O Confisco no Direito Excepcional e a Constituição de 1988

Autor: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Desembargador Federal do TRF da 4ª Região

 Publicado na edição 28 - 24.03.2009

Quando integrante do Ministério Público Federal, ao emitir parecer nos autos da Apelação Cível nº 96.04.064841-1, tive a oportunidade de examinar questão constitucional relevante: a possibilidade ou não de exame pelo Poder Judiciário, na vigência da Carta de 1988, dos efeitos do confisco de bens decretado com base no Ato Institucional.

Naquela ocasião, ao proferir o parecer como representante do Ministério Público Federal, anotei, verbis:

"A pretensão formulada na peça vestibular, com a devida vênia, não pode prosperar, em face da expressa vedação constante na Constituição de 1967, na redação da Emenda Constitucional nº 1/69, em seu art. 181, I, bem como do art. 3° da Emenda Constitucional n° 11/78.

4. Com efeito, os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 1964 foram por decisão do Poder Constituinte Originário aprovados e excluídos de apreciação judicial, pois, nesse particular, o princípio da inafastabilidade do controle judicial sofreu explícita derrogação.

5. Em decorrência do aludido preceito constitucional, são insuscetíveis, igualmente, de apreciação judicial todas as medidas praticadas com fundamento nos Atos Institucionais ou Complementares, o que torna os atos revolucionários imunes à apreciação judicial, tanto no que concerne ao seu aspecto material como no formal, consoante reiteradamente deliberou o Egrégio Supremo Tribunal Federal (RTJ 82/744; 87/421; 92/561).

6. Deve-se ter presente que, durante a vigência dos denominados Atos Institucionais, existia, no direito positivo brasileiro, uma ordem jurídica cuja validade não podia ser contestada, uma vez que reconhecida, inclusive pelo Judiciário, que, apesar de sua unidade, se desdobrava em dois planos: um de natureza permanente, representado pela Constituição; outro, excepcional e provisório, corporificado nos Atos Institucionais, resultante do Poder Constituinte Originário, inerente a todas as revoluções, e que, por óbvias razões, se encontra acima da Constituição, tanto que ele manteve a vigência da Constituição de 1946, com as modificações que ele, Ato Institucional, produziu (art. 1° do Ato Institucional nº 1/64).

7. E assim, sucessivamente, os demais Atos Institucionais, todos sobranceiros às Constituições de 1946, 1967 e 1969, tanto que as alteraram ou suspenderam a vigência de seus dispositivos, constituindo o que se denomina ‘norma revolucionária’, cuja apreciação judicial, ora pretendida pelo recorrente, sempre foi recusada pela Suprema Corte.

8. Quando do julgamento do Mandado de Segurança n° 14.571-DF, assinalou o eminente Ministro Thompson Flores em seu voto, verbis:

'(...)

A aprovação de atos, como aquele que demitiu o impetrante e o arrebatou de apreciação do Poder Judiciário, é uma decorrência do próprio poder constituinte originário de que se achou investida a Revolução de 1964, que se manteve sobranceira à ordem jurídica existente.

Bem pode ser tenham sido injustos alguns, até mesmo errados outros, não nos cabe julgar de seu merecimento. Um legítimo ato de indenidade, como ocorre no Direito Inglês, cobre cada um deles.

Não é uma originalidade da Carta vigente. A de 1934, em seu art. 18 das Disposições Transitórias, insculpia norma idêntica. E no direito estrangeiro também é encontrada, como salientam os doutrinadores. Justificam-se como atos políticos do Poder Revolucionário.' (In: RTJ 47/219)

9. A respeito, pertinente o magistério de Hans Kelsen, verbis:

‘On peut juger un ordre juridique injuste du point de vue d'une certeine norme de justice. Mais le fait que le contenu d'un ordre de contrainte efficace peut être jugé injuste n'est en tout cas pas une raison de refuser de considérer cet ordre de contraint comme un ordre juridique.’

E, mais adiante, acrescenta o notável jurista, verbis:

‘Car la validité des normes juridiques qui ont été reçues sous l'empire de la Constitution nouvelle établie par voie révolutionnaire ne peut plus trouver son fondament immédiat dans l'ancienne Constitution, qui a été abrogée; ce fondement ne peut plus être que la Constitution nouvelle. Sans doute le contenu de ces normes demeure-t-il le même; mais le fondement le leur validité a changé, puisque le foundement de la validité de l'ordre juridique tout entier a changé.’

(Théorie Pure du Droit, traduction française par Charles Eisenrnann, Paris: Dalloz, 1962. p. 67 e 279)

10. Com a devida vênia do entendimento esposado pelo douto magistrado a quo, em sua bem lançada sentença, a fls. 796/7, mesmo sob a vigência da Carta de 1988 persiste a vedação do exame judicial dos denominados atos revolucionários, por força do disposto nos arts. 181 da Constituição de 1969 e 3º da Emenda Constitucional n° 11/78, nos termos da jurisprudência desta Corte, ao julgar a AC nº 89.04.18754-0-RS, Rel. Juiz Teori Zavascki, julg. em 10.04.1993, in DJU II de 09.06.93.

11. A nulidade do ato de confisco dos bens do recorrente, portanto, encontra-se, assim, excluída de apreciação do Poder Judiciário, quer quanto ao seu aspecto formal, quer quanto ao material, nos termos de tranquilo entendimento da Suprema Corte, verbis:

"Mandado de Segurança contra ato de confisco fundado no Ato Complementar nº 42, ratificado pelos AIs nos 5 e 14.

A indenidade exclui de apreciação os atos praticados com fundamento nos atos institucionais ou complementares, quer sejam eles conformes, quer sejam desconformes a esses mesmos atos, pois, em qualquer das hipóteses, haveria apreciação judicial vedada pela norma constitucional.

MS não conhecido de conformidade com o art. 3° da EC n° 11/78."
(MS nº 20.194-DF, rel. Min. Cordeiro Guerra, in RTJ92/561)

12. A prevalecer a tese sustentada na inicial, ora reiterada em grau de apelação, permitindo-se a apreciação dos ‘atos revolucionários’, contrariando-se o disposto nos arts. 181, I, da CF de 1969 e 3º da Emenda Constitucional nº 11/78, seria a negação da própria Revolução e do regime por ela instaurado, utilizando a expressão do voto do eminente e saudoso Ministro Amaral Santos, ao votar no Mandado de Segurança nº 18.107-DF, in RTJ 51/353-4, contrariando-se, assim, não somente o texto expresso da Constituição como as regras de hermenêutica.

‘Benignius leges interpretandae sunt, quo voluntas eorum conservetur.’ (Celso, Dig., 1, 3, 18)

Ademais, no caso dos autos, o Supremo Tribunal Federal, em pelo menos duas oportunidades, já se pronunciou acerca da legalidade do confisco dos bens do apelante, ao julgar os Mandados de Segurança nos 19.839-DF e 20.757-DF, publicados, respectivamente, nas RTJ 56/475 e 127/105, o que, conforme bem assinalado pelo Juiz a quo, à fl. 800, sobre esse tópico, configurou-se a coisa julgada, o que impede o seu reexame nesta ação, pois, caso contrário, estaria seriamente comprometida a certeza do direito, objetivo maior da coisa julgada.

13. Em conceituada monografia, leciona o Professor Mario Vellani, notável processualista italiano, verbis:

"Pero la no asegurada inmutabilidad judicial de la declaración de certeza aun respecto de todo nuevo proceso, daria un grave golpe a aquel principio de la certeza del derecho que, como se ha recordado ya, es una exigencia esencial de los ordenamientos modernos.”

(In: Naturaleza de la Cosa Juzgada, traduccíon de Santiago Sentís Metendo, Buenos Aires: E.J.E.A., 1963. p. 167, n° 32)

14. Por conseguinte, o ato inquinado de ilegal pelo ora recorrente, por força do texto constitucional, tem a natureza de bill of indemnity, sendo, portanto, afastada a sua apreciação pelo Judiciário.

15. Em conhecido parecer, publicado em O Confisco no Direito Excepcional, ensina o saudoso publicista Seabra Fagundes, verbis:

'A nós nos parece que a imunidade, assim outorgada aos efeitos dos atos praticados com invocação de atos institucionais ou atos complementares, é irrestrita. Exclui qualquer possibilidade de controle jurisdicional. Seja considerando-se os tipos de atos (demissão, aposentadoria, reforma, transferência para a reserva, penas disciplinares, confisco de bens, intervenção na ordem econômica, cassação de direitos políticos ou de mandatos eletivos, etc.), seja tendo-se em conta o processamento deles (incompetência, irregularidade formal, etc.), seja ainda ao ângulo da extensão das providências neles contidas (cancelamento de matrícula universitária, ao invés de suspensão; vedação de determinada atividade, ao invés de meras restrições ao seu exercício, etc.).’ (apud RTJ 121/1.129-1.130)

16. Por outro lado, o aspecto de examinar-se se os fatos ensejadores do confisco constituíram ou não um ilícito administrativo, matéria que, com a devida vênia, não pode ser apreciada na via judicial, em razão do disposto nos arts. 181 da CF e 3º da EC nº 11/78."

Nesse sentido, o parecer do jurista Pontes de Miranda, verbis:

“Na Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, art. 3º, diz-se: ‘São revogados os atos institucionais e complementares, no que contrariarem a Constituição Federal, ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial.’ Não se revogam leis no passado, porque seria ofensa ao princípio da irretroatividade. A revogação só se operou no dia da incidência da Emenda Constitucional n. 11, que entrou em vigor, conforme  o art. 4º, a 1º de janeiro de 1979. Portanto, de acordo com os princípios de direito constitucional, todos os atos praticados antes da revogação existiram e foram válidos. Qualquer ato praticado no dia 1º de janeiro de 1979 ou depois, com invocação de algum Ato Institucional ou de algum Ato Complementar, não entrou, sequer, no mundo jurídico. Os atos praticados antes, com base em Ato Institucional ou em Ato Complementar, passaram ao mundo jurídico sem qualquer invalidade, e a Emenda Constitucional n. 11, art. 3º, explicitou que ‘estão excluídos de apreciação judicial’.”

(In: O Confisco no Direito Excepcional, Caso LUTFALLA, Ago. 1979, p. IV-6/IV-7)

Da mesma forma, o entendimento de Seabra Fagundes,  no seu já mencionado parecer, verbis:

"1. Regulares ou não, os efeitos dos atos a que se refere a Emenda nº 11 são insusceptíveis de apreciação jurisdicional. A outorga de imunidade se destina a cobrir, com a impossibilidade de revisão judicial, os atos acaso praticados contra o direito escrito vigente, pois os regularmente praticados, ou seja, aqueles conformes a todas as regras a que se deveriam submeter, não necessitariam, para perdurar (em si mesmos, ou nos seus efeitos), de nenhuma declaração de convalescimento. O objetivo dos bills of indemnity é exatamente tornar indiscutíveis, na sua legitimidade, atos que foram praticados em desconformidade com o direito vigente. Eles como que legalizam, a posteriori, medidas originariamente ilegais. Legalizam ilegalidades pretéritas, para usar expressão de E. C. S. Wade e G. Godfrey Phillips, no seu ‘Constitutional Law’ (p. 394-5). Com esse sentido é que aparecem eles no seu país de origem (Inglaterra), como noutros onde eventualmente se têm aplicado.
 
2. Haja vista o caso dos Estados Unidos, quando necessário apagar desrespeito à competência do Congresso, pelo Presidente Lincoln, por ter suspendido, durante a Guerra de Secessão, a vigência do habeas corpus (Esmein-Nézard, obr. e vol. cits., ps. 94).

3. Se a desconformidade de ato complementar com a legalidade revolucionária, expressa em texto da Carta Política ou no de Ato Institucional, abrisse caminho ao controle do órgão judicante, a imunidade instituída na Emenda nº 11 (art. 3º) seria uma falsa imunidade do ponto de vista político. Pois na verdade o Poder Judiciário é que diria – e não o texto constitucional – até onde estender-se-ia a validez das medidas, cuja intocabilidade se quis assegurar."

(In: O Confisco no Direito Excepcional, Caso LUTFALLA, Ago. 1979, p. III-6)

Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

"CONFISCO DE BENS. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 11, DE 1978. RESSALVA DOS EFEITOS DOS ATOS PRATICADOS COM BASE EM ATOS INSTITUCIONAIS E COMPLEMENTARES. IMPOSSIBILIDADE DA DESCONSTITUIÇÃO DO CONFISCO POR DECRETO.

A emenda constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, em seu artigo 3º, conferiu incolumidade mais ampla aos efeitos dos atos praticados com base nos atos institucionais e complementares, pois a ressalva em relação a eles corresponde a sua aprovação, visando forçosamente ao poder executivo, que não pode revê-los. A norma tanto ressalva tais efeitos como os exclui da apreciação judicial, e a repetição de significados não é simples redundância, mas a fixação de comandos distintos em relação ao poder executivo e ao poder judiciário.

Decreto que revoga igual ato, no qual foi declarado insubsistente o decreto de confisco de bens, em 1967. Não se trata de revogação por motivo de conveniência ou oportunidade, na qual seriam resguardados direitos adquiridos, mas de anulação do ato praticado em contrariedade a norma constitucional.

Só mediante emenda constitucional pode ser feita a revisão dos atos praticados com base nos atos institucionais e complementares.

Mandado de segurança denegado."
(STF, MS nº 20757/DF, Rel. Min. Carlos Madeira, DJ. 17.06.88)

"CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL  - RECURSO ESPECIAL - CONFISCO DE BENS - PROCEDIMENTO - ATOS FUNDADOS NOS ATOS INSTITUCIONAIS E COMPLEMENTARES - APRECIAÇÃO PELO JUDICIÁRIO - IMPOSSIBILIDADE - VIOLAÇÃO À LEI FEDERAL NÃO CONFIGURADA (D.L. 359/68) - PREQUESTIONAMENTO AUSENTE - SÚMULAS 282 E 356 STF – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA - RISTJ, ART. 255 E PARÁGRAFOS – LEI 8.038/90.

- Os atos praticados ao abrigo dos atos institucionais ou complementares (atos revolucionários) são intocáveis pelo judiciário; por não terem existência autônoma, a anulação dos mesmos implicaria revisão daqueles, excluídos do controle judiciário, vedado pela norma constitucional.

- Se o Tribunal não apreciou a legislação federal supostamente violada e não foi suscitada a matéria nos embargos de declaração opostos, tem-se por ausente o prequestionamento indispensável à admissibilidade do recurso especial.

- A simples transcrição de ementas não basta para a comprovação do dissídio pretoriano alegado, impondo-se a transcrição dos trechos assemelhados ou divergentes entre os paradigmas colacionados e o aresto hostilizado, bem como a juntada das cópias autenticadas dos mesmos.

- Recurso não conhecido."

(STJ, REsp nº 49698/PR, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJ 04.10.1999)

Com efeito, essa é a melhor exegese dos artigos constitucionais invocados, a que melhor atende à sua finalidade e ao próprio espírito da Constituição, o que não deve ser desprezado pelo intérprete. “Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”(CELSO, Dig. 1, 3, 7). Nesse sentido, ademais, a distinção no direito constitucional americano entre a interpretação em sentido estrito e a construction, na lição de Thomas Cooley, verbis: “Construction, on the other hand, is the drawing of conclusions, respecting subjects that lie beyond the direct expressions of the text, from elements known from and given in the text; conclusions which are in the spirit, though not within the letter of the text.” (In: A Treatise on the Constitutional Limitations, 7.  ed., p. 70)

Da mesma forma, o ensinamento de William Blackstone, verbis: “(...) the most universal and effectual way of discovering the true meaning of a law, when the words are dubious, is by considering the reason and spirit of it; (...)” (In: Commentaries On The Laws Of England, Philadelphia: J. B. Lippincott Company, 1896. v. 1, p. 60, nº 5).

Por conseguinte, mesmo já sob a égide da Constituição Federal de 1988, não cabe ao Poder Judiciário reexaminar a legalidade do confisco decretado com base no Ato Institucional em razão do disposto nos arts. 181 da Constituição Federal/69 e 3º da Emenda Constitucional nº 11/78, consoante os precedentes já citados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
 
Plenamente válido, aqui, o ensinamento de Henry Campbell Black, em obra clássica, verbis:

"10. It is not permissible to disobey, or to construe into nothingness, a provision of the constitution merely because it may appear to work injustice, or to lead to harsh or obnoxious consequences or invidious and unmerited discriminations, and still less weight should be attached to the argument from mere conveniencia.” (In: Handbook of American Constitutional Law, 2. ed., St. Paul: West Publishing Co., 1897.p. 70)

A propósito, convém recordar a velha, mas sempre nova lição de Henri de Page, in De L'interprétation des Lois, éditions Swinnen, Bruxelles, 1978, t. II, p. 22/3, verbis:

“Dans le domaine de l'application de la loi, le juge, peut-être, en tempérera ou en élargira l'exercice. Il usera d'une certaine souplesse suivant les circonstances. Mais son oeuvre, quelque large ou discrète qu'elle soit, devra demeurer compatible avec les pouvoirs limités de juge qui lui donne la division du travail. Il n'est que juge et non pas législateur. Prisonnier de la décision d'espèce, il lui est impossible de s'en évader. Par définition, il est incapable de créer des règles générales, de ‘legiférer’.”

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., mar. 2009. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS