Liberalismo, crise econômica e extrafiscalidade: análise da tributação extrafiscal à luz das recentes medidas anticrise(1)


Autor: Andrei Pitten Velloso

Juiz Federal

  publicado em 30.04.2009

O modelo do Estado Liberal é sintetizado, na seara econômica, pela célebre expressão francesa laissez faire (“deixai fazer”). Assentado sobre a crença da capacidade autorregulatória do mercado, preconiza a abstenção estatal na economia, ou seja, que o Estado deixe o mercado funcionar livremente. Consequentemente, demanda que a tributação se restrinja à sua função típica, de angariar recursos para o custeio das despesas estatais (mais precisamente, das despesas de um Estado mínimo).

Superado esse modelo, os Estados contemporâneos lançam mão do Direito Tributário não só para alcançar a finalidade fiscal como também para realizar fins não fiscais, alheios à esfera impositiva. Utilizam-no para garantir o equilíbrio econômico, tutelar o meio ambiente, reduzir as desigualdades sociais, etc., impondo à tributação o desempenho de um papel que transcende o de mera arrecadação de recursos públicos.

Eis aí a extrafiscalidade. Caracteriza-se pela persecução de finalidades não fiscais mediante o manejo dos institutos, conceitos e formas do Direito Tributário. Desempenha um papel ativo de conformação direta da realidade social e, sobretudo, da realidade econômica. E, cabe dizê-lo expressamente, não se trata de um fenômeno alheio a tal ramo jurídico, senão de uma dimensão da tributação que, a despeito de estar sujeita às limitações constitucionais e legais ao poder de tributar, vai além dos lindes da imposição.

Atualmente se admite de forma pacífica a tributação extrafiscal, contanto que ela não viole os princípios constitucionais tributários. Pode afetá-los, restringi-los, mas não ao ponto de violá-los. A extrafiscalidade é um fenômeno presente e relevante em todos os sistemas tributários contemporâneos, que adotam medidas interventivas no domínio econômico e, assim, se afastam do postulado fundamental do Estado Liberal: o laissez faire.

Nada melhor que a atual crise econômica para elucidar esse fato. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, chegou a afirmar categoricamente que “a autorregulação terminou, o laissez-faire terminou”. Assiste-lhe plena razão, seja com respeito ao Direito Econômico ou ao Direito Tributário. Diante do crash dos mercados financeiros e da crise econômica que assumiu dimensões globais, não só se admitem, mas se exigem medidas tributárias interventivas, notadamente medidas de redução da carga tributária, à luz da tese keynesiana, que fundamenta uma política fiscal de intensa desoneração em tempos de crise. Desoneração a ser promovida mesmo que conduza ao déficit público,  dada a possibilidade de se lograr o equilíbrio orçamentário num período futuro, de recuperação econômica.

Os Estados Unidos constituem o exemplo paradigmático da consagração do modelo keynesiano. A despeito de adotarem medidas estatais interventivas (como subsídios, barreiras tributárias, etc.), exigiam dos Países em desenvolvimento a observância estrita de postulados liberais e sobretudo um rigoroso compromisso com o equilíbrio orçamentário, inclusive em tempos de grave crise econômica. Eclodida a crise americana, restou escancarada a hipocrisia estadunidense: estabeleceram-se as mais radicais medidas estatais para combatê-la, com a redução da taxa de juros a zero, ajudas bilionárias a bancos e empresas em dificuldades, incentivos fiscais, etc. Tudo isso reivindicado por instituições financeiras e conglomerados transnacionais que há pouco defendiam um capitalismo bruto, sem ingerência estatal. O resultado é um déficit provável de 12% do monstruoso PIB americano (US$ 13,8 trilhões), que representa um quinto da economia mundial. Não criticamos essas necessárias medidas: somente as utilizamos para elucidar a relevância do papel estatal na economia, a ser desempenhado até mesmo mediante o recurso ao Direito Tributário. Não é por acaso que algumas das principais medidas adotadas por Barack Obama dizem respeito à desoneração tributária, na linha do que George W. Bush já havia feito, editando em fevereiro de 2008 um pacote de estímulo à economia com relevantes benefícios tributários, que compreenderam inclusive a desoneração retroativa do Imposto de Renda, com o envio de cheques de restituição do imposto a milhões de contribuintes norte-americanos.
Aportando a crise no território brasileiro, também aqui foi necessário recorrer a medidas de incentivo tributário ao desenvolvimento econômico, todas ligadas à promoção do consumo: criaram-se duas alíquotas intermediárias (7,5% e 22,5%) do IRPF, cujo impacto estimado é de R$ 4,9 bilhões; reduziu-se pela metade (de 3% a 1,5% ao ano) o IOF sobre o crédito geral ao consumidor, de modo a reduzir o custo dos empréstimos; e reduziu-se ou eliminou-se o IPI sobre automóveis até 31 de março de 2009, com destaque à previsão de alíquota zero para os veículos de até 1.000 cilindradas.

Interessante é notar como essas medidas contrastam com princípios constitucionais tributários e como esse contraste é necessário para lhes garantir uma atuação eficiente. As reduções do IOF e do IPI foram implementadas por decretos, indo de encontro ao princípio da legalidade, que reserva à lei a instituição e a modificação de tributos. Não são, contudo, inconstitucionais, porquanto, além de favoráveis aos contribuintes, são autorizadas pela Lei Maior, que, justamente para propiciar a adoção célere de medidas extrafiscais, faculta ao Poder Executivo alterar as alíquotas do I.I., do I.E., do IPI e do IOF, seja reduzindo-as, seja majorando-as dentro das condições e limites estabelecidos em lei (art. 153, § 3º, da CF). O restabelecimento das alíquotas do IPI em abril de 2009 não obedece ao princípio geral da anterioridade de exercício, que proíbe a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios de cobrarem tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (art. 150, III, b). Porém, não é necessário que o respeite, haja vista que, precisamente para conferir agilidade às medidas extrafiscais, a Constituição excepciona os impostos mencionados da abrangência deste princípio (arts. 62, § 2º, e 150, § 1º). Também há um contraste, e este não é apenas aparente, da desoneração do IPI com o princípio da igualdade tributária (art. 150, II, da CF), dado apenas a indústria automobilística ter sido beneficiada pela desoneração, restando excluídos todos os demais segmentos da indústria brasileira. Sem embargo, à primeira vista, essa disparidade é legítima, em razão de a crise ter afetado esse segmento industrial de forma particularmente intensa. A intensidade díspar dos efeitos da crise justifica a disparidade tributária.

Com essas sucintas ponderações, esperamos ter contribuído para a compreensão do significado, das razões e da dinâmica da tributação extrafiscal, bem como do porquê das exceções constitucionais aos princípios da legalidade e da anterioridade e da chancela jurisprudencial a disparidades de tratos tributários com base em motivos não fiscais – ou, ao menos, para despertar o interesse pelo estudo dessa intrigante dimensão da atividade tributária.

Notas

1. Artigo publicado no periódico jurídico Carta Forense, edição nº 69, fev. de 2009, p. 48.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abril. 2009. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS