Promoção de juízes por merecimento: procedimento – algumas questões relevantes | ||
Autor: Rômulo Pizzolatti Desembargador Federal Publicado na edição 27 - 17.12.2008
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A Resolução nº 6, de 13.09.2005, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fazendo cumprir a Emenda Constitucional (EC) nº 45, de 08.12.2004, revolucionou o procedimento das promoções por merecimento na magistratura, ao estabelecer que devem ser realizadas em sessão pública, mediante votação nominal, aberta e fundamentada,(1) o que acarretou a aposentadoria dos antigos escrutínios (urnas), onde eram depositadas as cédulas não-identificadas, com os votos. Somando a isso o fato de que agora os prejudicados não precisam mais ingressar em juízo, podendo pedir a desconstituição do ato diretamente ao CNJ, mediante procedimento de controle administrativo, sem despesa nem advogado, é previsível o aumento da litigiosidade, também nesse campo. Urge, por isso, assinalar as divergências entre as práticas dos tribunais e a Constituição, propiciando a correção de rumos. Entre tantas questões suscitáveis, as abordadas a seguir se mostram das mais relevantes. Como se sabe, antes da Constituição Federal (CF) de 1988, a promoção de juízes na carreira, pelo critério do merecimento, era ato administrativo subjetivamente complexo, resultando da conjugação de vontades do Tribunal, que elaborava lista, e do Chefe do Poder Executivo, que fazia discricionariamente a escolha e assinava o ato de promoção. Com a Constituição de 1988, permaneceu a exigência de os tribunais elaborarem listas de merecimento,(2) mas a competência para a escolha do candidato a ser promovido foi transferida do Chefe do Poder Executivo para o próprio Tribunal.(3) Em muitos tribunais, contudo, a promoção por merecimento dos juízes segue sendo ato subjetivamente complexo, pois, enquanto o colegiado se incumbe da elaboração da lista, ao Presidente do Tribunal é reservada a escolha final. Nos tribunais de perfil mais autoritário, o Presidente escolhe discricionariamente; nos de perfil mais democrático, prestigia o candidato mais votado pelo colegiado. Esse procedimento é sem dúvida equivocado, visto que, se a competência para a promoção por merecimento de juízes foi, pela Constituição, atribuída a um único órgão (o Tribunal), o ato deve ser reclassificado como ato administrativo subjetivamente simples, e não complexo. Por conseqüência lógica, o próprio Tribunal (colegiado) deve elaborar a lista e, em seguida, proceder à escolha dentre os candidatos listados. Talvez se defenda a prática de o Presidente do Tribunal proceder à escolha final com argumentar que o colegiado lhe delega competência para isso, seja expressamente, com base em regra posta no Regimento Interno, seja tacitamente, aceitando que ele faça a escolha. Ora, esse argumento não é sustentável, nem lógica nem juridicamente. A delegação de competência do colegiado a seu Presidente só se justifica quando o Tribunal não está reunido. Se o Tribunal se reuniu exatamente para julgar o procedimento de promoção por merecimento, seria despropositado que, no meio do procedimento, após a elaboração da lista, se demitisse de suas funções, transferindo-as ao Presidente. Há dificuldade para o colegiado fazer a escolha final? Certamente que não, pois, se escolheu três nomes para o preenchimento da vaga (muitas vezes mediante sucessivas votações, até serem obtidos três nomes que atinjam maioria de votos), pode mais facilmente dos três tirar um: quem pode o mais, pode o menos. Já no início da vigência da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou caso, em que o Presidente de certo tribunal estadual se atribuiu a escolha de um dos nomes da lista de merecimento. Um dos dois mais votados da lista, tendo empatado com o que foi escolhido pelo Presidente, buscou no STF a prevalência da regra regimental que determinava, em caso de empate, a promoção do juiz mais antigo. O STF entendeu (a) que não é da competência do Presidente do Tribunal a escolha final e,também, (b) que é inconstitucional a regra regimental que estipula o desempate, em promoção por merecimento, pelo critério da antiguidade. Em conseqüência, limitou-se a anular o ato de promoção e determinar que, mediante novo(s) escrutínio(s), procedesse o colegiado ao desempate na formação da lista, visto que ilícita a utilização da antiguidade como critério de desempate em promoção por merecimento. (Ação Originária - AOr nº 70, rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, decisão por voto médio entre nove votantes, julgamento concluído em 09.04.1992, Revista Trimestral de Jurisprudência – RTJ, v. 147, n. 2, p. 345-371) Nesse julgamento e em outro realizado pouco antes (Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn nº 189, rel. Min. Celso de Mello, Plenário, decisão por voto médio de onze votantes, julgamento concluído em 09.10.1991, RTJ, v. 138, n. 2, p. 371-395), cogitou-se que, à luz da Constituição de 1988, haveria duas opções possíveis para a escolha do juiz a ser promovido por merecimento. Uma delas seria dar-se como automaticamente escolhido o mais votado na formação da lista. A outra, realizar o colegiado (ainda que não houvesse empate) uma segunda votação para a escolha definitiva. O Ministro Moreira Alves, entretanto, foi categórico quanto à necessidade de serem feitas duas votações pelo colegiado: uma especificamente para a formação da lista e outra para a escolha definitiva (ADIn nº 189, RTJ, v. 138, n. 2, p. 395). Passada uma década dos julgamentos citados, o Plenário do STF decidiu que não ofende a Constituição a norma regimental que prescreve a escolha, em caso de empate após sucessivas votações, do candidato mais idoso (Mandado de Segurança - MS nº 24.509, rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 23.10.2003 por maioria, três votos vencidos, RTJ, v. 192, n. 2, p. 671-692). Esse julgamento não conflita com os anteriormente citados, pois, havendo empate entre os candidatos mais votados, em sucessivas votações, o impasse somente pode ser superado por critério estranho ao merecimento, sendo razoável o da idade. Alguns anos depois, em 2007, com composição parcialmente alterada, o Plenário do STF entendeu que a antiguidade poderia (também) ser utilizada como critério de desempate, desde que verificado impasse em sucessivas votações (MS nº 26.264, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento por maioria, quatro votos vencidos, DJ de 05.10.2007). A conclusão a tirar é que critério estranho ao merecimento não pode ser utilizado para solucionar, desde logo, empate em votação de merecimento, mas somente para remover impasse na solução do empate, o que é diferente. Considerados esses julgamentos, podem-se deles extrair alguns pontos pacíficos: (a) a competência para a escolha definitiva do candidato a ser promovido é exclusivamente do colegiado, por ser ato administrativo simples, e não ato complexo; e (b) havendo empate entre os candidatos mais votados, a utilização de critério diverso do merecimento (idade, antiguidade etc.) só cabe depois de votações sucessivas, persistindo o impasse. Remanescem, a meu ver, duas questões importantes. A primeira questão é se, considerada a promoção por merecimento como ato subjetivamente simples, a vontade do colegiado pode ser aferida somente à luz da maior votação obtida por um dos candidatos na formação da lista, ou se é necessária outra votação pelo colegiado, especificamente para a escolha final. A segunda questão respeita às conseqüências de votos proferidos com apoio exclusivo ou preponderante na antiguidade do juiz, e não no seu merecimento. A solução adequada à primeira das questões está no voto sintético do Ministro Moreira Alves, no julgamento da ADIn nº 189 (RTJ, v. 138, n. 2, p. 395), apontando a necessidade de o colegiado fazer duas votações pelo menos: uma para a formação da lista e outra para escolher, dentre os listados, o que deve ser promovido.(4) Um julgamento administrativo recente mostra, mais que argumentos teóricos, o acerto da posição do Ministro Moreira Alves, cujas razões não explicitou, por apreço à brevidade. Em certo concurso de promoção por merecimento, a lista tríplice foi formada pelo juiz A, com 17 votos, pelo juiz B, com 16 votos e pelo juiz C, com 18 votos. Prevalecesse o critério de dar-se por promovido o mais votado da lista, o juiz C seria o escolhido. Contudo, os votos e as notas taquigráficas da sessão administrativa de julgamento indicavam que o juiz A constituía a primeira opção de todos os que nele votaram; o juiz B, a segunda opção de todos os que nele votaram; e o juiz C, a primeira opção de apenas três dos que nele votaram, sendo a terceira opção dos demais que nele votaram. Isso implica dizer que, se fosse realizada nova votação para a escolha definitiva, o juiz A teria os mesmos 17 votos, enquanto o mais votado da lista ganharia apenas 3 votos! O Presidente da Corte escolheu o juiz A (17 votos), o que causou certa estranheza, pois a praxe (e o “politicamente correto”) era ser escolhido o mais votado da lista, juiz C (18 votos). Embora o exercício da competência de escolha definitiva tenha conflitado com a posição do STF no julgamento da AOr nº 70 (RTJ, v. 147, n. 2, p. 345-371), o certo é que, no caso específico, o Presidente da Corte interpretou fielmente a vontade da maioria do colegiado. Fosse realizada nova votação pelo colegiado para a escolha definitiva, o juiz escolhido, A, obteria os mesmos 17 votos, porque constituía a primeira opção de 17 dos 21 votantes.(5) A justiça acabou prevalecendo, por sorte. Mas é melhor que prevaleça sempre, independentemente da sorte. A segunda questão surgiu apenas a partir da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que determinou, por força da nova redação dada ao inciso X do art. 93 da Constituição, fosse a promoção por merecimento feita por meio de voto fundamentado e aberto dos membros do colegiado. Antes, com o sistema do escrutínio secreto, os votos poderiam levar em conta a antiguidade em vez do merecimento do candidato, e ninguém ficaria sabendo disso. Agora, com a motivação e publicidade, é possível saber se algum voto se apoiou, exclusiva ou preponderantemente, na antiguidade do candidato, caso em que esse voto será nulo, pois, segundo a jurisprudência do STF, a antiguidade não pode ser considerada em promoção por merecimento, a não ser como critério de desempate e, ainda assim, após sucessivas votações empatadas. Conseqüentemente, se o indevido uso do critério da antiguidade na votação da lista ou na escolha definitiva influenciar o resultado, a votação será nula.(6) Essas, em síntese, são as questões que, a meu ver, se mostram atualmente mais relevantes no campo do procedimento de promoção por merecimento de juízes, embora seja de se esperar que outras sejam suscitadas em decorrência do novel regime de transparência introduzido pela EC nº 45, de 2004. Cumpre que os tribunais, a partir dos julgamentos concretos, ajustem paulatinamente suas práticas à Constituição, acautelando os conflitos. É sempre melhor prevenir que remediar. Notas
1. Art. 1º. As promoções por merecimento de magistrados serão realizadas em sessão pública, em votação nominal, aberta e fundamentada. (Resolução nº 6, de 2005, do CNJ) 2. A lista, não sendo remetida ao Chefe do Poder Executivo, tem ainda assim utilidade, pois serve para ampliar a base do recrutamento, e permite a promoção, de forma automática, do juiz que nela for incluído três vezes consecutivas ou cinco alternadas. (CF, art. 93, II, a) 3. Também o acesso dos magistrados aos tribunais, por merecimento, se faz hoje sem a participação do Chefe do Poder Executivo, exceto no caso das Justiças da União, em que a escolha e a nomeação do candidato a ser promovido têm sido feitas pelo Presidente da República. Essa prática foi questionada pelo Professor e Desembargador Federal Sérgio D’Andréa Ferreira, para quem o art. 107 da Constituição outorga competência ao Presidente da República somente para a nomeação do juiz que terá acesso a tribunal regional federal, ao qual compete sempre a escolha, seja por antiguidade, seja por merecimento (“TRFs: promoções de juízes federais”, Revista da AJUFE nº 35, março de 1993, p. 20-21). Assiste-lhe razão na crítica, a meu ver. É incoerente que, nas justiças estaduais e do DF, os juízes tenham acesso ao tribunal sem ingerência do Chefe do Poder Executivo, enquanto essa ingerência tem ocorrido no âmbito das Justiças da União. Aqui, é exato dizer, como já disse alhures, que “o costume faz a lei”. 4. Esse também é o entendimento de Sérgio D’Andréa Ferreira (“TRFs: promoções de juízes federais”, Revista AJUFE n. 35, março de 1993, p. 20-21). 5. No sistema de votação anterior, do escrutínio secreto, não se sabia qual a primeira, segunda ou terceira opção de cada votante, pois as cédulas não-identificadas, com os votos, ficavam misturadas no escrutínio (urna). 6. Com muito maior razão será nula a votação se em seu resultado houver a influência de um ou mais votos ditados por sentimento pessoal (simpatia, interesse, gosto, amizade, preconceito etc.), caso em que a regra da alínea c do inciso II do art. 93 da Constituição é afrontada, e não apenas desatendida. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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