Cases de saúde em debate(1)
Honrada com o convite para participar do I Congresso Brasileiro de Medicina Baseada em evidências, percebi surpresa ter sido designada para debater perspectivas em torno dos seguintes cases. 1º) Stents revestidos x não revestidos para insuficiência coronariana aguda; 2º) anticorpos monoclonais para psoríase; 3º) cálcio para prevenção de hipertensão arterial na gravidez e suas consequências! Ocorre que nada sei sobre os temas, deve ter ocorrido algum engano! O que eu poderia dizer para contribuir sobre eles na ótica de ator social integrante do Poder Judiciário? Muito pouco.(2)
Inicio pela minha quase certeza de que em breve estaremos nós juízes decidindo demandas em que pacientes reclamam do SUS(3) a imediata disponibilização dos stents revestidos, dos anticorpos monoclonais e do cálcio para prevenção de hipertensão, tudo com pedido de extrema urgência, face ao sempre alegado “risco de vida”.
É claro que as novas terapias são certamente mais dispendiosas do que as tradicionais e, talvez, não tenham sequer sido aprovadas pelos órgãos competentes nem existam estudos consistentes sobre eficiência, eficácia e efeitos colaterais, mas parecem melhores do que as existentes, já que são novas, e a saúde é um direito!(4)
Em 90% dessas ações, a antecipação de tutela será concedida, obrigando o SUS (União, Estado ou Município, ou todos)(5) a providenciar, em 24 horas, o fornecimento do medicamento ou produto, sob pena de bloqueio de valores,(6) em geral expressivos, que serão entregues aos advogados ou partes e sobre os quais dificilmente o Judiciário exige uma prestação de contas. O medicamento mais solicitado é o Interferon Peguilado para Hepatite Viral Crônica, tipo C. O paciente, para se beneficiar, deve ser portador do genótipo tipo 1 (Portaria SVS nº 24,(7) de 28.09.2007).
O fenômeno da “medicalização da vida”, a insuficiência de recursos e as falhas dos serviços públicos de saúde acabam por incentivar e fazer surgir o fenômeno da “judicialização das questões de saúde”, o que pode comprometer a prestação de um serviço público de saúde nos moldes do que previsto pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, há quem pense que o Judiciário deveria, sim, ser bastante mais incisivo nas questões de saúde pública.(8)
Em pesquisa realizada em 2003, observei que a matéria da saúde pública “direito sanitário” é decisiva para a construção de uma sociedade digna e justa, contudo, embora a sua importância, o Judiciário não está preparado para enfrentá-la. Cobertos de bons propósitos, os juízes, no escopo de não deixar a promessa constitucional como uma promessa inconsequente,(9) tinham preponderantemente uma visão bastante pobre sobre a questão: viam o direito à saúde como um direito individual ilimitado, insubmisso às escolhas técnicas dos gestores públicos do SUS. Tudo o que se pedisse tinha grande chance de ser concedido.
Em novo estudo sobre a matéria em 2008,(10) (11) constatei que muito lentamente a questão dos medicamentos, procedimentos e terapias começa a ser mais ponderada pelos juízes; a maioria, contudo, inclina-se por prestigiar a ideia de que, havendo “risco de morte”, tudo pode ser deferido e imputado ao custeio dos serviços públicos de saúde.(12) (13) Os apelos ao Judiciário estão fazendo com que alguns juízes “tomem o lugar dos médicos” e dos gestores de saúde pública, o que não parece ser correto nem prudente.
A persistir essa linha, os serviços públicos terão crescente dificuldade em se organizar. O Judiciário tem certa dificuldade em enfrentar as demandas distributivas, estamos acostumados a julgar atributivamente e não nos damos conta de que sempre há um custo social. Se os sistemas públicos de saúde forem utilizados de forma irracional ou predatória, o resultado será a fragilização do SUS.(14) Para evitar esses inconvenientes, na linha do defendido pelo Prof. José Reinaldo de Lima Lopes(15) e pelo Prof. Barroso, as ações coletivas, ações civis públicas, seriam o mais adequado para efetivamente tutelar o direito coletivo à saúde. Por outro lado, a disseminação dos fundamentos da Medicina baseada em evidências, e um olhar crítico sobre o cientificismo, e o prestígio dos protocolos estabelecidos e seguros poderão racionalizar custos e humanizar a relação médico-paciente.
Conclusão
Saúde digna e eficiente é fator de segurança pessoal e traquilidade social
Sobre os cases em debate, nós juízes, leigos em medicina, mas animados de bons propósitos, deveríamos:
1º) Observar a presunção de legitimidade das políticas públicas sanitárias. Esperar e confiar que os gestores públicos (médicos e técnicos) façam a melhor opção e revisem as opções feitas periodicamente. Prestigiar os protocolos clínicos estabelecidos.
2º) A escolha dos gestores públicos, consubstanciada em listas (Rename e outras), merece prestígio e presunção de legitimidade e eficiência, não podendo ser liminarmente descartada, especialmente em ações individuais. É sempre possível ao Judiciário verificar eficiência mínima, adequação, correta aplicação de recursos, combate à inação.
3º) O conjunto de ações e serviços do SUS constituem patrimônio social, e todos os serviços de saúde, públicos e privados, são serviços de relevância pública (art. 197 da Constituição Federal de 1988).
4º) A saúde como um direito social, a universalidade e a integralidade do atendimento são princípios expressos na Constituição Federal de 1988 e albergados na Lei n.º 8.080/1990, sendo princípios unificadores e fundamentais do sistema.
5º) Os princípios da precaução e da prevenção (art. 200 da Constituição Federal de 1988), a vinculação dos recursos, sua correta destinação e a visão do real, “reserva do possível”, fazem por tornar sustentável o sistema.
6º) É imprescindível a inserção da disciplina do direito sanitário nos currículos dos cursos de saúde e Direito, bem como seria oportuna a especialização de Varas Federais em questões de saúde, mesmo que não exclusivas.
7º) não se pode encarar o direito à saúde à margem da realidade social. “Pensar que o direito à saúde deve ser determinado do ponto de vista do indivíduo isolado é pensá-lo como uma mônada, é retornar ao modelo liberal de estado da natureza onde os direitos do indivíduo são determinados à margem da vida social.”(16)
8º) saber cuidar, o homem é filho do cuidado no seu percurso temporal no mundo; assim, os juízes, como exercentes de uma parcela do poder público, têm responsabilidade própria no sentido da construção do Pacto pela Saúde, do Pacto pela Vida, do Pacto em defesa do SUS e do Pacto de Gestão do SUS, inaugurados pela Portaria nº 399/2006.
Notas
1. Texto-base para participação no evento. Mesa coordenada pelo Dr. Álvaro Nagib Atallah, Diretor do Centro Cochrane do Brasil/Presidente do Congresso, e pela Dra. Rachel Riera, Assistente de Pesquisa do Centro Cochrane do Brasil, e compartilhada com Cláudio Maierovitch, Gestor Público, SCTIE/MS, Karla Coelho, Gerente da ANA, DIPRO/ANS; Wilson Follador, Representante da Indústria Sanofi-Aventis; Paulo Dornelles Picon, Representante da UFRGS; Paulo Gilberto Cogo Leivas, Procurador Regional da República da 4ª Região; Carlos Chagas, Jornalista; e Carlos Eugênio de Sá Freira, Representante, Usuário.
2. Os casos a serem discutidos pelos participantes foram assim ementados pela Dra. Rachel Riera: 1º) Paciente de 70 anos, do sexo masculino, procura serviço de emergência, com dor no peito há 20 minutos, com irradiação para o braço esquerdo. Médica faz diagnóstico de insuficiência coronariana, encaminha para estudo angiográfico e solicita 4 stents revestidos com drogas; 2º) Paciente com 56 anos procura consultório médico, com queixas de coceira e manchas nos braços e abdômen há 3 meses. Médico faz diagnóstico de psoríase em placas e solicita ao SUS anticorpo monoclonal para tratamento por 36 semanas. O medicamento tem seu fornecimento recusado. Paciente procura advogado que decide recorrer judicialmente com argumento de que o medicamento foi prescrito por profissional habilitado e que a saúde é um direito de todos, estabelecido constitucionalmente; 3º) Paciente de 30 anos, no 8º mês da sua primeira gestação, apresenta inchaço no corpo, pressão alta e alterações vasculares no exame do fundo de olho. Fez pré-natal em hospital-escola no SUS e, perguntada se foi orientada sobre o uso de cálcio, ácido acetil salicílico, informa não ter recebido nenhum tipo de prescrição ou orientação sobre o assunto. O médico faz diagnóstico de pré-eclampsia grave. A paciente pergunta se havia possibilidade de prevenção dos problemas.
3. A distribuição de medicamentos obedece à descentralização. Compete ao Estado o fornecimento de medicamentos excepcionais constantes da Portaria nº 2.577/2006 do Ministério da Saúde. Aos Municípios compete o fornecimento dos essenciais.
4. Art. 196 da Constituição Federal de 1988. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
5. Sustentei em muitas oportunidades a divisão de atribuições entre os Entes Públicos em torno da saúde. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não tem feito esta distinção.
6. O bloqueio de valores é prestigiado por jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
7. Dispõe sobre Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Hepatite Viral C.
8. PETRY, André. Dane-se a rabacuda. Veja. São Paulo, 17 out. 2007. "A Justiça não pensou em abrir juizado sem frente aos hospitais públicos. Ninguém desconhece as filas à espera de atendimento, as cenas de pacientes agonizando pelos corredores em macas improvisadas ou no chão. Nessas filas, não se perde o avião, perde-se a vida."
9. Relator Ministro Celso de Mello, RE 271286 AgR/RS, Segunda Turma, DJ de 24.11.2000. Era um remédio do programa aos portadores de HIV/AIDS.
10. TESSLER, Marga Inge Barth. O juiz e a tutela jurisdicional sanitária. 2003, p. 51. Dissertação (Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal), Universidade de Brasília, Brasília, 2003.
11. Idem. A atuação do Poder Judiciário nas políticas públicas de saúde. FGV-Direito Rio.
12. As considerações dos julgados procuram evidenciar que o doente é carente de recursos e a doença é grave. A maioria dos julgados esquece o inteiro teor do artigo 196 da Constituição Federal de 1988 : “[...] ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção [...]”.
13. Registrem-se hipóteses de suplementos alimentares, fraldas e outros não compreendidos no termo “medicamentos”; há, todavia, jurisprudência favorável: STJ ‑ Ag 874.718/RS, Ag 883.335/DF e RMS 17425/MG.
14. Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar as Suspensões de Segurança, analisa o caso concreto para firmar posição, por exemplo: SS 3263 e SS 3158.
15. LIMA LOPES, José Reinaldo. Direitos Sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006.
16. BARZOTTO, Luis Fernando. Os direitos humanos como direitos subjetivos da dogmática jurídica à ética. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, nº 56, 2005.
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