Discurso em homenagem ao centenário do Professor Ruy Cirne Lima(1) Autor: Paulo Alberto Pasqualini |
I Com o passar dos anos são tantos os amigos que partem que não encontramos mais palavras para expressar a nossa dor e a nossa saudade. A caminhada da vida para a morte, do tempo para a eternidade, prossegue inexorável, apesar do nosso desejo irrealizável de fazer com que a contagem indefectível das horas se detenha e que os melhores momentos da vida fiquem marcados, indelevelmente, em nossa consciência. As imagens dos belos dias passados esmaecem, contudo, à medida que o tempo foge. A visão se transforma em memória, a vivência se transmuda em recordação, o afeto se converte em lembrança carinhosa de pessoas que fizeram parte das nossas vidas, cujas existências por um momento coincidiram com as nossas, para depois se eclipsarem e permanecer apenas a saudade. Ao contrário do desejo expresso por Lamartine, o tempo jamais suspenderá o seu vôo e as horas propícias nunca mais retornarão nesta vida, que é simples passagem, mera transição de uma forma contingente de existência para uma perene. É por isso que o poeta nos diz que o homem não encontra nenhum porto onde repousar e o tempo não pára diante de nenhum ancoradouro para fazer uma pausa. Ele corre célere e nós passamos. Do convívio resta, porém, a lembrança, a memória recolhida de uma convivência passada, que não retornará jamais, mas que guardaremos e transmitiremos com amor às gerações que nos sucederem. Nessa continuidade é que reside o segredo da vida, renovada perpetuamente de geração em geração, em que os exemplos do passado servem de impulso fecundo à preservação e ao melhoramento da existência. Há amizades fraternas que nem a distância do tempo nem a separação transitória entre a vida e a morte conseguem apagar. A sintonia entre as afeições, a fidelidade recíproca de duas vidas e a benevolência mútua jamais serão eliminadas pela interrupção de uma existência e pelo passar do tempo. A amizade, como bem sentia Cícero, outra coisa não é do que o acordo perfeito dos sentimentos sobre todas as coisas, tanto divinas quanto humanas, unido a uma benevolência e uma ternura comuns. Por isso, ela foi o dom mais precioso que Deus fez aos homens. O seu sustentáculo reside na virtude. Não são as riquezas, não são as honras, não são os prazeres, não é o poder que a sustenta. As coisas passageiras, que trazem a marca efêmera da materialidade, não poderiam possuir energia suficiente para plasmar e manter um vínculo afetivo duradouro, que se projeta para além da imensidão do tempo. É por isso que a verdadeira amizade transcende a vida que conhecemos e que os mortos, de certa forma, continuam vivos para nós; vivos na nossa saudade, vivos na recordação perene que deixaram, vivos no exemplo que legaram às gerações futuras. Vivos também em uma outra vida, incompreensível para os mortais, mas que certamente existe e que é o resultado da passagem pela porta estreita da morte. Na afirmação de Santo Agostinho, a vida não é tirada, mas transformada (Vita mutatur, non tollitur). Se as lembranças perecessem com nossos melhores amigos, não seria possível suportar as suas perdas. Longe de se extinguirem as recordações, crescem com o decorrer dos anos e permanecem como sinal indelével das suas existências, tornando suportável a amargura das ausências sentidas. O Prof. Ruy Cirne Lima, de cujo nascimento comemoramos este ano o centenário, cada vez vive mais na memória de seus amigos e antigos alunos. Cirne Lima, em artigo memorável, publicado no antigo Correio do Povo, em 10 de março de 1968, intitulado "Uma frase, apenas", manifestava a angústia existencial que nos domina e que nos faz oscilar entre a vida e a morte. Citava, inicialmente, o grande teólogo Paul Tilich, em passagem constante de seu livro Systematische Theologie, na qual afirmava: "A angústia da existência humana provém-lhe da ameaça do não-ser, do temor do nada", que lhe põe, ao redor, “o mais terrível e abismal dos limites”. Dizia, então, Cirne Lima que "somente a idéia de Deus nos pode romper esse enclausuramento aflitivo – a idéia do Ser infinito, do Ser absoluto, do Ser plenamente ser" (CIRNE LIMA, Ruy. Uma frase, apenas). Para chegar a Deus, e aí está precisamente a abertura maravilhosa de seu pensamento, no seu sentir, "Basta seja impossível provar que Deus não existe". Eu conversei com ele sobre esse artigo e lhe disse que ele se situava precisamente dentro do pensamento de Immanuel Kant, ao fazer tal