Não há direito fundamental à impunidade – algumas considerações sobre a possibilidade das prorrogações das interceptações telefônicas


Autor: Douglas Fischer

Procurador Regional da República na 4ª Região, Mestre em Instituições do Direito e do Estado pela PUCRS.

 publicado em 16.12.2009

Palavras-chave: Constitucional. Hermenêutica. Garantismo Penal. Processo Penal. Interceptação Telefônica. Lei 9.296/96. Limites e prorrogações.

Sumário: Considerações iniciais. 1 Exposição de ideia à qual se apresenta contraposição. 2 Considerações sobre o que é “garantismo penal”: da Teoria (integral) da doutrina de Ferrajoli para a fragmentação que denominamos de Garantismo Penal Hiperbólico Monocular. 3 As interceptações telefônicas como método de investigação e os postulados garantistas aplicados à espécie: análise de precedentes jurisprudenciais do STJ e do STF. Conclusões

Considerações iniciais: À luz dos valores, princípios e regras constitucionais e da hermenêutica que entendemos mais adequada, o presente trabalho tem por finalidade trazer ao debate se é possível ou não – e os respectivos fundamentos – a realização de mais de uma prorrogação nas interceptações telefônicas, consoante preconizado no art. 5º da Lei nº 9.296, que dispõe que a decisão que deferir a interceptação telefônica “não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”. Analisando no que consiste a denominada Teoria do Garantismo Penal (numa visão que se proclama integral, e não monocular hiperbólica), enfrentam-se decisão do STJ e posição doutrinária recentemente noticiadas que sustentam a impossibilidade de renovação das interceptações telefônicas além de uma única vez.

1 Exposição de ideia à qual se apresenta contraposição

Expressando sua opinião a respeito da interpretação que os tribunais vêm dando à Lei 9.296/96 sobre a possibilidade ou não de reiteradas prorrogações de interceptações telefônicas, nobre advogado publicou recentemente artigo (Boletim IBCCrim nº 194, janeiro de 2009) intitulado “½ calabresa, ½ garantia fundamental”. Em síntese, defendeu os seguintes pontos de vista: a) a Lei 9.296 possui nítido caráter garantista; b) por conta de decisão superveniente do STF (nos autos de denúncia oferecida com base no Inquérito de competência originária nº 2.424), perdeu o sentido elogio que tecera anteriormente noutro escrito à decisão proferida no famoso e histórico (sic) julgamento do STJ (6ª Turma) no HC nº 76.686 (09.09.2008), precedente no qual restou consignado de forma expressa que as interceptações telefônicas só podem ser efetuadas no prazo de 15 dias, prorrogável uma única vez por mais 15 dias; c) segundo compreendera, pela decisão do STJ, pareciam ter sido colocados os “pingos nos i´s”(sic), afastando-se abusos frequentemente cometidos pelas autoridades persecutórias; d) incorreu em equívoco a Corte Suprema ao entender – contra legem – desnecessária a transcrição de todas as escutas telefônicas, bastando se conceda à defesa cópia dos áudios; e) a lei foi feita para trinta dias, e não meses ou anos ininterruptos de interceptações; f) por fim, que o evidente desconforto demonstrado pelos ministros mais antigos e experientes (sic) da Corte seja suavizado e as garantias fundamentais voltem a ter o tratamento que vinha lhes sendo dispensado pelo Supremo Tribunal Federal em seus últimos julgados.

Não há pretensão alguma de “colocar pingos nos i´s”, mas, dentro de um panorama dialético, tentar demonstrar o equívoco do raciocínio do nobre jurista, tanto pelo prisma da (segundo cremos) melhor interpretação da Constituição como pelo dos reais precedentes anteriores do Supremo Tribunal Federal.

2 Considerações sobre o que é “garantismo penal”: da Teoria (integral) da doutrina de Ferrajoli para a fragmentação que denominamos de Garantismo Penal Hiperbólico Monocular

Já de algum tempo tem-se difundido no âmbito jurídico que, na aplicação do Direito Penal e do Direito Processual Penal, devam ser observados ao máximo os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Estamos de acordo integralmente com tais premissas. Mas insistimos que há alguns equívocos nas premissas e conclusões que se têm tomado com fundamento em ideais garantistas, incorrendo-se – não raras vezes – no que temos denominado de garantismo hiperbólico monocular, hipótese diversa do sentido proposto por Luigi Ferrajoli. Nesse sentido, inclusive, já expressamos nossa compreensão sobre o tema noutra oportunidade.(1)

De qualquer modo, impende aqui realçar que, se é possível definir de forma bastante sintética e inicial, a tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente os direitos fundamentais (tambémos deveres fundamentais, dizemos) estampados na Constituição.(2) Normas de hierarquia inferior (e até em alterações constitucionais) ou então interpretações judiciais não podem solapar o que já está (e bem) delineado constitucionalmente na seara dos direitos (e deveres) fundamentais. Embora eles não estejam única e topicamente ali, convém acentuar que o art. 5º da Constituição está inserto em capítulo que trata “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de maximizar os fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais os valores e critérios que possam limitar ou conformar constitucionalmente o Direito Penal e o Direito Processual Penal.

Não temos dúvidas: a Constituição Federal brasileira é garantista e assenta seus pilares nos princípios ordenadores de um Estado Social e Democrático de Direito. Mas a teoria garantista não existe apenas para proteção de interesses individuais. Como bem salienta José Luis Martí Mármol, “el paradigma constitucional incluye asimismo, según Ferrajoli, los siguientes grupos de derechos fundamentales: derechos políticos (o de autonomia pública), derechos civiles (o de autonomía privada), derechos liberales (o de libertad) y derechos sociales(3) (destaques nossos).
Se a Constituição é o ponto de partida para (também) a análise (vertical)(4) do influxo dos princípios fundamentais de natureza penal e processual penal, decorre daí que o processo hermenêutico não poderá se assentar sobre fórmulas rígidas e pela simples análise pura (muito menos literal) dos textos dos dispositivos legais (inclusive da própria Constituição). Há se buscar o conteúdo da norma, sua essência.

Na linha dos próprios fundamentos basilares do garantismo, não se afigura difícil compreender que vemos a Constituição ocupando uma função central no sistema vigente (sem gerar um panconstitucionalismo), podendo-se dizer que seus comandos se traduzem como ordenadores e dirigentes aos criadores e aos aplicadores (intérpretes) das leis (aí incluída a própria Constituição, por evidente). Como salienta Maria Fernanda Palma, “a Constituição que define as obrigações essenciais do legislador(5) perante a sociedade. Ora, essa função de protecção activa da Sociedade configura um Estado não meramente liberal, no sentido clássico, mas promotor de bens, direitos e valores”.(6) Nessa linha, compreendemos também deva ser a interpretação do próprio conteúdo dos dispositivos constitucionais.

Para nós, significa que a compreensão e defesa dos ordenamentos penal e processual penal também reclamam uma interpretação sistemática dos princípios, regras e valores constitucionais para tentar justificar que, a partir da Constituição Federal de 1988, há realmente novos paradigmas influentes em matéria penal e processual penal.

Diante de uma Constituição que preveja, explícita ou implicitamente, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados, incumbe o dever de visualizar os contornos (integrais, e não monoculares, muito menos de forma hiperbólica) do sistema garantista.

Têm-se encontrado muitas e reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do “garantismo penal”, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados.(7) Da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos fundamentais (notadamente os individuais) não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como sintetizado por Paulo Rangel,(8) a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula garantista, na produção das leis (e também nas suas interpretações – e aqui há a contestação objetiva do nobre advogado), seus conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e valores estampados nas Constituições dos Estados Democráticos em que vigorem. É dizer: todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos de substância, que, por sua vez, condicionam a validez da essência das normas produzidas (e também das suas aplicações), expressando, ao mesmo tempo, os fins aos quais está orientado o denominado Estado Constitucional de Direito.(9) Em sua construção, as garantias são verdadeiras técnicas insertas no ordenamento que têm por finalidade reduzir a distância estrutural entre a normatividade e a efetividade, possibilitando-se, assim, uma máxima eficácia dos direitos fundamentais (todos os grupos de direitos fundamentais) segundo determinado pela Constituição.(10) Para Ferrajoli, o sistema garantista tem pilares firmados sobre dez princípios fundamentais que, ordenados, conectados e harmonizados sistemicamente, determinam as "regras do jogo fundamental" de que se incumbe o Direito Penal e também o Direito Processual Penal.(11)

Parece bastante simples constatar que a Teoria do Garantismo se traduz em verdadeira tutela daqueles valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do Direito Penal. Vale dizer: quer-se estabelecer uma imunidade – e não im(p)unidade – dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e também a proteção dos interesses coletivos.(12)

Assim, se todos os Poderes estão vinculados a esses paradigmas – como de fato estão –, especialmente é o Poder Judiciário quem tem o dever de dar garantia também aos cidadãos (sem descurar da necessária proteção social) diante das eventuais violações que eles venham a sofrer. Exatamente por isso que Miguel Carbonell refere que
“en el modelo del Estado social los poderes públicos dejan de ser percibidos como enemigos de los derechos fundamentales y comienzan a tomar, por el contrario, el papel de promotores de esos derechos, sobre todo de los de caracter social”.(13)

Desse modo, a sujeição do juiz à lei não mais é – como sempre foi pelo prisma positivista tradicional – à letra da lei (ou mediante sua interpretação meramente literal) de modo acrítico e incondicionado, senão uma sujeição à lei, desde que coerente com a Constituição vista como um todo.

Em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável.

3 As interceptações telefônicas como método de investigação e os postulados garantistas aplicados à espécie: análise de precedentes jurisprudenciais do STJ e do STF

Vencidas as considerações prefaciais (mas essenciais, pensamos), adentremos no mérito da crítica traçada pelo trabalho ora contestado.

De fato, feita a interpretação literal do disposto no art. 5º da Lei 9.296, procederia a crítica de que seria impossível a interceptação telefônica durar mais de 30 dias (uma prorrogação apenas). Mas – e isso é cediço desde os bancos da universidade – a interpretação menos recomendável é a literal.

Há se convir que, se mantido o entendimento de que seria apenas possível uma prorrogação das interceptações telefônicas, somente se garantirá a possibilidade de investigação por 30 dias mediante a interceptação telefônica. Passado o lapso temporal matemático, se conferiria verdadeira imunidade aos delinquentes para continuarem na senda dos crimes. Estamos de acordo que a interceptação telefônica deva ser decretada de modo excepcional, com parcimônia e – mais importante – mediante a fundamentação necessária diante do caso concreto. Há excessos eventuais, não se nega. O que não se pode aceitar é querer fazer prevalecer uma inversão lógica de premissas para inviabilizar a investigação criminal.

Com máximo respeito ao entendimento dos eminentes Ministros do STJ que decidiram o caso invocado, não fizeram a melhor interpretação, segundo cremos. Para quem analisar o caso concreto (não apenas a ementa!), fácil verificar que tratava de graves crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro (dentre outros) praticados anos a fio por delinquentes da upper class, com estrondosos e deletérios efeitos em detrimento da sociedade. Não há se olvidar que as renovações de interceptações telefônicas – todas deferidas judicialmente – encontravam suporte fático devidamente relatado (ao menos assim pensamos): os crimes continuavam sendo perpetrados, e era necessária a permanência das investigações. Mais: em face da natureza dos crimes apurados (e como praticados), a escuta telefônica era imprescindível para a investigação. A excepcionalidade da medida era evidente. Todas as prorrogações foram fundamentadas, mesmo que algumas delas de modo conciso.

Prosseguindo, impende ressaltar que o entendimento consignado pelo STF no Inquérito 2.424 (“Operação Hurricane”), cuja competência decorria do fato da imputação de fatos delitivos (parcialmente recebidos) a ministro do STJ (art. 102, I, c, CF), não é novo, nem alterou qualquer compreensão anterior. Há muito o Supremo Tribunal Federal vem entendendo ser possível a renovação das escutas telefônicas.

Como bem referiu o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do RHC nº 88.731-SP (unânime, publicado no DJ em 02.02.2007),

“a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento segundo o qual as interceptações telefônicas podem ser prorrogadas desde que devidamente fundamentadas pelo juízo competente quanto à necessidade para o prosseguimento das investigações. Precedentes: HC nº 83.515/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ de 04.03.2005; e HC nº 84.301/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unanimidade, DJ de 24.03.2006”.

Ainda: enquanto o precedente histórico invocado foi tomado pela Egrégia 6ª Turma do STJ, é importante informar que o entendimento (unânime) da 5ª Turma do STJ continua sendo no sentido de que a “interceptação telefônica não pode exceder 15 dias. Todavia, pode ser renovada por igual período, não havendo restrição legal ao número de vezes para tal renovação, se comprovada a sua necessidade” (HC nº 116.482/SP, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, unanimidade, julgado em 04.12.2008, publicado no DJ em 02.02.2009).
Sobre a desnecessidade de transcrição de todos os conteúdos das interceptações telefônicas, nenhuma novidade também. Em incidente anterior nos mesmos autos do Inquérito nº 2.424 (Medida Cautelar no HC nº 91.207, em que a autoridade coatora era o Ministro do STF Cezar Peluso, julgado em 06.06.2007 e publicado no DJ em 21.09.2007), assentou a Corte Suprema por seu plenário (o competente para apreciar o habeas corpus) ser

“desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora Pacientes, pois basta que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida, não configurando essa restrição ofensa ao princípio do devido processo legal (art. 5º, inc. LV, da Constituição da República)”.

O acerto da decisão decorre da circunstância (elementar) de que, no processo penal constitucional vigente, o que se deve garantir ao investigado ou réu é saber (sem fórmulas kafkianas) quais as provas produzidas contra ele. A prova encontra-se na gravação feita e autorizada judicialmente. Para fazer a imputação, o titular da ação penal deverá utilizar unicamente as mesmas provas disponibilizadas para a defesa. Se eventualmente na pretensão acusatória houver a omissão de dados relevantes, estar-se-á permitindo à defesa – de posse dos conteúdos integrais das interceptações – contraditar o pleito. Isso é contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Querer que se degrave todo o conteúdo (muitas partes até irrelevantes) é quiçá – com a maxima venia – pretender unicamente fazer volume antecipado de folhas de processo e ensejar a demora na apuração dos fatos (talvez para atingir ulteriormente a prescrição retroativa, instituto ímpar brasileiro, sem precedentes nos ordenamentos jurídicos comparados e democráticos).

Compreendemos que a interpretação (sistêmica, e não meramente literal) ratificada pelo STF acerca da possibilidade de ultrapassagem dos prazos de 30 dias nas interceptações telefônicas, desde que imprescindíveis e devidamente fundamentadas, e da desnecessidade de degravação de todas as interceptações se coaduna com os princípios basilares da Carta da República e não arrosta, por si só, abstratamente, direitos fundamentais individuais.

Como extraído do próprio pensamento garantista, não se pode olvidar que também há direitos coletivos e deveres individuais. Nesta linha, se os direitos fundamentais dos investigados devem ser preservados, insistimos que eles não são absolutos. Podem ser relativizados se presente(s) no caso concreto outro(s) valor(es) constitucional(ais) relevante(s) em sopesamento. É a decantada questão da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), se bem compreendida. Há se ter em mente que, se o Estado não pode agir com excessos injustificados (não pode mesmo!) em detrimento do cidadão (übermassverbot, segundo expressão de Canaris – ou também hodiernamente denominado de garantismo negativo), também não pode deixar de considerar que há imperativos constitucionais que obrigam o Estado a proteger a sociedade das práticas delitivas.

Valendo-se dos ensinamentos do Ministro Gilmar Mendes, não há se olvidar que, tratando o tema dos direitos fundamentais e dos deveres de proteção,(14) já restou por ele assentado que

“os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção [...], expressando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”.

É o que se tem denominado – esse dever de proteção – de garantismo positivo.

Quando falamos em garantismo penal integral, é a isso que estamos nos referindo: à conjugação do garantismo positivo e do garantismo negativo,(15) e não só a esse último, que, aplicado isolada e muitas vezes ampliadamente, se traduz no que denominamos de garantismo hiperbólico monocular.

Também imperativo constitucional (art. 144, caput, CF), o dever de garantir segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável. Nesse diapasão, perfeitas novamente as considerações de Miguel Carbonell ao assentar que

“la obligación de proteger significa que el Estado debe adoptar medidas destinadas a evitar que otros agentes o sujetos violen los derechos sociales, lo que incluye mecanismos no solamente reactivos frente a las violaciones [...], sino también esquemas de carácter preventivo que eviten que agentes privados puedan hacerse con el control de los recursos necesarios para la realización de um derecho”.(16)

Considerações finais

Diante do exposto, não concordamos com a ideia da prevalência indiscriminada – prima facie somente de direitos fundamentais individuais sobre os demais direitos, valores, princípios e regras constitucionais, sem qualquer sopesação e, sobretudo, diante de interpretação literal e gramatical. Se assim for, valorizando-se e difundindo-se apenas e parcialmente a teoria garantistao que denominamos de garantismo hiperbólico monocular, melhor deixar de lado a proposta de ½ calabresa, ½ garantia fundamental e pedir desde já uma inteira com sabor único de impunidade.

Notas

1. FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, v. 28, p. 1, 2009.

2. Aliás, compreendido na íntegra há se ver que “derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los indivíduos frente a su eventual agresión por parte de otros indivíduos y (sobre todo) por parte del poder estatal”. GASCÓN ABELLÁN, Marina. La Teoría General del Garantismo:rasgos principales.In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trota, 2005. p. 21.

3. El fundamentalismo de Luigi Ferrajoli: um análisis crítico de su teoria de los derechos fundamentales, In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trota, 2005. p. 384.

4. Como diz Maria Fernanda Palma, “a Constituição pode conformar o Direito Penal porque funciona como uma espécie de norma fundamental autorizadora do Direito ordinário, assumindo um papel hierarquicamente superior”. PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006. p. 16.

5. Dizemos nós: também todos os demais Poderes e órgãos do Estado.

6. PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006. p.106-7.

7. Noutras palavras, Perfecto Andrés Ibáñez destaca que se deve analisar a existência atualmente de um “garantismo dinámico, que es el que trasciende el marco del proceso penal y también el de la mera garantía individual de carácter reactivo para ampliarse al aseguramiento de otros derechos e de los correspondientes espacios hábiles para su ejercicio”. Garantismo: Uma teoria Crítica de La jurisdicción. In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trota, 2005. p.60.

7. O clone da inquisição terrorista. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/1319. Acesso em: 21. nov. 2008.

9. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, la ley del más débil. 4. ed. Madrid:Trotta, 2004. p. 152.

10. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, la ley del más débil. 4. ed. Madrid: Trotta, 2004. p. 25.

11. Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000. p. 93. Nas palavras de Ferrajoli, "el modelo garantista […] presenta las diez condiciones, límites o prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el arbitrio o el error penal: según este modelo, no se admite ninguna imposición de pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como delito, la necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos". Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal.4. ed. Madri: Trotta, 2000. p. 103-4.

12. Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Madri: Trotta, 2000. p. 271.

13. CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoría de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos principales.In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trota, 2005. p.179.

14. MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília: Revista Jurídica Virtual, v. 2, n. 13, jun. 1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 8, 2004. p. 131-142.

15. Como destaca Carbonell, há muito é este o entendimento expresso (mas não difundido na íntegra) de Ferrajoli. A propósito, vide La garantia de los derechos sociales en la Teoría de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos principales.In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trota, 2005. p.179.

16. Id. Ibidem., p. 194.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dezembro. 2009. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS