Da crônica de uma morte anunciada aos cem anos de solidão: mundo globalizado, poder fragmentado |
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Autor: Paulo Roberto Ramos Alves Advogado Publicado na edição 27 - 17.12.2008
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Resumo Palavras-chave: Fragmentação. Globalização. Poder. Sistemas sociais. Teoria Sistêmica. Introdução Em Crônica de uma morte anunciada, Gabriel García Márquez narra o desenrolar de um inevitável assassinato, ocorrido mesmo ante os protestos, esperanças e desejos dos habitantes de um pequeno vilarejo colombiano. À realização do crime emergem várias objeções, contudo nem mesmo os próprios assassinos são capazes de evitar seu cometimento ante o incontrolável desenrolar dos acontecimentos.(1) No caminho percorrido por Teubner,(2) nota-se que a sociedade contemporânea é palco de uma incrível fragmentação de sentido. Nesse contexto, é visível a perda de centro epistêmico único, distribuindo-se o poder de cognição a diversos campos sociais, tais como o direito, a ciência, a política, a economia, etc, bem como tornando-se evidentes realidades particulares cada vez mais independentes de discursos externos, como se denota na operacionalidade das grandes empresas transnacionais, na normatização paralela/concorrente das comunidades nas grandes cidades e nos discursos da globalização, tal como verificado na obra de Márquez. Esse incrível processo de fragmentação desencadeia uma série de problemas e questionamentos até então ausentes dos debates sociais, afinal, como compreender uma realidade multiforme e cada vez mais fragmentada? De que forma observar o direito, visto tradicionalmente como produto de um Estado centralizador e detentor do monopólio da produção normativa, frente a uma realidade fragmentada e globalizada? O presente texto busca promover algumas reflexões sobre tais questionamentos valendo-se da ótica sistêmica luhmanniana, reapresentada por Teubner sob uma teorização própria. Para tanto, toma-se como ponto de partida a análise da quebra para com a razão única moderna, passando-se a falar em pós-modernidade, salientando-se a compreensão deste conceito enquanto momento de fragmentação e dispersão da razão. Ato contínuo vislumbra-se a sociedade como um sistema comunicativo global, analisando-se o fenômeno da autopoiese sistêmica para, ao fim, observar a operacionalidade do direito frente às estratégias da globalização. 1 Pós-modernidade: da história para as histórias A transição da sociedade antiga para a moderna promoveu a ruptura para com os modelos sociais até então existentes, sendo o principal reflexo dessa mudança a transposição do pensamento fundamentado em Deus para a razão humana. Com a propagação dos ideais iluministas ocorreu a proliferação dos grandes discursos emancipatórios, ou metanarrativas, como bem denominou Lyotard.(3)Os grandes relatos, como os ideais de legitimidade, progresso, verdade, etc., tornaram por permear o imaginário social então vigente. Nesse contexto, a razão adquiriu um status particularmente relevante, eis que, a partir daí, passou a ser compreendida como anunciadora da verdade, como o arcabouço fundamental hábil a iluminar as trevas onde, até então, permanecia imersa a história. O romantismo do século das luzes veio a apresentar-se vago e demasiadamente frágil a partir da consciência da possibilidade de aprisionamento precisamente em razão desses discursos emancipatórios. Com a irrupção do século XX, as verdades inequívocas e universalmente generalizáveis tornaram por comprovar esse fato, servindo como legitimadoras às mais diversas barbáries. Assim, “o século XX – com seus campos de concentração e esquadrões da morte, seu militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de Hiroshima e Nagasaki – certamente deitou por terra esse otimismo. Pior ainda, há a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana.”(4) Pode-se dizer que, a partir dessa consciência acerca da opressão pela emancipação, iniciou-se o fim da modernidade e sua conseqüente transição ao que se convencionou chamar de pós-modernidade. Desse modo fala-se em pós-modernidade a partir do momento em que se rompe com a idéia das verdades absolutas e passa-se a relativizá-las. A crise das metanarrativas(5) tem lugar central na transição pós-moderna. A relativização e a fragmentação tornaram por enfraquecer os discursos modernos, cuja legitimidade era auto-invocada com base em critérios rígidos e com pretensão de validade universal. Desse modo, a relativização dos grandes relatos passou a ter lugar nos debates, dando vazão a uma multiplicidade de novas possibilidades e, conseqüentemente, aumentando a complexidade do campo social. A existência de uma história unitária, à qual se refere Vattimo,(6) cuja centralidade permitia a reunião e ordenação dos acontecimentos sob seu manto, dá lugar a uma multiplicidade de possibilidades, uma pluralidade de vivências e... uma total solidão.(7) O homem encontrou-se, então, de forma descentralizada, distante dos metarrelatos iluministas aos quais se via anteriormente vinculado. Essa pluralidade de vivências deu vazão, por sua vez, a uma universalidade assustadora de possibilidades: tudo tornou-se possível, perfazendo com isso o aumento dos níveis de incerteza em relação às escolhas (e ao futuro). De Giorgi, quando evoca a narrativa de Cem anos de solidão(8) por intermédio do patriarca da família Buendía, bem traduz esse sentimento de isolamento e incerteza em relação ao futuro: “A máquina do tempo tornou-se desconexa, pensou José Arcádio Buendía, depois de ter passado noites insones em vigílias tormentosas, durante as quais vivenciara perturbadoras experiências, vira que também os mortos envelhecem, vira que todo dia é segunda-feira e que o pêndulo podia manter qualquer coisa no ar, mas não podia manter-se a si próprio. José Arcádio Buendía deixou-se arrastar em uma espécie de delírio perpétuo. [...] este século que está se acabando nos permite observá-lo depois de uma longa vigília, durante a qual vimos um horizonte de muitos casos, a inquietude de muitos mortos, a violência com que o pêndulo dos princípios se despedaçava na impossibilidade de sustentar a si próprio.”(9) A idéia de pós-modernidade caracterizou igualmente o direito com base na inversão de símbolos modernos. Consoante explicação de Arnaud, a abstração deu lugar ao pragmatismo; o subjetivismo restou no descentramento do sujeito; o universalismo passou a ser relativizado; a unidade da razão deu vazão a uma pluralidade de racionalidades; a axiomatização do direito foi substituída pelo estilhaçamento das lógicas; o que então era simples tornou-se complexo; a separação entre sociedade civil e estado deu lugar ao retorno da sociedade civil e, finalmente, a clássica noção moderna de segurança assumiu a forma do risco.(10) Nesse contexto aparentemente apocalíptico, a verdade una e indivisível, apta a explicar todos os fenômenos sociais de forma inequívoca, sofre um violento abalo. Conforme visto em Arnaud, a razão única cede lugar a uma pluralidade de racionalidades concorrentes, escapando à compreensão da sociedade contemporânea a possibilidade de uma orientação racionalmente orientada em um único sentido. Essa compreensão é imediatamente extensível ao direito como produto de um Estado centralizador e detentor do monopólio da produção jurídica, tornando-se uma realidade questionável frente aos processos da globalização e da normatização extra-estatal. O direito passa a ser produzido de maneira concorrente por diversas instâncias sociais, escapando o poder normativo centralizado unicamente no Estado, amoldando-se à idéia de uma sociedade comunicativa global. 2 Comunicação e a sociedade mundial Quando Luhmann rompe com a compreensão tradicional de sociedade enquanto grupo de pessoas localizadas em determinado espaço geograficamente delimitado,(11) passa-se a caracterizar o sistema social composto exclusivamente por comunicações, abrindo-se assim possibilidades à compreensão do fenômeno contemporâneo da globalização e de suas implicações na realidade jurídica. Essa compreensão promove a quebra com a possibilidade da existência de várias sociedades, caracterizadas por fronteiras geográficas ou políticas, estabelecendo-se a existência de uma única: o circuito comunicativo global, ou, ainda, conforme denominaram Luhmann e De Giorgi na Teoría de la sociedad: “la sociedad del mundo”.(12) Dessa maneira, “a sociedade mundial significa, em princípio, que o horizonte das comunicações ultrapassa as fronteiras territoriais do Estado. Formulando com mais abrangência, tornam-se cada vez mais regulares e intensas as relações sociais além de identidades nacionais ou culturais e fronteiras político-jurídicas. Nesse sentido, a sociedade deixa de ser vinculada diretamente ao ente estatal.”(13) A possibilidade de uma sociedade mundial eleva a comunicação a um status central na compreensão do fenômeno social. Mesmo improvável,(14) a comunicação atravessa o imaginário teórico como elemento chave na compreensão da sociedade enquanto sistema, eis que por meio dela os sistemas sociais existem, desenvolvem suas funções e evoluem, em uma contínua ciranda comunicativa auto-referencial. A sociologia era, historicamente, dependente do conceito de ação, razão pela qual o homem exercia papel central, eis que a ação, em sua compreensão tradicional, pressupunha necessariamente a existência de um sujeito, notadamente identificado enquanto ser humano e cuja atuação era dada na sociedade através do desempenho de determinada função. Ainda, na gênese da teoria dos sistemas sociais, tais sistemas(15) eram pressupostos por Parsons como “constituídos por estados e processos de interação social entre unidades de ação”.(16) Com o rompimento para com o preconceito humanista houve a transposição do conceito de ação para o da comunicação. Por isso, a sociedade passou a ser compreendida como um sistema composto exclusivamente por “comunicações, constituído apenas de suas próprias operações e operacionalmente fechado. [...] Somente com o auxílio do conceito de comunicação pode-se pensar num sistema social como um sistema autopoiético, constituído só por elementos, isto é, comunicações, que ele próprio, através da rede de conexões desses mesmos elementos, produz e reproduz via comunicações.”(17) Ora, é de fácil conclusão que, se a sociedade é compreendida como um grande evento comunicativo, as demais instâncias sociais devam ser igualmente vistas como comunicações. Por isso, falar em direito é falar em comunicação, quando são analisados aspectos da globalização, por exemplo, deve-se ter em mente essa baliza conceitual de modo a serem estabelecidos critérios de observação dessa realidade. Precisamente essa transposição da ação para a comunicação permite a compreensão dos acontecimentos da sociedade global contemporânea, entretanto, a compreensão da comunicação no âmbito do sistema social, bem como suas relações e implicações com o processo de globalização é melhor explicada quando aliada ao conceito de autopoiese, proposto por Maturana e, posteriormente, aproveitado por Luhmann. 3 Autopoiese dos sistemas sociais A superação do conceito de ação a partir da compreensão do social enquanto sistema comunicativo auto-referencial deu vazão ao surgimento da idéia de autopoiese,(18) estabelecendo, então, a idéia de autoprodução, automanutenção e auto-regulação com base em seus próprios elementos constitutivos e nas relações e processos internos inerentes a tais sistemas.(19) Luhmann propõe como um sistema autopoiético aquele que “reproduz os elementos de que é constituído, em uma ordem hermético-recursiva, por meio de seus próprios elementos”,(20) isto é, a comunicação se perfaz via outras comunicações. Comunicações geram comunicações, que, por sua vez, geram novas comunicações e assim por diante, em uma cadeia de (re)produção comunicativa, cuja existência é impossível fora da própria rede de interações. Os sistemas sociais autopoiéticos operam enclausurados em sua recursividade específica, transpondo para dentro de si toda a comunicação atinente à sociedade com o escopo de reduzir a excessiva complexidade do entorno.(21) Dessa maneira, há a necessidade de ordenação das mais diversas comunicações que ingressam no interior do sistema de modo a ser possibilitada sua individualização e operacionalização. Desse modo, “É decisivo que, em certo momento a recursividade da reprodução autopoiética começa a compreender a si própria e alcance um fechamento a partir do qual para a política somente conta a política, para a arte somente a arte, para a educação, somente a predisposição e a disponibilidade para a aprendizagem, para a economia somente o capital e a utilidade, enquanto os correspondentes entornos sociais internos [...] são percebidos somente como irritações ou moléstias.”(22) [Tradução Livre] A essa ordenação dá-se o nome de diferenciação funcional. Esse processo tem lugar quando ocorre uma superespecificação de funções dentro do próprio sistema. Assim, toda a comunicação binariamente identificável (sim/não) tenderá à formação de subsistemas autopoiéticos autônomos de segundo grau com funções próprias. Quando determinada comunicação fechar-se recursivamente em si própria, tenderá à formação de subsistemas parciais. Sempre que houver uma especificação comunicativa no âmbito social, de modo que tal comunicação seja apta a delimitar fronteiras de sentido(23) e caracterizar-se como um subsistema autopoiético parcial, deparar-se-á com a diferenciação funcional. Tal fenômeno tem espaço por meio da codificação binária, que se caracteriza de forma a especificar novos sistemas funcionais. No âmbito do sistema da sociedade, as comunicações internas deverão ser identificáveis. A particularização dos diferentes tipos comunicativos torna possível a identificação de cada uma com base em um código específico, havendo então a especificação de funções com base neste código. É justamente essa codificação que viabiliza a existência da comunicação e, por conseqüência lógica, a existência da própria sociedade, pois, vencidas as improbabilidades,(24) a comunicação é reconhecida e passa a integrar os sistemas sociais parciais, como o direito, a economia, a política, etc. A idéia de código e função são requisitos indispensáveis à diferenciação funcional, ou seja, cada comunicação particular possuirá um código binário que a identificará mediante a diferenciação sim/não.(25) Dito de outra forma, a comunicação que ingressar no sistema deverá possuir uma identificação pela qual lhe possibilitará a realização de operações exclusivas, assim, a comunicação cujo código binário for governo/oposição será inerente ao sistema político, o código ter/não ter ao sistema econômico, legal/ilegal ao sistema jurídico, e assim por diante. O direito apresenta-se como um dos subsistemas sociais, ativando-se em razão do desenvolvimento da sociedade como um todo e adquirindo sua autonomia em razão dos problemas originados por tal desenvolvimento e da necessidade de sua regulação.(26) A codificação binária do sistema do direito obedece à lógica legal/ilegal, logo, “através da aceitação de um código binário (jurídico/antijurídico), o sistema obriga a si próprio a essa bifurcação e somente reconhece as operações pertencentes ao sistema se elas obedecem a essa lei”.(27) Desse modo, todas as comunicações que se identifiquem com tal código pertencerão ao sistema jurídico, que, mediante sua própria autopoiese, operará no interior do sistema social com características particulares. A idéia de autopoiese, embora não seja a única, é uma ferramenta teórica de grande força à compreensão dos fenômenos sociais contemporâneos, fornecendo elementos robustos à elucidação ou, ao menos, à promoção de uma melhor observação dessa completa quebra para com a razão única e o deslocamento e fragmentação dos centros de poder, amoldando-se à realidade posta pela globalização. Pois bem, conforme delineado, a sociedade pode ser considerada como um sistema composto exclusivamente por comunicações, cuja reiteração em uma cadeia hermética e circular promove o fenômeno denominado autopoiese; precisamente essa conceituação permite compreender a atual condição da sociedade pós-moderna diante dos questionamentos trazidos pelo processo de globalização. 4 A globalização e o direito: a perda do sentido normativo único A problemática apresentada é agravada quando um sistema autopoiético autônomo, enclausurado operativamente, como o direito, co-evolui com outros diversos sistemas sociais que operam mediante codificações próprias e específicas. Desse modo a razão do direito, e, por que não, a razão de estado, não mais é compreendida como a única esfera de emanação de normatividade, concorrendo permanentemente com outras diversas instâncias sociais. Ante a pluralidade discursiva da sociedade contemporânea, os conflitos entre epistemes diferentes são evidentes.(28) Cada sistema cognitivo opera de forma autônoma, por isso não há a verdade única e inequívoca, cada sistema constrói visões de mundo a partir de seu ponto de observação. Por isso, o direito cria verdades jurídicas, a ciência, verdades científicas, a economia, verdades econômicas, e assim por diante. Nada obstante, a crescente especificação funcional da sociedade comunicativa global estabelece discursos renovados permanentemente, promovendo construções paralelas ao direito. Se o próprio processo de diferenciação já subtrai do direito o monopólio da razão, a fragmentação das relações comunicativas viabiliza ainda mais discursos autônomos ou semi-autônomos concorrentes à produção jurídica centrada no Estado. Para tanto, basta se pensar na realidade das grandes favelas, onde, sob um primeiro olhar, aparentemente há uma blindagem quanto à atuação do direito estatal; na realidade particular das grandes empresas transnacionais, cuja operacionalidade transcende a esfera da normatização específica de cada Estado mediante lógicas próprias de mercado; ou, finalmente, nos processos impostos pela globalização, onde há a visível perda do sentido único, rompendo-se com a razão de Estado e, consequentemente, refletindo nos processos internos de produção jurídica. De igual maneira, estabelecem-se discursos paralelos, específicos de outras instâncias sociais. Não há a possibilidade de uma comunicação una e indivisível. A globalização, desse modo, opera o deslocamento do centro de poder do direito, focado exclusivamente no Estado soberano, para a constante construção e transformação jurídica através de seu contato com as demais instâncias sociais e a assimilação das perturbações causadas por tais instâncias. O direito, desse modo, é um produto comunicativo da sociedade, pois “na globalização, os processos dominantes de formação de direito transferem-se de seus centros, politicamente institucionalizados no Estado nacional (legislativo e justiça), para a periferia do direito, para as fronteiras do direito com outros subsistemas globais. A tônica do novo direito global é ser um direito periférico, espontâneo e gerado pela sociedade.”(29) São ausentes, no âmbito global, processos institucionalizados e instâncias centralizadas de poder, estabelecendo-se, dessa maneira, um incrível grau de dificuldade na fixação de critérios de validade para o direito, afinal, não há como falar em um direito universalmente válido em um mundo que já não mais comporta realidades universais e absolutas. Por isso, escapa a possibilidade de ser fixado o local oficial de produção jurídica, eis que o processo de normatização dilui-se na teia das relações comunicativas da sociedade global, havendo a distribuição desse poder a um incontável número de atores sociais descentralizados.(30) Neste admirável mundo globalizado, caracterizado por essa ausência de instituições centralizadas e detentoras do poder absoluto, ao direito enquanto sistema comunicativo-autopoiético cabe a permanente reconstrução de sua realidade com base nas perturbações comunicativas às quais é submetido, assimilando e processando tais influxos com base em sua própria autonomia, todavia, observando igualmente a complexidade e a imensa rede de relações que se revela neste vastíssimo mundo de relações sociais que subsiste externamente ao direito oficial, tradicionalmente centrado no Estado. A reconstrução do pensamento jurídico é fundamental para situar o direito na realidade atual, compreendendo-o como um fenômeno não mais central, mas periférico, e não mais senhor da razão absoluta, mas como uma das várias construções de mundo possíveis. Ainda que a prática jurídica cotidiana permaneça agrilhoada a verdades totalizantes e o direito observe desde um passado normativo que já não subsiste, essa mudança de paradigma é uma realidade não apenas possível, mas necessária. Considerações finais A realidade contemporânea não mais comporta sentidos únicos e inequívocos. A fragmentação à qual restam submetidas as relações sociais demonstra tal fato de forma inegável. Nesse contexto, a realidade da globalização atravessa a compreensão de unidade, de imutabilidade do direito, de centralização do poder, promovendo discursos que ultrapassam fronteiras territoriais, viabilizando dessa maneira a ocorrência de eventos que transcendem o Estado e influenciam as várias instâncias sociais-comunicativas de maneira direta. A compreensão do direito de hoje não mais pode vincular-se à razão de Estado ou à vetusta noção de soberania, mas sim deve ser voltada justamente ao caráter fragmentário que o reveste. O direito e o Estado apenas podem ser observados se considerada a realidade multifacetada na qual são inseridos, observando-se a complexidade do momento histórico atual e o reconhecimento de que não mais subsiste uma única fonte de emanação de poder, restando este disperso no âmbito das relações comunicativas globais, devendo-se, pois, compreender o direito como um produto da sociedade e, por isso, como um sistema em constante mutação. A consciência quanto à constante especificação de sistemas funcionais na sociedade e sua compreensão como comunicação, aliadas à idéia de auto-organização e automanutenção dos sistemas sociais, podem ser considerados um bom ponto de partida para esse reconhecimento de que não mais há uma verdade única, tampouco o arraigado conceito de razão de Estado subsiste frente à realidade oposta pela globalização e pelo poder que emana das diversas instâncias sociais descentralizadas. Ainda que tal fato, em um primeiro momento, leve a crer na condenação a uma realidade de isolamento e rompimento para com qualquer lógica conhecida, vivendo-se num obscuro contexto entre o fantástico e o absurdo, é chegada a hora do direito reconhecer esse mundo difuso e plural, assimilando a lógica da inexistência de lógicas, observando a racionalidade do irracional, buscando a unidade na diferença, sob pena de condenação a uma inglória busca pela inalcançável verdade única, enfim, à perda do sentido de mundo no furacão da realidade, tal como o destino traçado para a lendária Macondo de Cem anos de solidão, onde Aureliano Babilônia, em meio ao devastador vendaval, decifra os pergaminhos de sua própria existência, compreendendo, então, que tudo o que estava escrito neles era para todo o sempre irrepetível.(31) ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Barcelona: Antrophos, 1996. DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2004. LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 3. ed. Lisboa: Vega, 2001. ______. O conceito de sociedade. In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade/Goethe-Institut, 1997. p. 75-91. ______. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Seqüência, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun. 1994. p. 15-29. ______; DE GIORGI, Rafaelle. Teoría de la sociedad. México: Universidad de Guadalajara/Univesidad Iberoamericana/ITESO, 1993. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. MÁRQUEZ, Gabriel García. 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Posmodernidad: ¿una sociedad transparente? In: VATTIMO, Gianni et al. En torno a la posmodernidad. Barcelona: Anthropos Editorial, 2003. p. 9-19. Notas 2. TEUBNER, Gunther. Direito regulatório: crônica de uma morte anunciada In: ______. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005 p. 19-54. 3. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. p. XV. 6. VATTIMO, Gianni. Posmodernidad: ¿una sociedad transparente? In: VATTIMO, Gianni et al. En torno a la posmodernidad. Barcelona: Anthropos Editorial, 2003. p. 10. 7. DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 67-68. 10. ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 202-203. 11. LUHMANN, Niklas. O conceito de sociedade. In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade/Goethe-Institut, 1997. p. 76. 12. LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoría de la sociedad. México: Universidad de Guadalajara/Univesidad Iberoamericana/ITESO, 1993. p. 69. 13. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 217. 15. Conforme Parsons os sistemas sociais constituíam-se enquanto sistemas de ação. A noção dos sistemas de ação era compreendida pelo conjunto das chamadas unidades de ação, sendo tais unidades seres humanos hábeis ao cumprimento de determinado papel na sociedade, ainda geograficamente delimitada. PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974. p. 18. 18. Conforme MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. De maquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 72: “a organização autopoiética significa simplesmente processos concatenados de uma maneira específica tal que os processos concatenados produzem os componentes que constituem o sistema e especificam como uma unidade”, ou seja, o sistema autopoiético é aquele em que, através de operações hermético-recursivas e auto-referentes, (re)produz seus próprios elementos, de forma que seu produto final é sempre ele próprio. 19. MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. p. 52. 20. LUHMANN, Niklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Seqüência, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun. 1994. p. 20. 21. Luhmann parte da conceituação de sistema como uma diferença entre dois lados, o lado interno (sistema) e o lado externo (ambiente/entorno). 22. LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la sociedad. p. 326: “es decisivo el que, en un cierto momento la recursividad de la reproducción autopoiética comienza a comprenderse a si misma y alcance una cerradura a partir de la cual para la política sólo cuenta la política, para el arte sólo el arte, para la educación, sólo la predisposición y la disponibilidad para el aprendizaje, para la economía sólo el capital y la utilidad, mientras que los correspondientes entornos sociales internos […] se perciben sólo como ruido irritante o como molestias”. 23. A delimitação de fronteiras de sentido é condição de possibilidade à existência dos sistemas funcionalmente diferenciados da sociedade, eis que por meio desses limites é especificado ao sistema a área de sua abrangência, sendo-lhe lícito operar apenas no âmbito estabelecido pelo sentido. CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Barcelona: Antrophos, 1996. p. 147. 24. Luhmann afirma que a improbabilidade da comunicação se dá por três razões: a primeira, no sentido de que é muito pouco provável que alguém entenda o que o outro tem a dizer, eis que a compreensão do sentido da comunicação se dá em face de um contexto baseado na memória do receptor/interlocutor; a segunda improbabilidade diz respeito à extensão espacial e temporal, eis que dificilmente uma comunicação atingirá mais pessoas do que aquelas que se encontram em dada situação. Finalmente, a terceira improbabilidade refere-se à obtenção do resultado almejado, compreendido enquanto adoção da informação e a incorporação desta ao seu próprio comportamento. LUHMANN, A improbabilidade da comunicação. p. 41-44. 28. TEUBNER, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005. p. 45-46. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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