prestações urgentes que se encontram na posição central.(15)

É preciso destacar que o princípio da adequada e suficiente proteção previdenciária ao segurado aposentado tem atuação expressamente assegurada pela própria Lei 8.213/91, quando dispõe que mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições, “sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício” (Art. 15, I). Se o segurado aposentado mantém a qualidade de segurado e cumpriu período de carência sabidamente superior ao exigido para a concessão de um benefício por incapacidade, na hipótese de superveniência dos requisitos específicos às prestações por incapacidade ele fará jus à adequação previdenciária, desde que realmente lhe seja mais favorável.

A concessão de uma aposentadoria espontânea certamente não deve importar a caducidade dos direitos inerentes à qualidade de segurado, previsão de tratamento dispensada ao indivíduo que perde essa condição (Lei 8.213/91, art. 102). Ora, o elementar direito inerente à qualidade de segurado é justamente o abrigo contra eventos casuais que têm potencialidade para subverter a normalidade com que se conduz a vida. Essas contingências, em que pesem individuais, jamais puderam ser prevenidas ou remediadas pelo indivíduo, salvo se compõe uma minoria privilegiada. Eis a razão de ser dos seguros sociais ainda no século XIX, muito antes da revolução beveridgiana com seu componente mais forte de solidariedade.

Como já se teve oportunidade de expressar acima, as prestações por incapacidade, porque urgentes, assumem destacada importância e guardam a idéia de serem impostergáveis, reclamando maior sensibilidade do sistema normativo no que toca às condições de acesso. Se a prioridade da previdência social é a garantia de meios suficientes de subsistência digna especialmente em face de eventos que diminuem ou eliminam a capacidade para o trabalho, simplesmente não se logra perceber por que razão ética ou jurídica a administração previdenciária não oferece uma cobertura previdenciária adequada e se restringe a outorgar ao segurado uma prestação inalterável, fazendo valer, a partir dali, a máxima da suae quisque fortuna faber est.(16)

Note-se que nada foi dito sobre a necessidade do segurado aposentado continuar exercendo atividade abrangida pelo RGPS e contribuir para o sistema de seguridade social. Certamente que, se não houver o recolhimento de contribuições previdenciárias após a concessão da aposentadoria, será considerado salário-de-contribuição para o cálculo da renda mensal do novo benefício o salário-de-benefício do antigo benefício, em aplicação analógica do art. 29, § 5º, da Lei 8.213/91, pois é a regra componente do mesmo sistema previdenciário que disciplina como devem ser aferidos os salários-de-contribuição quando o segurado em gozo de benefício não verteu contribuições previdenciárias em competências compreendidas no período básico de cálculo.

Mas, em existindo contribuições previdenciárias no período básico de cálculo do novo benefício e se elas forem superiores ao salário-de-benefício da antiga aposentadoria, deverão ser consideradas no cálculo da nova prestação. Se assim não for, teremos de admitir que o sistema de seguridade social, embora imerso em uma ordem social que tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, e nada obstante seja um importante componente para a reafirmação dos fundamentos republicanos como a igualdade, o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, consiste em um modelo de proteção tão imperfeito que negue o elementar: a cobertura previdenciária proposta constitucionalmente, em nível suficiente a atender às necessidades elementares do segurado, que têm de ser medidas, como referido alhures, pela gravidade da contingência social em que se vê envolvido o segurado e, em se tratando de benefícios por incapacidade, pela média de suas contribuições (salários-de-contribuição), porque elas são indicativas do consumo passível de segurança social (necessidades econômicas compreendidas no limite máximo do salário-de-contribuição).

Esses seriam argumentos suficientes para se interpretar o art. 18, § 2º, da Lei 8.213/91 no sentido de que nenhuma prestação da previdência social pode ser acumulada pelo segurado aposentado em decorrência do exercício de atividade após a concessão de aposentadoria, o que não estaria a impedir, de qualquer modo, sejam consideradas as contribuições previdenciárias para efeito de cálculo da renda mensal inicial da nova prestação.

