Política nacional ou judicial de medicamentos?

Autor: Fernando Zandoná
Juiz Federal
Publicado na Edição 23 - 29.04.2008

Introdução

Nos últimos anos vem crescendo de forma signficativa o número de demandas cujo objeto é obrigar o Estado ao fornecimento de medicamentos, sob o argumento de que o direito público subjetivo à saúde está assegurado à generalidade das pessoas pela Constituição Federal de 1988.

Em face disso, o Poder Judiciário vem assumindo um papel decisivo na área da saúde pública, especialmente no que diz respeito à extensão do dever constitucional do Poder Público em propiciar os meios necessários para garantir o direito fundamental à vida e à saúde.

O presente trabalho tem como objetivo analisar se o dever constitucional do Estado em fornecer medicamentos à população pode ser restringido/limitado em algumas situações, mesmo que tal conduta vulnere os direitos fundamentais acima mencionados.

Cuida-se de tema constantemente discutido nos Tribunais Pátrios, cujas decisões, em regra, vêm favorecendo a parcela da população que vem garantindo o acesso aos mais variados medicamentos tão-somente porque ingressaram com ação judicial. Aliás, em alguns casos, em que é inconciliável o conflito entre o direito fundamental à saúde e a impenhorabilidade dos recursos do Estado, está sendo considerada legítima a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas para aquisição imediata de medicamentos como meio de efetivação do direito dito prevalente (saúde).

Dessa forma, o tema será desenvolvido com foco em duas questões: (a) a primeira é se o nosso ordenamento jurídico garante o acesso universal a todo e qualquer medicamento necessário para garantir o direito fundamental à vida e à saúde; e (b) a segunda consiste em saber se compete ao Poder Judiciário obrigar o Poder Executivo a fornecer tais medicamentos com a urgência necessária, sem qualquer restrição legal ou orçamentária, sob o argumento de que o direito à vida e à saúde prevalece sobre todos os demais, influindo, assim, de forma direta na Política Nacional de Medicamentos adotada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Antes, porém, faremos uma breve análise das disposições constitucionais que tutelam o direito à vida e à saúde, bem como da jurisprudência sobre a matéria e da legislação que constituiu o SUS e a sua forma de financiamento.

1 Da inviolabilidade do direito à vida

A Constituição Federal garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes em nosso País a inviolabilidade do direito à vida(1) , o qual, por razões óbvias, é o mais fundamental de todos os direitos, já que a sua existência e preservação constitui pré-requisito para o exercício dos demais direitos.

Ensina o Professor Alexandre Moraes que "o direito humano fundamental à vida deve ser entendido como direito a um nível de vida adequado com a condição humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação, cultura, lazer e demais condições vitais."(2)

Portanto, o dever do Estado não se resume a preservar a vida dos que nele residem, mas sim garantir um nível de vida em que sejam respeitados os fundamentos e objetivos da República Brasileira, tais como a dignidade da pessoa humana;(3) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mas não é só.

Para que a vida seja garantida a um nível adequado à condição humana, também é indispensável que os direitos sociais, como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social etc., sejam respeitados e efetivados pelo Estado.

Destarte, é correto afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida e o direito social ao acesso à saúde estão intimamente ligados, pois a existência de uma vida digna pressupõe o acesso a prestações necessárias e suficientes para preservar, manter ou restabelecer a saúde.

2 Do direito à saúde

A palavra "saúde" é citada 24 (vinte e quatro) vezes no Texto Constitucional, sendo que o primeiro dispositivo a mencioná-la é o art. 6º, que a classifica como direito social,(4) juntamente com a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, à infância e a assistência aos desamparados.

O segundo dispositivo é o art. 7º, IV,(5) onde está expresso que o salário mínimo, fixado em lei, deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família, dentre elas, a saúde.

Entretanto, foi no Título VII, Capítulo II, Seção II, art. 196(6) do Texto Constitucional que o direito fundamental à saúde ganhou os seguintes contornos: (a) foi reconhecido como direito de todos; (b) foi imposto ao Estado o dever de garantir o direito à saúde, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos; e (c) esta garantia de acesso à saúde deve ser universal e igualitária às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Por fim, vale referir que as normas constitucionais referentes à saúde, por tratarem, indiscutivelmente, de um direito fundamental, têm aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º,(7) da Constituição Federal.

3 Sistema Único de Saúde – SUS

Em face da relevância pública das ações e serviços atinentes à saúde, foi atribuído ao Poder Público, no próprio texto constitucional (art. 197),(8) o poder de dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.

Também foi estabelecido que as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único (art. 198),(9) organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e III - participação da comunidade.

A própria Constituição, em seu art. 200, elencou algumas das atribuições do SUS. Vejamos:

"Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos.

VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho."

Outrossim, foi editada a Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, a qual, em seu art. 4º, constituiu o SUS, nos seguintes termos:

"Art. 4º. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.

§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar."

4 Do financiamento do SUS

A Constituição Federal, em seu art. 198, § 1º, estabelece que o "sistema único de saúde será financiado, nos termos do artigo 195,(10) com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes".

Ainda, consta no § 2º do art. 198, em face da prioridade do direito fundamental à saúde, a imposição de que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios apliquem, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º do art. 198;(11) II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, alínea b, e § 3º.

Por fim, não podemos deixar de observar que a não-aplicação do mínimo exigido na saúde é causa de intervenção nos Estados, no DF e nos Municípios, conforme exsurge das seguintes disposições constitucionais:

"Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
(...)

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
(...)

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:
(...)

III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;" (os grifos são meus)

5 Da responsabilidade solidária entre União, Estados, DF e Municípios

O Texto Constitucional não deixa dúvidas de que o direito à saúde é de responsabilidade comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e deve ser assegurado de forma solidária, conforme é possível se observar de vários dispositivos, dentre os quais, a título de exemplo, cito os seguintes:

"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...)" (grifei)

Além da atuação obrigatória do Estado, vale referir que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que podem participar de forma complementar do SUS, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (art. 199, § 1º).

6 Da prioridade conferida à criança e ao adolescente

Nas questões atinentes ao direito à saúde, o texto constitucional confere prioridade absoluta à criança e ao adolescente, conforme podemos observar no art. 227 da Magna Carta, verbis:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (grifei)

7 Das prestações necessárias para garantia do direito à saúde

São inúmeras as prestações necessárias para que o direito à saúde seja garantido em sua plenitude. Como exemplo, podemos referir as seguintes: (a) alimentação adequada; (b) saneamento básico; (c) moradia; (d) preservação do meio ambiente; (e) assistência médico-hospitalar; (f) acesso a medicamentos; (g) controles de epidemias; (h) programas de vacinação etc.

Para o desenvolvimento do presente trabalho, entretanto, nos interessa tão-somente a prestação consistente no fornecimento de medicamentos como medida necessária e indispensável para preservação ou restabelecimento da saúde.

8 Do fornecimento de medicamentos

Muitas vezes não há como o Estado cumprir o seu dever de garantir aos seus cidadãos o direito fundamental à saúde sem lhes alcançar medicamentos. Tal prestação, não raras vezes, é necessária até mesmo para preservação da própria vida.

Dessa forma, partindo de uma leitura constitucional em que se busque a real efetividade das normas garantidoras da vida e da saúde e que, como vimos, têm aplicabilidade imediata, a solução jurídica para tal questão seria única: o Estado tem o dever de fornecer todo e qualquer medicamento necessário ou recomendado para preservação da vida e/ou da saúde.

Ocorre, contudo, que existe um abismo entre aquilo que foi escrito pelo Constituinte e a realidade brasileira. Em razão dessa situação extrema, os cidadãos recorrem ao Poder Judiciário, buscando a tutela dos seus direitos fundamentais, pois não é novidade para ninguém que nosso sistema público de saúde é deficitário e, por conseguinte, não logra atender adequadamente à população.

Outrossim, os juízes são instados diariamente a se manifestarem sobre o dever do Estado em fornecer os medicamentos necessários à preservação da vida e da saúde.

Aparentemente, a solução jurídica seria fácil e iria ao encontro de parte da doutrina constitucional, pois, havendo uma recomendação médica idônea sobre a necessidade do fornecimento de determinado medicamento, o deferimento do pedido seria corolário lógico da aplicabilidade imediata das normas constitucionais que garantem – a todos os cidadãos – o direito fundamental à saúde. Por conseguinte, incumbiria ao Estado cumprir o seu dever, sob pena de bloqueio de verbas públicas.

A questão, contudo, não é tão simples, já que, mesmo havendo previsão constitucional a respeito da vinculação de receitas para a área da saúde e, inclusive, previsão de intervenção nos Estados e Municípios que descumprirem tal imposição, é fato público e notório que o Poder Público não está conseguindo atender satisfatoriamente as demandas na área da saúde.

Aliás, o Estado Brasileiro não atende satisfatoriamente nenhuma das demandas sociais (alimentação, educação, moradia, saneamento básico, assistência social, previdência, transporte, todos os serviços públicos [inclusive os prestados pelo Poder Judiciário] etc.).

Nesta quadra, já podemos afirmar que, a despeito do direito fundamental à saúde, a realidade fática atual impede que o Estado Brasileiro forneça de forma universal todo e qualquer medicamento necessário para preservação ou restabelecimento da saúde da população.

9 Posição dos Tribunais Superiores

Analisando os precedentes jurisprudenciais sobre o fornecimento de medicamentos pelo Poder Público, podemos concluir que:

(a) os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, em regra, têm o entendimento de que as normas constitucionais que tutelam o direito à vida e à saúde obrigam o Poder Público a fornecer todo e qualquer medicamento necessário [assim entendido os receitados por médicos] para a preservação de tais bens jurídicos, sendo irrelevante o fato de constarem na lista do SUS. Vejamos alguns trechos de ementas recentes:

"(...) Basta que o médico integrante do sistema único entenda por necessário determinada medicação, cuja comercialização esteja autorizada em território nacional, e essa haverá de ser providenciada. Sem sentido o argumento referente a custos, dado que não seria legítima a opção estatal em apenas fornecer medicamentos baratos e sem a melhor eficiência conhecida pela ciência." (TRF 4ª R. – AC 2004.71.02.002376-3 – 4ª T. – Rel. Juiz Federal. Márcio Antônio Rocha – DJU 24.05.2006 – p. 776);

"(...)Impõe-se confirmar a sentença que determinou a obrigação da União Federal em fornecer os remédios necessários ao controle ou ao abrandamento da patologia (câncer) que acomete a parte autora, conforme indicados por receituário médico, uma vez que é dever do estado fornecer, gratuitamente, os medicamentos indispensáveis para o tratamento de doenças consideradas graves, se o paciente não tem condições de adquiri-los com recursos próprios. - O art. 196 não contém norma programática, mas norma de efeitos concretos, vindo, inclusive, a ser regulamentado pela Lei nº 8.080/90." (TRF 2ª R. – REO-ACív. 2004.51.01.490462-0 – (366375) – 5ª T.Esp. – Rel. Des. Federal Paulo Espírito Santo – DJU 15.05.2006 – p. 225);

"(...) As verbas despendidas para cumprimento do provimento antecipado, fornecendo os medicamentos à agravada, poderão ser oportunamente glosadas. 3. Confirmada por profissional habilitado à necessidade do tratamento para a garantia da vida da agravada, mediante a medicação prescrita, deverá ela ser fornecida. (...)" (TRF 3ª R. – AC 2003.61.14.000559-8/SP – (1055570) – 6ª T. – Rel. Juiz José Carlos Motta – DJU 10.03.2006);

"(...) O poder público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. 4. Não se pode limitar a escolha, por parte do médico eleito pela requerente, dos meios a serem postos em prática para a execução do tratamento a que se deve submeter o paciente." (TRF 4ª R. – AC 2003.72.00.004666-4 – 1 T.Supl. – Rel. Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon – DJU 21.06.2006 – p. 376);

"(...) Mediante comprovação nos autos de que a parte autora necessita obter assistência terapêutica gratuita, acolhe-se a pretensão, notadamente ante a envergadura constitucional do direito correspondente." (TRF 4ª R. – AC 2003.72.00.014553-8 – 4ª T. – Rel. Des. Federal Amaury Chaves de Athayde – DJU 17.05.2006 – p. 815);

"(...) Tem o Poder Público o dever de fornecer medicamentos vitais para a saúde do cidadão que não pode pagá-los." (TJPR – AC 0319589-1 – Rolândia – 4ª C.Cív. – Rel. Des. J. Vidal Coelho – J. 14.02.2006);

"(...) O Sistema Único de Saúde-SUS visa à integralidade da assistência à saúde, seja individual, seja coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. (...)" (TRF 5ª R. – AGTR 2005.05.00.000003-6 – 1ª T. – PB – Rel. Des. Federal Ubaldo Ataíde – DJU 15.12.2005 – p. 592);

"(...) Constitui direito do cidadão e dever do Estado o fornecimento da medicação necessária ao tratamento de doença mesmo que o remédio não esteja padronizado pelo Ministério da Saúde." (TJPR – Mand Seg 0159703-9 – (4182) – Curitiba – 2º G.C.Cív. – Rel. Des. Munir Karam – DJPR 25.10.2004) [os grifos são meus]

(b) o Superior Tribunal de Justiça vem mantendo tais decisões, permitindo, inclusive, que sejam bloqueados recursos públicos para aquisição de medicamentos com a urgência necessária. Nesse sentido temos os seguintes precedentes:

"(...) 2. Em situações reconhecidamente excepcionais, tais como a que se refere ao urgente fornecimento de medicação, sob risco de perecimento da própria vida, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é reiterada no sentido do cabimento do bloqueio de valores diretamente na conta-corrente do ente público. (...) 5. No caso, a autorização excepcional para o bloqueio de valores públicos objetivou o fornecimento de medicação, em caráter de urgência, à parte suplicante, sob pena de comprometimento da própria vida. 6. Embargos de divergência não-providos." (STJ – ERESP 200501901619 – (770969) – RS – 1ª S. – Rel. Min. José Delgado – DJU 21.08.2006 – p. 224);

"(...) 6. À luz do princípio da dignidade da pessoa humana, valor erigido com um dos fundamentos da república, impõe-se a concessão dos medicamentos como instrumento de efetividade da regra constitucional que consagra o direito à saúde. 7. In casu, a decisão ora hostilizada pelo recorrente ratifica multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) que, além de comprometer as finanças do Estado do Rio Grande do Sul, revela-se exorbitante. 8. Recurso Especial parcialmente provido." (STJ – RESP 200501378900 – (775233) – RS – 1ª T. – Rel. Min. Luiz Fux – DJU 01.08.2006 – p. 380); "(...) 3. A maioria dos componentes da primeira seção tem considerado possível a concessão de tutela específica para determinar-se o bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde. 4. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido." (STJ – RESP 200600178295 – (815277) – RS – 2ª T. – Rel. Min. Eliana Calmon – DJU 02.08.2006 – p. 261);

"(...) 4. Todavia, em situações de inconciliável conflito entre o direito fundamental à saúde e o regime de impenhorabilidade dos bens públicos, prevalece o primeiro sobre o segundo. Sendo urgente e impostergável a aquisição do medicamento, sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante, não se pode ter por ilegítima, ante a omissão do agente estatal responsável, a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas como meio de efetivação do direito prevalente. 5. Recurso Especial a que se nega provimento." (STJ – RESP 200600627951 – (832935) – RS – 1ª T. – Rel. Min. Teori Albino Zavascki – DJU 30.06.2006 – p. 197);

"(...) O atual entendimento desta colenda primeira turma é no sentido da possibilidade do bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico ou fornecimento de medicamentos indispensáveis à manutenção da saúde e da vida. Precedentes: AGRG no AG nº 723.281/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 20.02.2006; RESP nº 656.838/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 20.06.2005 e AG nº 645.565/RS, Rel. Min. José Delgado, DJ de 13.06.2005. III. A verificação da existência de suposta violação a preceitos constitucionais cabe exclusivamente ao pretório Excelso, sendo vedado a esta corte fazê-lo, ainda que para fins de prequestionamento. IV. Agravo regimental improvido." (STJ – AGA 200600390285 – (749477) – RS – 1ª T. – Rel. Min. Francisco Falcão – DJU 01.06.2006 – p. 162)

(c) o Supremo Tribunal Federal não tem muitos precedentes sobre o tema, mas os existentes garantem o fornecimento de medicamentos, especialmente quando existem programas de distribuição instituídos por lei, v.g., Leis 9.908/93, 9.828/93 e 10.529/95 do Estado do Rio Grande do Sul (RR.EE. 236.200/RS, 247.900/RS, 264.269/RS, 267.612/RS, 271.286/RS). Vale destacar que os Ministros do Supremo referem nos seus votos que o acesso aos medicamentos deve ser universal e igualitário. Por oportuno, seguem duas ementas sobre o tema:

"PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO – O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES – O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF." (STF – AGRRE 271286 – 2ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 24.11.2000 – p. 00101 - grifei)

"CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – MEDICAMENTOS: FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES: OBRIGAÇÃO DO ESTADO – I – Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita: Obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. II – Agravo não provido." (STF – AI-AgRg 486816 – RJ – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 06.05.2005 – p. 00028)

Nesse contexto, podemos afirmar que os Tribunais Pátrios vêm assegurando o fornecimento de medicamentos para aqueles que batem às portas do Poder Judiciário, mediante o preenchimento de apenas dois requisitos [em regra]: (a) necessidade de uso do medicamento [prescrição médica] para tutelar os direitos fundamentais à vida e à saúde; e (b) carência de recursos financeiros.

10 Da necessidade/legitimidade da limitação do fornecimento de medicamentos

Nas últimas décadas, as indústrias farmacêuticas vêm desenvolvendo inúmeros medicamentos que propiciam a cura de determinadas doenças – antes incuráveis – ou, pelo menos, possibilitam a melhora da qualidade de vida dos doentes.

Mas não é só. Cada vez mais os medicamentos estão sendo "modernizados" [remédios "inteligentes"], de molde a atuar de forma mais precisa no organismo humano e, por conseqüência, reduzir o tempo de tratamento, diminuir ou eliminar eventuais efeitos colaterais etc.

Também não é novidade que esses medicamentos, quase em sua totalidade, são produzidos por "gigantes" da indústria farmacêutica, cujas sedes estão situadas na América do Norte e na Europa, e que, por razões óbvias, visam à obtenção de lucro, o que, além de ser necessário e natural a qualquer atividade empresarial, neste caso também se mostra indispensável para cobrir os custos das pesquisas realizadas e manter as que estão em curso.

Em suma: a cada dia que se passa são desenvolvidos medicamentos que, do ponto de vista médico, são essenciais à preservação da vida e/ao restabelecimento da saúde do paciente. Ocorre, contudo, que na maioria das vezes esses medicamentos são inacessíveis para maior parte da população brasileira e, muitas vezes, até mesmo a classe média alta a eles não tem acesso, já que sequer os planos privados de saúde os fornecem.

Dessa forma, se de um lado não resta dúvida de que tais medicamentos são indispensáveis para a efetivação das normas constitucionais que tutelam a vida e a saúde, de outro, é certo que a maior parte da população a eles não tem acesso em face da insuficiência de recursos financeiros ou de seu altíssimo custo.

Portanto, em face dessa realidade fática, a questão a saber é: constitui dever do Estado fornecer todos os medicamentos disponíveis no mercado e que são necessários para preservação da vida e da saúde? É legítimo ao Estado adotar uma política de fornecimento de medicamentos restrita às suas possibilidades orçamentárias?

Apesar de ser o anseio de todos que o Brasil possa oferecer aos que nele residam tudo o que existe de mais moderno e que seja necessário à garantia da vida e da saúde, é forçoso reconhecer que incumbe ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo traçar a política pública de saúde, na qual, necessariamente, está incluída a opção de selecionar os medicamentos que serão oferecidos universalmente a toda população.

Aliás, é bom lembrar que, mesmo no seguro de saúde privado, há previsão legal (Lei nº 9.656/98, art. 10(12) ) de não-fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados ou para uso domiciliar.

Na Magna Carta está assentado que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196), e que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado." (art. 197)

Com efeito, no que se refere ao fornecimento de medicamentos, que é apenas uma das prestações necessárias para garantia do valor constitucional à saúde [nem é a mais relevante], a Lei nº 8.080/90 estabelece, em seu art. 6º, que:

"Art. 6º. Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I - a execução de ações:
(...)

d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;
(...)

VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;" (grifei)

Fica cristalino, portanto, que a formulação da política de fornecimento de medicamentos é, em regra, uma tarefa do legislador e dos gestores do SUS.

Podemos citar como exemplo de ações administrativas ou legislativas nesta área: (a) a criação da Política Nacional de Medicamentos (Portaria MS 3916/98), instituída para assegurar o acesso da população a medicamentos seguros, eficazes e de qualidade, ao menor custo possível, a fim de que os gestores do SUS, nas três esferas de Governo, atuem em parceria e observem as seguintes diretrizes: I – adoção da Relação de Medicamentos Essenciais (RENAME); II – regulamentação sanitária de medicamentos; III – reorientação da assistência farmacêutica; IV – promoção do uso racional dos medicamentos; V – desenvolvimento científico e tecnológico; VI – promoção da produção de medicamentos; VII – garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos; e VIII – desenvolvimento e capacitação de recursos humanos; (b) a Política Nacional de Medicamentos elegeu como prioridade, dentre outras, as seguintes ações: I – revisão permanente da RENAME; II – assistência farmacêutica; III – uso racional de medicamentos; IV – campanhas educativas; V – registro e uso de medicamentos genéricos; VI – formulário terapêutico nacional; e VII – farmacoepidemiologia e farmacovigilância; (c) a edição da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, que impõe à União o dever de participar do financiamento da assistência farmacêutica básica e de distribuir para os Estados os medicamentos de alto custo (Portaria MS 675/2006); (d) a criação da Rede Brasileira de Produção Pública de Medicamentos, a qual é formada pelos laboratórios farmacêuticos oficiais do Brasil, e que tem entre seus objetivos o desenvolvimento de: I - ações que visem à reorganização do sistema oficial de produção de medicamentos, com a adoção de estratégias para a racionalização da produção oficial e para a sua aproximação às necessidades e prioridades do Sistema Único de Saúde; II - ações coordenadas e cooperadas que visem ao suprimento de medicamentos demandados pelo Sistema Único de Saúde; III - ações coordenadas que visem ao suprimento regular e adequado de matérias-primas e de insumos necessários à produção oficial de medicamentos; IV - ações que visem à garantia de fornecimento de medicamentos aos programas públicos considerados estratégicos, principalmente daqueles cuja produção envolve exclusivamente a capacidade instalada do parque fabril oficial (Portaria MS 2438/05); e (e) a criação da HEMOBRÁS, cuja função social é garantir aos pacientes do SUS o fornecimento de medicamentos hemoderivados ou produzidos por biotecnologia (Lei nº 10.972/2004).

Vê-se, portanto, que inúmeras foram as iniciativas tomadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, a fim de traçar e implementar uma política nacional de fornecimento universal de determinados medicamentos.

Pois bem, o delineamento de uma política de fornecimento de medicamentos encerra, em si, uma limitação aos direitos fundamentais à vida e à saúde, na medida em que seleciona [opção política] os remédios que serão distribuídos a toda população.

A pergunta a se fazer é: essa limitação é constitucional? É evidente que sim, pois em um Estado Democrático de Direito incumbe aos integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo, eleitos pelo povo, traçarem a Política Nacional de Medicamentos.

Dessa forma, é correto afirmar, em princípio, que os cidadãos não têm o direito subjetivo de pleitear judicialmente o fornecimento de medicamentos não incluídos em lista e que não cabe ao Poder Judiciário influir na Política Nacional de Medicamentos, sob o argumento de que os direitos fundamentais à vida e à saúde são tutelados constitucionalmente.

Aliás, se isso fosse admitido, teríamos necessariamente de admitir que todos teriam o direito subjetivo de postular em juízo, por exemplo, as seguintes prestações que, sem dúvida alguma, são necessárias para efetivação de vários direitos fundamentais: (a) alimentação; (b) educação; (c) moradia; (d) trabalho; (e) segurança; (f) salário mínimo nos moldes do art. 7º, IV; (g) saneamento básico etc.

Se fosse adotada a mesma linha que vem sendo seguida no que tange ao fornecimento de medicamentos, por questão de coerência, as decisões judiciais deveriam, necessariamente, acolher, v.g., o pedido de fornecimento de alimentos. Ademais, ninguém pode defender que a prestação de "medicamentos" é mais relevante do que a de "alimentos", pois sem estes não há vida, nem saúde a ser preservada ou restabelecida por remédios modernos.

Contudo, infelizmente, não cabe ao Poder Judiciário ocupar o papel principal na busca da redução das desigualdades sociais, mas sim à sociedade que se faz representar pelos Poderes Legislativo e Executivo.

Enfim, se fosse possível a resolução dos problemas sociais por sentenças, todas as mazelas que assolam nosso país seriam questões do passado, porquanto é muito difícil que qualquer pessoa, inclusive os juízes, deixem de se sensibilizar pelas mais variadas histórias retratadas nos processos e que muito bem refletem o abismo social brasileiro.

11 Dos limites da intervenção judicial na política pública de fornecimento de medicamentos

Como visto alhures, é tarefa do Poder Legislativo e do Executivo traçar os contornos da política pública de fornecimento de medicamentos à população brasileira, levando em consideração os ditames constitucionais, especialmente aqueles explicitados pelas normas que cuidam da saúde, os quais apontam em uma única direção: a de atingir uma situação ideal em que todas as pessoas tenham acesso a qualquer medicamento necessário à preservação ou restabelecimento da sua saúde.

E quanto ao Poder Judiciário? Em primeiro lugar, é bom destacar que a situação "ideal" não será garantida/atingida por intermédio de decisões judiciais. Portanto, ao Judiciário cumpre o papel de – quando provocado a se manifestar sobre o acesso da população aos medicamentos – garantir o fornecimento de medicamentos básicos [mínimo existencial] e de interpretar as normas constitucionais que garantem o direito à saúde, atribuindo-lhes as modalidades de eficácia negativa, interpretativa e vedativa do retrocesso, levando também em consideração as políticas públicas implementadas na área a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Ana Paula de Barcellos, em sua obra intitulada A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais,(13) explica as modalidades de eficácia acima mencionadas nos seguintes termos: "(i) o Poder Público não pode tomar decisões prejudiciais à saúde da população, que poderão ser anuladas pelo Judiciário (negativa); (ii) dentre as várias interpretações de um ato normativo que tenha disposto sobre o assunto, deverá ser escolhida aquela que mais amplamente realiza o propósito de atender à saúde da população em geral e dos indivíduos em particular (interpretativa); e, por fim, (iii) não poderá o Poder Público extinguir uma ação, ou revogar uma norma que proporcione um determinado benefício ou prestação na área da saúde, reduzindo o status geral já alcançado na matéria, sem uma medida correspondente ou substituta, sob pena de agir inconstitucionalmente (vedativa do retrocesso)".

E continua: "Como se vê, os efeitos isolados globais da norma constitucional, assim como os de qualquer norma, têm relevância jurídica; e em cada uma das hipóteses acima descritas se está tratando de modalidades de eficácia jurídica, ou seja, de medidas que o Judiciário poderá implementar. A diferença entre o mínimo existencial está em que, em relação a este, o Judiciário pode praticar um ato específico: determinar concretamente o fornecimento da prestação de saúde com fundamento na Constituição e independentemente de existir uma ação específica da Administração ou Legislativa nesse sentido". (grifei)

Portanto, quanto ao fornecimento de medicamentos pelo Poder Público, a atuação do Poder Judiciário deve se ater aos seguintes limites: (a) garantir o acesso universal da população aos medicamentos essenciais [aqueles indispensáveis para atender à maioria dos problemas de saúde da população e que constam arrolados na RENAME], pois eles podem ser considerados como sendo o "mínimo existencial" e, portanto, em princípio, se justifica, inclusive, a imposição de seu fornecimento, mesmo que, para tanto, seja necessário o bloqueio de verbas públicas; (b) obrigar o Poder Público a dar efetividade às políticas de fornecimento de medicamentos previstas em leis (federais, estaduais e municipais) ou em atos administrativos de órgãos da saúde; (c) zelar para que os Poderes Legislativo e Executivo pautem suas ações mediante a observância das eficácias negativa, interpretativa e vedativa do retrocesso.

12 Da inclusão de novos medicamentos na lista do SUS (RENAME)

Integram a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME os medicamentos considerados básicos e indispensáveis para atender à maioria dos problemas de saúde da população.

Conforme aprovado na Política Nacional de Medicamentos [Portaria MS nº 3.916/GM/98], o Ministério da Saúde estabelecerá mecanismos que permitam a contínua atualização da RENAME, devendo dar ênfase ao conjunto dos medicamentos voltados para assistência ambulatorial, ajustado, no nível local, às doenças mais comuns à população, definidas segundo prévio critério epidemiológico.

Aliás, é bom destacar que a RENAME serve de base para organização das listas estaduais e municipais, as quais, evidentemente, dependendo da vontade política de seus legisladores/gestores e da disponibilidade orçamentária, podem agregar novos medicamentos. O importante, porém, é que a integralidade dos medicamentos constantes na RENAME possam ser alcançados a todos que deles necessitem.

Pois bem, e se os legisladores/gestores deixarem de incluir um novo medicamento essencial na RENAME? O que fazer? Há espaço para intervenção judicial sem afronta à independência dos Poderes? A resposta é positiva. A meu ver, a solução para tal hipótese seria o ajuizamento de uma ação civil pública pelo Ministério Público contra a União, Estados, DF ou Municípios, a fim de que tais entes sejam obrigados a incluir na RENAME determinado medicamento.

Conforme orientação pacífica do Superior Tribunal de Justiça, em tais casos, onde se busca a tutela jurisdicional do direito à vida e à saúde, os quais têm natureza indisponível, é inequívoca a legitimidade do Ministério Público de propor ação para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde.

Ademais, no âmbito da ação civil pública, poderão ser debatidas questões sobre os seguintes aspectos: (a) essencialidade do medicamento; (b) interesse público na inclusão do novo medicamento na RENAME; (c) possibilidade orçamentária de o Estado fornecer o medicamento para todos os doentes que se encontrem em idêntica situação; (d) se o medicamento atende a regulamentação sanitária de medicamentos e, ainda, se é seguro, eficaz e atua no corpo humano da forma a que se propõe etc.

O debate sobre as questões acima mencionadas é extremamente relevante à boa aplicação dos recursos públicos – que sabidamente são escassos – e somente pode ser feito de uma forma plena no âmbito de uma ação civil pública.

Dessa forma, uma decisão judicial proferida em sede de ação civil pública possui inegável legitimidade, na medida em que propiciará o fornecimento de determinado medicamento para todos aqueles que se encontrem na mesma situação.

De outro lado, quando é o próprio doente que aciona o Poder Judiciário visando à obtenção de medicamento não incluído na lista, as questões acima – que são essenciais – caem para segundo plano, e o juiz do processo, na maioria das vezes, fica preso ao dilema de que o medicamento almejado é o único meio de preservar a vida do autor da demanda, ou seja, se não deferir imediatamente o pedido uma pessoa poderá morrer. Ao comentar tal dilema, Ana Paula de Barcellos destaca que "um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde – não incluída no mínimo existencial nem autorizada por lei, mas sem a qual ele pode vir mesmo a falecer –, é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica."(14)

E acrescenta: "Não seja por uma convicção sólida a respeito dos limites de seu papel no âmbito do Estado Democrático e, mais importante ainda na prática, pela certeza de que há meios jurídicos aptos a impor ao Poder Público a prestação do mínimo existencial na área da saúde, é compreensivelmente difícil para o Juiz deixar de ceder à tentação de dar uma solução jurídica localizada e individual a um problema cujo espaço é essencialmente político. O problema está em que, ao imaginar poder buscar, através do Judiciário, toda e qualquer prestação de saúde, cria-se um círculo vicioso, pelo qual a autoridade pública exime-se da obrigação de executar as opções constitucionais na matéria a pretexto de aguardar as decisões judiciais, ou mesmo sob o argumento de que não há recursos para fazê-lo, tendo em vista o que é gasto para cumprir essas mesmas decisões judiciais." (grifei)

Dessa forma, a discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na RENAME, em um primeiro momento, deve ser feita no plano político [legisladores, gestores, entidades médicas, sociedade etc.]. Não havendo interesse ou êxito no plano político, incumbe ao Ministério Público, se for o caso, na defesa dos interesses indisponíveis [vida e saúde], provocar o Poder Judiciário, por intermédio de uma ACP, que decidirá se o novo medicamento – por ser essencial, por atender aos requisitos legais, por haver possibilidade orçamentária de distribuição universal etc. – deve ou não ser incluído na RENAME.

O certo, porém, é que a discussão sobre o fornecimento de medicamento – não incluído na lista do SUS – não deve ser feita em sede de ação individual, já que: (a) não existe o direito subjetivo(15) em postular junto ao Estado o fornecimento de todo e qualquer medicamento disponível no mercado nacional ou internacional, não incluído em lista, mesmo que necessário à efetiva tutela dos direitos fundamentais à vida e à saúde; (b) ao atender a um pedido individual, o Poder Judiciário intervém de forma ilegítima na Política Nacional de Medicamentos, pois direciona os recursos públicos para quem ingressou em juízo, em detrimento de milhares dos cidadãos que sequer sabem da existência de tal possibilidade; e (c) parte dos recursos públicos que seriam gastos em benefício de todos é direcionada/desviada para o atendimento de um interesse individual.

Conclusões

Por todo o exposto, tenho que, sobre o dever do Poder Público em fornecer medicamentos à população para dar efetividade às normas constitucionais que tutelam os direitos fundamentais à vida e à saúde, é possível concluir que:

(a) apesar de ser o anseio de todos que o Brasil possa oferecer aos que nele residem tudo que existe de mais moderno e que seja necessário à garantia da vida e da saúde, é forçoso reconhecer que incumbe ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo traçar a política pública de saúde, na qual, necessariamente, está incluída a opção de selecionar os medicamentos que serão oferecidos universalmente à toda população;

(b) o delineamento de uma política de fornecimento de medicamentos encerra, em si, uma limitação aos direitos fundamentais à vida e à saúde, na medida em que seleciona [opção política] os remédios que serão distribuídos a toda população;

(c) é correto afirmar, em princípio, que os cidadãos não têm o direito subjetivo de pleitear judicialmente o fornecimento de medicamentos não incluídos em lista e que não cabe ao Poder Judiciário influir na Política Nacional de Medicamentos, sob o argumento de que os direitos fundamentais à vida e à saúde são tutelados constitucionalmente;

(d) se isso fosse admitido, teríamos necessariamente de admitir que todos teriam o direito subjetivo de postular em juízo, por exemplo, as seguintes prestações que, sem dúvida alguma, são necessárias para efetivação de vários direitos fundamentais: (a) alimentação; (b) educação; (c) moradia; (d) trabalho; (e) segurança; (f) salário mínimo nos moldes do art. 7º, IV; (g) saneamento básico etc;

(e) quanto ao fornecimento de medicamentos pelo Poder Público, a atuação do Poder Judiciário deve se ater aos seguintes limites: (a) garantir o acesso universal da população aos medicamentos essenciais [aqueles indispensáveis para atender à maioria dos problemas de saúde da população e que constam arrolados na RENAME], pois eles podem ser considerados como sendo o "mínimo existencial" e, portanto, em princípio, se justifica, inclusive, a imposição de seu fornecimento, mesmo que, para tanto, seja necessário o bloqueio de verbas públicas; (b) obrigar o Poder Público a dar efetividade às políticas de fornecimento de medicamentos previstas em leis (federais, estaduais e municipais) ou em atos administrativos de órgãos da saúde; (c) zelar para que os Poderes Legislativo e Executivo pautem suas ações mediante a observância das eficácias negativa, interpretativa e vedativa do retrocesso, tendo por norte as políticas públicas implementadas na área a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988;

(f) a discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na RENAME, em um primeiro momento, deve ser feita no plano político [legisladores, gestores, entidades médicas, sociedade etc.]. Não havendo interesse ou êxito no plano político, incumbe ao Ministério Público, se for o caso, na defesa dos interesses indisponíveis [vida e saúde], provocar o Poder Judiciário, por intermédio de uma ACP, que decidirá se o novo medicamento – por ser essencial, por atender aos requisitos legais, por haver possibilidade orçamentária de distribuição universal etc. – deve ou não ser incluído na RENAME; e

(g) a discussão sobre o fornecimento de medicamento – não incluído na lista do SUS – não deve ser feita em sede de ação individual, já que: (a) não existe o direito subjetivo em postular junto ao Estado o fornecimento de todo e qualquer medicamento disponível no mercado nacional ou internacional, não incluído em lista, mesmo que necessário à efetiva tutela dos direitos fundamentais à vida e à saúde; (b) ao atender a um pedido individual, o Poder Judiciário intervém de forma ilegítima na Política Nacional de Medicamentos, pois direciona os recursos públicos para quem ingressou em juízo, em detrimento dos milhares de cidadãos que sequer sabem da existência de tal possibilidade; e (c) parte dos recursos públicos que seriam gastos em benefício de todos é direcionada/desviada para o atendimento de um interesse individual.

Referências bibliográficas

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

FREITAS LIMA, Ricardo Seibel de. Direito à Saúde e Critérios de Aplicação. Juris Síntese, n. 54, jul./ago 2005.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.

Notas:

1. "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)"

2. MORAES, Alexandre de. in Direitos Humanos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.87.

3. Ensina Flávia Piovensan que "o valor da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1º, III – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro" [PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 34].

4. "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (grifei)

5. "Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim";

6. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

7. § 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

8. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

9. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...)

10. Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
(...)

§ 2º. A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos.
(...)

§ 10. A lei definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde e ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida de recursos.

11. § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:

I - os percentuais de que trata o § 2º;

II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;

III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;

IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.
(...)

12. Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
(...)

V - fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados;

VI - fornecimento de medicamentos para o tratamento domiciliar;

13. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.273/274.

14. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 275.

15. " ....não se pode mais conceber qualquer direito subjetivo como um poder absoluto do indivíduo contra a sociedade, o Estado e os demais indivíduos. Essa concepção de direito subjetivo que advém da modernidade funciona quando se trata de duas partes, uma idéia construída sob o modelo implícito da relação entre dois indivíduos, uma relação bipolar entre aquele que tem o direito e outro que tem o dever. Quando levamos em consideração as relações complexas entre membros de uma coletividade podendo usufruir de um benefício difuso comum no qual todos participam em indistintas e incertas parcelas, como entendemos ser o caso dos direitos sociais, essa idéia de direito subjetivo não funciona e deve ser superada. Os direitos sociais – de que é exemplo o direito à saúde – diferem em natureza dessa concepção de direito subjetivo, não apenas por se caracterizar como um direito difuso ou coletivo, mas por exigirem remédios distintos." (FREITAS LIMA, Ricardo Seibel de. Direito à Saúde e Critérios de Aplicação. Juris Síntese, n. 54, jul./ago. 2005).

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. , abr. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .