Interesse recursal do réu em caso de absolvição ou quando extinta sua punibilidade


Autores: Rudson Coutinho da Silva
Procurador da República

Douglas Fischer
Procurador Regional da República na 4ª Região

 

 publicado em 28.08.2009

Sumário: 1 Devido processo legal. 2 Interesse recursal. 3 Hipóteses de absolvição. 4 Interesse recursal em casos de absolvição. 5 Interesse recursal no caso de extinção da punibilidade. Jurisprudência e considerações críticas. Conclusões.

1 Devido processo legal

A liberdade e o patrimônio do indivíduo somente podem sofrer a interferência do Estado se houver obediência às normas que regem a atividade jurídico-processual (sempre mediante a devida conformação constitucional), que é o instrumento de sua ação interventiva: está aí o devido processo legal.

Com efeito, sem que o Estado obedeça a determinadas condições, não lhe é permitido reduzir a esfera de liberdade ou de patrimônio daqueles que estão a ele submetidos. São essas condicionantes que pretendem garantir ao indivíduo a justiça formal do julgamento.

E no processo penal a obediência ao princípio do due processo of law revela-se sobretudo no respeito à lei, na garantia à plenitude da defesa e no efetivo exercício do contraditório.

Pode-se acrescentar, entretanto, que o mesmo princípio também qualifica o processo, uma vez que lhe atribui a condição de instrumento exclusivo capaz de permitir a certificação judicial do direito alegado pela parte. E isso porque o devido processo legal não impõe apenas um processo que obedeça aos mandamentos instrumentais de ordem constitucional e infraconstitucional, mas também assegura ao indivíduo o direito de obter do Estado uma posição – que se espera imparcial – diante da pretensão acusatória.

E o direito a essa definição do órgão julgador diante da pretensão acusatória não se resume numa sentença (lato sensu) que negue dita pretensão.

Mais que isso, a fim de que o devido processo legal seja assegurado em sua plenitude, ao réu tem que ser garantido o direito a ver apreciadas pelo Judiciário as afirmações que oferecera no processo.

Noutras palavras, tem verdadeiro direito subjetivo o réu que, negando a afirmação do autor, pretende ver reconhecida em juízo a posição jurídica que contrapôs aquela trazida pela acusação. Assim, nem sempre atende à justa expectativa do réu qualquer decisão judicial que o absolva da imputação ou reconheça que ao Estado não mais é permitido julgá-lo. É preciso, por vezes, para que se assegure a integralidade do plexo de direitos que possui o acusado, a afirmação de que não cometera o crime de que fora acusado (386, IV, CPP), de que aquele fato não existira (386, I, CPP) ou de que agira sob o pálio de certa excludente de ilicitude (386, VI, CPP).

Aliás, se assim pretender, é um direito fundamental do réu postular sua absolvição com base nesses fundamentos legais, mesmo que afastada a pretensão persecutória por fundamentos diversos. Por isso que, como se verá, não é o desinteresse do Estado em julgar o pedido do autor, ou mesmo a absolvição por insuficiência de provas, que impedirá o réu de ver reconhecida pelo Judiciário a posição que sustentara no processo quando essa posição consistir na afirmação de que não praticara o fato que lhe fora imputado, de que tal fato não existira ou de que agira legitimado pelo próprio Direito.

2 Interesse recursal

Adentrando agora na seara referente ao interesse recursal, a sequência do raciocínio impõe a análise do parágrafo único do art. 577 do CPP, que dispõe que não serão admitidos os recursos das partes que não tiverem interesse na reforma ou modificação da decisão. A sucumbência está conectada umbilicalmente ao interesse recursal, nada obstante se possa encontrar classificação doutrinária separando-os como pressupostos autônomos. Entendemos que a noção de interesse é extraída precipuamente da definição de sucumbência. E sucumbente é aquele cuja expectativa juridicamente relevante não tenha sido atendida na decisão judicial.

Noutras palavras, uma vez não atendida pretensão – condenatória ou absolutória (lato sensu), total ou parcial – deduzida na ação penal, surge o interesse da parte em ver modificado o comando judicial. A questão é saber em quais condições e em que circunstâncias se poderia aferir a presença da sucumbência a ensejar a possibilidade recursal.

Também é fundamental se ter como premissa a circunstância de que, se é certo que o interesse recursal do Ministério Público (como dominus litis) decorre, regra geral, da absolvição, da inconformidade com a pena fixada ou da tipificação reconhecida na sentença, não se pode esquecer que o Ministério Público não é unicamente órgão acusador: é garantidor da defesa (e de modo intransigente, segundo pensamos) dos direitos fundamentais do processado (daí o motivo pelo qual entendemos deva ser visto como custos juris).(1) Nesta senda, e aí estão interagindo mais intensamente a legitimidade e o interesse recursais, há a possibilidade (melhor dizendo, o dever) de o Ministério Público recorrer também em favor do réu.

A questão central do presente estudo está em se saber se haveria interesse recursal de réu (independentemente de quem esteja agindo em seu favor) que tenha sido absolvido por insuficiência de provas ou em favor de quem tenha sido reconhecida a extinção da punibilidade.

3 Hipóteses de absolvição

O Código de Processo Penal arrola no artigo 386 as hipóteses em que o Juiz deverá absolver o réu.

Merece registro a inovação trazida pela Lei nº 11.690/2008, que acrescentou, no inciso IV do citado artigo 386, a hipótese de absolvição por “estar provado que o réu não concorreu para a infração penal”.

Antes do acréscimo, a negativa de autoria, pela interpretação literal do artigo 386 do CPP, somente resultava do reconhecimento da insuficiência das provas de participação do acusado, nunca da afirmação de que não participara da infração penal.

A inovação é salutar na medida em que valoriza a afirmação do acusado que nega a autoria do crime, pois permite que o juiz o absolva não só porque entende frágeis os elementos de prova, mas porque reconhece que efetivamente o réu não participara do crime que lhe fora imputado.

E essa inovação implicará também nova interpretação do artigo 66 do CPP, como se verá logo abaixo.

Mas, de volta às hipóteses de absolvição do artigo 386 do CPP, num esboço de sistematizá-las, propomos a seguinte classificação:

a. decisões que certificam:

a.1. estar provada a inexistência do fato (I);
a.2. não constituir o fato infração penal (III);
a.3. estar provado que o réu não concorreu para a infração penal (IV);
a.4. excludentes de ilicitude (VI);
a.5 causas de isenção de pena (VI);

b. decisões que não certificam. Tais decisões afirmam:

b.1. não haver prova da existência do fato (II);
b.2. não existir prova de ter o réu concorrido para a infração (V);
b.3. não existir prova suficiente para a condenação (VII);
b.4. haver fundada dúvida sobre a existência de excludentes ou causas de isenção (VI).

Uma análise inicial permite constatar que as decisões que certificam são as que mais atendem aos interesses do réu, embora, é de reconhecer, nem todas tenham a mesma repercussão na esfera cível.

As decisões que não certificam, por sua vez, exatamente porque não excluem a responsabilidade do acusado, não atendem tão de perto aos seus interesses, embora possam acarretar também a absolvição.

4 Interesse recursal em casos de absolvição

O tema aqui abordado, não se pode negar, tem gerado divergências, havendo quem negue a existência de interesse recursal no caso de absolvição.

Pelo prisma da sucumbência, diz-se – com acerto, em tese – que não haveria decorrente interesse em alterar a fundamentação utilizada na decisão. O recurso seria apresentado não contra a motivação, mas em face do dispositivo.

Com a devida vênia dos entendimentos em contrário, pensamos que, em determinadas situações, há se admitir o interesse recursal – para alterar fundamento de absolvição – de réu que tenha sido absolvido.

 Começamos por dizer que o art. 386 do CPP é bastante claro ao assentar a obrigação de, na sentença, ser explicitado no dispositivo o fundamento da absolvição, de modo que ao se insurgir contra o fundamento, o réu está se insurgindo automaticamente contra o dispositivo da sentença.

Mas não é só.

Se de um lado é verdadeira a assertiva de que no âmbito do processo penal estão em pauta discussões atinentes primordialmente ao âmbito criminal, não se pode deixar de consignar a relevância ímpar da possibilidade do debate dialético-processual nessa seara. É dizer: dada a decorrência dos princípios garantidores dos direitos fundamentais estampados na Constituição Federal, mister compreender que em nenhum outro procedimento se deverá dar primazia e espectro tão amplo ao princípio da ampla defesa e do contraditório como no processo penal. Significa, em nosso juízo, que, no processo penal, se discute não apenas se o réu deva ser absolvido ou condenado. É direito fundamental de réu que seja processado criminalmente ter a resposta estatal não apenas pelo prisma persecutório, mas também em face de todas as consequências que possam advir do processo penal, diretas ou indiretas.

A sucumbência surgirá, portanto – e daí o interesse recursal –, toda vez que o réu, podendo ver ampliada a tutela de suas pretensões já no processo penal, se vir disso impedido pela utilização judicial de fundamento de absolvição diferente daquele que alegara.

E aqui é preciso firmar uma premissa: em casos de absolvição, o interesse recursal sempre estará ligado a uma razão extrapenal, pois sanção penal nenhuma decorre da sentença absolutória.

Mais que isso, é possível afirmar que essa razão extrapenal é sempre de natureza patrimonial ou funcional. Patrimonial porque, assentada em determinados fundamentos, a sentença criminal poderá excluir peremptoriamente a responsabilidade civil. Funcional porque, da mesma forma, alicerçada em certos fundamentos, a sentença absolutória poderá afastar a responsabilidade administrativa do servidor.

Pois bem.

A responsabilidade civil está condicionada ao fundamento da absolvição por conta de dispositivos do CPP e mesmo do Código Civil que atribuem subordinação temática(2) entre as instâncias cível e criminal.

Com efeito, na linha do que assentado nos arts. 66 e 67 do CPP, não haverá impedimento para o ajuizamento da ação cível com a finalidade reparatória nos casos em que: a) não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato ou que o réu não concorreu para a infração penal;(3) b) houver o arquivamento de inquérito ou peças de informação (desde que não pelos fundamentos da negativa de autoria ou inexistência do fato); c) na ação penal, for extinta a punibilidade; e d) a sentença criminal reconhecer que o fato imputado não constitui crime.

O Código Civil, por sua vez, no seu art. 935, impede discutir-se no cível a existência do fato ou de quem seja seu autor, quando essas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Por fim, é preciso lembrar o teor do art. 126 da Lei 8112/90: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”.

Na linha do raciocínio ora desenvolvido, compreende-se que em (apenas) três situações a decisão proferida no âmbito criminal repercutirá automaticamente na seara cível ou administrativa com a consequente inviabilidade de pretensão à reparação cível ou responsabilização subsidiária: a) inocorrência do fato; b) negativa de autoria; c) excludentes de antijuridicidade no caso de legítima defesa própria.

Com base nisso é possível concluir que, se o objetivo do acusado é obter uma sentença de certificação (de que o fato não existira, de que para ele não concorrera ou de que laborara sob o pálio de uma excludente de antijuridicidade),(4) toda vez que a sentença for de insuficiência (decisões que não certificam), haverá legítimo interesse em recorrer.(5)

Exemplificativamente, se o acusado defender-se alegando que o fato não existira e o Poder Judiciário entender, de forma mais singela, que não é possível certificar a inexistência do fato, mas tão só a fragilidade da prova, haverá eventual interesse em recorrer. Da mesma forma, se a alegação for de que não participara do fato e o Judiciário decidir com fundamento na insuficiência da prova da autoria, também haverá interesse recursal.

Entretanto, caso se alegue que o fato não constitui crime e o fundamento da sentença for a insuficiência da prova para condenação, embora a pretensão fosse de uma sentença certificadora (na linha da designação aqui adotada), não haverá sucumbência e, portanto, interesse recursal.

Seja visando afastar a responsabilidade civil, seja a responsabilidade administrativa, o interesse recursal nos casos de absolvição somente surgirá se implicar consequências reais e fáticas em benefício do recorrente. Esse é o ponto nodal da questão que precisa destaque, pois não estão em jogo apenas (como tradicionalmente se diz) o interesse persecutório do Estado, mas também o direito de o réu se ver absolvido no âmbito criminal (que possui o espectro defensivo mais amplo que se conhece) pelo fundamento que melhor possa lhe aproveitar.

Em palavras complementares: o interesse não pode significar apenas a possibilidade de permitir ao réu escolher o fundamento pelo qual ser absolvido. Se o motivo pelo qual se pretende o decreto absolutório no âmbito recursal tiver os mesmos efeitos (práticos e jurídicos) daquele objeto da decisão objurgada, inviável se admitir a admissibilidade da irresignação.

Por isso que a alegação defensiva de que o fato não constitui crime, embora corresponda à pretensão de uma sentença de certificação, não implicará interesse recursal se a sentença, apesar de absolutória, fundar-se na fragilidade da prova.

Na mesma linha, a utilização de um fundamento de insuficiência por outro não conduzirá, igualmente, à existência do interesse.

Assim, se a alegação defensiva for de insuficiência de prova de autoria (V), não haverá sucumbência na decisão judicial que reconhecer insuficiência de prova da existência do fato (386, II, CPP).

5 Interesse recursal no caso de extinção da punibilidade. Jurisprudência e considerações críticas

Aqui a discussão ganha outros contornos. Já não se questiona mais a situação do acusado que, absolvido, pretende ver modificado o fundamento da absolvição. Questiona-se se a extinção da punibilidade seria impeditiva do conhecimento do recurso.

Há forte entendimento de que, tendo havido a extinção da punibilidade, qualquer que for a situação embasadora, não haveria interesse jurídico na revisão do julgado, pois a sentença não poderia mais ter qualquer efeito sobre o condenado. Assim, inúmeros precedentes do STJ:

“RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. RECONHECIMENTO. MÉRITO PREJUDICADO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. EFEITOS. AUSÊNCIA.

O reconhecimento da ocorrência da prescrição retroativa prejudica a análise do mérito da apelação interposta pela defesa.

A prescrição retroativa atinge a pretensão punitiva do estado e a sentença condenatória não produz efeitos principais ou secundários.

A condenação imposta somente é considerada em relação à quantidade de pena que regula o prazo prescricional. Recurso Especial a que se nega provimento.” (STJ, Recurso Especial nº 691.696-PE, 6ª Turma, unânime, julgado em 09.02.2006, publicado no DJ em 27.03.2006)

“PENAL E PROCESSO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. EMBARGOS INFRINGENTES. MANIFESTA AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS). RECURSO NÃO CONHECIDO.

1. Decretada a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, é manifesta a ausência de interesse recursal da defesa, visto que, com a prescrição, desfazem-se todos os efeitos da condenação. Precedentes.

2. O não conhecimento do recurso por falta de pressuposto de admissibilidade, qual seja, interesse recursal, não ofende a garantia do duplo grau de jurisdição.

3. Recurso especial não conhecido.” (STJ, Recurso Especial nº 622.321-SP, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, publicado no DJ em 26.06.2006)

“PENAL. PROCESSUAL. FURTO. PRESCRIÇÃO. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. [...] Ainda que provido o recurso especial, a declaração da extinção da punibilidade realizada pelo Tribunal a quo permanecerá inalterada, o que implica o reconhecimento da ausência de interesse recursal. Recurso especial a que se nega provimento.” (STJ, Recurso Especial nº 901.892-RS, Relator Ministro convocado Carlos Fernando Mathias, 6ª Turma, unânime, julgado em 16.10.2007, publicado no DJ em 19.11.2007)

Para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“PENAL E PROCESSO PENAL. CRIME DE ESTELIONATO (CP, ART. 171). PRESCRIÇÃO RETROATIVA – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE – DECLARAÇÃO DE OFÍCIO. APELAÇÃO PREJUDICADA.

1. Verificada a ocorrência da prescrição retroativa pelo Juízo ad quem, considerada a pena aplicada na sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação (CP, art. 109, V, e art. 110, §§ 1º e 2º), impõe-se, de ofício, a declaração da extinção da punibilidade no autuado.

2. A declaração de extinção da punibilidade pelo reconhecimento da prescrição retroativa prejudica o recurso de apelação interposto a hostilizar a sentença condenatória.” (Questão de Ordem na Apelação Criminal nº 2004.70.00.021879-7/PR, 7ª Turma, unânime, julgado em 26.05.2009, publicado no DJ em 04.06.2009)

  1. “PENAL. PROCESSUAL PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE RECURSAL.

Uma vez declarada extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, não há interesse jurídico da parte em recorrer para a obtenção da absolvição, tendo em vista que a extinção do processo, neste caso, não deixa qualquer resíduo ou efeito penal negativo.” (Apelação Criminal nº 2005.71.00.010630-8/RS, 8ª Turma, unânime, julgado em 11.03.2009, publicado no DJ em 18.03.2009)

“PENAL E PROCESSO PENAL. DEFRAUDAÇÃO DE PENHOR AGRÍCOLA. ART. 171, § 2º, INC. III, DO CÓDIGO PENAL. OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO RETROATIVA DA PRETENSÃO PUNITIVA. ART. 110, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. INTERESSE RECURSAL INEXISTENTE.

1. Certificado o trânsito em julgado para a acusação, o prazo da prescrição retroativa da pretensão punitiva regula-se pela pena efetivamente aplicada, nos termos do que dispõe o parágrafo 1º do art. 110 do Código Penal.

2. Reconhecida a ocorrência da prescrição retroativa da pretensão punitiva sobre os fatos narrados na denúncia, falta interesse recursal aos sucumbentes cuja punibilidade foi reconhecida extinta, por impossibilidade de mudança do resultado prático advindo do julgamento da apelação.” (Apelação Criminal nº 2000.71.06.000319-8/RS, 8ª Turma, unânime, julgado em 28.05.2008, publicado no DJ em 11.06.2008)

Acontece que o olhar exclusivo sobre o interesse recursal enquanto pretensão a excluir-se dos efeitos físicos, patrimoniais ou funcionais da pena ofusca o verdadeiro enfoque que reclama o processo penal. Ao menos em nossa compreensão.

É que a decisão condenatória traz em si valores negativos que não se restringem à natureza penal da sanção.

Outro valor negativo de igual importância está na ofensa à dignidade imposta pela condenação de réu que, inocente da acusação, se vê impedido de buscar o reconhecimento dessa inocência.

Com efeito, compreendemos que ofende expressivamente a dignidade do inocente a afirmação do Estado de que é culpado por determinado crime que não cometera.

À luz especialmente dos valores constitucionais, não nos parece haver razão legítima que impeça o indivíduo que foi condenado de ver revista a sentença, pelo só fato de ter havido extinção da punibilidade.

A situação é, digamos, no mínimo dramática para aquele que pretende o reconhecimento de sua inocência após ter recebido uma sentença condenatória e se vê impotente na busca de uma revisão, em razão do entendimento vigente de que a extinção da punibilidade tornaria inócua a mudança da sentença. Mais: não há nenhum prejuízo para o Estado (persecução penal), na medida em que a sentença lhe é desfavorável (absolvição ou extinção da punibilidade) e não houve recurso pugnando pela condenação ou então aumento de pena (que redundou em prescrição retroativa – art. 110, § 1º, CP).

Se a revisão é inócua enquanto sanção corporal, seu efeito é de relevância imensurável no que se refere à dignidade, à honra, à autoestima, ao respeito, enfim, a valores pessoais e mesmo sociais, todos de índole constitucional, cujo resgate está condicionado à submissão da condenação a um órgão revisor.

Não é demais se imaginar ação penal em que o réu, embora afirme categoricamente sua inocência, se vê condenado em sentença que, por qualquer razão, ganha espaço na mídia, fazendo com que a condenação extrapole a publicidade natural da imprensa oficial. Imagine-se então que a pena dessa mesma condenação implique prescrição retroativa, causando a extinção da punibilidade. De acordo com a jurisprudência atual, por mais que o réu brade sua inocência e insista no desejo de que a instância revisora analise novamente seus argumentos, ver-se-á impedido de prová-la.

  1. Não há de se reconhecer aí inegável afronta à dignidade desse réu, mormente se há provas para absolvê-lo?

Pois, se o Estado o diz culpado de um crime e o réu não tem o direito de provar que a afirmação do Judiciário está equivocada, porque o próprio Estado demorou-se em julgá-lo e agora reconhece a prescrição, não haveria aí injustiça gritante a reclamar urgente mudança de posicionamento jurisprudencial?

  1. Cremos que a resposta a ambas perguntas é positiva.

Mas a incoerência é maior.

Como visto acima, doutrina e jurisprudência entendem que há interesse em modificar o fundamento da absolvição quando o fundamento reconhecido puder ter reflexos patrimoniais ou funcionais.
Por “reflexos patrimoniais ou funcionais” reconhece-se a existência do interesse recursal, mas por reflexos de maior importância, como o status dignitatis, a jurisprudência, ao negar-lhe o direito ao recurso, permite que o acusado conviva com a afirmação, embora sem pena, de que fora o autor de crime de que se diz inocente.

Insiste-se: se o sujeito é absolvido por insuficiência de provas, admite-se presente o interesse recursal em buscar a absolvição por negativa de autoria, em razão de interesse patrimonial. Se, entretanto, é condenado e ocorre a prescrição, não se admite o recurso. Uma incoerência, maxima venia.

É importante observar que o mesmo argumento de natureza patrimonial usado nos casos de absolvição pode ser aplicado na extinção da punibilidade, isso porque o artigo 67, II, CPP, permite a propositura da ação civil quando a sentença penal julgar extinta a punibilidade.

Ora, se o interesse recursal no caso da absolvição vem exatamente do fato da sentença penal assentada em determinado fundamento não excluir a responsabilidade civil, como pode ser negado interesse recursal ao réu cuja punibilidade foi extinta e que, por isso, continuará suscetível à responsabilidade civil (67, II, CPP)?

Enfim, pensamos firmemente que o atual entendimento doutrinário e jurisprudencial precisa ser revisto.

E não estamos sós.

Guilherme de Souza Nucci,(6) ao destacar que é

“posição majoritária na jurisprudência pátria que não se decide, nesse caso, estando comprovada a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, o mérito propriamente dito (se culpado ou inocente). Assim, caso o tribunal ad quem perceba que houve prescrição, não irá julgar a questão principal e decretará a extinção da punibilidade. Parece-nos injusta essa posição, uma vez que, como já sustentamos, é possível que o réu tenha nítido interesse, até porque as provas estão a seu favor, em ser absolvido, e não que o Estado declare que perdeu, pelo lapso temporal decorrido, o direito de punir. Relembremos, novamente, que há julgados considerando ações findas pela prescrição como antecedente criminal, o que, por si só, justificaria o desejo do acusado em ver decidido o mérito. O ideal seria o julgamento do mérito pelo tribunal e, quando negasse provimento, avaliaria a questão da extinção da punibilidade pela prescrição. Teria o réu exercido seu direito à ampla defesa na maior extensão possível, que é a obtenção de um julgamento de mérito propriamente dito.”

E ainda Adalberto José Q. T. De Camargo Aranha,(7) em posição adotada ainda na década de 80:

“Ora, se alguém foi condenado em primeiro grau e merece ser absolvido porque inocente, é óbvio que, por imperativo do status dignitatis atingido, deve ser declarado inocente por decisão, para se evitar que no futuro receba malévolas interpretações como a de que escapou pela porta estreita da prescrição quando poderia sair pela via larga da absolvição. Os efeitos secundários e os extrapenais, como o exame de antecedentes em eventual e futuro processo, o exame da personalidade, a indenização civil etc., também exigem o exame do mérito, pois podem atuar contra um inocente condenado em primeiro grau e que acabou não sendo absolvido porque desfeita a relação jurídica pela prescrição.”

Acrescente-se que o Código Penal Militar previu a questão, disciplinando-a no § 1º do art. 125:

“Art. 125. A prescrição da ação penal, salvo o disposto no § 1º deste artigo, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

(...)

§ 1º Sobrevindo sentença condenatória, de que somente o réu tenha recorrido, a prescrição passa a regular-se pela pena imposta, e deve ser logo declarada, sem prejuízo do andamento do recurso se, entre a última causa interruptiva do curso da prescrição (§ 5°) e a sentença, já decorreu tempo suficiente.”

O disposto no Código Penal Militar é referendado pela jurisprudência, como se vê exemplificativamente:

HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO MÉRITO DA CAUSA PARA POSTERIOR DECLARAÇÃO DA PRESCRIÇÃO PUNITIVA DO ESTADO. TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO QUE EXTINGUE A PUNIBILIDADE SEM ANÁLISE DO MÉRITO. RECLAMAÇÃO. GARANTIA DA AUTORIDADE DE ANTERIOR DECISÃO DO TRIBUNAL. NÃO CABIMENTO. SÚMULA 734/STF. PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. Na Justiça Penal Militar, diferentemente do que ocorre na Justiça Comum, antes de declarar prescrita a pretensão punitiva do Estado, deve o magistrado analisar o mérito da causa. Precedente do STJ. [...]

4. Ordem concedida para restabelecer a decisão de primeira instância que declarou prescrita a pretensão punitiva do Estado, determinando o trancamento da Ação Penal 389.02.02.01/4, em curso no juízo da Auditoria Militar de Passo Fundo/RS.” (HC nº 85.760-RS, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, unânime, julgado em 24.06.2008, publicado no DJ em 04.08.2008)

Mas se nos parece inegável o direito do réu de ver revista a sentença que o condenou, embora presente a extinção da punibilidade, igualmente também necessário sistematizar as hipóteses em que isso pode ocorrer. E com uma ressalva final importante: porque incompatível com os limitespossíveis de debate nas instâncias extraordinárias (recurso especial e extraordinário), especialmente em face do que disposto na Súmula nº 7 do STJ (também referendada pelo STF, que não admite a análise de questões de prova em sede extraordinária), a discussão aqui travada deve ser admitida apenas nos recursos previstos em lei para as instâncias ordinárias.

Com efeito, a extinção da punibilidade pode se dar antes da sentença de primeiro grau, inclusive hodiernamente a extinção da punibilidade, se ocorrente na fase inicial do processo em primeiro grau, é hipótese de absolvição sumária (art. 397, IV, CPP, na redação da Lei nº 11.719/08). Nesse caso, parece-nos que a existência da denúncia não constituiria gravame suficiente para reclamar decisão de mérito que analise a alegação de inocência do acusado. Não haveria, portanto, interesse em apelar da sentença que, antes de condenar, extinguisse a punibilidade do acusado.

É que, embora a simples denúncia, e com ela a ação penal, constitua inegável transtorno para o réu, não se iguala ao gravame advindo da sentença condenatória.

Havendo, todavia, sentença condenatória, parece-nos irrecusável admitir-se o recurso, se assim houver manifestação em favor do réu(art. 574 do CPP).

E, embora o raciocínio acima seja construído quase sempre com base na prescrição retroativa, pensamos que também no caso de morte do réu já condenado haverá interesse recursal de seus representantes legais em buscar no órgão revisor a afirmação da inocência. Não seria a morte o impedimento a ver-se reconhecido o interesse recursal em buscar a afirmação da inocência.

Conclusões

Conclusivamente, defendemos que o interesse recursal no processo penal não deve ser visto unicamente pelo prisma do interesse persecutório do Estado. Porque relacionado diretamente com outros valores constitucionais, como a dignidade do acusado, seu interesse em ver modificado nas instâncias ordinárias o fundamento da absolvição (ou diante de extinção da punibilidade) decorre de imperativos constitucionais.

Exatamente porque permite investigação ampla e reflete diretamente no status dignitatis do acusado, o processo penal não pode servir de palco a acusações unilaterais que se percam no tecnicismo dos atos processuais, sobretudo porque tais acusações, embora não tenham sido referendadas pelo Judiciário – no caso de absolvição ou de extinção da punibilidade –, lançam inegáveis dúvidas sobre o estado de inocência do acusado.

Daí porque a extinção da punibilidade ou a simples absolvição – naquelas sentenças que não certifiquem a inocência (dentro da classificação proposta no presente) – não garante esteja o acusado liberto da pecha que lhe foi irrogada na denúncia.

Em síntese: é preciso rever os atuais posicionamentos, que normalmente encampam entendimentos adotados em anteriores julgados, para que se comece a reconhecer o direito fundamental ao recurso em favor de réu que tenha sido absolvido (nos contornos aqui expostos) ou então condenado, mas extinta a punibilidade.

Notas

1. Como anotado pelo Ministro Carlos Britto em seu voto no julgamento do HC nº 87.926-SP, publicado no DJ em 25.04.2008.

2. Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 169-170.

3. Como já adiantado, o art. 66 agora deve ser interpretado como se nele tivesse escrito: “Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato ou que o réu não concorreu para a infração penal”.
Realmente, com o novo inciso IV do art. 386, o juiz poderá fundamentar a sentença absolutória no reconhecimento da negativa de autoria. E a afirmação da negativa da autoria evidentemente excluirá a possibilidade da ação cível, daí a releitura do art. 66 acima proposta.

4. De perceber-se que as decisões que reconhecem causas de isenção de pena, bem como as que reconhecem que o fato não constitui crime, embora certificadoras, não excluem a possibilidade da responsabilização cível ou funcional.

5. Convém observar, entretanto, no que se refere às excludentes, que o interesse só surgirá naqueles casos em que mesmo a absolvição não afastar a possibilidade da indenização. O reconhecimento do estrito cumprimento do dever legal, portanto, não dará azo a recurso, pois nenhuma vantagem advirá de eventual mudança do fundamento da sentença de absolvição. Já a legítima defesa putativa, assim reconhecida na sentença, permitirá recurso da defesa, caso o réu tenha alegado legítima defesa real, pois a primeira permitirá, em tese, indenização na esfera cível, enquanto a segunda (legítima defesa real) sepultará a discussão patrimonial já no processo penal.

6. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 923.

7. Dos recursos no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 91.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., agosto. 2009. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS