Princípio da Moralidade Administrativa ou Tríplice Dimensão da Legalidade: conceito, aplicação e abrangência |
Autor: Leonardo Cacau Santos La Bradbury Procurador Federal Publicado na Edição 24 - 02.07.2008 |
Introdução O presente artigo busca conceituar o Princípio da Moralidade Administrativa, enfocando a sua tríplice dimensão, mostrando a sua utilização pelo STF e pelo STJ, com o objetivo de alertar o operador do direito a respeito de sua extrema relevância frente ao Direito Administrativo pátrio, o que conflita com sua ainda pouca efetividade. Princípio da Moralidade Administrativa ou Tríplice Dimensão da Legalidade: conceito, aplicação e abrangência O Princípio da Moralidade Administrativa, analogicamente, compara-se à boa-fé objetiva do Direito Privado e representa, em termos gerais, um modelo de conduta ética que deve pautar a atuação do administrador público, o qual deve agir com honestidade, lealdade e probidade em relação ao administrado, razão pela qual Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que tal princípio assumiu foros de pauta jurídica(1). Note-se que não se trata de mera faculdade do gestor público, mas sim de uma obrigação, como uma meta a ser alcançada. Poder-se-ia, no momento, indagar: obrigação de meio ou resultado? Defendemos, indubitavelmente, que a aplicação do Princípio da Moralidade Administrativa gera uma obrigação de resultado, isto é, não basta que o Administrador Público utilize todas as formas possíveis para alcançar o interesse público (obrigação de meio), ele tem de alcançá-lo (obrigação de resultado), sob pena de responsabilizar-se por seus atos, podendo, inclusive, perder o cargo, mediante destituição ou demissão. Nesse sentido, convém transcrever a lição do mestre Celso Antonio Bandeira de Mello(2): “Acresça-se que, nos termos do art. 85, V, da Constituição, atentar contra a ‘probidade na administração’ é hipótese prevista como crime de responsabilidade do Presidente da República, fato que enseja sua destituição do cargo.” Vivemos em um Estado Democrático de Direito, que tem a forma republicana de governo, sendo um de seus pilares a responsabilidade pelos atos estatais realizados. Defender que a busca pela moralidade administrativa seria tão-somente uma obrigação de meio seria ferir os próprios fundamentos da República, uma vez que estaríamos, sob a alegação de que todos os esforços possíveis foram utilizados, justificando atos estatais fracassados, ilegais, imorais e ilegítimos, bem como tornando sem efetividade o já fragilizado Princípio da Moralidade Administrativa. Ademais, o gestor público recebe remuneração paga pelo povo para garantir a paz social e o pleno interesse público primário. Assim como um médico-cirurgião, ao realizar uma cirurgia plástica estética, tem a obrigação do resultado, cujo fracasso irá afetar apenas o particular envolvido, com muito maior razão os atos dos gestores públicos, uma vez que seus deslizes irão prejudicar toda uma coletividade. Com base em tais argumentos, entendemos que a moralidade administrativa, apesar de ser um princípio, e não uma regra, impõe uma obrigação de resultado, e não simplesmente de meio. Assim, ousamos, então, criar uma exceção à brilhante doutrina de Robert Alexy(3) e Ronald Dworkin(4), que defendem que as regras devem ser aplicadas na medida exata de suas prescrições, impondo obrigações de resultado, pois são mandamentos de prescrição; enquanto os princípios são mandamentos de otimização, que ordenam que algo seja cumprido na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Ocorre que, em se tratando do Princípio da Moralidade Administrativa, em razão dos argumentos acima levantados, e da própria estrutura que rege a Administração Pública e o Direito Administrativo moderno, entendemos que o princípio em estudo trata-se de uma exceção, pois se reveste de um mandamento de prescrição, e não somente de otimização, impondo sua aplicação integral, e não somente na maior medida possível. Destaque-se que somos a favor da notável doutrina de Dworkin e Alexy. Apenas estamos criando uma exceção à teoria por eles estabelecida. Afinal, não podemos esquecer que a exceção apenas confirma a regra. Neste ponto, entendemos que o Princípio da Moralidade Administrativa é, na brilhante doutrina de Humberto Ávilla(5), um postulado normativo, pois é uma norma de 2º grau (metanorma) que estabelece a estrutura de aplicação de outras normas, notadamente, as demais normas administrativas. Sendo postulado normativo e gerando uma obrigação de resultado, precisamos entender em que consiste o princípio em estudo. Hely Lopes Meireles(6) nos ensina que: “a moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput)”. Assim, atualmente, não basta que o administrador se limite a cumprir, friamente, o texto da lei, devendo, além disso, atender à moralidade administrativa e à sua finalidade, que é a realização do interesse público. Nesse sentido, Hely Lopes Meireles(7) nos ensina com maestria que: “Cumprir simplesmente a lei na frieza de seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. A Administração, por isso, deve ser orientada pelos princípios do Direito e da Moral, para que ao legal se ajunte o honesto e o conveniente aos interesses sociais. Desses princípios é que o Direito Público extraiu e sistematizou a teoria da moralidade administrativa.” Assim, o Princípio ou Teoria da Moralidade Administrativa envolve três dimensões: a legal (legalidade estrita), a moral (honestidade, ética, lealdade) e a finalidade (conveniente ao interesse público). Dessa forma, frise-se, para que o Administrador Público atenda aos ditames legais, não basta que cumpra a letra fria da lei, devendo, além disso, atuar conforme os padrões éticos de lealdade em relação ao administrado e motivado a realizar o interesse público, pois nem tudo que é legal é honesto, conforme lição dos romanos: “nom omne quod licet honestum est”. É com base nesta tríplice dimensão do Princípio da Legalidade que Hely Lopes Meireles(8) conclui que: “o controle jurisdicional se restringe ao exame da legalidade do ato administrativo; mas por legalidade ou legitimidade se entende não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo.” Ocorre que, hoje, o que se verifica na Administração Pública, em geral, é o descaso e a inefetividade da moralidade administrativa. No senso comum de nossos gestores, vigora a idéia de que o Princípio da Moralidade Administrativa é desprovida de imperatividade, sendo, tão-somente, uma diretriz hermenêutica-interpretativa, que deve ser utilizada mais na teoria do que na prática. Tais administradores confundem a moral comum com a moral administrativa. Enquanto aquela é desprovida de imperatividade, gerando, a sua violação, no máximo, uma sanção social, esta é norma jurídica e impõe a sua observação. Nesse sentido é a lição de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo(9): “A denominada moral administrativa difere da moral comum, justamente por ser jurídica e pela possibilidade de invalidação de atos administrativos que sejam praticados com inobservância deste princípio.” Nesse sentido é também a lição de Hely Lopes(10), citando Hauriou: “A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.” Assim, poderíamos chamar o Princípio da Moralidade Administrativa de Tríplice Dimensão da Legalidade, a fim de buscar alterar esse injustificável senso comum e buscar garantir a real efetividade que o ordenamento jurídico lhe confere. Ora, como vimos, a Teoria da Moralidade Administrativa possui três dimensões: a legal (legalidade estrita), a moral (honestidade, ética, lealdade) e a finalidade (conveniente ao interesse público). Não basta, assim, só cumprir a lei, deve-se também buscar o interesse público e agir com ética. Por essa razão, de acordo com o Direito Administrativo Moderno, para se atingir a legalidade tem-se que atingir essas três dimensões. Então, tanto a Moralidade Administrativa como a Legalidade possuem essa natureza tridimensional, que, notadamente, demanda sua observação em todos os seus planos. A própria Lei 8.429/92, em seu art. 11(11), nos mostra as três dimensões do princípio em estudo, ao afirmar que constitui ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que viole a legalidade (dimensão da legalidade estrita), a honestidade, a imparcialidade e a lealdade às instituições (dimensão da moral) ou que pratique ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência (dimensão da finalidade), senão vejamos: “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: A mais inadmissível forma de se tentar, nos dias atuais, burlar o Princípio da Legalidade é alegando que se cumpriu a lei, quando, na verdade, não se alcançou a finalidade pública, nem tampouco se agiu com honestidade. O gestor público que só cumpre a letra fria da lei, sem garantir o interesse público nem agir com lealdade frente à instituição que administra, viola não somente o Princípio da Moralidade, mas também a própria Legalidade (lato sensu), pois apenas observa o plano da legalidade estrita, violando o plano da moral e do conveniente ao interesse público. Aprendemos, nos primórdios da faculdade, que o Direito evolui com a sociedade. Ora, se o descaso com a coisa pública está evoluindo, o Direito também está, notadamente, em busca de novas formas e teorias para combatê-lo. Nesse sentido, o STF, no julgamento do MS 27141 MC/DF(12), cujo relator é o Min. Celso de Mello, assim se manifestou: “Não se poderá jamais ignorar que o princípio republicano consagra o dogma de que todos os agentes públicos – legisladores, magistrados e administradores – são responsáveis perante a lei e a Constituição, devendo expor-se, plenamente, às conseqüências que derivem de eventuais comportamentos ilícitos. A submissão de todos à supremacia da Constituição e aos princípios que derivam da ética republicana representa o fator essencial de preservação da ordem democrática, por cuja integridade devemos todos velar, enquanto legisladores, enquanto magistrados ou enquanto membros do Poder Executivo. Não foi por outro motivo que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao analisar a extensão do princípio da moralidade – que domina e abrange todas as instâncias de poder –, proclamou que esse postulado, enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico, condiciona a legitimidade e a validade de quaisquer atos estatais: ‘A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. No julgado acima transcrito, observa-se que não somente a doutrina, mas também o STF entendem que o Princípio da Moralidade é um postulado revestido de caráter ético-jurídico, decorrente do próprio princípio republicano da responsabilidade estatal, que condiciona a validade e legitimidade de todos os atos emanados por qualquer das funções do Estado (Executivo, Legislativo ou Judiciário). Nosso ordenamento jurídico coloca à disposição do Ministério Público, por meio da Lei 8.429/92, os instrumentos necessários para se garantir a plena efetividade do postulado da moralidade administrativa. A fim de se buscar a sua integral aplicação, o STJ, no julgamento do REsp 880662/MG(13), entende que a violação ao princípio da moralidade administrativa dispensa a existência de dolo ou culpa por parte do agente público ou de efetiva lesão ao erário, senão vejamos: “ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DESPESAS DE VIAGEM. PRESTAÇÃO DE CONTAS. IRREGULARIDADE. LESÃO A PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. ELEMENTO SUBJETIVO. DANO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. SANÇÃO DE RESSARCIMENTO EXCLUÍDA. MULTA CIVIL REDUZIDA. Não obstante as críticas e os entendimentos contrários ao julgado acima exposto, entendemos estar correta a lição da 2ª Turma do STJ, pois, como salientamos no inicio do presente artigo, a atuação pautada nos ditames da moralidade é uma obrigação de resultado do administrador público. Dessa forma, basta a efetiva ocorrência da ilicitude para restar configurado o ato ímprobo, não sendo cabíveis escusas pautadas na ausência de dolo ou culpa ou lesão aos cofres públicos. É preciso entender que estamos na seara administrativa, e não na criminal, na qual vigora o princípio da estrita tipicidade e da responsabilidade subjetiva, pautada no dolo ou, eventualmente, na culpa, que são exigências do próprio Estado Democrático de Direito, pois envolve a liberdade do agente. No âmbito administrativo é natural que haja a atipicidade das condutas consideradas ímprobas pelos agentes públicos, bem como a responsabilidade objetiva, em algumas situações. Primeiro, porque a lei não teria como prever todas as formas de corrupção existentes (que, como ressaltamos no início, estão evoluindo assustadoramente). Segundo, porque exigir, em todas as situações, a ocorrência de dolo ou culpa por parte do agente público seria mitigar o próprio princípio republicano, que tem como um dos pilares a ampla responsabilidade estatal. Ademais, o STF, no julgamento da ADI 2797(14), considerou que a Lei de Improbidade Administrativa não tem natureza penal, mas sim civil, não obstante acarretar sanções de natureza civil, administrativa e, inclusive, política, razão pela qual entendeu que não há foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa, declarando, assim, a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/08, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao art. 84 do Código de Processo Penal. Assim, a ela não se aplicam os peculiares princípios da persecução criminal. Além do controle da probidade administrativa realizado pelo Ministério Público, devemos observar que há, também, o controle social, incumbido a cada cidadão brasileiro, por meio da Ação Popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da CF/88 e regulada pela Lei 4.717/65. Conclusão O Princípio da Moralidade Administrativa é um postulado normativo, decorrente do princípio republicano da ampla responsabilidade estatal, que gera uma obrigação de resultado para o agente público, o qual deve observância à sua tríplice dimensão: a legal (legalidade estrita), a moral (honestidade, ética, lealdade) e a finalidade (conveniente ao interesse público), razão pela qual o chamamos de Tríplice Dimensão da Legalidade. A violação de qualquer desses planos enseja a atuação do Ministério Público, por meio da Ação de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), ou de qualquer cidadão, por meio da Ação Popular (Lei 4.717/65), na busca pela invalidação do ato ilegal e a responsabilização dos infratores, uma vez que a Teoria da Moralidade Administrativa condiciona a validade e legitimidade de todos os atos emanados por qualquer das funções do Poder Estatal (Executivo, Legislativo e Judiciário). Aos operadores do Direito cabe a missão de velar pela correta e eficaz aplicação de tal postulado, conferindo a real importância que o ordenamento jurídico pátrio lhe propicia, a fim de lhe garantir a plena efetividade. Referências bibliográficas ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica [Theorie der juristischen argumentation]. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Mallheiros, 2003. DE MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Traduzido por Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. Notas 1. DE MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.107. 3. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica [Theorie der juristischen argumentation]. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. 4. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério.Traduzido por Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 5. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios:da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Mallheiros, 2003. 6. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p.83. |
Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |