1. O objetivo deste trabalho é traçar elementos que auxiliem na delimitação do crime estabelecido no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, a partir de uma análise do significado jurídico possível da palavra “temerário”. Parte-se do pressuposto de que o ordenamento constitucional não se coaduna com tipos penais com tamanho grau de abertura que deleguem ao julgador, em cada caso, definir o que é, ou não, crime. Busca-se, então, efetuar uma vinculação entre as condutas dos administradores de instituições financeiras que descumpram as regras de conduta estabelecidas pelos órgãos reguladores existentes no âmbito do Sistema Financeiro Nacional – como o Banco Central do Brasil, o Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários.
2. O crime de gestão temerária está previsto no parágrafo único do art. 4º da Lei nº 7.492/86. Para sua adequada compreensão, deve ser interpretado em conjunto com o caput. A norma assim dispõe:
“Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:
Pena – Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.
Parágrafo único. Se a gestão é temerária:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.”
Conjugando-se os dispositivos, tem-se que a descrição do crime de gestão temerária é “gerir temerariamente instituição financeira”.
Muitas são as críticas contra o caráter aberto e genérico do dispositivo, o que levaria à sua inconstitucionalidade (menciono, aqui, as críticas de Paulo José da Costa Júnior, M. Elizabeth Queijo e Charles M. Machado,(1) de Manoel Pedro Pimentel,(2) de Antônio Carlos Rodrigues da Silva,(3) de André Luís Callegari(4) e de Guilherme de Souza Nucci,(5) entre outros). Não é objeto deste trabalho perquirir sobre a inconstitucionalidade do tipo em comento, embora haja vários argumentos relevantes a defender essa tese. Duas razões orientam-nos a proceder desta forma: a primeira é a constatação de que a jurisprudência pátria vem rechaçando a tese da inconstitucionalidade da norma em análise. O próprio Supremo Tribunal Federal, embora não instado a manifestar-se especificamente sobre a compatibilidade constitucional do delito, em mais de uma oportunidade já apreciou habeas corpus(6) impetrados em face de ações penais que tratavam do crime de gestão temerária, sem que qualquer dos ministros daquela Corte tenha levantado, de ofício, questão preliminar para discutir o tema (o que poderia ter ocorrido, tal como se deu, v.g., em relação ao crime do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja constitucionalidade foi debatida e assentada no HC 70.389/SP, impetrado para discutir a competência jurisdicional para o julgamento do delito).(7) A segunda razão pela qual não abordaremos o assunto da constitucionalidade do tipo, tal como descrito, reside na necessidade de não perder o foco sobre o tema escolhido e observar a limitação de espaço proposta para o trabalho.
3. Estabelecido que a conduta incriminada é “gerir temerariamente instituição financeira”, é fundamental a delimitação conceitual de cada elemento do tipo. O elemento “gerir” é objetivo e de compreensão razoavelmente simples – gerir significa administrar, comandar, planejar. Já o elemento normativo “instituição financeira” tem o seu alcance delimitado pelo próprio art. 1º da Lei de Regência.(8)
A celeuma está centrada no elemento normativo “temerário”. Como, afinal, delimitar qual seria a administração temerária de uma instituição financeira, que mereceria a aplicação de uma sanção penal? Toda e qualquer conduta que se afaste de um procedimento conservador e cauteloso há de ser criminosa? A conduta temerária só haveria de ser punível quando provocasse dano? Ou, mesmo sem dano, haverá crime? Ou, ainda, mesmo que a conduta temerária produza lucros expressivos, haverá crime?
4. Desde que estabelecido o princípio da legalidade estrita em matéria penal (CRFB, art. 5º, XXXIX – “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”), tem a doutrina apontado que, por decorrência lógica desse princípio, extraem-se os princípios da tipicidade e da taxatividade – a norma penal incriminadora deve definir a conduta proibida, permitindo às pessoas em geral que saibam com antecedência o que podem, ou não, fazer.
Desse modo, segundo Alberto Silva Franco,
“Tipos penais que se caracterizam pela indeterminação ou vacuidade de seus termos; que não permitem captar o que realmente é proibido ou ordenado; que não estabelecem fronteiras, possuindo uma enorme capacidade de expansão; que são dotados de ‘cláusulas gerais’; que necessitam de uma atividade de preenchimento de seus elementos de composição, por parte do juiz ou do intérprete, lesionam, sem dúvida, o princípio constitucional da legalidade. Como enfatizam Hassemer e Muñoz Conde (Introducción a la Criminologia y al Derecho Penal, 1989, p. 118), ‘o Direito Penal está obrigado a dar toda a informação que seja possível e com a maior publicidade tanto sobre suas normas proibitivas ou imperativas, como sobre as sanções e o procedimento adequado para impô-las. A atuação do Direito Penal não pode nem surpreender, nem enganar quem foi por ela afetado, e tem de ser publicamente controlável, criticável e, em caso de erro, suscetível de correção. Estas metas só podem ser alcançadas na medida em que os pressupostos e modos de controle social jurídico-penal sejam ‘seguros’: este é o sentido que tem o princípio da legalidade visto do ponto de vista da formalização’.”(9)
E, conforme Júlio Fabbrini Mirabete:
“Vigora com o princípio da legalidade formal o princípio da taxatividade, que obriga a que sejam precisas as leis penais, de modo que não pairem dúvidas quanto a sua aplicação ao caso concreto. Infringe, assim, o princípio da legalidade a descrição penal vaga e indeterminada, que não possa determinar qual a abrangência exata do preceito da lei.”(10)
Por outro lado, é fato que o Código Penal, há longa data, tem convivido com tipos penais abertos, recheados de elementos normativos – citem-se, por exemplo, os crimes de ato obsceno (art. 233), de adultério (art. 240), bem como os tipos que se referem a “mulher honesta”, “ato libidinoso”, etc.
A questão, destarte, não é a de discutir a admissibilidade, ou não, da construção de tipos penais abertos, mas, sim, o grau de abertura, de vagueza, de indeterminação, com que o tipo é constituído.
5. Aponta-se como antecedente histórico do tipo em análise o art. 3º, IX, da Lei de Crimes contra a Economia Popular, que criminalizava a seguinte conduta:
“IX – gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de construções e de vendas e imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlios, pensão e aposentadoria; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falência ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados;”
Observa-se que, diferentemente dos crimes estabelecidos no art. 4º da Lei nº 7.492/86, o dispositivo acima transcrito instituía um crime de resultado, porquanto a gestão fraudulenta ou temerária somente constituiria crime quando levasse as instituições descritas no tipo à falência ou à insolvência, ou da gestão resultasse o descumprimento de qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados. Nessas condições, o antigo tipo penal atendia a contento o princípio da taxatividade das normas incriminadoras, porque somente a partir da existência de um resultado danoso (falência, insolvência ou prejuízo dos interessados) é que teria relevância penal a gestão fraudulenta ou temerária.
Todavia, o novo tipo penal, como visto, afastou qualquer necessidade de resultado para configuração do crime. Assim, já se decidiu que a gestão temerária é crime de mera conduta (STF, HC 87.440/GO, rel. Min. Carlos Britto, DJ 02.03.2007),(11) bastando para a caracterização do tipo penal o dolo de perigo (STF, HC 90.156/PE, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 25.05.2007, voto do Min. Sepúlveda Pertence). Desse modo, em se afastando qualquer vinculação com um resultado danoso, remanescem as dúvidas acima colocadas.
O tipo penal em análise tutela o Sistema Financeiro Nacional, compreendendo também a instituição financeira no bojo da qual é praticado o delito e, também, a coletividade composta de acionistas, depositantes, investidores, poupadores, etc.(12)
6. As respostas encontradas pela jurisprudência são em parte satisfatórias, mas não afastam completamente a vagueza do tipo em estudo.
Segundo se depreende de estudo realizado por José Paulo Baltazar Júnior, em análise da jurisprudência nacional, a maior parte dos casos em que se considerou configurado o crime de gestão temerária diz respeito a concessões de empréstimos a pessoas com restrições cadastrais, em situação deficitária, bem como sem as necessárias garantias.(13)
Questão tormentosa, porém, é a de conduta supostamente temerária que tenha gerado lucros. Ora, se o delito é de perigo, mas, no caso concreto, a conduta, embora em tese perigosa, tenha gerado benefícios às pessoas tuteladas pela norma penal, haveria então interesse legítimo na punição estatal?
De fato, parece que, durante um bom tempo, só havia persecução judicial às condutas que geravam prejuízo. Nestes termos, a manifestação do Juiz Federal Carlos Alberto Loverra, nos autos do processo nº 92.0102853-9:
“A experiência tem mostrado que absolutamente ‘todos’ os casos de alegada gestão temerária que culminam em processos criminais são apurados a partir de um determinado resultado negativo, olvidando-se a autarquia fiscalizadora (o Banco Central do Brasil) da atividade financeira de investigar eventuais operações que, embora na origem se apresentassem igualmente temerárias, foram regularmente liquidadas, sem prejuízo econômico para quem quer que seja. Daí exsurge a estranha conclusão: se a operação deu lucro, o operador é arrojado e bem sucedido; se deu prejuízo, é um gestor temerário, distinção que parece inexistente no dispositivo em comento.”(14)
7. Uma forma de delimitar a incidência do tipo penal, evitando o arbítrio e a reprovação ex post facto de condutas, reside na vinculação da conduta do administrador às normas ou orientações expedidas pelos órgãos reguladores existentes no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, como o Banco Central do Brasil, o Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários.
Com efeito, o Sistema Financeiro Nacional é objeto de ampla regulamentação, a começar pelo art. 192 da Constituição, que assim dispõe: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”. A regulamentação básica permanece a mesma que vigia anteriormente ao atual texto constitucional, destacando-se as Leis 4.595/64, 4.728/65 e 6.385/76. Os diplomas normativos conferem aos órgãos reguladores uma ampla gama de atribuições, especialmente de natureza regulatória e fiscalizatória.
Sendo assim, as instituições financeiras, no exercício de suas atividades, possuem várias balizas que limitam os seus procedimentos.
Tome-se, por exemplo, a Circular nº 3.261/2004 do Banco Central do Brasil, que estabelece restrições à aplicação dos recursos financeiros coletados dos grupos de consórcios, bem como limites de alavancagem para as administradoras de consórcio; ou a já revogada Resolução nº 1.559/88, também do BACEN, que estabelecia várias restrições de empréstimo concedidos pelas instituições financeiras, estabelecendo, entre outras medidas, a exigência de garantias na concessão de empréstimo, a vedação de operações com clientes que possuam restrição cadastral e a limitação a 30% do total de operações ativas da instituição aos dez maiores clientes de cada instituição. Em todas essas hipóteses, o órgão regulador estabelece normas de conduta claras, que visam justamente a resguardar a indenidade do Sistema Financeiro Nacional e das instituições que o compõem e, consequentemente, os interesses da coletividade de acionistas, poupadores e investidores – justamente o bem jurídico que é tutelado pela criminalização da conduta.
8. Pois bem. Em havendo uma norma clara de conduta estabelecida por órgão competente, pergunta-se: qual a relação entre o cumprimento ou descumprimento da norma regulamentar e o tipo penal? Pode se configurar temerária a conduta do administrador de instituição financeira que opera dentro dos marcos regulatórios?
A questão já foi debatida em alguns julgados.
No habeas corpus nº 2005.04.01.017966-3, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região assentou que “a natureza temerária do crime em análise não depende da preexistência de nenhum instrumento normativo determinado, nem está a prática da infração limitada tão só ao descumprimento de qualquer regra administrativa em particular”. Assentou-se, ainda, que o tipo não se constitui em “norma penal em branco”, no qual há necessariamente vinculação a uma regra complementar.(15) No mesmo sentido, decisão da 2ª Turma do TRF da 5ª Região, segundo a qual “o tipo penal de gestão temerária não depende de complementação pelas normas do Banco Central, uma vez que não se trata de norma penal em branco”.(16)
Já na Apelação Criminal nº 2002.04.01037299-1, a 7ª Turma do TRF da 4ª Região entendeu caracterizado o crime de gestão temerária em virtude do descumprimento de normas contidas na Circular nº 2.196/1992 do Banco Central.(17) Embora não se tenha afirmado, neste acórdão, que a caracterização do crime necessariamente depende de violação às regras regulamentares, no caso concreto, foi justamente essa espécie de infração regulamentar que fundamentou a caracterização do delito. Mesma linha de raciocínio foi utilizada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região no habeas corpus 2001.05.00.030168-7, em cuja ementa se lê: “a realização de operações de empréstimos a empresas com restrição cadastral é expressamente vedada por Resolução do Banco Central do Brasil – BACEN, configurando-se, objetivamente falando, em tese, a gestão temerária de instituição financeira, não se podendo invocar o exercício regular de direito”.(18)
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, encontramos alguns acórdãos proferidos em habeas corpus, nos quais aquela Corte considerou viável a acusação de gestão temerária contra administradores de instituições financeiras que concederam vários empréstimos sem a devida observância das normas editadas pelo Banco Central do Brasil, ou, mesmo, a despeito de reiteradas advertências da autarquia.(19)
Igualmente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 87.440/GO, considerou viável a acusação de gestão temerária em face da conduta de “aprovar e conceder créditos sem o devido apego a normas administrativas do Banco Central e sem os elementares cuidados de controle e recuperação das quantias mutuadas, eventualmente inadimplidas”.(20)
9. Como visto, o desrespeito às normas regulamentares, como as expedidas pelo Banco Central, é considerado fundamento válido para que se tenha configurada a gestão temerária; porém, o oposto não é necessariamente verdadeiro: no julgamento da Apelação Criminal 2005.05.00.036940-8, acima citada, o TRF da 5ª Região afastou a alegação de que a atuação em conformidade com as normas do Banco Central descaracterizaria o delito. Do voto condutor do acórdão, extrai-se a seguinte passagem:
“O tipo penal da gestão temerária não depende de complementação pelas normas do Banco Central, uma vez que não se trata de norma penal em branco. Como bem afirmou o Ministério Público Federal, em suas contrarrazões, o Banco Central pode apontar indicativos de uma gestão temerária ou fraudulenta, mas não afastará a análise, caso a caso, pelo Juiz do processo criminal. O juiz terá preservada a sua independência para interpretar o tipo incriminador em face das condutas imputadas aos réus, independentemente de previsão nas normas do Banco Central.”(21)
De nossa parte, divergimos da linha de fundamentação que, ao afastar o caráter de norma penal em branco ao art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, conclui que, por esse motivo, são irrelevantes as determinações dos órgãos reguladores. Com efeito, o tipo analisado não se caracteriza como norma penal em branco; isso, porém, não leva necessariamente ao absoluto desprezo das normas regulamentares expedidas pelos entes competentes.
Explico: é que, em se tratando o vocábulo “temerariamente” de elemento normativo do tipo penal, a sua concretização, pelo juiz, não pode prescindir da análise global do ordenamento jurídico. Isso porque os elementos normativos do tipo, por definição, inserem “na figura típica certos componentes que exigem, para a sua ocorrência, um juízo de valor dentro do próprio campo da tipicidade”,(22) de modo que, ao contrário dos elementos descritivos, seu significado não se extrai da mera observação.(23)
Ora, valendo-se a lei de um elemento normativo jurídico, deve o juiz, sim, recorrer à normatização regulamentar acerca das operações autorizadas, ou não, pelos órgãos reguladores, a serem realizadas pelas instituições financeiras.
Aqui, mais um fundamento se impõe: a complexidade dos negócios jurídicos envolvendo instituições financeiras, muitas vezes, requer um profundo conhecimento especializado no ramo para que se possa efetuar um juízo de valor sobre o caráter “temerário”, ou não, de determinada operação. Nessas oportunidades, o operador do direito poderá ter imensas dificuldades em julgar a conduta do administrador, por não possuir os necessários conhecimentos e a experiência acerca dos negócios realizados.
Há mais: o julgamento acerca da “temeridade” de determinada conduta há de ser feito, por óbvio, por meio de uma avaliação do risco assumido em certa operação realizada por instituição financeira. Porém, há que se ter em conta que, diferentemente do que ocorre em outras situações da vida, no mundo dos negócios, e em especial no mercado financeiro, o risco é inerente à atividade;não só é aceitável, como, inclusive, é desejável e necessário.(24) Portanto, a avaliação da justa medida do risco assumido depende de um razoável grau de conhecimento das características dos negócios empreendidos pela instituição financeira. Ou, como leciona Leonardo Henrique Mundim Moraes Oliveira, deve-se “considerar a exigência do nível de cautela não sob a ótica do homem comum (hominus medius), e sim sob a ótica do próprio mercado financeiro”.(25)
Uma determinada operação que apresente risco, mas seja praticada de forma comum no universo das instituições financeiras e, mais que isso, conte com a aceitação expressa ou tácita dos órgãos regulatórios, não pode, portanto, ser acoimada de temerária.
10. Neste passo, adentra-se em uma questão central para os adeptos da teoria da imputação objetiva: a de que qualquer sociedade admite e tolera (e muitas vezes até mesmo promove) os riscos que sejam considerados normais no convívio entre as pessoas. Assim, de acordo com Günther Jakobs, “um comportamento que gera um risco permitido é considerado normal”, e “os comportamentos que criam riscos permitidos não são comportamentos que devam ser justificados, mas que não realizam tipo algum”. Tem-se presente, então, uma hipótese de exclusão da tipicidade, e não de justificação.(26)
Ainda segundo o citado autor, “deixa de estar permitido aquele comportamento que o próprio Direito define como não permitido, proibindo-lhe já por seu perigo concreto ou abstrato, inclusive sob a ameaça de pena ou de multa administrativa. Por meio do estabelecimento da proibição da colocação em perigo – que quando menos é de caráter abstrato –, o comportamento fica excluído do âmbito do socialmente adequado e se define como perturbação da vida social; isso acontece pela simples realização de um comportamento assim configurado, sem ter em conta o resultado que se produz”.(27)
A lição vem ao encontro daquele entendimento, antes citado, de que a violação das regras de conduta baixadas pelos órgãos reguladores representaria um indício da ocorrência do crime de gestão temerária, a ser confirmada pela verificação da efetiva ocorrência de perigo ao bem jurídico tutelado. Por outro lado, a conduta do administrador que, embora de risco, esteja dentro do âmbito permitido pelo órgão regulador, constituirá tão somente um risco permitido, não hábil a caracterizar o elemento normativo do tipo penal.
11. Em alguns julgamentos, tanto o Superior Tribunal de Justiça como o Supremo Tribunal Federal adotaram a tese da vinculação do julgamento da conduta dos administradores de instituições financeiras, no âmbito penal, ao julgamento da mesma conduta realizado no âmbito administrativo.
Vejamos:
No HC 77.228/RS, consta da ementa a seguinte passagem:
“Tendo o órgão estatal responsável pela fiscalização do Sistema Financeiro Nacional, após regular e amplo procedimento administrativo, concluído que as práticas que motivaram a representação administrativa e, posteriormente, a investigação criminal não caracterizaram gestão temerária, evidente a atipicidade da conduta, a conduzir ao trancamento da Ação Penal por falta de justa causa. Precedentes do STJ e do STF (RHC 12.192/RJ, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJU 10.03.2003 e HC 83.674/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJU 16.04.04).”(28)
No âmbito do STF destacam-se dois julgamentos: no HC 81.324, decidiu o Tribunal no sentido de que, estando a denúncia fundada apenas no processo administrativo do Banco Central, e havendo essa instituição, posteriormente, concluído pela legalidade da operação realizada, não havia justa causa para a ação penal.(29) Na mesma linha, no HC 83.674, decidiu-se no sentido de que, “tendo a denúncia se fundado exclusivamente nessa representação, não há como dar curso à persecução criminal que acusa o paciente de realizar atividade privativa de instituição financeira, se a decisão proferida na esfera administrativa afirma que ele não pratica tal atividade”.(30)
Dos julgados citados, somente o primeiro deles se refere ao crime de gestão temerária. Os demais, porém, demonstram uma tendência a vincular o Judiciário ao que decidido pelos órgãos da administração.
Em princípio, a linha das decisões citadas vai mesmo além da ideia central defendida neste trabalho, porquanto chega a ponto de vincular os julgamentos realizados entre as diferentes esferas. Porém, parece lógico concluir que, se tal espécie de vinculação é feita, com maior razão há de se vincular – no caso do crime de gestão temerária – o julgamento da conduta do administrador de instituição financeira à normatização expedida pelos órgãos reguladores.
12. À guisa de conclusão, analisando-se o elemento normativo do tipo em face das normas emanadas pelas autoridades administrativas, tem-se que possa ocorrer uma das seguintes situações:
a) a conduta do administrador viola norma dos órgãos reguladores: nesse caso, pode se configurar o crime de gestão temerária, desde que a violação diga respeito a um dever de conduta imposto para proteger os bens jurídicos tutelados pelo tipo penal. A tipificação não é automática, porém a violação à norma de conduta caracteriza um indício de ocorrência do crime. Evidentemente, não se afasta a possibilidade de o administrador demonstrar que, a despeito de pontual violação à norma regulamentar, não se configurou risco algum à instituição financeira, ao Sistema Financeiro Nacional ou aos investidores.
b) a conduta do administrador está em conformidade com norma dos órgãos reguladores: tem-se, neste caso, que eventual risco decorrente da conduta é autorizado pelo ordenamento jurídico, não podendo o Estado, ao mesmo tempo em que autoriza determinada prática, posteriormente pretender a punição em face do mesmo fato, por meio da aplicação do Direito Penal.
c) a conduta do administrador não encontra previsão em regulamentação expedida pelo órgão competente: nesta hipótese, a conduta do administrador também pode ser considerada temerária. Evidentemente, aqui, o critério adotado pelo julgador há de ser muito mais rigoroso para a aferição da ocorrência do crime; é que, inexistindo o indício a priori da conduta temerária, caracterizada pela violação de norma regulamentar, é necessário estar comprovado que a conduta tida como temerária foi absolutamente imprópria, atípica, fora de qualquer padrão normal de comportamento.
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Notas
1. Crimes do Colarinho Branco. São Paulo: Saraiva, 2000.
2. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
3. Crimes do Colarinho Branco. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.
4. Gestão Temerária e o Risco Permitido no Direito Penal. Revista dos Tribunais, a. 94, v. 837, p. 409-416.
5. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
6. HC 75.677/MT, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 19.12.1997; HC 87.440/GO, rel. Min. Carlos Britto, DJ 02.03.2007; HC 90.156/PE, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 25.05.2007.
7. HC 70.389/SP, rel. p/ acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10.08.2001.
8. Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.
Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:
I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;
II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.
9. FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 51-52.
10. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 98.
11. Em sentido diverso, a opinião de Guilherme de Souza Nucci (Leis penais e processuais penais comentadas, op. cit., p. 968), para quem o crime é formal (independe da ocorrência de efetivo prejuízo a terceiros, embora este possa ocorrer), e não de mera conduta (o que ocorreria se fosse impossível qualquer resultado naturalístico).
12. SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da, op. cit., p. 47. No mesmo sentido, Paulo José da Costa Jr. et alli, op. cit., p. 76. Segundo Guilherme de Souza Nucci, os objetos jurídicos do delito são “a credibilidade do mercado financeiro e a proteção ao investidor” (Leis penais e processuais..., op. cit., p. 968).
13. BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 339-340.
14. Apud MAZLOUM, Ali. Crimes do Colarinho Branco. Porto Alegre: Síntese, 1999. p. 65.
15. HC 2005.04.01.017966-3/RS, rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJ 30.11.2005.
16. ACR 2005.05.00.036940-8/CE, 2ª Turma, rel. Des. Federal Manoel Erhardt, DJ 28.11.2007.
17. ACR 2002.04.01.037299-1/RS, rel. Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, DJ 11.02.2204.
18. HC 2001.05.00.030168-7, 3ª Turma, rel. Des. Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, DJ 29.05.2003.
19. HC 22.769/G0, 5ª Turma, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 23.06.2003; HC 44.866/GO, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 05.12.2005; HC 56.800, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 16.10.2006.
20. HC 87.440/GO, 1ª Turma, rel. Min. Carlos Britto, DJ 02.03.2007.
21. ACR 2005.05.00.036940-8/CE, 2ª Turma, rel. Des. Federal Manoel Erhardt, DJ 28.11.2007.
22. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, Parte Geral. p. 272.
23. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1, Parte Geral. p. 195.
24. Cabe referir aqui a opinião de André Luís Callegari, “Gestão Temerária e o Risco Permitido no Direito Penal”, op. cit., p. 413: “Inicialmente, cabe referir que a sociedade tolera e admite determinados riscos, ou seja, para o próprio desenvolvimento da sociedade o risco torna-se necessário, sob pena de estagnação social. Portanto, o ordenamento jurídico não pode proibir todo o tipo de lesão ou colocação em risco dos bens jurídicos, pois se assim o fosse não se lograria qualquer progresso no desenvolvimento da sociedade e, para que se busque este nível de desenvolvimento, é preciso aceitar que os bens jurídicos estão permanentemente expostos ao perigo e não é viável uma proibição geral de condutas que provavelmente conduzam à lesão de bens jurídicos tutelados.”
25. Crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária em Instituição Financeira.Revista de Informação Legislativa, a. 36, n. 143, jul./set. 1999, p. 47-51.
26. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 40.
28. HC 77.228/RS, 5ª Turma do STJ, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 07.02.2008.
29. HC 81.324/SP, 2ª Turma do STF, rel. Min. Nelson Jobim, DJ 23.08.2002.
30. HC 83.674/SP, 2ª Turma do STF, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 16.04.2004.
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