O modelo do Estado Liberal é sintetizado, na seara econômica, pela célebre expressão francesa laissez faire (“deixai fazer”). Assentado sobre a crença da capacidade autorregulatória do mercado, preconiza a abstenção estatal na economia, ou seja, que o Estado deixe o mercado funcionar livremente. Consequentemente, demanda que a tributação se restrinja à sua função típica, de angariar recursos para o custeio das despesas estatais (mais precisamente, das despesas de um Estado mínimo).
Superado esse modelo, os Estados contemporâneos lançam mão do Direito Tributário não só para alcançar a finalidade fiscal como também para realizar fins não fiscais, alheios à esfera impositiva. Utilizam-no para garantir o equilíbrio econômico, tutelar o meio ambiente, reduzir as desigualdades sociais, etc., impondo à tributação o desempenho de um papel que transcende o de mera arrecadação de recursos públicos.
Eis aí a extrafiscalidade. Caracteriza-se pela persecução de finalidades não fiscais mediante o manejo dos institutos, conceitos e formas do Direito Tributário. Desempenha um papel ativo de conformação direta da realidade social e, sobretudo, da realidade econômica. E, cabe dizê-lo expressamente, não se trata de um fenômeno alheio a tal ramo jurídico, senão de uma dimensão da tributação que, a despeito de estar sujeita às limitações constitucionais e legais ao poder de tributar, vai além dos lindes da imposição.
Atualmente se admite de forma pacífica a tributação extrafiscal, contanto que ela não viole os princípios constitucionais tributários. Pode afetá-los, restringi-los, mas não ao ponto de violá-los. A extrafiscalidade é um fenômeno presente e relevante em todos os sistemas tributários contemporâneos, que adotam medidas interventivas no domínio econômico e, assim, se afastam do postulado fundamental do Estado Liberal: o laissez faire.
Nada melhor que a atual crise econômica para elucidar esse fato. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, chegou a afirmar categoricamente que “a autorregulação terminou, o laissez-faire terminou”. Assiste-lhe plena razão, seja com respeito ao Direito Econômico ou ao Direito Tributário. Diante do crash dos mercados financeiros e da crise econômica que assumiu dimensões globais, não só se admitem, mas se exigem medidas tributárias interventivas, notadamente medidas de redução da carga tributária, à luz da tese keynesiana, que fundamenta uma política fiscal de intensa desoneração em tempos de crise. Desoneração a ser promovida mesmo que conduza ao déficit público, dada a possibilidade de se lograr o equilíbrio orçamentário num período futuro, de recuperação econômica.
Os Estados Unidos constituem o exemplo paradigmático da consagração do modelo keynesiano. A despeito de adotarem medidas estatais interventivas (como subsídios, barreiras tributárias, etc.), exigiam dos Países em desenvolvimento a observância estrita de postulados liberais e sobretudo um rigoroso compromisso com o equilíbrio orçamentário, inclusive em tempos de grave crise econômica. Eclodida a crise americana, restou escancarada a hipocrisia estadunidense: estabeleceram-se as mais radicais medidas estatais para combatê-la, com a redução da taxa de juros a zero, ajudas bilionárias a bancos e empresas em dificuldades, incentivos fiscais, etc. Tudo isso reivindicado por instituições financeiras e conglomerados transnacionais que há pouco defendiam um capitalismo bruto, sem ingerência estatal. O resultado é um déficit provável de 12% do monstruoso PIB americano (US$ 13,8 trilhões), que representa um quinto da economia mundial. Não criticamos essas necessárias medidas: somente as utilizamos para elucidar a relevância do papel estatal na economia, a ser desempenhado até mesmo mediante o recurso ao Direito Tributário. Não é por acaso que algumas das principais medidas adotadas por Barack Obama dizem respeito à desoneração tributária, na linha do que George W. Bush já havia feito, editando em fevereiro de 2008 um pacote de estímulo à economia com relevantes benefícios tributários, que compreenderam inclusive a desoneração retroativa do Imposto de Renda, com o envio de cheques de restituição do imposto a milhões de contribuintes norte-americanos.
Aportando a crise no território brasileiro, também aqui foi necessário recorrer a medidas de incentivo tributário ao desenvolvimento econômico, todas ligadas à promoção do consumo: criaram-se duas alíquotas intermediárias (7,5% e 22,5%) do IRPF, cujo impacto estimado é de R$ 4,9 bilhões; reduziu-se pela metade (de 3% a 1,5% ao ano) o IOF sobre o crédito geral ao consumidor, de modo a reduzir o custo dos empréstimos; e reduziu-se ou eliminou-se o IPI sobre automóveis até 31 de março de 2009, com destaque à previsão de alíquota zero para os veículos de até 1.000 cilindradas.
Interessante é notar como essas medidas contrastam com princípios constitucionais tributários e como esse contraste é necessário para lhes garantir uma atuação eficiente. As reduções do IOF e do IPI foram implementadas por decretos, indo de encontro ao princípio da legalidade, que reserva à lei a instituição e a modificação de tributos. Não são, contudo, inconstitucionais, porquanto, além de favoráveis aos contribuintes, são autorizadas pela Lei Maior, que, justamente para propiciar a adoção célere de medidas extrafiscais, faculta ao Poder Executivo alterar as alíquotas do I.I., do I.E., do IPI e do IOF, seja reduzindo-as, seja majorando-as dentro das condições e limites estabelecidos em lei (art. 153, § 3º, da CF). O restabelecimento das alíquotas do IPI em abril de 2009 não obedece ao princípio geral da anterioridade de exercício, que proíbe a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios de cobrarem tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (art. 150, III, b). Porém, não é necessário que o respeite, haja vista que, precisamente para conferir agilidade às medidas extrafiscais, a Constituição excepciona os impostos mencionados da abrangência deste princípio (arts. 62, § 2º, e 150, § 1º). Também há um contraste, e este não é apenas aparente, da desoneração do IPI com o princípio da igualdade tributária (art. 150, II, da CF), dado apenas a indústria automobilística ter sido beneficiada pela desoneração, restando excluídos todos os demais segmentos da indústria brasileira. Sem embargo, à primeira vista, essa disparidade é legítima, em razão de a crise ter afetado esse segmento industrial de forma particularmente intensa. A intensidade díspar dos efeitos da crise justifica a disparidade tributária.
Com essas sucintas ponderações, esperamos ter contribuído para a compreensão do significado, das razões e da dinâmica da tributação extrafiscal, bem como do porquê das exceções constitucionais aos princípios da legalidade e da anterioridade e da chancela jurisprudencial a disparidades de tratos tributários com base em motivos não fiscais – ou, ao menos, para despertar o interesse pelo estudo dessa intrigante dimensão da atividade tributária.
Notas
1. Artigo publicado no periódico jurídico Carta Forense, edição nº 69, fev. de 2009, p. 48.
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