Mas também não se pode esquecer uma situação de desigualdade em desfavor do segurado aposentado do RGPS em relação ao aposentado do Regime Próprio. Este aposentado, em que pese já titular de um benefício vitalício, terá plena contrapartida previdenciária do RGPS em virtude do exercício de atividade profissional por este abrangida. Poderá acumular aposentadorias e se encontra, a todo tempo, coberto pelo plano de benefícios da previdência social. Mas o aposentado do RGPS, entendido o dispositivo legal acima referido em sua forma mais restritiva, não terá direito a qualquer repercussão de seu trabalho e de suas contribuições na perspectiva de benefícios. Pode-se objetar afirmando que o servidor público inativo se encontra obrigado ao recolhimento de contribuições previdenciárias que incidem sobre os seus proventos, na forma da EC 41/03 e da ADI 3105. Mas assim não se dá para os servidores públicos titulares de proventos cuja renda mensal não supere o limite máximo do valor dos benefícios do RGPS, revelando-se antiisonômica a situação de segurados aposentados que se encontram em idêntica posição jurídica perante a previdência social.

É curioso, para dizer pouco, sustentar que, após a concessão de aposentadoria espontânea, a previdência social se veja desobrigada de modular a cobertura previdenciária em favor do segurado – que fica, assim, irremediavelmente exposto a uma situação de destituição que pode comprometer sua subsistência digna –, ao passo que são exigidas as contribuições sociais sobre o registro da remuneração obtida pelo segurado aposentado. Haveria uma iníqua parceria de conveniência: a exigência de contribuições incidentes sobre a remuneração obtida pelo exercício de atividade profissional sem a mínima atenção aos riscos de subsistência que ainda ameaçam o segurado aposentado, situação esta que pode advir do exercício dessa mesma atividade profissional.

Essa é uma posição que simplesmente não se sustenta diante de nosso senso de justiça, pois desperta nossa indignação moral. Ela malfere a solidariedade – como ela realmente deve ser compreendida –, vulnera a boa-fé e moralidade que se exige constitucionalmente da administração pública, despreza o princípio geral do direito de não-enriquecimento sem causa, transforma a contribuição do segurado em imposto e, de quebra, transtorna o direito de igualdade e o dever de consideração social pelo trabalho.

Como se isso não fosse suficiente, uma interpretação que negue o direito ao benefício por incapacidade ao segurado aposentado estará frustrando a norma constitucional que dispõe que a previdência social atenderá a cobertura dos eventos de doença e invalidez (CF/88, art. 201, I), uma vez cumpridos os pressupostos estabelecidos pela Lei de Benefícios da Previdência Social (qualidade de segurado, carência e incapacidade).

Considerações finais

A idéia central do princípio da justa ou adequada proteção social é a de que a atuação previdenciária deve, a todo tempo, corresponder especificamente à contingência social que cerca o beneficiário e expressar-se em um montante que se entenda suficiente a satisfazer suas necessidades para uma existência digna. Essa necessária elasticidade da cobertura previdenciária busca evitar situações de insuficiência de proteção tanto quanto de sobreproteção.

Esse é o pressuposto fundamental de um sistema de segurança social realmente comprometido com os valores que se encontram na base de sua constituição, pois hospeda um valor que lhe confere legitimidade e empresta, ademais, contornos indispensáveis para uma segurança social que se repute justa e não se resigne ao domínio da subcidadania.

Quando se toma o princípio da adequada proteção previdenciária em suas conseqüências, percebe-se que estamos às voltas com o mito de que a concessão de aposentadoria espontânea coloca termo final ao compromisso da previdência social pelo futuro do segurado aposentado. Não é e não pode ser assim, pois a previdência social é organizada “enquanto genuína atividade estatal de obrigatório desempenho”, constituindo uma “modalidade de política pública de caráter permanente, por ser uma das justificativas lógicas da própria existência do Estado brasileiro (visto que umbilicalmente ligada à concretização dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho)”. (excerto de voto do Ministro do STF Carlos Britto, no RE 415454)

Parece que temos mais facilidade em pensar as coisas a partir de uma lógica de tudo ou nada e isso inspira o pensamento de que a concessão de uma aposentadoria representa o fim de alguma coisa (o que, de sua vez, representa menos problemas).

De fato, quando se exige o discernimento da graduação de um fenômeno (e não de sua existência), quando se tem como tarefa discernir noções como suficiência ou insuficiência, adequação ou inadequação, quando – mais especificamente – a correção de uma relação previdenciária ao longo do tempo não pode ser aferida quanto à sua exatidão, há uma inclinação ao pensamento de que, se a proteção não é a ideal, nem por isso deixa de existir exatamente como a lei a disciplinou. Ademais, costumeiramente se diz que uma é a condição ideal, outra a possível. Mas se a finalidade de uma prestação previdenciária é realizar a segurança econômica de seu beneficiário numa perspectiva alimentar, especialmente diante de circunstâncias adversas que não deixam às pessoas outra opção que não a de se ajustar a seus efeitos, ela obrigatoriamente deve ser calculada em função dessa finalidade, preservando-se sua significação aquisitiva e seu conseqüente poder de satisfação das necessidades mais elementares à sobrevivência. Uma questão de primado da realidade sobre a aparência (substance over form).

Quando a ocorrência de um determinado acontecimento é inevitável e agrava de modo efetivo as necessidades reais do indivíduo, causando-lhe danos imprevistos ou prejuízos materiais não calculados, sua relação com a previdência social deve ser percebida de modo muito mais sensível. O que se tem é a ocorrência da nuclear eventualidade previdenciária, qual seja, a existência de um estado de necessidade e de ameaça à subsistência digna do indivíduo; uma contingência a que todos estamos expostos e em face da qual a garantia de um padrão de vida adequado se faz ainda mais necessária, consubstanciando, por essa razão, inescapável exigência de justiça.

Notas:

1. Excerto do voto do Ministro do STF Eros Roberto Grau proferido na Questão de Ordem em Recurso Extraordinário 353.657-5-PR, referindo-se ao caso em que o STF julgou a revisão da renda mensal das pensões por morte do Regime Geral da Previdência Social em desfavor das titulares dessa prestação previdenciária.

2. A referência é do Ministro do STF Marco Aurélio, quando de seu voto no julgamento da ADIN 1103-1/DF.

3. Cabe o destaque: enquanto a Constituição da República determina, em seu artigo 195, que a Seguridade Social será financiada mediante recursos provenientes do orçamento da União, além das contribuições sociais cuja instituição autoriza, o que se tem é o inverso, isto é, a participação de recursos do orçamento da seguridade social para atendimento de conveniências do orçamento fiscal.

4. Ainda que a referência seja a uma classificação das prestações previdenciárias do Regime Geral da Previdência Social - RGPS, cabe a nota de que apenas os benefícios foram categorizados. Os serviços (reabilitação profissional e serviço social) deixaram de ser ordenados não apenas porque, em tese, podem ser oferecidos a qualquer tempo aos segurados e seus dependentes, mas especialmente porque lamentavelmente são prestações desprezadas. A reabilitação profissional é negligenciada pela entidade previdenciária e, de modo geral, malquista pelos segurados. O serviço social, em que pese sua relevância, parece não existir no plano da realidade. São bons exemplos, na verdade, de como é banalizada a violação do princípio da adequada proteção social previdenciária no RGPS. Ao longo do texto, sempre se referindo aos benefícios previdenciários, são utilizados indistintamente os termos “prestações previdenciárias” e “benefícios previdenciários”.

5. Vide nosso Benefícios programáveis do Regime Geral da Previdência Social – Aposentadoria por tempo de contribuição e aposentadoria por idade. In: Curso de Especialização em Direito Previdenciário. v. 2. Curitiba: Juruá, 2006. A rigor a aposentadoria por idade não será espontânea se requerida pela empresa, na forma autorizada pelo art. 51 da Lei 8.213/91. Mas a hipótese é tão excepcional (um segurado trabalhando formalmente no RGPS, na condição de empregado, aos 70 anos de idade, se do sexo masculino, e aos 65 anos de idade, se do sexo feminino) que nos permite tipificar a aposentadoria por idade no RGPS como um benefício voluntário ou espontâneo.

6. Por essa razão os benefícios urgentes ou sensíveis, diferentemente dos benefícios programáveis, exigem reduzido período de carência (aposentadoria por invalidez e auxílio-doença) ou mesmo o dispensam (pensão por morte, auxílio-reclusão, auxílio-acidente e, quando decorrente de acidente ou doenças graves de tratamento particularizado, aposentadoria por invalidez e auxílio-acidente). De outra parte, no cálculo da renda mensal inicial desses benefícios, o coeficiente específico não varia de acordo com o tempo de contribuição e tampouco é aplicável o fator previdenciário, no que se distinguem destacadamente da aposentadoria por tempo de contribuição e da aposentadoria por idade.

7. Na visão de Alfredo J. Ruprecht, discriminam-se os princípios da imediatidade e da eficiência. A imediatidade levaria em conta o objetivo da seguridade: remediar ou ajudar a superar situações que ao serem produzidas por contingências sociais criam problemas ao indivíduo. Para que o socorro seja verdadeiramente efetivo é preciso que a ajuda se realize em tempo oportuno, pois do contrário perderia todo seu valor. Se a resposta não for imediata, a missão da Seguridade é cumprida de forma deficiente. Já a eficiência diz com o grau do socorro. Não basta que a ajuda chegue imediatamente, senão que cumpra o fim para o qual foi criada, de maneira que o indivíduo possa fazer frente à referida emergência. É necessário, em princípio, que se assegure a capacidade de consumo do indivíduo a ponto de eliminar ou mitigar as consequências da contingência que sofre (RUPRECHT, Alfredo J. Derecho de la seguridad social. Buenos Aires: Zavalia, 1995. p. 81). De nossa parte, o princípio da adequação abrange as noções de imediatidade e eficiência e compreende também as exigências de especificidade da cobertura previdenciária.

8. De outra parte, sem embargo de sua relevância para uma adequada proteção previdenciária, tanto mais quando se tratar de benefícios destinados a substituir imediatamente a fonte de recursos que mantinha a subsistência do segurado ou dependente, não se justificaria um aprofundamento da noção de imediatidade. É mesmo indiscutível que a previdência social deve operar eficientemente, de maneira a minimizar, tanto quanto possível, os efeitos negativos da contingência. Afinal, esses efeitos tendem a progredir dramaticamente com o correr do tempo e com a persistência da indefinição da situação previdenciária do segurado. Sem o socorro oportuno, a almejada segurança econômica cederia espaço à necessidade persistente, ao passo que a segurança psicológica que se busca daria lugar a uma indesejada instabilidade.

9. A existência do limite máximo do valor dos benefícios atende ao postulado da razoabilidade, uma vez que não seria adequado que um sistema de previdência social, de natureza pública e obrigatória, assegurasse prestações de valor ilimitado. Da mesma forma, o valor mínimo dos benefícios que substituem o salário-de-contribuição tem como referência uma expressão mínima que se tem por suficiente a fazer frente às necessidades primárias do beneficiário.

10. Mas não pode nos escapar o comentário de que a administração previdenciária assegura também que “a aposentadoria por idade poderá ser decorrente da transformação de aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, desde que requerida pelo segurado, observado o cumprimento da carência exigida na data de início do benefício a ser transformado”. (Decreto 3.048/99, art. 55)

11. Este diploma legal, anote-se – novamente –, atribuiu ao aposentado que permanece ou volta a exercer atividade abrangida pelo RGPS a condição de segurado obrigatório contribuinte da previdência social e, de outro lado, limitou a contrapartida previdenciária à concessão de salário-família, reabilitação profissional e auxílio-acidente, quando empregado (sendo que com a edição da MP 1.523/97 foi também excluído o direito ao auxílio-acidente).

12. É de se observar que antes da Lei 9.032/95 o coeficiente de cálculo do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez era informado também pelo tempo de contribuição do segurado, o que tornava menos atrativa a transformação das aposentadorias espontâneas em prestações por incapacidade. Também merece destaque o fato de que o princípio que informava os dispositivos legais acima transcritos já operava na anterior legislação previdenciária (Decreto 83.080/79, artigos 27, 228 e 263; Decreto 89.312/84, art. 100). Confira-se a redação do artigo 100 do Decreto 89.312/84, verbis: “Art. 100. O aposentado pela previdência social urbana que volta a exercer atividade por ela abrangida tem direito, em caso de acidente do trabalho, às prestações dos artigos 163 a 172, salvo o auxílio-doença, e pode optar, na hipótese de invalidez, pela transformação da sua aposentadoria previdenciária em acidentária, devendo também a pensão ser a acidentária, se mais vantajosa.”

13. Escapa às pretensões deste trabalho a questão referente à real possibilidade de se formalizar o requerimento administrativamente, tendo em conta a ausência de previsão legislativa. É evidente que o INSS deve protocolar o requerimento administrativo ainda que repute deva o pedido ser indeferido de plano. A omissão ilegal desafiará remédio jurídico próprio.

14. O auxílio-doença é devido no caso de incapacidade do segurado para o seu trabalho ou para sua atividade habitual e será devido nesse caso, se mais favorável, ainda que o segurado aposentado não tenha exercido qualquer atividade remunerada após o momento de concessão de sua aposentadoria, da mesma forma, aliás, que o benefício é concedido ao segurado facultativo. Trata-se, na verdade, da perda da opção em retornar, por ato de vontade, ao exercício de uma atividade remunerada abrangida pelo RGPS que pudesse elevar o rendimento do segurado aposentado.

15. Vide Figura 01 supra.

16. Certamente a regra contida no art. 181-B do Decreto 3.048/99 não apresenta fundamento de validade ao expressar que “as aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis”, pois inova o ordenamento jurídico e restringe desproporcionalmente o direito fundamental à previdência social adequada.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , fev. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .