 
A partir da segunda metade da década de 90, o Ministério Público Federal, isoladamente ou em litisconsórcio ativo com os Ministérios Públicos Estaduais, ajuizou diversas ações civis públicas contra o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS em defesa de interesses dos segurados e beneficiários do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. Essa louvável atuação institucional do Ministério Público, no sentido de dar um tratamento molecularizado a determinadas questões envolvendo o direito previdenciário, propiciando destarte uma solução uniforme para o problema e evitando a repetição de processos idênticos, foi perdendo fôlego no início dos anos 2000, de um lado, porque as principais questões ou as irregularidades mais flagrantes e de maior repercussão na esfera jurídica dos segurados e beneficiários foram sendo corrigidas por força de decisões judiciais proferidas no bojo das mencionadas class actions e, de outro lado, porque foi ganhando corpo o entendimento jurisprudencial segundo o qual o Ministério Público não tem legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública na defesa de direitos de natureza previdenciária.
Este segundo motivo fez com que o Ministério Público direcionasse parcialmente sua atividade como fiscal da ordem jurídica, na perspectiva do direito fundamental à previdência social, para a defesa de outras questões, não menos importantes, é bom registrar, mas que deixam os segurados e beneficiários do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, geralmente hipossuficientes, incluindo aí aqueles que têm direito aos chamados “benefícios de legislação especial”, sem o devido reconhecimento de seu direito, mormente quando se considera a relativa complexidade da legislação previdenciária e a carência de Defensores Públicos assim no âmbito da Defensoria Pública da União como no das Defensorias Públicas Estaduais. E, quando têm a oportunidade de contar com uma assistência judiciária, o reconhecimento desse direito previdenciário é geralmente serôdio, não sendo raro as causas previdenciárias se transformarem em causas sucessórias, apesar de todo o esforço que o Poder Judiciário tem envidado para imprimir celeridade nas milhões de ações previdenciárias individuais (estima-se que existam hoje cerca de 5 milhões de processos judiciais contra o INSS em todo o Brasil, sendo ajuizados 180 mil processos novos por mês, situação que levou à criação do Programa de Redução de Demandas Judiciais do INSS, nos termos da Portaria Interministerial AGU/MPS nº 08, de 03 de junho de 2008, a fim de solucionar os conflitos jurídicos na própria esfera administrativa e reduzir paulatinamente a quantidade de processos novos).
Nesse contexto, é bastante alvissareira a recente decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública especificamente em matéria previdenciária.
Deveras, a legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva de interesses individuais patrimoniais disponíveis, além daqueles casos previstos pelo legislador ordinário – a exemplo do que ocorre no âmbito das relações de consumo e no Estatuto do Idoso –, é reconhecida pela jurisprudência e pela doutrina desde que configurada a homogeneidade desses interesses e a relevância social. A propósito, registro o seguinte trecho do excelente voto do Desembargador Federal Otávio Roberto Pamplona proferido no EIAC 1998.04.01.058926-3, julgado pela 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no dia 14 de setembro de 2006 e que pacificou a divergência entre as Turmas no sentido de reconhecer a legitimidade do Ministério Público para ações previdenciárias, litteris:
“No que concerne à legitimação do Ministério Público para a tutela de direitos e interesses individuais homogêneos, além daqueles expressamente previstos pelo legislador ordinário, doutrina abalizada posiciona-se no sentido de que a relevância social do bem jurídico tutelado ou da própria tutela poderá justificar a sua legitimação para a propositura de ação coletiva em defesa de interesses privados disponíveis.
Rodolfo de Camargo Mancuso (in Ação Civil Pública, 8. ed., revista e atualizada, Revista dos Tribunais, p. 126) preleciona o seguinte: ‘Quando os interesses forem individuais homogêneos (CDC, art. 81, III), ainda assim remanesce a legitimação ativa do Ministério Público (CDC, art. 82, I; LC 75/93, art. 6º, XII), e isso sem embargo de aquela espécie de interesse metaindividual não constar no texto do art. 129, III, da CF: é que sua tutela pelo Parquet é favorecida pelo art. 129, IX, da CF, que libera a Instituição para o exercício de 'outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade'. Segundo nos parece, essa compatibilidade exsurgirá in concreto quando presente a nota adicional da indisponibilidade do interesse (CF, art. 127, final), que por sua vez decorre de sua relevância social, já que, de outro modo, isto é, quando o interesse seja puramente individual, ainda que concernente a um cúmulo de indivíduos, o manejo poderá ser feito pelas figuras litisconsorciais, observada a intervenção de advogado, para atendimento do pressuposto processual da capacidade postulatória (CF, art. 133, c/c CPC, art. 36). No ponto, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart: 'Não é, assim, qualquer direito individual (ainda que pertencente a várias pessoas) que admite a tutela por via de ação coletiva proposta pelo Ministério Público, mas apenas aqueles caracterizados por sua relevância social ou por seu caráter indisponível’.
