Suspensão condicional do processo: considerações sobre o efetivo direito de audiência do acusado na hipótese em que o ato é realizado por meio de carta precatória

Autor: Murilo Mendes

Juiz Federal Substituto da 1ª Região
Publicado na Edição 24 - 02.07.2008


Desde o momento em que introduzido em nosso ordenamento, com a edição da Lei nº 9.099/95, o instituto da suspensão condicional do processo penal vem provocando uma série de controvérsias relevantes no âmbito da jurisprudência. A primeira delas talvez tenha sido aquela pertinente à definição do alcance do instituto relativamente ao seu principal beneficiário: o acusado. A doutrina autorizada sempre preconizou a existência de um direito subjetivo invocável por quem, respondendo a uma ação penal, preenchesse os requisitos objetivos e subjetivos estabelecidos no art. 89 da lei dos Juizados Criminais. Os Tribunais, no entanto, firmaram compreensão diversa: o que ali se tinha, segundo orientação majoritária, não era um direito subjetivo do acusado, mas uma faculdade do Ministério Público, faculdade que lhe era assegurada pela sua posição constitucional de titular da ação penal. Assim se manifestava o Superior Tribunal de Justiça:

“A egrégia Terceira Seção proclamou o entendimento de que a suspensão condicional do processo, solução extrapenal para o controle de crimes de menor potencial ofensivo, não é um direito subjetivo do réu, mas uma faculdade do titular da ação penal.” (STJ, RMS 13229/GO, Rel. Ministro Vicente Leal, Sexta Turma, julgado em 18.03.2003, DJ 17.11.2003, p. 380)

Esse entendimento, firmado já no início da vigência do instituto – e que permanece ainda nos dias de hoje –, foi, no entanto, mitigado também por orientação pretoriana: a faculdade não é caracterizada pela nota da discricionariedade, de modo que, não explicitados ao juiz os motivos idôneos da recusa, cumpre a este, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal, remeter os autos ao Procurador-Geral. Assim é o conteúdo da Súmula 696 do Supremo Tribunal Federal: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor da justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”. Essa, aliás, é uma estranha forma de analogia. Se por analogia se entende a aplicação “a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado(1), então não se poderia vê-la configurada quando divergem o juiz e o promotor a respeito da suspensão do processo: o que há de semelhança com o art. 28 do CPP é apenas a divergência. Mas a natureza da divergência é substancialmente diferente nos dois casos. Na hipótese do art. 28 do CPP, a divergência dá-se porque o promotor não quer denunciar – e o juiz sai em defesa da sociedade; no segundo caso, o motivo da discórdia é a recusa em oferecer a suspensão – e o juiz põe-se ao lado dos interesses do réu. Cézar Roberto Bittencourt assim expressa a sua opinião contrária a esse expediente:

“Tem-se sugerido a utilização da faculdade prevista no art. 28 do CPP. Mas esse ‘expediente’ também não satisfaz porque, naquela hipótese, o ‘recurso’ é contra o acusado e em prol da sociedade. Aqui a situação é diferente: será o denunciado que estará sofrendo constrangimento ilegal, com a não-propositura da suspensão do processo, quando, teoricamente, cabível. É exatamente isso: se os requisitos estiverem presentes, mas o Ministério Público, por qualquer razão, não os percebe, não os aceita ou os avalia mal, como consideramos tratar-se de um direito público subjetivo do réu, só há uma saída honrosamente legal: habeas corpus.” (in Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 603/4)

Uma outra questão suscitou controvérsia e requereu a manifestação dos Tribunais. Consistia ela em saber até quando, efetivamente, o benefício poderia ser oferecido, sendo que a respeito firmou-se entendimento de que a sua concessão era possível apenas até o momento em que proferida a sentença. Em acórdão do ano de 2001, ficou consignado o seguinte pelo Superior Tribunal de Justiça: “É firme o entendimento de que, proferida a sentença, não se aplica a suspensão condicional do processo, sob pena de se desvirtuar a natureza jurídica do instituto” (STJ, REsp 260826/SP, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em 03.04.2001, DJ 27.08.2001, p. 423). A sentença condenatória atuava como uma espécie de fator preclusivo relativamente à suspensão processual, de modo que, uma vez proferida, a matéria tornava-se “vencida” no âmbito da ação penal em curso. Dessa posição limitativa do “sursis processual” evoluiu-se para uma outra mais favorável aos interesses do acusado e que se traduz pelo entendimento de que, verificado pelo juiz, no momento da prolação da sentença, seja por motivo de desclassificação da imputação inicialmente feita pela acusação, seja em razão de solução absolutória quanto a um (ou mais) delito praticado em concurso, que o limite mínimo da pena do crime remanescente permite que se suspenda condicionalmente a ação penal, cumpre-lhe abrir vista ao Ministério Público para que o parquet se manifeste.

“Mostrando-se possível, em tese, a suspensão condicional do processo (Lei nº 9.099/95, art. 89), decorrente da desclassificação do crime tipificado na denúncia, necessária se faz a diligência judicial destinada a provocar a manifestação do Ministério Público a respeito. Ordem concedida, para anular a sentença e o acórdão impugnado, com retorno dos autos à instância originária, para viabilizar a manifestação do Ministério Público acerca de eventual proposta de suspensão condicional do processo.” (STJ, HC 43520/RJ, Rel. Ministro  Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 06.10.2005, DJ 14.11.2005, p. 356)

A ordem de  anulação da sentença é um indicativo bem claro de que não mais se atribui ao decreto condenatório aquele efeito preclusivo sobre o direito do acusado.

Tema que também foi objeto de especial atenção da jurisprudência, de relevância indiscutível para a aplicação da suspensão condicional do processo, é o que diz respeito à possibilidade de o juiz, já no recebimento da denúncia, desclassificar a imputação equivocada, de modo a enquadrá-la em delito que, em tese, pelo quantitativo da pena mínima, permite a sua realização. Aqui não há propriamente um consenso jurisprudencial. Não há inclusive muitas decisões a respeito.

Encontra-se, todavia, no Tribunal Federal da 4ª Região,  julgados que acolhem a tese da desclassificação ainda no início da demanda penal:

“O juiz pode, em face dos novos institutos da transação e da suspensão condicional do processo, já no recebimento da denúncia, dar nova capitulação aos fatos narrados na inicial, sempre que verificar ter havido vício de capitulação, com prejuízo para o réu.” (TRF4, HC 1999.04.01108403-7, relator para o acórdão Desembargador Federal Amir Sarti, 1ª Turma, 03.03.2000)

“O estelionato como crime material admite tentativa. A conduta narrada na inicial do Estado informa a prática pelo acusado do crime previsto no art. 171, c/c o art. 14, inc. 2, do CP-40. Recebida a denúncia pelo delito desclassificado para a forma tentada do art. 171 do CP-40, verificando-se a cominação da pena, que resulta aquém de um ano pela tentativa, impõe-se que se determine a remessa do processo ao Ministério Público Federal para as finalidades do art. 89 da Leis dos Juizados Especiais.” (TRF4, Inquérito nº 1998.04.01013605-0, relatora Desembargadora Federal Tânia Escobar, 26.08.98)

“Embora o habeas corpus não seja a via adequada para efetivar-se a desclassificação do delito – uma vez que, regra geral, tal circunstância implica verificação do conjunto probatório –, se faz necessário ao menos análise perfunctória da tipificação legal, principalmente nos casos em que a capitulação errônea da conduta acarreta supressão de certos benefícios legais aos acusados (transação penal, suspensão condicional do processo etc.).” (TRF4, HC 2007.04.00009148-6, Relator Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro, 02.05.2007)

Esse breve levantamento de precedentes relacionados com a suspensão condicional do processo tem o propósito apenas de demonstrar uma nítida inclinação da jurisprudência à construção de soluções interpretativas que confiram maior eficácia possível ao instituto. Nem poderia ser diferente. A suspensão condicional do processo não é mera regra de direito processual. Cuida-se, ao contrário, de instituto de direito material, como tal suficiente para despertar no intérprete aquele grau de abertura e predisposição recomendáveis no exercício interpretativo das normas penais, postura muito comum, de resto, no âmbito do Direito Penal. A possibilidade de concessão de habeas corpus de ofício, aliás, não é outra coisa senão um modo não muito sutil com que o legislador adverte o juiz para os poderes de que dispõe quando se defronte no processo com violações aos direitos dos acusados. E depois não se pode esquecer que a suspensão condicional do processo – e também a transação penal – veio ao ordenamento com intuito indiscutivelmente despenalizador, como uma alternativa à pena privativa de liberdade, sendo isso também mais um motivo para justificar um comportamento ativo do aplicador do Direito na direção de sua real e efetiva concretização.

Tomando em consideração esse aspecto da efetividade que a jurisprudência vem empregando ao instituto é que parece insuficientemente solucionada a situação que envolve a realização de audiência de suspensão condicional do processo por carta precatória.(2) O principal argumento para negar poder de iniciativa ao juiz e ao Ministério Público do local em que realizada a audiência é aquele segundo o qual a carta precatória é tão-somente um ato de colaboração, não se admitindo que o juízo deprecado exorbite de suas funções de mero colaborador e passe a dispor de matéria que seria de atribuição (competência) do juízo deprecante. Se o ato decisório que se  reputa insuscetível de ser praticado é o ato de homologação do acordo firmado entre o Ministério Público e o acusado, não há explicação consistente para que seja ele considerado válido apenas quando a proposta aceita tenha sido aquela formulada no juízo de origem. Se se diz que o juiz deprecado não pode decidir, então ele não pode decidir em nenhuma hipótese, nem quando a homologação incida sobre a proposta contida na precatória, nem quando recaia sobre proposta feita na audiência deprecada pelo Ministério Público que esteja presente. E, sendo assim, o juízo deprecado, após ouvir do réu que estaria de acordo com as condições impostas, deveria devolver a carta, para que no juízo deprecante fosse proferida a decisão homologatória. Depois de homologado o acordo, nova precatória seria expedida, para que realizado o acompanhamento. Esse procedimento, além de  irracional e contraproducente, tem ainda um outro inconveniente, que pode suscitar controvérsias entre os dois juízos (o deprecante e o deprecado): pode ocorrer que na origem sejam fixadas condições que afrontem os direitos constitucionais do acusado (restritivas do direito de locomoção, por exemplo), e nesse caso não se poderia impor ao juízo deprecado que fiscalizasse, de maneira “neutra” e desinteressada, o cumprimento da restrição contra a qual se levante a sua consciência. E nem se poderia argumentar com a impossibilidade de recusa da carta precatória fora das hipóteses do art. 209 do CPC. Ainda que em casos excepcionais, a jurisprudência vem reconhecendo ao juízo deprecado o direito de  exame da legalidade do ato deprecado:

“Havendo nos autos elementos que desautorizem o levantamento do depósito pleiteado pela parte agravante, não há que se falar em ofensa ao art. 209 do Código de Processo Civil, pela recusa do MM. Juiz Federal agravado em dar cumprimento à carta precatória, em face da incidência ao caso em comento do disposto no art. 125, incisos I e IV, do referido diploma legal.” (TRF da 1ª Região, AG 1999.01.00003466-9, relator Desembargador Federal I’talo Mendes, 05.06.2000)

“Não deve ser absoluto o entendimento no sentido de que a recusa ao cumprimento de carta precatória somente pode ocorrer nas estritas hipóteses ao art. 209 do Código de Processo Civil, quando há, como no presente caso, relevantes fundamentos que autorizem o seu não-cumprimento.” (TRF da 1ª Região, MS 2003.01.0018128-1, relator Desembargador Federal I’talo Mendes, 10.11.2004)

Se esse controle da legalidade é possível em feitos cíveis, que dirá então em matéria penal!

Mas o certo é que a questão nem precisaria ser posta assim em termos tão extremados – sob uma ótica do “tudo ou nada”. Bem apreciado o problema, o que se tem nesses casos em que a suspensão condicional do processo é feita mediante a expedição de carta precatória é a deprecação de uma audiência. O que se depreca não é um simples ato de comunicação, de instrução processual ou de constrição, como se tem de ordinário nas cartas precatórias. É a realização de uma audiência que é requerida do juízo deprecado. Se por audiência se entende a “atenção dada a quem fala” (Aurélio)(3), o ato em que o juiz e o promotor escutassem o réu, mas não lhe dessem ouvidos, poderia ser tudo, menos uma audiência. Tratar-se-ia apenas de um simulacro; de uma imitação. O que se tem que admitir é que a deprecação da suspensão do processo já não cabe mais nos limites estreitos das providências que a lei ordinariamente reserva ao juízo deprecado. E deve-se também admitir que o impasse não pode ser resolvido com a restrição dos direitos fundamentais do acusado, entre os quais se inclui, evidentemente, o direito de audiência como ato pleno e efetivo, com o diálogo que lhe é inerente, e não como mero ato de comunicação. Essa opção em favor da regra processual da carta, com a invocação do argumento do juízo competente que lhe está subjacente, por negar eficácia à realização da suspensão do processo relativamente ao réu que reside fora do local do delito, deve ser substituída por uma outra que privilegie a regra de direito material penal, cuja efetivação não prescinde de contato direto entre o acusado e o órgão ministerial, como forma natural de viabilização do acordo. “Os sucessos do processo”, assinalam Cândido Dinamarco, Ada Grinover e Antônio Carlos de Araújo Cintra, “não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é também um instrumento (à aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta importância, a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou absolvido um culpado)” (in Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 44), formulação especialmente válida quando se pretende, com base nela, encontrar uma solução que atenda, sem prejuízo aos direitos do réu, à efetividade da prestação jurisdicional. Se a carta precatória assume, na hipótese, feição por assim dizer atípica, outra deve ser a atuação do intérprete que lhe investigue o alcance, empreendendo um trabalho hermenêutico que lhe atualize o sentido e a torne condizente com a nova realidade, sendo certo que o problema não foi objeto de atenção do legislador ordinário quando fez introduzir o art. 89 da Lei nº 9.099/95 no ordenamento. “Quanto melhor souber a jurisprudência adaptar o Direito vigente às circunstâncias mutáveis da vida”, observa Carlos Maximiliano, “tanto menos necessário se tornará pôr em movimento a máquina de legislar. Até mesmo a norma defeituosa pode atingir os seus fins, desde que seja inteligentemente aplicada” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense: Rio de Janeiro, 1988. p. 61). É sabido que o processo penal tramita ordinariamente no local do crime (art. 70 CPP) porque ali se revela mais efetiva a colheita da prova. Não menos verdade (e isso não se pode negar)  é que o juízo da audiência deprecada é o que reúne melhores condições de avaliar as justificativas apresentadas pelo acusado.

O que se há de buscar, portanto, é uma solução harmonizadora, que, sem retirar autoridade do juiz da causa, confira ao juízo deprecado poder de iniciativa indispensável à realização efetiva do instituto. Assim é que se revela bem razoável o entendimento de que o juízo encarregado da audiência (deprecado) não poderia estabelecer condições mais onerosas ao réu do que aquelas fixadas na origem. Teria como pauta mínima a proposta que lhe foi enviada, só podendo modificá-la para melhor, depois de ponderados os motivos apresentadas pelo réu para a impossibilidade de cumprimento. É bom ter presente que “princípios como o do devido processo legal e o do juízo natural somente podem ser invocados em favor do réu e nunca em seu prejuízo” (STF, HC 80263/SP, Rel. Ministro Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, julgado em 20.02.2003, DJ 27.03.2003, p. 30).(4)  De qualquer modo, a competência do juiz da causa não fica afastada, pois é dele, afinal, a decisão sobre a extinção da punibilidade, contra a qual poderá o acusado, sendo-lhe esta desfavorável, interpor o recurso cabível ao Tribunal respectivo. Revela-se apropriada ao caso que se discute a lição de Cézar Roberto Bittencourt:

“A transação penal, seguida da possibilidade, entre outras condições, da suspensão condicional do processo, representa um novo modelo consensual da Justiça Criminal. Essa nova política criminal exige uma nova postura institucional dos operadores do Direito, onde não há espaço para disputas de belezas, na tentativa de sobrepujarem-se umas as outras. A harmonia, o desapego e a racionalização, sem hostilidades (nem entre os operadores do Direito nem em relação ao autor do fato), serão fundamentais para aceitação do acordo e para o êxito final dos novos institutos” (op. cit. p. 582).

É em respeito também a essa racionalização do serviço judiciário, a que faz referência a doutrina,  que se mostra possível empreender um esforço de interpretação tendente a viabilizar o direito do acusado de ser efetivamente ouvido em juízo. Conquanto a direção racional do processo não seja um princípio expresso na Constituição, ela pode ser vista, sem dúvida alguma, como uma decorrência lógica do postulado maior da efetividade da jurisdição, a que se deve recorrer também em matéria penal, especialmente quando favorável aos interesses do acusado.(5) Se não se conceber a possibilidade de modificação da proposta no juízo deprecante, deve-se afirmar então – porque isso é o que acontecerá na prática – que o réu que mora em lugar diverso daquele em que praticado o crime não tem direito de audiência, não pelo menos naquela acepção comum em que o termo é normalmente empregado, restando vulnerado não um princípio específico da Carta, mas o próprio princípio democrático. Dificilmente se encontraria argumento para justificar essa espécie de discriminação. Se o réu vem a juízo falar com um juiz que não o escuta e com um promotor alheio ao que ele diz, uma “audiência” assim realizada mais se aproximaria de um procedimento kafkiano do que de um ato jurisdicional legítimo. E, em vez de deprecação de audiência, o mais correto seria que o réu fosse comunicado sobre as condições feitas na origem por uma simples correspondência. É bom ter presente que o direito de audiência não é uma garantia que possa ser extraída apenas do ordenamento interno. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) contém, em seu art. X, cláusula expressa a respeito: “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal”. Considerando-se o especial relevo que os tratados adquiriram no texto constitucional com a edição da Emenda nº 45, de 08.12.2004, esse é ainda mais um fundamento que viabiliza, em favor do acusado, uma interpretação que leve a prestigiar o seu direito de efetivamente ser ouvido em juízo, direito que não adquirirá plena eficácia se realizado sem o diálogo e a interação que devem orientar os participantes do ato.  

Mas há ainda um outro modo de ver a questão e que consiste em definir a posição que o Ministério Público ocupa na audiência realizada por carta precatória para a suspensão condicional do processo. Não está ainda bem definido o  entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a figura do “promotor natural”. Em discussão travada no HC 67759-2, a questão foi ventilada e amplamente discutida, sendo que, na ocasião, o Pleno inclinou-se a considerar que o instituto não poderia ser extraído diretamente do texto constitucional.(6) De qualquer modo, não é o caso de aprofundamento sobre o tema, que se mostra, de rigor, dispensável à análise do problema. Apenas deve ser dito que Promotor natural é figura que se opõe a promotor de exceção, aquele eventualmente nomeado ad hoc para determinada tarefa. Uma coisa, porém, é certa, por mais óbvia que pareça: não existe a figura do “promotor competente”. Competência é conceito que se aplica ao órgãos judiciários.(7) Então, em se aplicando aquele entendimento há muito firmado na jurisprudência, segundo o qual a suspensão é faculdade do Ministério Público, ou seja, é do órgão ministerial a iniciativa da proposta, nada impede que o promotor da audiência, no exercício legítimo das garantias constitucionais que lhe são asseguradas, reformule, depois de ouvido o réu e acolhida a sua eventual objeção, a proposta feita na origem. Os princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional, que regem a atuação do Ministério Público (art. 127, § 1º, da CF), legitimam a interpretação de que o promotor da audiência deprecada é também, nesse ato específico, o “promotor da causa”. E o juiz, nesse caso, ao homologar o acordo, estaria dispondo sobre a manifestação do parquet presente à audiência, dentro dos limites de sua competência. “Afirmar que o Ministério Público é uno e indivisível significa dizer, como anotou Arruda Alvim, que a manifestação de qualquer de seus agentes, no cumprimento do dever funcional, vinculará a própria instituição como um todo”.(8) E essa manifestação de caráter vinculante para toda a instituição como um todo só poder ser uma: a última.

Não custa lembrar, de outra parte, que a jurisdição de primeira instância é cada vez mais estimulada pelos órgãos superiores da administração da Justiça a promover atividades de cunho conciliatório, como forma de fazer valer na prática aquela efetividade que constitui promessa constitucional e expectativa legítima do jurisdicionado. Promessa desse tipo não pode ser realizada simplesmente com menosprezo das regras processuais. Mas nada impede que o intérprete promova uma adaptação de regras antigas à nova realidade, sendo antes recomendável que assim proceda.(9) E o modo mais correto, salvo melhor juízo, de conferir eficácia à audiência de suspensão condicional do processo realizada por carta precatória é conceder ao acusado efetivo direito de ser ouvido pelo juiz e pelo promotor, entendido esse direito em sentido amplo, com as conseqüências daí decorrentes, entre as quais está a de oferecer eventuais objeções às condições impostas, com as justificativas que lhes sejam pertinentes, e a de requerer o estabelecimento de outras, para que se realize, de modo eficaz, o caráter negocial subjacente ao instituto. É bem ilustrativo a esse respeito, aliás, o seguinte excerto de decisão proferida pelo eminente Ministro Celso de Mello:

“A Lei nº 9.099/95, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que uma regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça criminal, que privilegie a ampliação do espaço de consenso, valorizando, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal.” (STF, HC 94085/MC/SP, Rel. Ministro Celso de Mello, Decisão monocrática, julgado em 28.03.2008, DJE-060, divulg. 03.04.2008, public. 04.04.2008)

Esse “espaço de consenso” somente ganhará especial relevância jurídica quando puder ser exercido no local em que realizado o contato direto do acusado com o juiz e  com o representante do Ministério Público – no juízo deprecado.

Referências bibliográficas

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal:parte geral, v. 1., 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. In: Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva,  2005.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994.
FERREIRA, Aurélio B. Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

 

Notas

1. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 107. “O fundamento da analogia”, assinala mais adiante a eminente doutrinadora, “encontra-se na igualdade jurídica, já que o processo analógico constitui um raciocínio “baseado em razões relevantes de similitude”, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes, sem contudo ter por objetivo perscrutar o exato significado da norma, partindo, tão-só, do pressuposto de que questão sub judice, apesar de não se enquadrar no dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão”. (p. 109)

2. O Superior Tribunal de Justiça, em julgado de 1997, analisou o seguinte caso: o juiz deprecado recebeu a precatória sem que o juízo deprecante houvesse formulado as condições da suspensão; julgando-se incompetente para formulá-las ele próprio ao réu, devolveu a carta. Decisão do conflito: “Conheço do conflito e julgo procedente para declarar competente para estabelecer as condições de que trata a Lei 9.099, art. 89, o juiz deprecante”. No corpo do voto, ficou assinalado o seguinte: “Daí porque assiste razão ao juízo deprecado, que não poderá estabelecer condições para que o acusado possa cumprir, eis que a Lei 9.099/95 determina que, aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, o juiz, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, especificando as condições gerais e as adequadas à situação pessoal do acusado. Atos como tais não podem ser deprecados, mas tão-somente diligências que independem de juízo decisório, como a submissão da proposta de suspensão do processo e a fiscalização do seu cumprimento” (CC 18.619/SP, relator Ministro José Arnaldo, 28.05.2007). Conclusão: o juiz deprecado não tem poder de deliberação. Sua atividade limita-se a comunicar ao réu as condições impostas na origem pelo Ministério Público no juízo de origem. Não havendo aceitação, a carta deve ser devolvida. Se o réu aceitar as condições impostas, o juiz homologa e passa a fiscalizar o cumprimento.

3. AUDIÊNCIA. In: FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 202.

4. “Os atos praticados por órgão jurisdicional constitucionalmente incompetente são atos nulos e não inexistentes, já que produzidos por juiz regularmente investido de jurisdição, que, como se sabe, é una. Assim, a nulidade decorrente da sentença prolatada com vício de incompetência do juízo precisa ser declarada e, embora não possua o alcance da decisões válidas, pode produzir efeitos.” (STF, HC 80263, relator Ministro Ilmar Galvão)

5. “Uma das características do processo civil moderno”, assinala Cândido Dinamarco, “é o repúdio ao formalismo, mediante a flexibilização das formas e interpretação racional das normas que as exigem, segundo os objetivos a atingir. É de grande importância a regra da instrumentalidade das formas, concebida para conduzir a essa interpretação e consistente na afirmação de que, realizado por algum modo o objetivo de determinado ato processual e não ocorrendo prejuízo a qualquer dos litigantes ou ao correto exercício da jurisdição, nada há a anular ainda quando omitido o próprio ato ou realizado com transgressão a exigências formais” (in Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2005, v. I, p. 57). Embora as considerações digam respeito ao processo civil, não se pode negar que ao processo penal também se aplica a exigência dessa condução racional que o direcione para a boa solução do conflito, contanto, sempre e necessariamente, nesse caso, que não se afrontem direitos e garantias instituídos em favor do acusado. 

6. STF, HC 67759/RJ, Rel. Ministro Celso Mello, Tribunal Pleno, julgado em 6.08.1992, DJ  1.07.1993, p. 13142. “Nem me parece”, dizia o Ministro Sepúlveda Pertence em certa passagem de seu voto, “que o sistema constitucional constitua óbice à continuidade e ao aprofundamento da experiência de grupos especiais de promotores, dedicados a matérias específicas: na medida em que constituídos na forma da lei, o plexo de atribuições de tais equipes, ipso facto, estará subtraído da esfera protegida das atribuições legais ordinárias do agente que tenha a sua demarcação na competência do juízo perante o qual sirva. Estou, data venia, em que a opinião contrária é fruto do mesmo mimetismo a que aludi e parte da falsa idéia de que a rotina ronceira de que o ofício de cada órgão do Ministério Público deve ter atribuições coextensivas ao de um órgão judiciário. Nada, entretanto, o impõe e as conveniências da administração dos fins institucionais do Ministério Público freqüentemente o desaconselham”. Já o Ministro Celso de Mello defendeu enfaticamente a possibilidade de se extrair do texto da Carta a existência do princípio em nosso ordenamento: “O princípio do Promotor Natural, tendo presente a nova disciplina constitucional do Ministério Público, ganha especial significação no que se refere ao objetivo último decorrente de sua formulação doutrinária: trata-se de garantia da ordem jurídica destinada tanto a proteger o membro da instituição, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente de seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei”. O Ministro Paulo Brossard, de sua vez, adotou postura mais radical, não enxergando no texto maior fundamento que admitisse sustentar a figura do promotor natural: “Aliás”, assinalava o Ministro, “a designação de um promotor para acompanhar todos os processos decorrentes de certa operação policial, como no caso vertente, parece-me que se justifica por si mesma, a conveniência de dar unidade e coerência à ação do Ministério Público em relação a situações idênticas, evitando contradição ou desconformidade em procedimentos resultantes de uma só origem (...). O Procurador-Geral tem esse poder? Entendo que sim; ele tem de ter; não precisa a lei dizer; decorre da própria organização do serviço público. A menos que houvesse norma legal expressa em contrário, tenho para mim que é um poder ínsito a toda organização do serviço público”. E, para enfatizar que nem os princípios constitucionais da unidade e indivisibilidade o faziam pensar em sentido contrário, deixou assinado o seguinte: “Eu apenas diria, Senhor Presidente, e sem propósito de prolongar o meu voto, que os princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público não são uma novidade. A eles se refere a velha lei do Ministério Público, e mais que isto, Senhor Presidente, antes que estivesse na lei, estava na jurisprudência”.

7. “Competência é o conjunto das atribuições jurisdicionais de cada órgão ou grupo de órgãos, estabelecidas pela Constituição e pela lei. Ela é também conceituada como medida da jurisdição (definição tradicional) ou quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a um órgão ou grupo de órgãos (Liebman). Considerando determinado órgão judiciário, ou grupo de órgãos, sua competência é representada pela massa de atividades jurisdicionais que a ele cabe realizar, segundo o direito positivo.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit, p. 436)

8. ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Civil Pública: competência para a causa e repartição de atribuições entre os órgãos do Ministério Público. Disponível em: <http.bdjur.stj.gov.br>

9. Pertinente, mais uma vez, a lição de Carlos Maximiliano sobre a impossibilidade de o legislador prever, quando edita a norma, todas as conseqüências de sua introdução no ordenamento: “Portanto a doutrina e a jurisprudência, ora consciente, ora inconscientemente, avançam dia a dia, não se detêm nunca, acompanham o progresso, reprimem os inesperados abusos, dentro dos princípios antigos, evolutivamente interpretados, num esforço dinâmico e inteligente, sem embargos de aludirem ainda muitos a uma vontade diretora, perdida nas trevas de passado remoto. Eis aí a ficção: presume-se o impossível; que o legislador de decênios atrás previsse as grandes transformações até hoje operadas e deixasse, no texto elástico, a possibilidade para abrigar no futuro direitos periclitantes, oriundos de condições novíssimas. A sua visão profética atingiu não só os problemas jurídicos, mas o estado das coisas que os fez surgir; (...) Se fôssemos, a rigor, buscar a intenção ocasional, precípua do legislador, o encontraríamos visando horizonte estreito, um conjunto de fatos concretos bastante limitado. Quase sempre a lei tem por fundamento um abuso recente; os seus prolatores foram sugestionados por fatos isolados (...). O legislador não suspeitou as múltiplas conseqüências lógicas que poderiam ser deduzidas de suas prescrições, não estiveram na sua vontade, nem se encontraram na sua intenção. Os tribunais apenas desenvolveram um princípio sólido, uma idéia precisa, sem embargo do pensamento gerador, primitivo, e às vezes até em possível, senão provável, divergência com este”. (op. cit., p. 25/6)

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2008. Disponível em:
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Acesso em: .