afirmação. Ele respondeu-me que eu tinha apanhado a essência da questão. Kant, na Crítica da Razão Pura, discorrendo sobre a existência de Deus, afirmava categoricamente: "Não, minha convicção não é lógica, mas moral, uma certeza moral; desde que ela repousa em um fundamento subjetivo (do sentimento moral), eu não devo dizer: é moralmente certo que existe um Deus, mas: eu estou moralmente convencido de que ele existe, isto é, que minha crença em Deus e em outro mundo está tão interpenetrada com minha natureza moral que eu estou absolutamente seguro de que é verdadeira" (KANT, v. 42, Great Books of the Western World, The Critique of Pure Reason, 1952, Chicago, p .242). Essa certeza moral acompanhou o Prof. Ruy Cirne Lima em todos os seus dias. Por isso, tinha a consciência plena de nossas limitações e de nossa finitude. O Prof. Cirne Lima era um “scholar” na acepção pura do termo. Um erudito, cuja sabedoria cobria todos os campos do direito e não se detinha nas fronteiras do tempo. Do Direito Romano, passando por todas as suas épocas, cruzando a Idade Média, convivendo desenvoltamente com os ensinamentos dos glosadores, passando pelas transformações sucessivas do saber jurídico e chegando até a época contemporânea, os seus conhecimentos não arrefeciam diante de nenhuma dificuldade. Mas não era apenas no Direito que pontificava com segurança e proficiência inigualáveis. Na Filosofia, na Economia, na Política e na Literatura manifestava-se sempre com o domínio e o conhecimento de um mestre insuperável. Permaneceu no espírito dos que ficaram a recordação das suas longas conversações, na sala dos professores da Faculdade de Direito – hodiernamente transformada numa sala em que ninguém mais se encontra –, às vezes pelas manhãs afora, outras varando a noite, em que ouvíamos, atentos, suas manifestações judiciosas, seus conhecimentos ímpares e as citações que fazia de memória sobre os temas mais diversos. Em Filosofia, tinha uma admiração enorme por Aristóteles, por S. Tomás, por Kant e por Maurice Blondel. Era conhecida, entretanto, sua predileção pela poesia, em que apreciava imensamente os parnasianos. Recordo-me do seu encanto por Baudelaire. Dizia-me, certa vez, que o mais belo soneto da língua francesa era de autoria de Baudelaire; seu título: “La Mort des Amants”. Lembro-me, quando era seu aluno, em 1959, de uma de suas aulas, em que relembrava as palavras de Paul Valéry, o grande poeta francês, e a sua desilusão do direito, embora fizesse apologia da justiça, no seu poema “Le Cimitière Marin”: “Je te soutiens, admirable justice De la lumière aux armes sans pitié!” Mas o traço fundamental de sua personalidade estava na sua imensa bondade, na capacidade de compreender as imperfeições humanas e de tolerar os erros e as fraquezas dos seus semelhantes. A essa bondade incomensurável se unia sua preocupação constante com a Justiça, que procurava afanosamente alcançar em seus pareceres e em suas decisões como Diretor da Faculdade de Direito. Para ele jamais o Direito se resumiu à letra fria da lei, ao Direito Positivo. A Justiça constituía o valor supremo a informar todas as questões jurídicas. Chamava a atenção, com freqüência, para temas como o do abuso do direito, em que a Justiça como valor novamente está em causa, afirmando que o Ecclesiastes, há milênios, havia dado solução perfeita a esse magno problema. No capítulo 7, versículo 17, estava consignada a solução: “Noli esse justus multum” (“Não pretendas ser justo demais”). Mas o Ecclesiastes continuava: “Nec plus sapias quam necesse est, ne obstupescas” (“Nem pretendas ser mais sábio do que é necessário, para que não te tornes estulto”). Essa conceituação do abuso de direito permaneceria pelos tempos afora como definição exemplar dessa figura jurídica. Quem com ele conviveu não poderá, contudo, esquecer sua imensa capacidade de doação, sua permanente preocupação diante dos necessitados e dos pobres, sua constante procura da Justiça e da prática da caridade. Se bem-aventurados são os que têm fome e sede de Justiça, os misericordiosos e os puros de coração, podemos ter a certeza de que seu espírito repousa serenamente na mão de Deus. II O Livro
O livro cuja 7ª edição agora o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul comemora representa a revisão e a reelaboração da 4ª edição, a última publicada sob a supervisão do Professor Ruy Cirne Lima. A 5ª e 6ª edições foram reproduções daquela, acrescidas de um prefácio do saudoso Geraldo Ataliba, que era filho de um grande amigo do Prof. Cirne Lima, o Prof. Ataliba Nogueira, que lecionava Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito do Largo S. Francisco, em São Paulo. A presente edição tem uma história. Lá pelo ano de 1974, no mês de outubro, fui visitar num final de tarde, ao sair do trabalho, o Prof. Ruy. Nessa ocasião ele me falou, em tom de sugestão, acerca da possibilidade de reeditar os Princípios de Direito Administrativo, que ele julgava devessem ser atualizados por mim, que então era o regente da disciplina. Falou-me, na ocasião, sempre naquele seu falar delicado, em termos de sugestão, que isso era costumeiramente feito pelos professores na Alemanha, citando, como exemplo, o livro do Prof. Hans Julius Wolff, cujo primeiro volume acabava de ser reeditado por seu sucessor, o Prof. Otto Bachof. A conversa ficou por aí. Algumas vezes retornei para visitar o Professor Ruy, sendo que, na última vez que o vi, fomos juntos visitar o Prof. Armando Camara, que padecia de moléstia incurável e já estava no final dos seus dias. Isso aconteceu no dia 18 de fevereiro de 1975 e me recordo, ainda, da despedida emocionada do Prof. Camara, que nos dizia: “Nós nunca mais nos veremos, meus queridos amigos”. Depois disso fui à casa do Prof. Ruy, onde jantei com ele e com dona Maria, nossa amiga e sua esposa. Lembro-me que iria no outro dia para Torres e ainda me recordo da figura dos dois queridos amigos me abanando do alto da escada de sua antiga casa. Quando retornei do veraneio, o Prof. Ruy teve, no dia 5 de março de 1975, um acidente vascular que o deixaria padecendo por 9 longos anos até sobrevir sua morte, em 1984. Por uma questão de escrúpulo, nunca falei a nenhum de seus familiares acerca de nossa conversa, que mantivéramos em outubro de 1974. Trinta anos se passaram e no ano de 2005 o saudoso João Antônio Cirne Lima, advogado e filho do Professor Ruy, consultou-me, por intermédio de seu filho, dr. Rodrigo Cirne Lima, sobre a possibilidade de eu vir a atualizar e reelaborar os Princípios. Respondi-lhe, na ocasião, que há 30 anos eu recebera essa mesma sugestão do Professor Ruy, mas que sempre me mantivera calado a respeito do assunto. Como João Antônio me afirmou, posteriormente, o Prof. Cirne Lima havia-lhe comunicado a conversa que tivera comigo. Não tive dúvidas em aceitar o encargo, com a aquiescência de todos os filhos vivos, e durante 6 meses do ano de 2005 realizei o trabalho. No final daquele ano, fomos, o dr. Rodrigo e eu, a S. Paulo, falar com o ilustre Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, velho amigo de mais de 40 anos, que também era amigo do Prof. Cirne Lima, em decorrência da amizade que unia o Prof. Ruy ao seu pai Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, que fora professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Celso Antônio nos encaminhou ao editor Malheiros e elaborou o prefácio para a 7ª edição, que veio a lume somente em janeiro de 2007. Como neste ano comemoramos o centenário do nascimento do Professor Ruy Cirne Lima, nada mais oportuno do que apresentar o seu trabalho, que serviu de livro de texto de inúmeras gerações que cursaram a Faculdade de Direito de Porto Alegre, da qual o Professor Cirne Lima foi catedrático e também Diretor. Tenho a lamentar que João Antônio Cirne Lima não tenha tido vida para ver impressa esta 7ª edição do livro de seu pai, que se empenhara tanto em ver reeditado, pois veio a ser vítima de moléstia insidiosa, que o arrebatou de nosso convívio durante o ano de 2006. Manifesto, agora, uma homenagem póstuma a um grande e sincero amigo, cujo desaparecimento causou a mim e a toda sua família profunda dor. Agradeço, sensibilizado, a homenagem do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul e a todos os amigos que aqui comparecem, bem como àqueles que manifestaram sua simpatia e sua amizade desde a publicação da nova edição do livro, no ano passado. 1. Discurso proferido no dia 10.06.2008, em evento realizado na sede do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) em homenagem ao centenário de nascimento do Professor Ruy Cirne Lima. O vice-presidente do TRF da 4ª Região, Desembargador Federal João Surreaux Chagas, representou o Tribunal na solenidade, durante a qual foi lançada a 7ª edição do livro Princípios de Direito Administrativo, de autoria do Prof. Cirne Lima, revisada e atualizada pelo Professor Paulo Alberto Pasqualini. |
Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |