A Constituição Federal reserva à lei complementar “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária” (art. 146, III), gênero no qual se inserem, sem dúvida alguma, as atinentes à decadência e à prescrição. Portanto, o constituinte não necessitaria referir-se diretamente a tais institutos a fim de reservar a sua regulação à lei complementar; no entanto, para acautelar-se contra possíveis interpretações divergentes, resolveu fazê-lo, dispondo expressamente na alínea b do art. 146, III, que, dentre as normas gerais em matéria tributária, estão inseridas aquelas concernentes à prescrição e à decadência tributárias.
Pois bem, como expusemos alhures, “quanto à prescrição e à decadência, uma das principais tarefas da lei complementar é estabelecer os seus prazos, de modo a uniformizar a legislação tributária no País, simplificando-a. O Direito Tributário representaria um verdadeiro tormento para os contribuintes se fosse permitida a criação de prazos de decadência e prescrição diferenciados em cada um dos Estados e dos Municípios, visto que há mais de cinco mil entes federados”(2).
Ocorre que o legislador ordinário resolveu imiscuir-se em seara alheia, excepcionando o regramento estabelecido pelo Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66), que foi editado quando ainda não havia a reserva em questão e teve suas normas gerais recepcionadas pela Constituição de 1988 com status de lei complementar. Noutras palavras, dispôs sobre matéria de lei complementar, em manifesta contrariedade à Lei Maior. Fê-lo ao editar os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que duplicaram, para as contribuições de seguridade social, os prazos estipulados nos arts. 173 e 174 do CTN. A inconstitucionalidade, que havíamos denunciado em mais de uma oportunidade,(3) foi pronunciada pelo Plenário do STF no julgamento do RE 560.626, em decisão com efeitos parcialmente “modulados”, para se obstar a restituição do indébito pelos contribuintes que haviam pago tributos caducos ou prescritos sem discuti-los.(4)
Nesse precedente reconheceu-se, outrossim, que dita reserva plena de lei complementar já existia sob a égide da Constituição de 1969, mesmo que esta, ao tratar da matéria, não se referisse expressamente aos institutos da decadência e da prescrição, limitando-se a prescrever que a lei complementar, além de dispor sobre conflitos de competência e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, deveria estabelecer “normas gerais de direito tributário” (art. 18, § 1º). Por tal razão, declarou-se a inconstitucionalidade do art. 5º, parágrafo único, do Decreto-Lei 1.569/77, que criava hipótese de suspensão da prescrição tributária, com respeito a créditos de “comprovada inexequibilidade e de reduzido valor”.
Para cristalizar esse entendimento, o STF editou a Súmula Vinculante 8, redigida nestes termos: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei 1.569/77 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”.
As premissas que sustentaram a edição dessa súmula têm um significado que transcende os casos aos quais se aplica. Deveras, levam à inconstitucionalidade, por violação à reserva do art. 18, § 1º, da CF/69, de relevantes preceitos da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80), os quais determinaram que: a) a inscrição do débito em dívida ativa suspenderá o curso da prescrição até a distribuição da execução fiscal, limitada a suspensão a 180 dias (art. 2º, § 3º); b) o despacho que ordena a citação interrompe a prescrição (art. 8, § 2º), em contrariedade ao marco interruptivo consagrado pelo CTN, que consistia na efetivação da citação (art. 174, parágrafo único, I);(5) c) não correrá prescrição quando o Juiz determinar a suspensão da execução, pelo prazo de um ano, por não se ter encontrado o devedor ou bens sobre os quais possa recair a penhora (art. 40, caput, da LEF).
Essa decisão aplica-se tanto às execuções fiscais a serem ajuizadas quanto àquelas em curso, tendo em vista que a limitação dos seus efeitos retroativos não alcança os créditos tributários inadimplidos, mas tão somente aqueles já pagos. Desse modo, ainda que o STF, ao pronunciar a inconstitucionalidade dos dispositivos da LEF, proceda à “modulação” dos efeitos da sua decisão nos moldes da proferida no RE 560.626, haver-se-á de declarar a prescrição do crédito em inúmeras execuções fiscais. E, caso o Pretório Excelso admita a manifesta contrariedade de tal limitação à Lei Maior, terão direito à repetição do indébito todos os contribuintes que pagaram créditos já prescritos à luz da legítima regulação do Código Tributário Nacional – mesmo que, quando realizaram o pagamento, ainda não tivesse se operado a prescrição segundo a inconstitucional sistemática da LEF.
Notas
1. Artigo publicado no periódico jurídico Carta Forense nº 63, ago. de 2008, p. 18.
2. A. VELLOSO. Constituição tributária interpretada. São Paulo: Atlas, 2007. p. 67.
3. Ibidem, p. 68; VELLOSO, Andrei Pitten; ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à Lei do Custeio da Seguridade Social. Porto Alegre, 2005. p. 300 ss.
4. STF, Pleno, RE 560.626, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 11 e 12.06.2008. Sobre a ilegitimidade constitucional dessa “modulação” de efeitos, vide este nosso artigo: A outorga de efeitos a leis tributárias inconstitucionais. Carta Forense. nº 62, jul. de 2008. p. 20.
5. Entretanto, não se deve olvidar que, em 2005, o Código Tributário Nacional foi modificado legitimamente pela Lei Complementar 118/2005, a qual estabeleceu como marco interruptivo da prescrição o despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal.
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