Hugo Nigro Mazzilli condiciona a defesa dos interesses individuais homogêneos pelo Parquet à sua relevância social. Segundo ele, os interesses devem ser ‘de suficiente expressão ou abrangência social’ (Introdução ao Ministério Público, 1998, 2. ed., p. 64). E esclarece Ada Pellegrini Grinover, respondendo a questão da falta de previsão constitucional: ‘a Constituição de 1988, anterior ao CDC, evidentemente não poderia aludir, no art. 129, III, à categoria dos interesses individuais homogêneos, que só viria a ser criada pelo Código. Mas na dicção constitucional, a ser tomada em sentido amplo, segundo as regras da interpretação extensiva, enquadra-se comodamente a categoria dos interesses individuais, quando coletivamente tratados’. E continua: ‘a tutela dos direitos transindividuais não significa propriamente defesa de interesse público, nem de interesses privados, pois os interesses privados são vistos e tratados em sua dimensão social e coletiva, sendo de grande importância política a solução jurisdicional dos conflitos de massa’ (Das Class Action For Damages à Ação de Classe Brasileira: Os Requisitos de Admissibilidade – artigo publicado em Ação Civil Pública –, organizado por Edis Milaré, p. 32).
Teori Zavascki, por sua vez, ensina que: ‘(...) Entretanto, em casos excepcionais, devidamente justificados e demonstrados, em que a lesão a um conjunto de direitos individuais possa ser qualificada, à luz dos valores jurídicos estabelecidos, como lesão a interesses relevantes da comunidade, ter-se-ia presente a hipótese de lesão a interesse social, para cuja defesa está o MP legitimado pelo art. 127 da CF. Também nestas hipóteses – cuja configuração estará evidentemente sujeita ao crivo do Poder Judiciário – a atuação do MP, necessariamente em forma de substituição processual autônoma, limitar-se-á à obtenção de provimentos genéricos indispensáveis à restauração dos valores sociais comprometidos, sendo-lhe vedado deduzir pretensões que signifiquem, simplesmente, tutela de interesses particulares, ainda que homogêneos, ou de grupo’. (Defesa de Direitos Coletivos e Defesa Coletiva de Direitos, artigo publicado em Revista Jurídica, 1995. p. 17-33)
Seguindo essa linha doutrinária, sendo as atribuições do Ministério Público matéria eminentemente constitucional, a posição do Supremo Tribunal Federal culmina por espancar as controvérsias jurisprudenciais dos tribunais pátrios a respeito do tema. Confira-se o seguinte excerto de recente decisão:
‘(...) 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que tem a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se a proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso Extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.’ (RE nº 163.231, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 29.06.01). No mesmo sentido, têm decidido as Turmas (cf. AI nº 383.919-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11.04.2003; RE nº 150.073, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 18.10.00). 6. Adotando, pois, os fundamentos dos precedentes e valendo-me do disposto nos artigos 21, § 1º, do RISTF, 38 da Lei 8.038/90 e 557 do CPC, nego seguimento ao recurso. Publique-se. Int. Brasília, 24 de abril de 2006. Ministro Cezar Peluso, Relator.’ (RE 233522/MA, Min. Cezar Peluso, DJ 10.05.06, p. 79).
No mesmo sentido as seguintes decisões: AI 56620/MT, Min. Marco Aurélio, DJ 06.04.06, p. 68; RE 247134/MS, Min. Carlos Velloso, DJ 09.12.05, p. 81; RE 206067/SP, Min. Eros Grau, DJ 19.10.05, p. 51).
Em suas atividades institucionais o Ministério Público busca o interesse público, tendo a Constituição Federal destinado a este órgão o zelo dos mais graves interesses da coletividade. Dentre suas funções institucionais estão a de ‘zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia’ (art. 129, II, CF) e a de ‘exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade’ (art. 129, IX, CF).
Ademais, como se viu, não é estranha à Suprema Corte a elevação de certos interesses aparentemente individuais ou mesmo disponíveis à categoria de coletivos, qualificando os interesses individuais homogêneos como subespécies de interesses coletivos. Alguns direitos individuais homogêneos podem ser qualificados como interesses ou direitos coletivos, ou mesmo identificar-se como interesses sociais e individuais indisponíveis e, nessas hipóteses, a ação civil pública é a via adequada para a defesa dos mesmos, estando o Ministério Público legitimado para a causa (CF, art. 127, caput, e art. 129, III).
É o que ocorre no presente caso, onde a concepção finalística da ação civil pública visa à proteção de um grupo, classe ou categoria de segurados (beneficiários), tidos por hipossuficientes, que tiveram o cancelamento administrativo de seus benefícios sob a alegação de inobservância do devido processo legal.
A revisão administrativa, conquanto decorrente de lei (Lei nº 9.032/95), se pairar dúvidas quanto à observância do devido processo legal, pode ser impugnada pela via da Ação Civil Pública, estando o Ministério Público legitimado para a causa.
Com efeito, do devido processo legal decorrem os princípios do contraditório e da ampla defesa, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (art. 5, LV), e tais interesses, ainda que homogêneos de origem comum, são tidos como subespécies de interesses coletivos, uma vez tutelados prioristicamente pelo Estado por meio de sua lei maior, a Constituição Federal. É que levando-se em conta a natureza de tais interesses (direitos e garantias fundamentais) e visualizando-os em seu conjunto, sobressai o necessário interesse social (coletivo) a legitimar o Ministério Público para a ação civil pública, cujo zelo desses direitos e interesses encontra-se inserido em suas funções institucionais.”
O próprio Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública na defesa de interesses individuais patrimoniais disponíveis quando caracterizada a homogeneidade e a relevância social. Nesse sentido:
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTRATOS DE FINANCIAMENTO. SFH. SÚMULA 168/STJ.
1. O Ministério Público possui legitimidade ad causam para propor ação civil pública objetivando defender interesses individuais homogêneos nos casos como o presente, em que restou demonstrado interesse social relevante. Precedentes.
2. ‘Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado’ (Súmula 168/STJ).
3. Embargos de divergência não conhecidos.”
(EREsp 644.821/PR, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 04.06.2008, DJe 04.08.2008)
Entretanto, prevaleceu naquela Corte Superior, especificamente em matéria previdenciária, a orientação de não reconhecer a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública. Confira-se:
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. DIREITO PATRIMONIAL DISPONÍVEL. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM.
1. Tratando-se de benefício previdenciário, em que não há interesse individual indisponível, mas sim direito patrimonial disponível, suscetível de renúncia pelo respectivo titular, bem como não sendo relação de consumo, o Ministério Público não detém legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública em defesa de tal direito. Precedentes das Turmas que compõem esta Terceira Seção.
2. Embargos rejeitados.”
(EREsp 448684/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 28.06.2006, DJ 02.08.2006)
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. RENDA MENSAL INICIAL. REVISÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. AUSÊNCIA DE DIREITO INDISPONÍVEL. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM.
1. Tratando-se de benefício previdenciário, em que não há interesse individual indisponível, mas sim, direito patrimonial disponível, suscetível de renúncia pelo respectivo titular, o Ministério Público não detém legitimidade ativa ad causam para a tutela do direito vindicado. Precedentes.
2. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.”
(REsp 762.136/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 06.06.2006, DJ 01.08.2006)
“EMENTA: PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE. DECISÃO MANTIDA POR SEU PRÓPRIO FUNDAMENTO.
1 - O Ministério Público não possui legitimidade para propor ação civil pública que objetiva discutir a concessão de benefício previdenciário.
2 - Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir o fundamento da decisão atacada.
3 - Agravo a que se nega provimento.”
(AgRg no REsp 441.815/SC, Rel. Ministro Paulo Gallotti, Sexta Turma, julgado em 20.03.2007, DJ 09.04.2007)
Essa diretriz do Superior Tribunal de Justiça refletiu na jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, de maneira que algumas Turmas e Seções passaram a adotar esse entendimento, culminando inclusive com a desconstituição, mediante ação rescisória manejada pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, de importantes julgados sobre questões previdenciárias. Mas o assunto estava longe de estar pacificado, até porque se aguardava a manifestação do Supremo Tribunal Federal, a quem cabe a última palavra sobre esse tema de envergadura constitucional, dado que a legitimidade ativa do Ministério Público para a propositura de ação civil pública tem fundamento nos arts. 127, caput, e 129, inc. III, ambos da Constituição Federal.
E essa manifestação veio da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, negando provimento, por unanimidade, na sessão do dia 29 de abril de 2008, a agravo tirado contra decisão do Ministro Celso De Mello que negara monocraticamente provimento a recurso extraordinário, ao fundamento de que o direito do segurado à expedição de certidão parcial de tempo de serviço/contribuição no âmbito do Regime Geral de Previdência Social - RGPS é um direito individual homogêneo impregnado de relevante natureza social, legitimando destarte o Ministério Público para o manejo da ação civil pública. Confira-se o acórdão:
“EMENTA: DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. SEGURADOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. CERTIDÃO PARCIAL DE TEMPO DE SERVIÇO. RECUSA DA AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA. DIREITO DE PETIÇÃO E DIREITO DE OBTENÇÃO DE CERTIDÃO EM REPARTIÇÕES PÚBLICAS. PRERROGATIVAS JURÍDICAS DE ÍNDOLE EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL. EXISTÊNCIA DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEGITIMAÇÃO ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ‘DEFENSOR DO POVO’ (CF, ART, 129, II). DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
- O direito à certidão traduz prerrogativa jurídica, de extração constitucional, destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações.
- A injusta recusa estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizará a utilização de instrumentos processuais adequados, como o mandado de segurança ou a própria ação civil pública.
- O Ministério Público tem legitimidade ativa para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza social, como sucede com o direito de petição e o direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Doutrina. Precedentes.”
(RE-AgR 472.489, Rel. Min. Celso De Mello, Segunda Turma, julgado em 29.04.2008, DJe 28.08.2008)
Do percuciente voto do Relator, extraio o seguinte excerto:
“Cabe destacar, neste ponto, por oportuno, na linha do que se vem acentuando, a correta advertência que a douta Procuradoria-Geral da República fez, em seu pronunciamento, no caso ora em exame:
‘Não assiste razão ao recorrente quando pretende, em síntese, demonstrar que a decisão atacada ofendeu o contido no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, que cuida da legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública, mesmo sendo o caso de matéria relativa a direitos individuais homogêneos e disponíveis.
Inicialmente, vale frisar ser incorreta a afirmação genérica de que o Parquet não pode defender interesses individuais homogêneos. Tal afirmação é demasiadamente superficial. Se a defesa de tais interesses envolver relevante abrangência social, como a hipótese dos presentes autos, que trata do direito dos segurados da previdência social obterem certidão relativa ao seu tempo de serviço, deverá a ação civil pública correspondente ser intentada pela instituição. Ou seja, se, no caso concreto, a defesa coletiva de interesses transindividuais assumir importante papel social, não se poderá negar ao Ministério Público a defesa desses direitos.
(...)
Destarte, válido ainda destacar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 129, inciso III, traz apenas as expressões ‘interesses difusos e coletivos’, pois foi em 1990, ano da edição do Código de Defesa do Consumidor, que a expressão ‘interesses individuais homogêneos’ foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, quando a Carta Magna diz ‘interesses difusos e coletivos’, na realidade, está a referir-se aos interesses transindividuais lato sensu, nos quais também estão abrangidos os ‘interesses individuais homogêneos’.
(...)
Depreende-se da análise dos autos, sem dúvida alguma, que a quaestio iuris é eminentemente social, na medida em que a Carta Magna garante ao segurado a obtenção de certidões perante as repartições públicas, seja para a defesa de seus direitos, seja para esclarecimentos de situações de interesse pessoal. Assim sendo, não pode o INSS impor restrição ao cidadão para obtenção das mencionadas certidões de tempo de serviço, não havendo que se questionar, portanto, a legitimidade do Parquet para atuar no feito.”
Esse entendimento – que reconhece a legitimidade ativa ao Ministério Público para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza social – reflete-se na jurisprudência firmada por esta Suprema Corte (RTJ 185/302, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 491.195-AgR/SC, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 213.015/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RE 255.207/MA, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 394.180-AgR/CE, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 424.048-AgR/SC, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE RE 441.318/DF, Rel. MARCO AURÉLIO – RE 470.135-AgR-ED/MT, Rel. Min. CEZAR PELUSO):
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. (...)
1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).
(...)
4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.
4.1. Quer se afirmem interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que, conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.
(...)
Recurso extraordinário conhecido e provido, para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.”
(RTJ 178/377-378, Rel. Min. Mauricio Corrêa)
Tenho para mim que se revela inquestionável a qualidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública objetivando, em sede de processo coletivo – hipótese em que estará presente “o interesse social, que legitima a intervenção e a ação em juízo do Ministério Público” (CF 127 caput e CF 129 IX)” (Nelson Nery Junir, O Ministério Público e as Ações Coletivas, in Ação Civil Pública, p. 366, coord. por Édis Milaré, 1995, RT) –, a defesa de direitos individuais homogêneos, porque revestidos de inegável relevância social, como sucede com o direito de petição e o de obtenção de certidão em repartições públicas (CF, art. 5º, XXXIV), que traduzem prerrogativas jurídicas de índole eminentemente constitucional, ainda mais se analisadas na perspectiva dos direitos fundamentais à previdência social (CF, art. 6º) e à assistência social (CF, art. 203).
Na realidade, o que o Ministério Público postulou nesta sede processual nada mais foi senão o reconhecimento – e conseqüente efetivação – do direito dos segurados da Previdência Social à obtenção da certidão parcial de tempo de serviço.
Nesse contexto, põe-se em destaque uma das mais significativas funções institucionais do Ministério Público, consistente no reconhecimento de que lhe assiste a posição eminente de verdadeiro “defensor do povo” (Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, p. 224/227, item nº 24, “b”, 3. ed., 1996, Saraiva, v.g.), incumbido de impor, aos poderes públicos, o respeito efetivo aos direitos que a Constituição da República assegura aos cidadãos em geral (CF, art. 129, II), podendo, para tanto, promover as medidas necessárias ao adimplemento de tais garantias, o que lhe permite a utilização das ações coletivas, como a ação civil pública, que representa poderoso instrumento processual concretizador das prerrogativas fundamentais atribuídas, a qualquer pessoa, pela Carta Política, “(...) sendo irrelevante o fato de tais direitos, individualmente considerados, serem disponíveis, pois o que lhes confere relevância é a repercussão social de sua violação, ainda mais quando têm por titulares pessoas às quais a Constituição cuidou de dar especial proteção”.
A sobredita decisão parece sinalizar o início do fim da polêmica em torno da legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em matéria previdenciária, no sentido do seu reconhecimento, forte nos arts. 127, caput, e 129, inc. III, ambos da Constituição Federal, quando a questão, a despeito de envolver direito patrimonial individual disponível, traduzir interesse homogêneo e de relevância social, mesmo que não haja previsão legal nesse sentido, prestigiando desse modo a tutela coletiva em matéria previdenciária e o Ministério Público como enforcement do ordenamento jurídico posto. A única vedação é a utilização desta class action para discutir contribuição previdenciária, por expressa vedação do art. 1º, parágrafo único, da Lei 7.347/85, valendo advertir, outrossim, que o custeio da previdência social mediante contribuições previdenciárias devidas por empresas que nada têm de hipossuficientes não se trata de matéria previdenciária propriamente dita, mas de matéria tributária.
Finalmente, vencida a questão da legitimidade processual do Ministério Público, há diversas outras questões empolgantes sobre a ação civil pública em matéria previdenciária, a exemplo da condenação em honorários advocatícios, limitação da eficácia territorial da decisão judicial, necessidade de parecer do Ministério Público no Tribunal, possibilidade de litisconsórcio entre os Parquets Federal e Estadual, competência e honorários advocatícios nas execuções individuais da sentença coletiva etc, mas que desbordam do escopo deste trabalho, naturalmente limitado a repercutir a mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal.
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