A ecologia e a sociedade de risco


Autora: Ana Maria Benavides Kotlinski

Doutora em Direito, Especialista em Educação, Professora de Direito Ambiental e Filosofia do Direito na Universidade Católica de Brasília

 publicado em 26.2.2010

Introdução

Sendo a sociedade moderna complexa, é dentro dessa complexidade que se estruturará por meio de laços interdependentes e por modelos cíclicos de fluxo de informação, por laços de realimentação frente às preocupações decorrentes da sociedade de risco, fazendo com que o homem deixe seu papel centralizador construindo um novo paradigma. O novo relacionamento advindo da direção dada ao ambiente e ao homem redefine direitos e obrigações, como um motor primordial para a responsabilidade que irá proporcionar as condições para que os acontecimentos do passado, as questões do presente e o devir futuro sejam pensados de uma forma crítica.

A visão ecocêntrica de um mundo intrinsecamente dinâmico está dentro de uma rede interconectada de relações, na qual a concepção sistêmica enfatiza os princípios básicos da organização, em que todos os organismos estão constituídos pelas inter-relações ambientais que se produzem. Sob esse prisma, há um enlace entre todos os seres vivos e não vivos, baseado no desenvolvimento de uma nova consciência, que reconhece que é necessário desenvolver novas formas de pensamento e estabelecer novos princípios, ao reconhecer que o mundo não é feito de organismos individuais, mas de uma teia complexa de relações que se estabelece entre eles. E a nova sociedade, chamada de sociedade de risco, está inserida nessa nova visão.

1 A sociedade pós-moderna

São inegáveis as conquistas econômicas que o homem fez ao longo de sua trajetória sobre a terra. Mas também é inegável que esse crescimento gerou consequências danosas ao meio ambiente. A sociedade evoluiu dentro de uma ideologia privilegiadora de interesses econômicos e o direito passou a ter um papel importante no estabelecimento de regras sociais de conduta ante a desordem universal que se instalou sobre a natureza. Para isso, conduziu todo o seu processo normativista dentro de uma concepção de racionalidade, que está ligada à noção de Estado.

Mas a nova forma de sociedade globalizada, transnacional ou pós-moderna traz um problema para o direito estruturado tradicionalmente, gerando uma crise de integração de seus pressupostos dogmáticos, quando percebe a insuficiência da norma jurídica para tratar das questões globais, complexas, paradoxais e sistêmicas que emergem como consequência da sociedade dinâmica que precisa lidar com problemas atuais e que está imersa em relações de risco, de possibilidades, de decisões.

Dentro dessa nova perspectiva de globalidade, de interação, inter-relações, conexões, que faz o enlace entre o homem e a natureza, reconhecendo na modernidade um fator determinante e modificador – o risco, resultante da complexidade e da possibilidade, paradoxos da vida em sociedade e das relações sistêmicas, fazendo emergir, a partir desses conceitos, um novo paradigma ambiental –, é que está inserido o novo direito, que revela valores e atores capazes de lidar com as questões complexas.

É sob esse enfoque que a ecologia passa a ser analisada: uma visão ecocêntrica da vida que tem na natureza a sua matriz, exigindo, portanto, uma releitura da sociedade na qual está inserida e das relações que essa sociedade tem com o meio ambiente.

O mundo evoluiu, a sociedade evoluiu e com eles emerge um novo paradigma ambiental que coloca homem e natureza em simbiose profunda.

1.1 A Ecologia Profunda: uma visão ecocêntrica da vida

O movimento intitulado Deep Ecology, que tem na pessoa do norueguês Arne Naess o seu fundador, apresenta-se numa subordinação do autointeresse individual e das espécies ao bem-estar da totalidade da comunidade ecológica. A natureza é, então, considerada como uma forma de existência significante, com propriedades de subjetividade, como um outro, o que torna necessária a proposição de uma nova ética.

Para se falar em ecologia profunda é necessário que se mencionem os oito princípios que a definem, quais sejam: o bem-estar da vida humana e da vida não humana tem valores intrínsecos, separados dos usos e propósitos humanos; a diversidade, a riqueza de todas as formas de vida, contribui para a realização desses valores intrínsecos; os seres humanos não têm o direito de reduzir tal riqueza e diversidade exceto para satisfazer necessidades vitais; o florescimento da vida humana e cultural é compatível com um substancial decréscimo das populações humanas; a intervenção humana no mundo não humano é excessiva e tende a piorar; políticas devem ser mudadas a fim de que as estruturas econômicas, ideológicas e tecnológicas sejam transformadas em uma direção muito diferente da presente; os seres humanos devem valorizar uma qualidade de vida que não signifique altos padrões de consumo material; aqueles que subscrevem esses pontos têm uma obrigação, direta ou indireta, de tentar implementar as mudanças necessárias.

Os ambientalistas ecocêntricos são qualificados como aqueles que estão preocupados com a proteção de populações, espécies, hábitats e ecossistemas ameaçados, onde quer que eles estejam situados e sem que se leve em conta o seu valor de uso ou a sua importância para os humanos. A tendência ecocêntrica reconhece que há uma gama muito grande de interesses humanos, mas que, ao mesmo tempo, também há do lado não humano, dando um enfoque de valorização a todos os organismos vivos pela sua própria finalidade.

Para os ecocêntricos, o mundo é intrinsecamente dinâmico, uma rede interconectada de relações nas quais não há entidades absolutamente discretas e não há linhas divisórias absolutas entre o mundo vivente e o mundo não vivente, seres inanimados e animados, ou mundo humano e não humano.

Dentro dessa concepção, todos os organismos estão constituídos pelas inter-relações ambientais que se produzem. É o enlace entre todos os seres vivos e não vivos, entre a natureza, a cultura e a sociedade.

Para os ecocêntricos existem três subtendências, quais sejam: o ecocentrismo autopoiético, o ecocentrismo transpessoal e o ecofeminismo.

O ecocentrismo autopoiético confere valor intrínseco a todas as entidades autopoiéticas, ou seja, aquelas entidades que são primeira e continuamente preocupadas com a regeneração de sua própria atividade organizacional, por meio de sua autoprodução e autorregeneração. Essas entidades podem ser qualificadas como os indivíduos, as espécies, os ecossistemas e a ecosfera.

O ecocentrismo pessoal está centrado na ecologia profunda e sua principal preocupação é o cultivo de um senso mais amplo do self, por meio do processo de identificação com as entidades da natureza. É a extensão do respeito para com os outros seres que fazem parte da comunidade ecológica.

O ecofeminismo, como diz Capra, faz uma crítica à dominação do homem sobre a mulher e a natureza não humana. Os ecofeministas argumentam que há algo de especial a respeito da experiência das mulheres que faz com que elas sejam aptas a melhor se identificar com os seres não humanos e com os processos ecológicos. Essa identidade se dá porque a mulher tem suas funções reprodutivas e de alimentação do novo ser que ela gera, e também porque a mulher tem um papel de submissão ao homem na sociedade patriarcal, semelhante ao papel que tem a natureza em relação aos seres humanos.

Outro aspecto diz respeito aos laços tradicionais que foram rompidos e o quadro normativo deixou de criar expectativas de comportamento baseadas em determinações tradicionais. Ao lado do novo ambientalismo, ou ecologia do bem-estar humano, ou do novo movimento ambientalista, coexistem outras tendências que procuram reconciliar o homem e a natureza. São elas: os preservacionistas, conservacionistas, organizações pela liberação animal e ecocêntricos (autopoiéticos, transpessoalistas e ecofeministas) em paralelo com os novos ambientalistas, que procuram balancear as posições que ocupam o homem e a natureza dentro de uma escala de valores, a qual possui em seus polos as concepções antropocêntricas e ecocêntricas.

O novo ambientalismo e o conservacionismo buscam resgatar a natureza mantendo o homem como a referência fundamental dessa relação; os preservacionistas e organizações pela liberação animal buscam a reconciliação entre a natureza e o homem, deixando o peso da escala antropocentrismo-ecocentrismo para segundo plano, dotando de valor intrínseco todos os seres do chamado mundo não humano; os ecocêntricos, dentro das suas mais variadas correntes, que dotam o mundo não humano de valores que têm o mesmo peso daqueles valores próprios ao mundo humano. Nessa ampla categorização, percebem-se as particularidades existentes entre as associações e a concretude da dinâmica das organizações ambientalistas, na busca d aproximar homem e natureza.

A ecologia profunda vê o mundo como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e interdependentes, traduzindo a visão paradigmática da totalidade, de uma interdependência orgânica. Isso faz com que a ecologia assuma uma interação em termos de relação e dialogação entre os seres vivos e não vivos, alargando seus horizontes além da natureza, para abarcar também a cultura e a sociedade.

Como explica Capra, “a percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedade, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza".

Esse é o caminho que deve ser trilhado para que efetivamente se entenda a complexidade das relações existentes entre o homem e todos os outros seres do universo. Quando não há respeito aos limites impostos pela natureza, origina-se um desequilíbrio que se reflete em todo o sistema.

Pensar as relações, o crescimento e o desenvolvimento equilibrado é superar visões ingênuas do passado, com a tomada de consciência de que o elemento fundamental de bem-estar da humanidade de hoje e do futuro está em compreender que o homem é inerente à natureza e que sem esta não há vida.

1.2 A sociedade moderna e a presença do risco

Uma das características das sociedades de risco é a imprevisibilidade, que se depara com a necessidade de implementação de novas tecnologias para o avanço na melhoria da qualidade de vida e a satisfação das inúmeras necessidades sociais, o que nem sempre proporciona à sociedade uma garantia sobre as consequências resultantes do processo evolutivo.

O solo contém bilhões de organismos vivos e precisa permanecer em estado de equilíbrio dinâmico entre todos os seus componentes para ser saudável. Por isso, o perigo que se instala sobre a natureza faz com que movimentos ambientalistas surjam fazendo frente ao temor de que a poluição, o uso exagerado de agrotóxicos, a destruição das florestas e da biodiversidade, o desperdício de água possam trazer enormes prejuízos às bases físico-orgânicas da vida humana.

Essas situações de alto risco, a que estão sujeitos a natureza e o homem, são características próprias de uma sociedade que atingiu um nível tal de desenvolvimento das forças produtivas, mas, ao mesmo tempo em que cresce e se desenvolve tecnologicamente, sente-se ameaçada pela sua continuada dinâmica. Há uma preocupação de que essa própria dinâmica venha a colocar em risco a perpetuação da espécie humana no planeta, uma vez que está a caminhar para a exaustão dos recursos naturais e da capacidade regenerativa dos ecossistemas.

Definindo risco, Luhmann o faz, diferenciando-o de perigo:

“a distinção pressupõe (...) que incerteza existe em relação a perdas futuras. Há então duas possibilidades. A perda em potencial ou é considerada como uma consequência da decisão, isto é, atribuída à decisão. Podemos então falar de risco – para ser mais exato, de risco de decisão. Ou a possível perda é considerada como tendo sido causada externamente, isto é, ela é atribuída ao ambiente. Nesse caso, nós falamos de perigo.”

O que Luhmann entendia era que nas antigas sociedades era o perigo que tendia a ser assinalado, diferentemente das sociedades modernas, em que o risco é assinalado, uma vez que estão preocupadas com a otimização da exploração de oportunidades. O autor aduz, ainda, que no momento em que se vincula risco à decisão, consideram-se chances de escolhas entre alternativas razoáveis.

É dentro desse entendimento que Luhmann faz entre risco e perigo que se situa a questão do risco ambiental, uma vez que a sociedade enquanto alheia aos processos decisórios enfrenta perigos, já ao organizar-se e tomar parte no processo decisório, influenciando o futuro por meio de suas decisões, deixa de ser meramente passiva à espera das consequências do devir, para tornar-se agente da decisão, convertendo-se o futuro e suas incertezas em risco.

Os riscos decorrentes da modernização são produto em massa da industrialização e são intensificados à medida que se tornam globais. A ciência contribui para que isso aconteça, quando a utilização de seus descobrimentos é direcionada para a produtividade e os riscos a ela conectados são considerados mais tarde e não em sua totalidade. A ciência, desenvolvendo-se dessa maneira, aumenta a quantidade e a qualidade de ambientes de risco, ao mesmo tempo em que perde a capacidade de reagir adequadamente a eles. Visto dessa maneira, o mundo está em transição entre a sociedade industrial, centrada na lógica da produção de riquezas que dominava a lógica de produção de risco, e a sociedade de risco, na qual as forças produtivas perderam sua inocência, prevalecendo os riscos e as ameaças frente à vida de plantas, animais e seres humanos sem, contudo, esquecer que a sociedade de risco continua sendo uma sociedade industrializada.

Os riscos da modernização são inerentes à globalização, isso é evidente, e fazem com que o desenvolvimento das forças produtivas alcançado pelas sociedades modernas produza riquezas numa proporção jamais vista, produzindo ambientes de risco que ameaçam a sobrevivência dos seres vivos. Nesse sentido, é fundamental que setores sociais se organizem dentro de uma forma de reivindicações vinculadas a questões relacionadas com o meio ambiente e, consequentemente, com a crise ambiental que se estabeleceu no mundo.

Além da referência que faz sobre perigo e risco, Luhmann centra-se num conceito que entende ser mais estreito e o define como movimento de protesto, o que para o autor significa comunicações endereçadas a outros chamando-os para o senso de responsabilidade deles (desses outros). Eles criticam práticas ou estados de negócios sem oferecer tomar o lugar daqueles cujo trabalho é assegurar a ordem. É uma forma de insatisfação, sem querer tomar o lugar daqueles que as provocam. O aspecto que os movimentos de protesto atuais expõem está na rejeição de situações nas quais se poderiam tornar as vítimas do comportamento arriscado de outros.

A esse respeito, Giddens fala que “oportunidade e inovação são o lado positivo do risco. Ninguém pode escapar do risco, é claro, mas há uma diferença básica entre a experiência passiva de risco e a exploração ativa de ambientes de risco”.

Considerações finais

O risco ambiental, ao qual está sujeita a sociedade, envolve um sistema econômico em contínua expansão, que faz pressão sobre os recursos naturais para o seu desenvolvimento, fazendo com que interesses de pequenos grupos prevaleçam em detrimento da sociedade. Nesse momento é que os movimentos ambientalistas devem surgir num esforço pela definição de escolhas que influenciarão no futuro do planeta, como atores sociais e políticos na luta pela definição de situações de risco e de limiares de segurança, frente à incapacidade do sistema político das sociedades complexas em responder à atividade econômica própria das sociedades industriais. Insere-se, dentro dessa nova ótica, a responsabilidade que deverá ter o governo para com seus cidadãos, examinando as consequências que o chamado livre mercado possa exercer sobre as questões ecológicas.

As sociedades precisam estruturar-se de forma que possam enfrentar e assumir os riscos de uma forma produtiva, em que a modernização não seja efetuada de uma forma linear e identificada com o crescimento econômico tão somente, mas sim consciente e sensível aos problemas e limitações dos processos modernizantes, restabelecendo coesão de princípios sociais, políticos, econômicos e ambientais.

A complexidade não deve e não pode ser concebida como receita, como fórmula pronta, mas sim como um desafio na maneira de pensar, emergindo como resultado de um esforço que o real, que o concreto, lança sobre a mente humana. A partir daí, é gerada uma incompletude do conhecimento, num contexto que permite a articulação, a identidade e a diferença de todos os aspectos, envolvendo os seres que são ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, no sentido de articular os cortes entre os vários tipos de conhecimentos. Esse é o problema enfrentado pela complexidade, saber se existe possibilidade de dar respostas ao desafio da incerteza e da dificuldade, dentro da sociedade de risco.

Referências bibliográficas


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GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social democracia. Traduzido por Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad: de la unidad a la diferencia. Traduzido por Josetxo Berian y José María García Blanco. Madrid: Trotta, 1998.

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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fevereiro. 2010. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS