Concurso de infrações de menor potencial ofensivo entre si e a permanência do feito no juizado especial criminal |
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Autora: Suzane Maria Carvalho do Prado Promotora de Justiça no Estado do Paraná, Especialista em Direito Contemporâneo e suas Instituições Fundamentais pela PUC-PR e em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha, Espanha, e Mestranda em Direito pela PUC-PR. publicado em 30.06.2009
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Resumo: Com a edição da Lei 11.313/2006, restou positivado que, em caso de conexão ou continência de infrações de menor potencial ofensivo com crimes de competência da Justiça Comum ou do Tribunal do Júri, os processos serão reunidos nestes últimos, observados a transação penal e a composição de danos civis. Ou seja, caso trate de concurso de delito de menor potencial ofensivo entre si, não se tem porque afastar a competência constitucionalmente fixada dos Juizados Especiais Criminais (artigo 98, I, CF), encaminhando o feito para a Justiça Comum, como reiteradamente tem decidido o Superior Tribunal de Justiça com o argumento de que, se o “somatório das penas cominadas in abstracto for superior a dois anos, tais crimes, que isoladamente seriam considerados de menor potencial ofensivo, deixam de sê-lo”. Primeiro, porque no concurso (puro) de delitos de menor potencial ofensivo o que vai se ter é um conjunto de pequenos delitos, e não uma alteração na natureza de cada um deles. Segundo, porque observada a parte final do parágrafo único do artigo 60 da Lei 9099/95, quanto à transação e à composição dos danos civis, no Juízo Comum, criar-se-ia uma situação verdadeiramente de crise, em casos concretos, como se expõe no corpo do trabalho. Pretende-se com este breve arrazoado demonstrar (se não convidar para) a necessidade de uma releitura do entendimento do STJ, mantendo no Juizado Especial Criminal o processo e o julgamento das infrações de menor potencial ofensivo quando cometidas em concurso entre si. Palavras-chave: infração de menor potencial ofensivo. Competência. Juizado Especial Criminal. Lei 11.313/2006. I Infrações de menor potencial ofensivo. Competência Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo os crimes e contravenções penais que tenham como pena máxima prevista em Lei dois anos, cumulada ou não com multa (artigo 61, Lei 9099/95). Para essas infrações de menor potencial ofensivo, a Constituição Federal determinou, no artigo 98, I, que fossem criados “juizados especiais (...) competentes para [seu] a conciliação, o julgamento e a execução”. Veio a Lei 9.099/95 para regular a matéria. Pode-se, assim, afirmar que a competência para processo e julgamento dos crimes de menor potencial ofensivo tem assento constitucional e é legalmente excepcionada, num primeiro momento, nas seguintes hipóteses: a) em casos de conexão ou continência com crimes de competência do Juízo Comum ou do Tribunal do Júri (artigo 60, parágrafo único), oportunidade na qual fica, ainda, assegurado ao infrator a aplicação dos benefícios processuais da Lei dos Juizados; Afora isso, sem disposição expressa de Lei, a subtração da competência do Juizado Especial Criminal, em nosso sentir, é contrária à disposição constitucional e, portanto, macula de nulidade o feito (artigo 69, III, c/c o art. 564, I, ambos do Código de Processo Penal). II Competência para processo e julgamento de infrações de menor potencial ofensivo. Efeito da Lei 11.313/2006 Não se ignora a voz corrente que se apega ao entendimento do STJ de que, no concurso de infrações de menor potencial ofensivo entre si, é a soma das penas que determina a competência para processo e julgamento, e não o limite estabelecido no conceito legal (artigo 61 da Lei 9.099/95). “2. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que, no caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação da competência do Juizado Especial Criminal será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas aos delitos; destarte, se desse somatório resultar um apenamento superior a 02 (dois) anos, fica afastada a competência do Juizado Especial.”(1) Todavia, não mais se pode aderir ao mesmo. É certo que o Direito não é estático, de modo que, firmado um entendimento pelo Tribunal Superior, a ele se deve obediência cega dali para a eternidade. Com o advento da Lei 11.313, de 28 de junho de 2006,(2) salvo engano, restou esclarecido (se bem que nas entrelinhas) que somente quando houver concurso de infrações entre delitos de menor potencial ofensivo e outros de competência da Justiça comum ou do Tribunal do Júri é que ficará afastada a competência do Juizado Especial Criminal (mesmo assim, mantidas as benesses da lei especial para o infrator). “Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.” (sem grifos no original) Ou seja, em se tratando de concurso de crimes de menor potencial ofensivo entre si, não há Juízo atrativo (pelo somatório das penas), e, portanto, o feito deve permanecer no Juizado Especial Criminal. É uma releitura necessária do entendimento do Superior Tribunal de Justiça com a edição da Lei 11.313/2006. O fato de infrações de menor potencial ofensivo serem cometidas em concurso entre si não retira sua natureza de “infração de menor potencial ofensivo”. E, portanto, não podem ser processadas e julgadas por outro Juízo que não aquele constitucionalmente previsto: o Juizado Especial Criminal. Nesse sentido já deliberaram os Promotores de Justiça do Rio Grande do Sul, no II Encontro Criminal, realizado em 2006. “EMENTA 171 Valendo-se do artigo 119 do Código Penal,(3) por analogia, no III Encontro Estadual de Magistrados de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, realizado em maio de 2006, e no XIX Encontro Estadual de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, realizado em outubro de 2007, em Aracaju/SE, restou firmado o mesmo entendimento. “No caso de concurso de crimes (material ou formal) e continuidade delitiva, as penas serão consideradas isoladamente para fixação da competência. (Aprovado no XIX Encontro – Aracaju/SE).”(Enunciado n°80) Sem querer enfrentar moinhos de vento, fato é que não se pode curvar-se a um entendimento sedimentado, quando da evolução legislativa, sem questionar suas bases. O que levou o STJ a desconsiderar o artigo 98, I, da Constituição Federal, c/c o art. 61 da Lei 9.099/95 quando dispôs que o concurso de infrações de menor potencial ofensivo com o somatório das penas superior a dois anos determina a remessa ao Juízo Comum? Um dos primeiros acórdãos que se tem, confiando à Justiça Comum o julgamento dos delitos de menor potencial ofensivo em concurso, é de lavra do Ministro José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, e foi fruto do julgamento do Recurso Especial 575336/SC, em 01.04.2004.(4) “Processo REsp 575336/SC; RECURSO ESPECIAL 2003/0150418-9; Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106); Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA; Data do Julgamento 01.04.2004; Data da Publicação/Fonte DJ 03.05.2004, p. 208. E o fundamento de que se valeu o Ministro Relator para afastar a competência constitucional do Juizado Especial Criminal foi o de que, se cometidos em concurso, os crimes não poderiam ser considerados isoladamente (como de menor potencial ofensivo que são), desnaturando-se de sua lesividade mínima para serem tratados no Juízo comum.(5) Em admitindo essa argumentação, obrigatoriamente seria de se afastar dos delitos de menor potencial ofensivo, cometidos em concurso, a aplicação do artigo 119 do Código Penal quando da análise da prescrição no caso concreto. Porque, se não podem ser tratados isoladamente para fins de competência (que é constitucional), por que o poderiam quando da análise da prescrição? (com o mesmo olhar, de que a prática de vários delitos de menor potencial ofensivo faria deles um crime de médio ou grande potencial ofensivo a ser julgado pela Justiça comum, poderia se dizer que uma turma de anões não é uma turma de anões, e sim, pela soma de todos os anões, um homem de estatura média ou grande). Salvo engano, e com o esclarecimento que deu a edição da Lei 11.313/2006, colocando os delitos de menor potencial ofensivo fora de seu “lar natural” quando em concurso com crimes da competência do Juízo comum e do Tribunal do Júri, não pode prevalecer o entendimento anterior. Necessário, pois, arregaçar as mangas e partir em busca da melhor interpretação da norma para assegurar ao cidadão que seja, quando for o caso, processado e julgado no juízo e com o procedimento constitucionalmente estabelecido. III Efeitos práticos da não observância da competência constitucional do juizado especial criminal em caso de concurso puro de infrações de menor potencial ofensivo Em termos práticos, com a Lei 11.313/2006, no caso de concurso de delitos de menor potencial ofensivo entre si, a aplicação indiscriminada do entendimento jurisprudencial vigente acarreta: (a) ignorar a aplicação da norma mais benéfica ao acusado, (b) o esvaziamento indevido da competência do Juizado Especial e, por consequência, (c) passa ao Juízo Comum a tarefa de aplicar os benefícios da Lei 9.099/95 aos acusados, podendo criar situações incompatíveis, se não teratológicas. Vejamos: não é incomum no atendimento da ocorrência de um crime de ameaça, no mesmo contexto, ser praticado o crime de desacato contra os policiais que atenderam a ocorrência (concurso material). Há conexão que justifique o deslocamento para o Juízo comum? Talvez, mas rara e não obrigatoriamente, seja o caso de conexão instrumental e probatória. Se o deslocamento de competência se der, é por conta tão somente do somatório das penas dos delitos em concurso, por ultrapassar dois anos. Recebendo e processando o feito, o Juízo Comum corre o risco de se tornar uma “filial” do Juizado Especial Criminal, porque, obrigatoriamente, devem ser aplicados os institutos da transação penal e da composição dos danos civis!!! E o que disso pode advir? Uma situação teratológica, na qual, depois de aplicado um instituto da Lei 9.099/95, não se terá mais competência para processamento do crime residual, que carecerá de oferecimento da denúncia. Tome-se a hipótese da prática de um crime de ameaça em concurso material com o crime de desacato, os quais, somadas as penas, excede ao limite do artigo 61 da Lei 9.099/95 (dois anos). Numa aplicação mecânica do precedente do STJ, recebido o termo circunstanciado no Juizado Especial Criminal, este se daria por incompetente (em razão da soma das penas) e encaminharia o procedimento ao Juízo Comum. Neste, em fazendo jus o acusado ao instituto de transação, obrigatoriamente irá aplicar, decerto que com relação à ameaça – o crime apenado mais brandamente. O que restará? O crime de desacato. Como já houve transação em benefício do acusado, no crime de ameaça, a sequência lógica seria o oferecimento da denúncia, pelo crime de desacato, com proposta de suspensão do processo (artigo 89, Lei 9.099/95). Pergunta-se: seria o Juízo Comum competente para receber a denúncia tão somente com relação ao crime de desacato? Pensamos que não! A Constituição Federal, no artigo 98, I, CF, previu a criação dos juizados especiais (...) competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de (...) infrações penais de menor potencial ofensivo (...) nas hipóteses previstas em lei (...) (sem destaque no original). A Lei 9099/95, com a alteração da Lei 10.259/2001, fixou dois anos como pena máxima do delito a ser considerada e não excepcionou, em nenhum de seus artigos, a possibilidade de deslocamento de competência (que é constitucional) pelo fato de, se cometidos em concurso, o somatório da pena ultrapassar dois anos. Então, ao aceitar sem questionamento a posição anterior à Lei 11.313/2006, do Superior Tribunal de Justiça, quanto ao deslocamento da competência ao Juízo Comum em caso de concurso de infrações de menor potencial ofensivo, estar-se-á criando uma situação de crise, na qual, depois de aplicado um instituto da Lei 9099/95, como no exemplo acima, não se terá mais competência para processamento do crime residual (desacato), que demandará de oferecimento da denúncia. Tem-se, numa interpretação sistemática, com o advento da Lei 11.313/2006 que, em caso de concurso de crimes, não é o resultado puro e simples da soma das infrações que determinará o deslocamento para a Justiça comum. Em se tratando de concurso de infrações de menor potencial ofensivo entre si, no Juizado Especial Criminal, de início, é de se ver se tem cabimento a aplicação dos institutos da transação ou da composição dos danos civis. Em caso positivo, analisar a situação do(s) delito(s) restante(s), se beneficiado, igualmente, com alguma disposição da Lei 9.099/95, como a suspensão do processo, por exemplo. Aqui, faz-se necessária uma observação. Caberá a suspensão do processo até mesmo em mais de um crime no mesmo feito, desde que a soma das penas mínimas não ultrapasse a 01 ano. Este entendimento está sumulado pelo STJ – Súmula 243 . Ou seja, não obrigatoriamente o acusado deverá sofrer o ônus de todo o processo apenas porque praticou mais de um delito de menor potencial ofensivo. Desde que a soma das penas mínimas não ultrapasse um ano, não sendo o caso de transação, remanesce a possibilidade da suspensão, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95. Uma hipótese: caso, no mesmo processo, se tenha a prática dos crimes de lesão corporal leve (detenção de 03 meses a 01 ano), dos crimes de ameaça (detenção de 01 a 06 meses ou multa) e desacato (detenção de 06 meses a 02 anos e multa), cometidos por uma só pessoa, em concurso material, nada obsta, em nosso entender, à luz do disposto na Lei 11.313/2006, o processamento no Juizado Especial Criminal. Pode ocorrer: (1) composição dos danos civis com relação ao crime do artigo 129, caput, do Código Penal, excluindo a possibilidade de representação e remanescendo (2) o crime de ameaça, no qual seria possível a transação, e por fim (3) o crime de desacato, de menor potencial ofensivo, onde caberia a suspensão (pode-se cogitar, ainda, por ser mais benéfico ao réu, à luz da Súmula 243 do STJ, considerando que a soma das penas mínimas dos crimes de ameaça e desacato não ultrapassam um ano, oferecer a suspensão do processo, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95, em relação aos dois crimes, dispensando a transação). Mesmo que não houvesse composição dos danos civis e fosse mantida a representação para o crime do artigo 129, caput, do CP, (a) possível transacionar quanto à ameaça, e (b), como a soma das penas mínimas dos crimes de lesão corporal leve e desacato não chegam a 01 ano, incide o artigo 89 da Lei 9.099/95. Ainda, não se pode olvidar que o Juizado Especial Criminal tem um rito processual específico (artigo 78 a 81 da Lei 9.099/95). Então, não se vê óbice legal em um mesmo procedimento, opera-se a audiência do artigo 74, seguida daquela do artigo 76, se for o caso, com oferecimento da denúncia por crime residual. Como se vê, a aplicação indiscriminada da remessa de autos do Juizado Especial Criminal para o Juízo Comum, sem a análise das possibilidades no caso concreto, pode levar a uma usurpação (forçada) de competência deste último, que, instado a ficar com o feito, feita a transação no crime menor, é obrigado a processar, pelo rito sumaríssimo (artigo 394, § 3º, CPP – com a inovação da Lei 11.719/2008) reservado ao Juizado Especial Criminal, uma infração que não é da sua competência. Mais estranho seria devolver os autos ao Juizado Especial, depois de operada a transação, para processo e julgamento do crime de menor potencial ofensivo remanescente (!?!). IV Conclusão Conclui-se, portanto, que, no caso de concurso de crimes de menor potencial ofensivo, com a edição da Lei 11.313/2006, o feito não deve ser encaminhado ao Juízo Comum pelo mero somatório das penas. É indeclinável que se faça a fundamentação do porquê não se pode aplicar os institutos devidos no Juizado Especial Criminal, de forma escalonada como prevê a Lei, crime a crime. Afora os casos previstos na própria Lei 9.099/95, somente em casos excepcionais de concurso de crimes de menor potencial ofensivo com crime de médio, grave ofensividade ou crime hediondo, pode-se determinar o deslocamento da competência. Notas: 1. STJ - Processo CC 101274 / PR; CONFLITO DE COMPETÊNCIA 2008/0261931-6; Relator(a) Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133); Órgão Julgador S3 - TERCEIRA SEÇÃO Data do Julgamento 16.02.2009; Data da Publicação/Fonte DJe 20.03.2009. 2. Altera os arts. 60 e 61 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e o art. 2º da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, pertinentes à competência dos Juizados Especiais Criminais, no âmbito da Justiça Estadual e da Justiça Federal. 3. Art. 119 – No caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.07.1984) 4. Disponível no site www.stj.jus.br, consultado nessa data. 5. Extraído do corpo do acórdão: “Assim sendo, havendo concurso de crimes ou continuidade delitiva e o quantum do somatório das penas cominadas in abstracto for superior a dois anos, tais crimes, que isoladamente seriam considerados de menor potencial ofensivo, deixam de sê-lo, o que retira a competência do Juizado Especial Criminal. Ante o exposto, conheço e dou provimento ao recurso, para declarar a incompetência do Juizado Especial Criminal e determinar a remessa dos autos à C. 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.” (disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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