Pensão previdenciária postulada por companheira e sentença declaratória de união estável

Autor: Rômulo Pizzolatti
Desembargador Federal do TRF da 4ª Região,
Doutor em Direito pela UFSC

Publicado na Edição 22 - 28.02.2008

Têm-se visto, com crescente freqüência, autonomeadas companheiras de segurados da Previdência Social ajuizarem ação de concessão de pensão por morte, instruindo a petição inicial com sentença declaratória de união estável proferida pelo juízo de família contra o espólio do falecido companheiro, sem indicação de provas.

Há julgados que, em caso assim, dão como fato certo a união estável, dispensada conseqüentemente a produção de provas, a pretexto de que o efeito declaratório da sentença transitada em julgado, proferida pelo juízo competente - o juízo de família (Lei nº 9.278, de 1996, art. 9º) -, não pode ser questionado pelo INSS. Essa fundamentação, não se nega, tem a chancela da doutrina processual, desde que a questão seja considerada exclusivamente sob o ponto de vista da coisa julgada e dos efeitos da sentença. Como terceiro indiferente ao processo entre a autonomeada companheira e o espólio do falecido companheiro, o INSS ficaria obrigado a considerar, em suas relações jurídicas com aquela, o fato de haver sido declarada judicialmente, por sentença transitada em julgado, a união estável (vide, a propósito dos efeitos da sentença em relação a terceiros: BAPTISTA, Ovídio A. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sergio A. Fabris Editor, 1987, v. I, p. 433-436).

O problema dessa solução é que ela não admite distinções, desconsiderando uma singela verdade que Miguel Seabra Fagundes sintetizou na frase “o Direito é sobretudo uma ciência de distinções, então cabe distinguir” (intervenção em ciclo de palestras sobre o mandado de segurança, in: FERRAZ, Sérgio [Org.]. Cinqüenta anos de mandado de segurança. Porto Alegre: Sergio A. Fabris Editor, 1986. p. 65). Mais: além de não distinguir – aceita a união estável, desde que declarada por sentença, como fato certo –, tampouco permite que o interessado (no caso, o INSS) faça as distinções.

Ora, distinguir é preciso, porque muitas das sentenças declaratórias de união estável são proferidas em processos artificiosos ou simulados. Alguns exemplos o provam, mais do que palavras: em certo caso real, o processo não tinha réu certo, sendo dirigido contra “possíveis herdeiros”, citados por edital. Em outro, os réus eram os próprios filhos, porque a postulante à pensão alegou haver-se tornado companheira do ex-marido, por força de união estável posterior ao divórcio (os filhos, evidentemente, não contestaram). Em um terceiro caso, veio a mãe do falecido, embora fosse ré, a depor em prol da autonomeada companheira. Num quarto caso, em vez de serem citados o espólio ou todos os herdeiros necessários, foi requerida a citação de apenas alguns dos herdeiros.

Afora as peculiaridades de cada caso, as notas comuns a esses processos artificiosos ou simulados de união estável são: (a) neles não há nenhum litígio; (b) limitam-se a uma abstrata declaração judicial da convivência more uxorio, sem se pedir nenhum bem da vida (partilha de bens, alimentos devidos pelo espólio ou pelos herdeiros [CC, art. 1700], indenização por dano moral); e (c) têm por única finalidade um efeito oblíquo – obrigar futuramente um terceiro, o INSS, em outro processo judicial, a conceder pensão por morte. Ora, se era essa a única finalidade, vê-se que houve uso anormal do processo judicial, porque a autonomeada companheira poderia ajuizar diretamente a ação de concessão de pensão por morte contra o INSS, fazendo prova da união estável. Por que ajuizar duas ações, se uma bastava?

Sempre entendi que o juiz deve julgar os casos, consideradas todas as suas peculiaridades. Não responde ele a simples questões teóricas ou abstratas. Julga, sim, a conduta das pessoas, conforme a prova dos autos. No processo criminal, isso fica evidente. No cível, muitas vezes essa singela verdade acaba esquecida, o que origina simplificações e julgamentos padronizados. Por essa razão, cabe ao juízo previdenciário, quando lhe é apresentada uma sentença declaratória de união estável, em ação de concessão de pensão por morte, fazer as distinções para apurar se aquela sentença é fruto de processo real ou de processo artificioso, simulado. Se concluir que a sentença declaratória de união estável resultou de processo artificioso, poderá negar-lhe efeito, invocando o artigo 129 do Código de Processo Civil (“Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes”). Literalmente, esse dispositivo refere-se apenas ao processo a ser julgado, mas, nesse caso, há necessidade de ser dilatado o seu âmbito de aplicação, pela jurisprudência, o que, aliás, há tempos vem sendo feito. Juízes e tribunais federais têm construído a orientação de que a sentença que reconhece relação de emprego, proferida pela Justiça do Trabalho, pode ter sua eficácia declaratória recusada pelo juízo previdenciário, quando este verificar que houve uso anormal do processo trabalhista. Eis um julgado que bem sintetiza essa construção jurisprudencial, realçando as peculiaridades do caso concreto:

“Previdência Social. Tempo de Serviço. Se a reclamatória trabalhista é utilizada para finalidade atípica – vale dizer, não para dirimir controvérsia entre empregador e empregado, mas para assegurar direitos perante a Previdência Social – é meio inábil para provar tempo de serviço. Hipótese em que, já prescrita a ação, o empregador não compareceu à audiência de conciliação e julgamento, encaminhando à MM. Junta declaração de concordância com a pretensão, que lhe era alheia na medida em que restrita à anotação do vínculo de emprego na carteira profissional, sem conseqüências pecuniárias. Ausência de lide a demonstrar que a ação carecia do seu pressuposto básico e perseguia propósito estranho à relação entretida entre as partes. Apelação a que se nega provimento.” (TRF da 4ª Região, AC nº 89.04.01062-4 – PR, 1ª Turma, rel. Juiz Ari Pargendler, Revista do TRF da 4ª Região, nº 2, abr./jun. 1990, p. 181-183)

Trilhando outro caminho, que converge para o mesmo ponto, a doutrina processual tem preconizado a relativização da coisa julgada material, como forma de corrigir graves injustiças, fraudes e ofensas a princípios constitucionais, entre os quais o da moralidade administrativa, que impõe aos agentes estatais, aí incluídos os juízes, zelar pelo patrimônio público (vide DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista da AJURIS: doutrina e jurisprudência. Porto Alegre, n. 83, tomo I, p. 33-65, set. 2001). Com essa justificação, cabe ao juízo previdenciário relativizar ou flexibilizar a declaração judicial de união estável, por sentença transitada em julgado, proferida pelo juízo de família. Sinalizará à parte autora, então, que a ela compete produzir prova da alegada união estável, podendo valer-se de todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não previstos em lei (Código de Processo Civil, art. 332). Não se vê, nisso, nenhuma dificuldade, tanto mais que a jurisprudência federal tem assentado que, em se tratando de benefício de pensão por morte, não há necessidade de início de prova material para a comprovação da união estável (vide STJ, RESP nº 326.717, RESP nº 603.533 e RESP nº 778.384) nem para a comprovação da dependência econômica (vide STJ, RESP nº 296.128, RESP nº 543.423 e RESP nº 720.145).

Poder-se-á objetar, contra o que vem de ser proposto, que o juiz se está excedendo, ao exigir que a autonomeada companheira comprove uma união estável que já foi declarada por sentença. Não há, porém, nenhum excesso quando o juiz aponta as deficiências da prova e busca formar com segurança sua convicção. Afinal – e esta é uma das regras de ouro da técnica de julgar –, “em princípio, nenhum juiz pode ser privado dos meios de melhor esclarecer-se, para melhor julgar” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. V. p. 502).

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , fev. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .