Considerações iniciais
Vivemos um momento preocupante na história da humanidade: a despeito do desenvolvimento científico e tecnológico, ainda não se encontraram meios suficientes para conter a espiral de destruição que compromete a própria existência humana. Notícias de destruição da biodiversidade são estampadas nos mais variados meios de comunicação, e a conclusão que se tem é que o interesse econômico constitui o principal motivo do descalabro.(2)
Há muito tempo, os recursos biológicos e as informações referentes às suas qualidades bioquímicas têm sido obtidos pelas nações industrializadas, através da exploração dos recursos naturais e da cultura das comunidades locais, particularmente daquelas que vivem em países periféricos. Diversas empresas farmacêuticas e de outros setores dedicados à exploração comercial da biotecnologia vêm se apropriando dos conhecimentos advindos dos recursos naturais, por meio do patenteamento de espécies, na sua maior parte, constituídas por vegetais, o que pode ser classificado como biopirataria.
Embora não haja consenso doutrinário, a biopirataria(3) pode ser entendida como a transferência da riqueza encontrada na natureza para outros países, com a finalidade de fabricação de produtos sem o pagamento de royalties ao país de origem da matéria-prima, ou com o fim do simples patenteamento do produto. Vale ressaltar que a biopirataria pode ocorrer desde o nível molecular até a espécie em sua totalidade.
Segundo Adalberto Luiz Val(4), a ocorrência da biopirataria não é recente no Brasil, uma vez que, dois anos após a chegada da esquadra de Cabral, já ocorriam os primeiros desvios de pau-brasil para a Europa.
É certo que atualmente a exploração de biodiversidade no país não é idêntica à prática desenvolvida à época do descobrimento; hoje o que desperta a cobiça não é a espécie em si, mas o conhecimento em torno da mesma, como o seu sequenciamento genético e possíveis aplicações. Tais conhecimentos tornam-se economicamente estratégicos, pelo potencial de agregar valor a novos processos.
Como esclareceu Sarita Albagli(5), a biodiversidade passa a ser encarada sob novo enfoque, qual seja, de ser matéria-prima para descobertas da biotecnologia e da propriedade intelectual como instrumento de domínio sobre o potencial biotecnológico. A manipulação da biodiversidade no nível genético potencializa os usos e aplicações, ampliando o interesse de segmentos econômicos e industriais.
Conforme entendimento da referida autora, as consequências do recente interesse pela biodiversidade podem ser identificadas pela ocorrência de fenômenos naturais relacionados com danos ao meio ambiente, tais como destruição da camada de ozônio, efeito estufa, poluição dos ambientes, destruição das florestas, bem como pela mudança do paradigma tecno-econômico, que se materializa mediante a supervalorização daquele baseado na informação. Nesse sentido, a biodiversidade passa a ser alvo de interesse como elemento essencial de suporte à vida, representando igualmente uma reserva de valor futuro ou um capital natural de realização futura.
Nesse contexto, a privatização dos conhecimentos relacionados à biodiversidade por grupos econômicos pode representar a monopolização do acesso aos bens da natureza, dificultando inclusive o acesso da população aos alimentos e medicamentos, dentre outros produtos essenciais à preservação da saúde do ser humano, agravado pelo monopólio dos processos de produção desses mesmos produtos.
Além dos conhecimentos relacionados aos organismos vivos, a biopirataria constitui risco aos saberes das comunidades que habitam os biomas brasileiros. Diante da gravidade desse problema, é de se pensar em outro modelo que compatibilize a segurança dos conhecimentos relacionados à biodiversidade brasileira com a possibilidade de acesso da população aos produtos e processos a ela relacionados.
Em abordagem sobre os instrumentos jurídicos referentes à transferência de know-how e à proteção dos conhecimentos de tribos indígenas, assevera César Flores(6) que tais instrumentos indicam modelos de transformação econômica e social que, muitas vezes, são inviáveis diante da realidade mundial, e acrescenta:
“As premissas são o capitalismo, a industrialização e o acúmulo de riquezas, sendo a propriedade intelectual um instrumento de continuidade do atual modelo de domínio econômico, e o poder militar, uma forma de manutenção de poder, quando o direito não consegue o controle desejado.”
No atual panorama político-econômico, verifica-se que, cada vez mais, as “leis do mercado” passam a falar mais alto do que quaisquer outros diplomas ou princípios e os principais atores deixam de ser os estados-nações e passam a ser os conglomerados financeiros. Abordando o tema, é interessante a análise de Zigmunt Bauman(7):
“Num mundo em que os principais atores já não são estados-nações democraticamente controlados, mas conglomerados financeiros não eleitos, desobrigados e radicalmente desencaixados, a questão da maior lucratividade e competitividade invalida e torna ilegítimas todas as outras questões.”
No caso em tela, o ordenamento jurídico representado principalmente pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), Lei de Biosegurança (Lei nº 11.105/2005), Lei de Patentes (Lei nº 9.279/96) e Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992 parecem insuficientes, tanto para conter a biopirataria como para impedir a monopolização do conhecimento. Diante das lacunas, é premente orientar os estudos tendo em vista garantir que o arcabouço legal voltado à proteção da biodiversidade nacional e dos conhecimentos a ela relacionados seja compatível com o direito ao acesso democrático aos bens da natureza e, ao mesmo tempo, eficiente à preservação dos interesses nacionais relacionados a tais bens.
1 Proteção à biodiversidade e seu caráter fundamental
De pronto, cumpre admitir que o desconhecimento sobre a biodiversidade brasileira é fenômeno marcante, apesar de o Brasil ser um dos países mais ricos em temos de biodiversidade e a floresta amazônica ser detentora da maior diversidade biológica e riqueza florestal do mundo, sem olvidar que a nossa alimentação e a nossa agricultura são fortemente baseadas em espécies exóticas.(8)
Para ilustrar essa inferência não se pode esquecer que a floresta amazônica, maior floresta tropical do mundo, abriga 15% de todos os vegetais e animais conhecidos no mundo; só de peixes são mais de 3.000 espécies; em relação a aves, abriga mais que o dobro de todas as espécies dos Estados Unidos e do Canadá. Apesar da magnitude desses números, estima-se que apenas um décimo de toda biodiversidade tenha sido estudado.(9)
Estima-se que 40% dos medicamentos disponibilizados pela medicina moderna sejam derivados direta ou indiretamente dos recursos naturais. Enquanto isso, apesar de ser o Brasil um dos dez maiores consumidores de medicamentos no mundo, sua indústria farmacêutica tem participação pouco expressiva, inclusive no mercado nacional, dependendo fortemente do mercado externo.(10)
A CRFB/1988, ao inaugurar a proteção à biodiversidade e à garantia de acesso aos bens da natureza, no seu art. 225, assim prescreve:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
Nessa linha de pensamento, Paulo Affonso Leme Machado(11) defende que o acesso dos seres humanos à natureza deve satisfazer às necessidades comuns de todos os habitantes da terra, tendo o Direito Ambiental a tarefa de estabelecer normas que regulamentem o uso racional e sustentável dos recursos ambientais.
O acesso aos bens da natureza supõe a aceitação do princípio 1 da Declaração do Rio de Janeiro/92, quando afirma que “os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza”.
Paulo Affonso Leme Machado,(12) ao comentar o direito à sadia qualidade de vida, relembra que, inicialmente, as constituições escritas inseriram o “direito à vida” no cabeçalho dos direitos individuais; contudo, no século XX, aprimorou-se a definição, formulando-se então o conceito do “direito à qualidade de vida”. Notadamente, em função dos avanços tecnológicos do final do século XX e do início do XXI e em face da complexidade da sociedade e dos novos riscos a que o ser humano passou a ser exposto, o conceito do direito à vida também precisou ser aperfeiçoado, de forma a abarcar a garantia do direito à vida em toda sua plenitude.
Nesse contexto, o acesso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, representado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, reveste-se de caráter fundamental, pois abarca a garantia de vida saudável.
Ao tratar da fundamentalidade dos direitos, Robert Alexy(13) ressalta que, para se configurar um direito fundamental, a carência ou o interesse deve ser objeto de proteção jurídica, revelando, em paralelo, uma essencialidade na sua tutela, de forma que a omissão em sua proteção represente a morte ou o perecimento da autonomia humana. Em suma, para que um direito seja considerado fundamental, o bem jurídico a ser tutelado deve ser de interesse do campo jurídico e se tratar de direito essencial à manutenção da autonomia humana.
Sob esse aspecto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não só por disposição constitucional, mas por sua essencialidade à condição humana, demonstra inequivocamente o caráter de direito fundamental.
Nesse sentido, Juliana Santilli(14) assinala que o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, constitui direito humano fundamental que, embora não arrolado entre os direitos e garantias fundamentais explícitos na Constituição Federal, tem sua fundamentalidade reconhecida pela doutrina. É igualmente importante ressaltar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, afirmado em convenções e documentos internacionais, passa a ser, em virtude de sua essencialidade e de sua natureza coletiva, considerado como direito humano de terceira geração.
2 Conhecimentos tradicionais e a proteção constitucional ao patrimônio cultural brasileiro
Segundo José Afonso da Silva,(15) a Constituição da República conferiu relevante importância à cultura, em sua concepção abrangente, que inclui, entre outras dimensões, a expressão criadora das pessoas, portadora de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
No que se relaciona com os conhecimentos das comunidades tradicionais, é pertinente refletir sobre a proteção constitucional conferida ao patrimônio cultural. A Carta Magna, em seu art. 215, prescreve: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
Verifica-se, portanto, a responsabilidade do Estado quanto à garantia de acesso aos bens culturais, bem como à valorização e à difusão de tais manifestações. Deixando ainda mais clara a responsabilidade do Estado, o legislador constituinte assim dispôs no § 1º do mesmo artigo: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”
Como se pode inferir do que foi exposto, o Estado possui papel preponderante na proteção da cultura popular; mas poderiam ser considerados bens culturais os conhecimentos sobre sistemas ecológicos, as espécies com propriedades terapêuticas, bem como os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade?
A definição de patrimônio cultural pode ser encontrada na própria CRFB/88, que assim dispõe:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – (...)”
Os conhecimentos tradicionais, representados pelas formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, seja das populações indígenas, ou outras comunidades tradicionais, formadoras da sociedade brasileira, conforme prescrito no preceito constitucional acima destacado, integram o patrimônio cultural brasileiro, merecendo, portanto, a proteção estatal.
Ressalta-se que, como reforço à tese de sua importância cultural, os povos indígenas, as populações afro-brasileiras e demais sociedades tradicionais desempenham importante papel no desenvolvimento de novos processos produtivos, além de constituir valiosa fonte de conhecimento para o desenvolvimento de produções biotecnológicas.
Reconhecendo a importância de tais conhecimentos, o Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que, além de regular o acesso ao patrimônio genético, tratou em seu inciso II, art. 7º, da proteção ao conhecimento tradicional associado, como “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.”
3 O direito ao acesso ao conhecimento biodiverso e a proteção à propriedade intelectual
Como ressaltado, os conhecimentos derivados da biodiversidade são bens jurídicos que integram o patrimônio cultural dos povos e demonstram relevante importância para a humanidade, tornando-se objeto de acordos internacionais. Contudo, questão delicada que se apresenta é como conciliar a possibilidade de apropriação de tais conhecimentos e, ao mesmo tempo, possibilitar a socialização equitativa de seus benefícios, ou, de outra forma, como propiciar desenvolvimento tecnológico e acesso aos conhecimentos oriundos da biodiversidade?
Assim como a Constituição da República protege os conhecimentos oriundos da biodiversidade, também abriga os direitos do autor ou inventor como meio de desenvolvimento tecnológico e econômico nacional.(16) Mas, dada sua relevância, tal questão extrapola o campo interno, alcançando interesse internacional e passando a ser regulada em âmbito internacional pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que, em seu art. 15.7, assim dispõe:
“Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso e em conformidade, mediante o mecanismo financeiro estabelecido nos arts. 20 e 21, para compartilhar de forma justa e equitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza como a Parte Contratante provedora desses recursos. Essa partilha deve dar-se de comum acordo.”
Sarita Albagli(17) informa que, apesar de a CDB não conter expressamente dispositivos que tratem da participação de benefícios, esse diploma pode ser considerado inovador, em particular no que se relaciona com a recomendação de repartição justa e equitativa de tais resultados, o que estimula a discussão sobre o assunto.
A propriedade intelectual e os bens jurídicos referentes à vida e à saúde pública encontram-se intimamente relacionados à questão do acesso ao conhecimento e do compartilhamento de seus benefícios. O acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), ao tratar sobre tais questões previu, em seu art. 27.2, a possibilidade de proibição de patenteamento como garantia à ordem pública, à saúde e à vida, seja ela humana, seja animal ou vegetal. Tal dispositivo representa medida justa, quando estão em jogo bens jurídicos de mais alta valoração, bem como uma medida de indiscutível valor social.
Abordando o problema, César Flores(18) esclarece que, apesar de não ser otimista em relação ao tratamento dispensado ao tema, tendo em vista ser tênue a linha que separa a legalidade e o protecionismo, reconhece que a inclusão do tema num acordo comercial de relevante importância no panorama internacional representa passo importante, principalmente no que se refere à proteção de bens jurídicos como vida, saúde e ordem pública, quando em confronto com interesses comerciais.
Segundo Juliana Santilli(19), a proteção conferida pela CDB estabelece a necessidade da aprovação dos detentores de conhecimentos para a aplicação dos mesmos, além da participação das comunidades detentoras na repartição dos benefícios advindos de seu aproveitamento. Tal iniciativa visa ao equilíbrio entre os países detentores da biodiversidade e os possuidores dos conhecimentos biotecnológicos. Como se depreende, o assunto é controvertido e demanda cuidadosa reflexão.
Os conhecimentos tradicionais são produzidos de forma coletiva, com base na troca de ideias e informações, transmitidos oralmente de geração em geração, ao passo que o sistema de patentes protege as inovações individuais, outorgando monopólio ao seu detentor, não raro, promovendo dissociação do contexto em que são produzidas tais inovações e impedindo compartilhamento coletivo de seus benefícios. Sob esse enfoque, o direito de propriedade seria inconciliável com valores e concepções que regem a vida em sociedades tradicionais(20).
O sistema de propriedade intelectual pode ser entendido como um meio de proteção ao conhecimento e à repartição dos benefícios, tal como definida na CDB, pode ser um meio de compartilhar os benefícios da aplicação de um conhecimento.
Como o tema é complexo, não há consenso entre os pensadores. Laymert Garcia dos Santos,(21) por exemplo, afirma que a propriedade intelectual é uma miragem, inventada pelos advogados da indústria da biotecnologia para confundir a sociedade e, principalmente, as comunidades tradicionais, levando-as a abrir mão de sua maior riqueza, o conhecimento, em troca de migalhas. Em outras palavras, entende que a repartição dos benefícios é o artifício utilizado para que os povos indígenas se sentem à mesa para supostamente participar de um jogo que não é deles nem para eles: o jogo tecnocientífico. Na verdade, segundo o referido autor, o que se pretende é ter acesso às propriedades dos vegetais e animais por meio dos conhecimentos tradicionais, apropriando-se desses conhecimentos transformados em linguagem tecnocientífica.
Albagli(22) reforça que um dos grandes problemas da CDB quanto à participação no acesso ao conhecimento concerne ao fato de que os grandes detentores de tecnologia são as empresas privadas, enquanto a CDB representa um acordo entre governos. Por isso, para que o acesso à tecnologia se torne possível, é imprescindível uma legislação interna sobre o assunto. Apesar de a CDB possuir força de lei nos países que a ratificaram, não é segura a sua capacidade de fazer valer concretamente, uma vez que os maiores óbices à sua implementação repousam na esfera local.
Frente a tão contrastantes opiniões, é instigante refletir sobre quais instrumentos visam efetivamente à proteção do conhecimento, à valorização da cultura e à repartição equânime dos benefícios: seria o patenteamento dos conhecimentos, associado à biodiversidade, a melhor forma de proteção?
Eliane Moreira(23) ressalta que as novas tecnologias e a propriedade intelectual compõem o arsenal do sistema da “ciência industrial”, desde o século passado muito próxima do setor econômico, dando origem ao sistema de ciência e tecnologia, sobre o qual existe forte cobrança de utilidade e lucro. Com esse intuito, a ciência industrial utiliza-se do sistema da propriedade intelectual como sustentáculo de produção de novas tecnologias. Desse modo, as novas tecnologias e a propriedade intelectual cumprem o papel de legitimar um poder hegemônico.
Em contrapartida, repartição de benefícios, justiça e equidade são valores que sustentam um discurso contra-hegemônico. As novas tecnologias e a propriedade intelectual não estão postas no mundo globalizado a serviço da população que gera conhecimentos tradicionais, os quais continuam à margem desse processo.
No que tange à proteção da biodiversidade, Juliana Santilli(24) ilustra que a diversidade de espécies, genética e de ecossistemas está intimamente relacionada à diversidade cultural, não havendo forma de proteger a biodiversidade sem que se proteja, de igual forma, o patrimônio cultural, intimamente relacionado a ela.
Considerações finais
O patenteamento de organismos da biodiversidade ou de processos deles derivados, tais como os conhecimentos das comunidades tradicionais, reflete tendência à monopolização do conhecimento. A transformação dos conhecimentos oriundos dos organismos biodiversos em linguagem tecnocientífica, bem como a verificação de aplicabilidade desses conhecimentos em processos produtivos, demanda tempo e muitos recursos de toda ordem.
Por outro lado, não se conhecem outras formas eficazes de tradução ou transformação desses conhecimentos em tecnologia que não sejam as pesquisas científicas, bem como não se apresentam modos eficazes de proteção do conhecimento desvinculados de aspectos econômicos.
Não há como desvincular conhecimento e interesse econômico, nem é essa a proposta deste trabalho. Há maneiras de compatibilizar o desenvolvimento científico e o aproveitamento econômico dos conhecimentos advindos da natureza, sem se esquecer do desenvolvimento sustentável e da repartição justa dos benefícios auferidos.
Não se admitem confrontos ou disputas violentas entre nações detentoras de tecnologia e nações ricas em biodiversidade, como também não se acredita em processos voluntários de contenção da sanha acumulatória por lucros de grupos hegemônicos. Em outra direção, propõe-se que as questões relativas à biodiversidade sejam decididas por todos os segmentos afetados pelas decisões.
A compatibilização entre acordos internacionais, como TRIPS e CDB, é medida bem-vinda, mas ressalta-se que essa providência deve ter sempre como horizonte o equilíbrio comercial e econômico com interesses ecológicos e sociais. A discussão sobre o aproveitamento científico da biodiversidade deve contar com a participação daqueles que são diretamente atingidos ou beneficiados por tais conhecimentos.
Para que as decisões sobre essas questões sejam justas e legítimas, o primeiro passo seria investir na informação e no conhecimento, ou seja, promover a divulgação do tema para significativa parcela da sociedade e haver investimentos públicos no desenvolvimento de pesquisas. O caminho não é curto nem existe solução pronta para o problema, pois demanda um processo de amadurecimento da sociedade e dos governos.
Nessa linha de argumentação, não se acredita que a solução esteja restrita ao âmbito nacional, uma vez que não estamos isolados do resto do mundo e a natureza a cada dia propicia lições sobre os reflexos globais da irracionalidade no uso dos bens naturais. Sob esse aspecto, a harmonia entre desenvolvimento econômico-tecnológico e desenvolvimento sustentável deve ser buscada com a democratização das decisões de órgãos internacionais, tais como a Organização Mundial do Comércio.
Ademais, não se pode esquecer que o desenvolvimento sustentável deve levar em consideração o homem como elemento participante da natureza, e, por tal motivo, as preocupações com o combate à miséria, à fome e à doença devem estar presentes nas discussões sobre o patenteamento do conhecimento biodiverso. A propriedade intelectual deve atender ao desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, mas as questões sociais não devem ser tidas como antagônicas ao desenvolvimento; deve-se, ao contrário, buscar o equilíbrio entre tais dimensões, o que somente será possível com a democratização dos processos, com a participação de todos os que podem ser beneficiados ou atingidos pelas decisões.
Os caminhos apontados podem soar como miragem em face do contexto de desigualdades, destruições e irracionalidades; todavia, não é menos irreal que soluções possam ser encontradas na boa vontade ou na racionalidade de poucos.
Bibliografia
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Notas
1. Trabalho apresentado como requisito parcial de avaliação da disciplina Direitos Fundamentais da Propriedade Intelectual, do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá – 2009.
2. COUTINHO, Leonardo; EDWARD, José. A,azônia: a verdade sobre a saúde da floresta. Veja, São Paulo, a. 41, n. 2053. p. 95-108.
3. SANTILLI, Juliana. Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos. In: MATHIAS, Fernando; NOVION, Henry de (Org.). As encruzilhadas das modernidades: debates sobre biodiversidade, tecnociência e cultura. Brasília: Instituto Socioambiental, 2006. p. 85.
4. VAL, Adalberto; VAL, Vera M. F. de Almeida. Biopiratariana Amazônia. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/genetico. Acesso em: mar. 2008.
5. ALBAGLI, Sarita. Da biodiversidade à biotecnologia: a nova fronteira da informação. Artigo elaborado a partir da tese de doutorado Dimensão Geopolítica da Biodiversidade, no programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ.
6. FLORES, Nilton César. Segredo Industrial e o know-how: aspectos jurídicos internacionais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 131-132.
7. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 61.
8. ALBAGLI, Sarita. Convenção sobre Diversidade Biológica: uma visão a partir do Brasil. In: GARAY, Irene; BEKER, Berta K. (Org.) Dimensões Humanas da Biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 123 e 124.
9. COUTINHO, Leonardo; EDWARD, José. Amazônia: a verdade sobre a saúde da floresta. Veja edição especial AMAZÔNIA (2053). São Paulo, a. 41, n. 12, 26 de março de 2008. p. 96.
10. KAPLAN, Maria Auxiliadora C.; FIGUEIREDO, Maria Raquel. O valor da diversidade química das plantas. In: GARAY, Irene; BEKER, Berta K. (Org.). Dimensões humanas da biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 275.
11. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 10 e.d. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 47.
12. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ob.Cit., p. 45.
13. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. Tradução de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.48.
14. SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Fundação Peirópolis, 2005. p. 58-59.
15. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 301.
16. A CRFB/1988 previu tal proteção no art. 5º, XXIX, nos seguintes termos: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.”
17. ALBAGLI, Sarita. Convenção sobre diversidade biológica: uma visão a partir do Brasil. In: GARAY, Irene; BEKER, Berta K. (Org.). Dimensões humanas da biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 119 e 120.
18. FLORES, César. O Direito Comercial Internacional e a preservação ambiental: entre o risco e o desenvolvimento. In: LEITE, José Rubens Morato; FILHO, Ney de Barros Bello (Org.). Direito Ambiental contemporâneo. São Paulo: Manole, 2004. p. 387.
19. SANTILLI, Juliana. Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos. In: MATHIAS, Fernando; NOVION, Henry de (Org.). As encruzilhdas das modernidades: debates sobre Biodiversidade, Tecnociência e Cultura. Brasília: Instituto Socioambiental, 2006. p. 85.
21. DOS SANTOS, Laymert Garcia. As novas tecnologias e o papel da propriedade intelectual para uma política justa e equitativa de repartição de benefícios. In: MATHIAS, Fernando; NOVION, Henry de (Org.). As encruzilhdas das modernidades: debates sobre Biodiversidade, Tecnociência e Cultura. Brasília: Instituto Socioambiental, 2006. p. 182-183.
22. ALBAGLI, Sarita. Convenção sobre Diversidade Biológica: uma visão a partir do Brasil. In: GARAY, Irene; BEKER, Berta K. (Org.). Dimensões Humanas da Biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 122 e 131.
23. MOREIRA, Eliane. Debatedora sobre o tema Tecnociência, Cultura e Propriedade Intelectual: as encruzilhadas das novas tecnologias. In Idem.
24. SANTILLI, Juliana. Ob. Cit., p. 93.
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