Resumo
O presente estudo volta-se à controversa questão das discriminações inversas, que consistem na atribuição de vantagens competitivas a grupos segregados de acordo com fatores discriminadores, como a característica étnico-racial ou a condição sócio-econômica, diante de um quadro de discriminação social negativa. Tais políticas de pluralização da cidadania, sensíveis às peculiaridades entre indivíduos ou grupos, realizam o princípio da igualdade, ao possibilitarem a superação de obstáculos ao acesso a direitos fundamentais e ao exercício desses direitos. Pondera-se sobre a importação acrítica de políticas de discriminações inversas à realidade brasileira, oriundas da experiência norte-americana, devendo ser observadas as condições reais de implantação do programa, relativas à “marginalização” social de parcela majoritária da população, em decorrência da estrutura econômico-social do país.
Palavras-chave: Discriminação inversa. Ação afirmativa. Cotas. Exclusão social.
Sumário: Introdução. 1 Delimitação do conteúdo das discriminações inversas. 2 Justiça como igualdade na teoria sistêmica. 3 As discriminações inversas no Brasil: dificuldades de implantação do modelo norte-americano. Conclusão.
Introdução
As discriminações inversas têm despontado como protagonistas dentre as propostas de solução do problema da “exclusão” social de indivíduos e grupos, que segrega parcela substancial da população brasileira. Essas políticas de tratamento diferenciado viabilizam o acesso a benefícios e direitos negados, o que tem suscitado questionamentos quanto à compatibilidade com o modelo universalista e isonômico da cidadania.
Pretende-se, com o presente estudo, examinar a compatibilidade das discriminações inversas, que atribuem vantagens competitivas a grupos ou indivíduos sujeitos a discriminações sociais específicas, a uma realidade brasileira de subintegração generalizada, que constitui um grave obstáculo à realização da cidadania.
Primeiramente, determinar-se-á o significado da expressão “discriminação inversa” e de seus aspectos. Em seguida, a justiça como igualdade será objeto de investigação à luz da teoria sistêmica, demonstrando-se a adequação das discriminações inversas à sua pretensão de universalidade, neutralizando as desigualdades sociais. Por derradeiro, tratar-se-á da aplicação das discriminações inversas no contexto brasileiro, excludente de parcela majoritária da população, o que impede a importação do modelo de “ação afirmativa” norte-americana, em razão das peculiaridades inerentes à realidade brasileira.
1 Delimitação do conteúdo das discriminações inversas
O exame das “discriminações inversas” demanda uma delimitação prévia do seu conteúdo. A “discriminação inversa” tal como será utilizada no decorrer do presente trabalho, bem como suas sinonímias “discriminação afirmativa” ou “discriminação positiva” não corresponde integralmente aos moldes abrangentes da norte-americana “ação afirmativa”.(1)-(2) Trata-se da institucionalização de meios jurídico-políticos de iniciativa do poder público ou de entes privados, por tempo determinado, concessivos de vantagens competitivas a certos indivíduos ou grupos discriminados socialmente, que viabilizam o acesso a benefícios e serviços específicos (negados), em detrimento de outros grupos, visando à integração jurídico-política generalizada e igualitária de todos à sociedade e ao Estado.(3)
As discriminações inversas atribuem vantagens a indivíduos discriminados, por meio de práticas que utilizam como um dos critérios o fator discriminador (como a característica étnico-racial), agregado a outros critérios, de acordo com um sistema flexível, isto é, sem a determinação rígida dos espaços a serem preenchidos por integrantes de grupos socialmente discriminados.(4) Estas práticas advêm de iniciativa do poder público, mediante a criação de diplomas legislativos compostos de normas reguladoras das referidas vantagens competitivas, decretos expedidos pelo Executivo e decisões proferidas pelo Judiciário; ou decorrem de iniciativa privada. As discriminações inversas são medidas voluntárias ou compulsórias, as primeiras realizadas de forma espontânea por órgãos vinculados ao Estado ou por entidades ou empresas de acordo com políticas integrativas próprias e as últimas por força de determinação legal ou judicial.
Correspondem a políticas e regulamentações jurídicas que criam distinções entre indivíduos e grupos fadadas a se extinguirem no decurso do tempo, desde que atingidos os objetivos para os quais foram criadas, isto é, exauridos os seus objetos, não devem ser mantidas, evitando violações ao princípio da igualdade.
Os destinatários das discriminações inversas são indivíduos e grupos sujeitos a discriminações sociais negativas específicas (grupos minoritários),(5) “excluídos” dos sistemas sociais por fatores relativos, principalmente, a etnia, gênero, “raça”, religião, opção sexual ou deficiência física ou mental. Os integrantes de grupos “marginalizados” demandam tratamento diferenciado visando a sua integração.
As discriminações inversas se justificam(6) pela existência atual de discriminação social negativa que impede o acesso de determinados indivíduos e grupos aos direitos fundamentais e ao exercício desses direitos. Nessa esteira, a discriminação inversa também se faz necessária pela discriminação social negativa pretérita que, no decorrer do tempo, impediu que indivíduos e grupos se apresentassem em patamar isonômico, alijando parcela da população do exercício de seus direitos por motivos principalmente relacionados à etnia, “raça”, ou religião. Acrescente-se ainda que as práticas discriminató'rias ampliaram os obstáculos à superação das barreiras impostas pela estrutura econômico-social brasileira aos indivíduos historicamente “marginalizados”, mantendo-os em patamar de inferioridade em relação aos indivíduos com pleno acesso aos direitos previstos constitucionalmente.(7)
As “ações afirmativas” (em sentido amplo) se fundamentam no princípio da igualdade, previsto no art. 5º, caput,(8) da Constituição, exigindo o tratamento desigual dos indivíduos em decorrência de discriminações sociais negativas,(9) evitando-se a interpretação literal do dispositivo. Ademais, a Constituição estabelece outras prescrições que asseguram direitos a grupos discriminados socialmente, como a proteção das culturas afro-brasileiras (art. 216, § 5º) e indígenas (art. 231 e 232 e art. 215, § 1º), o crime de racismo (art. 5º, inc. XLII), além da proteção ao mercado de trabalho da mulher (art. 7º, inc. XX) e da reserva de cargos e empregos públicos para indivíduos portadores de deficiência (art. 37, inc. VIII). Por fim, corrobora-se com Neves,(10) segundo o qual as discriminações inversas em favor de grupos desfavorecidos, ao visar à integração igualitária, se coadunam com os princípios fundamentais da Constituição, no atinente aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º, incisos III e IV. As discriminações inversas são compatíveis com as prescrições constitucionais ao assegurar o acesso aos benefícios negados a grupos ou indivíduos “marginalizados” por motivo de etnia, “raça”, opção sexual ou deficiência física, em decorrência de “exclusão” social motivada por discriminações ilegais.
2 Justiça como igualdade na teoria sistêmica
Primeiramente, o termo “justiça” constitui palavra ambígua e vaga, devendo ser delineado semanticamente de acordo com o emprego no presente trabalho. Segundo Niklas Luhmann, a justiça é concebida internamente ao sistema jurídico(11) como “adequada complexidade”(12) e como “consistência das decisões”,(13) nos planos externo e interno, respectivamente. A decisão jurídica justa é socialmente (contextualmente) adequada pela relação entre sistema jurídico e sistema social (“capacidade de resposta” do sistema jurídico) e juridicamente consistente (garantia de que casos iguais sejam decididos de forma igual e casos desiguais, de maneira desigual).(14) Pelo ângulo externo, trata-se de “abertura cognitiva adequada ao ambiente, capacidade de aprendizagem e reciclagem em face deste”; pelo interno, de “capacidade de conexão da reprodução normativa autopoiética”.(15)
Luhmann apresenta a justiça como fórmula de contingência do direito. A justiça, tal como as demais fórmulas de contingência (a escassez, para o sistema econômico, a felicidade, para o amor, por exemplo), constitui um princípio que fundamenta a si mesmo, sem necessidade de outra fundamentação.(16) A justiça se relaciona com a igualdade, o tratamento igual/desigual.
Parte-se para o exame do princípio da igualdade,(17) pois ao atuar como “preferência mais abstrata do sistema”, ou seja, como “último critério de atribuição do que está em conformidade (ou em discrepância) com o direito, em casos de disputa”,(18) também é denominado “justiça”. O princípio da igualdade está previsto no art. 5º, caput, da Constituição, devendo ser compreendido em sua integralidade, ou seja, não visa apenas assegurar a isonomia formal entre sujeitos e situações, mas admite as distinções entre os indivíduos.
O princípio da igualdade pressupõe a desigualdade, configurando-se como diferença igual/desigual, pois igualdade sem desigualdade não possuiria sentido e vice-versa. Difere do enunciado aristotélico(19) por constituir um esquema de observação que assinala o desenvolvimento de normas e preferências, embora não determine por si próprio a preferência pela igualdade.(20) A igualdade é um conceito normativo que se apresenta como forma que determina a diferença igual/desigual. A igualdade, convertida de forma à norma, permite a atuação do princípio inserido no direito autopoiético da sociedade moderna.(21) Esta transformação da igualdade de forma em norma possibilita conceber o tratamento igualitário como regra, cujas exceções surgem na hipótese de desigualdades evidentes, que exigem fundamentação.(22)
Nada obstante, Luhmann distingue a utilização política e jurídica do princípio da igualdade. A primeira exige o tratamento igualitário dos seres humanos, enquanto o direito exige que os casos sejam tratados como iguais.(23) O objeto em foco é a integração igualitária dos homens ao ordenamento jurídico e, em segundo lugar, o tratamento igualitário de casos e situações jurídicas. O princípio da igualdade não se limita à integração sistêmica igualitária, vez que a integração procedimental isonômica perpassa duas perspectivas: no plano sistêmico, versa sobre neutralização de desigualdades fáticas ao conceber jurídico-politicamente grupos e indivíduos e, sob o outro enfoque, exige-se da esfera pública pluralista o desenvolvimento da noção de recíproco e simétrico respeito às diferenças.(24)
O princípio da igualdade ocupa papel central no atinente à cidadania, concebida em sentido jurídico-político como inclusão social, isto é, uma “pluralidade de direitos reciprocamente partilhados e exercitáveis contra o Estado”.(25) A cidadania, ao propiciar o acesso generalizado a procedimentos constitucionais e aos benefícios que deles decorrem na sociedade, somente é viabilizada (internamente e pelo ângulo sistêmico) quando há generalizada inclusão jurídico-política, isto é, sem privilégios ou discriminações. Por outro ângulo, ressalta-se que a construção da cidadania ocorre a partir da esfera pública pluralista, que se vincula à “semântica social dos direitos humanos”, que primariamente não se relaciona a subsistemas sociais específicos.(26)
A questão concernente às discriminações inversas deve ser cautelosamente examinada, na medida em que a concessão de vantagens competitivas a grupos socialmente discriminados em situações determinadas implica prejuízo a outros grupos, levantando dúvidas quanto ao respeito ao princípio da igualdade. As discriminações inversas são compatíveis com a justiça, concebida como modelo normativo do tratamento igual/desigual, pois o princípio da igualdade deve considerar as diferenças reais entre casos, pessoas e situações,(27) desde que as regulamentações jurídicas e os programas políticos sejam observados em parâmetros estreitos, devidamente fundamentados.(28)
As desigualdades provenientes de discriminação social negativa possibilitam o emprego de discriminações jurídicas afirmativas, excetuando-se a igualdade em decorrência da desigualdade, tendo em vista que os indivíduos e grupos marginalizados não se sujeitam às mesmas condições dos demais indivíduos e grupos sociais. Nesse sentido, o princípio da igualdade releva as diferenças no plano da realidade social, além de se vincular ao princípio da proporcionalidade.
Dessa forma, viabiliza-se a justiça como igualdade, cuja pretensão de universalidade vincula-se à conquista histórica da humanidade ao acesso generalizado de indivíduos e grupos ao direito. Para tanto, devem ser neutralizadas as desigualdades sociais que privilegiam minorias, precipuamente econômicas e políticas, no campo do exercício de direitos fundamentais, por meio de discriminações inversas e de mecanismos compensatórios no tocante a direitos sociais.(29)
Portanto, os direitos provenientes de discriminações inversas não significam status ou privilégios, advindos de um tratamento diferenciado incompatível com o universalismo e a isonomia da cidadania, na medida em que garantem a integração igualitária de indivíduos e grupos na sociedade, ao viabilizar a superação dos entraves ao exercício de direitos fundamentais. Há pluralização da cidadania, sensível às distinções entre indivíduos ou grupos e às exigências de esferas autônomas de comunicação.(30)
3 As discriminações inversas no Brasil: dificuldades à implantação do modelo norte-americano
O presente tópico versa sobre as peculiaridades da implantação das discriminações inversas no contexto brasileiro, distinguindo-as das “ações afirmativas” nos moldes norte-americanos. Entende-se pela inviabilidade da importação acrítica do modelo proveniente dos Estados Unidos, país que iniciou as “ações afirmativas”,(31) à realidade brasileira, excludente da grande maioria dos indivíduos das prestações dos seus vários sistemas sociais.
A realidade brasileira destoa da situação observada nos Estados Unidos, ao se constatar que a questão empírica brasileira corresponde às condições para a implantação das ações afirmativas e, portanto, antecede o problema das consequências práticas, como vivenciada na práxis norte-americana. O Brasil corresponde a Estado inserto na modernidade periférica(32) que, embora tendo sofrido aumento da complexidade social e o desaparecimento da moral válida imediatamente para todos os planos sociais, tal como os demais países periféricos, não desenvolveu a contento a autonomia sistêmica segundo o princípio da diferenciação funcional,(33) tampouco constituiu uma esfera pública pluralista baseada na generalização da cidadania, como os países centrais, caracterizados pela hipercomplexidade unida à diferenciação funcional, que viabilizam o surgimento de subsistemas autopoiéticos.(34) A modernidade periférica, definida por Neves como “modernidade negativa”, deu origem a uma complexidade “desestruturada e desestruturante”, surgindo problemas sociais graves, com as esferas de comunicação atuando de maneira autodestrutiva e heterodestrutiva, causando prejuízos à integração sistêmica e à inclusão social.(35)
Neves apresenta um dos mais graves obstáculos à construção da cidadania, contundente nos países da modernidade periférica (incluindo o Brasil): a generalização de relações de subintegração e sobreintegração.(36)-(37) Não há realização da inclusão como acesso e dependência aos sistemas sociais. Diferentemente da modernidade central (como no caso norte-americano), cujo principal entrave à realização da cidadania remete a processos sociais específicos de discriminação (discriminação étnico-racial e “exclusão” social de grupos minoritários), no Brasil há “marginalização” social da grande maioria da população.(38) As discriminações resultam da estrutura econômico-social brasileira que corta de forma transversal todas as outras formas de discriminação, sobrepondo-se a discriminações sociais particulares, como a étnico-racial.
Os subintegrados não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal e não exercem os direitos fundamentais declarados na Constituição, que não influenciam no seu agir e vivenciar. Tais indivíduos se sujeitam a prescrições que prevêem deveres e responsabilidades impostas pelo instrumental coercitivo estatal. Os sobreintegrados, por sua vez, são os integrantes de grupos privilegiados que utilizam principalmente a burocracia estatal para bloquear a reprodução do direito. Os sobreintegrados são titulares de direitos, competências, poderes e prerrogativas, mas não se sujeitam aos deveres e responsabilidades, empregando o direito apenas como instrumento para consecução dos seus objetivos.(39)
Neves destaca que a problemática relação de subintegração e sobreintegração vincula-se à conexão entre “legalismo” e impunidade. O legalismo (como fetichismo da lei) se apresenta, na relação entre direito e realidade social, como mecanismo de discriminação social voltado aos subintegrados. Já a impunidade remete à prática de ilícitos por sobreintegrados acompanhada da inobservância da imposição das sanções prescritas.(40) Como assevera Neves, a generalização dessas relações destrói a Constituição como acoplamento estrutural entre direito e política e como “ordem básica da comunicação jurídica”, gerando efeitos alopoiéticos (“insuficiente concretização normativo-jurídica do texto constitucional”), principalmente no atinente ao sistema do direito, além do bloqueio à diferenciação funcional e à autorreferência sistêmica, que demandam a inclusão generalizada dos indivíduos na sociedade.(41) Essas relações no sistema constitucional prejudicam a cidadania, na medida em que políticas de sobrecidadania se sobrepõem ao direito. Portanto, a cidadania fica impedida de neutralizar as desigualdades econômicas e políticas.(42)
Os indivíduos e grupos discriminados socialmente em decorrência de suas etnias, gênero, opção sexual, deficiências, majoritariamente pertencem ao grupo dos subintegrados, inseridos na camada quantitativamente preponderante da sociedade brasileira, diferentemente dos países da modernidade central, cujas relações de subintegração e sobreintegração são secundárias.
A justiça não se compatibiliza integralmente com a generalização das relações de subintegração e a manutenção de privilégios de uma minoria (sobreintegrados), exigindo a generalização da “inclusão” social, assegurada a cidadania. No Brasil, as discriminações inversas atuariam para reduzir os obstáculos a certos grupos subintegrados discriminados, promovendo a ampliação da cidadania (com eficácia limitada), embora persistindo relações de subintegração.
Por conseguinte, nos países da modernidade periférica, como o Brasil, é necessária a implantação de políticas que assegurem os direitos sociais elementares aos grupos socialmente discriminados, indistintamente, o que reduziria o problema da subintegração de indivíduos que pertencem à parcela majoritária da população(43), viabilizando a realização do conceito normativo de justiça como igualdade. Nesse sentido, as políticas públicas que assegurassem direitos sociais elementares reduziriam a parcela de subintegrados da população brasileira, atingindo sobremaneira os indivíduos e grupos discriminados negativamente por motivos étnico-raciais, entre outros.
Nada obstante, a inclusão política e jurídica exige um excessivo custo, verificando-se empiricamente a opção por políticas de “ações afirmativas” (em sentido amplo) que visam assegurar não apenas direitos negados às minorias socialmente discriminadas, por motivos de etnia, “raça”, opção sexual, religião, deficiência, mas também à parcela majoritária da população que não tem acesso aos direitos fundamentais assegurados pela Constituição (subintegrados), como se observa no sistema de cotas para acesso ao ensino superior.(44) Dessa forma, essas discriminações inversas universalistas revelam a intenção de reduzir a pressão e acalmar os ânimos de grupos e indivíduos quanto a soluções eficazes para as relações de subintegração e sobreintegração, mantendo o status quo(45). Dessa forma, desvirtuam-se os objetivos das discriminações inversas ao enfocarem destinatários entre todos os grupos “marginalizados” e não apenas aqueles sujeitos a discriminações sociais específicas.
Adverte-se ainda que relevante fator contrapõe-se à aplicação direta das “ações afirmativas” norte-americanas à realidade brasileira, no tocante à discriminação étnico-racial. Nos Estados Unidos, a segregação legal entre negros e brancos prosperou até a década de 50, com a superação das leis Jim Crow(46) e da política separate but equal, que tornavam os negros subcidadãos. Nesse país o contingente negro era classificado e discriminado de acordo com ancestralidade negra, ou seja, indivíduos com até 1/8 de sangue de origem africana eram considerados negros,(47) de acordo com o princípio discriminatório one drop rule.
Embora o racismo inegavelmente se mantenha incrustado na sociedade brasileira,(48) possui peculiaridades que o distingue da realidade norte-americana. Aqui, o preconceito remete à aparência e não à ancestralidade, não tendo sido objeto de discriminação legal institucionalizada. Além disso, há um grande número de indivíduos denominados “mestiços”, o que torna a discriminação menos evidente e gera grandes transtornos na definição dos destinatários das discriminações afirmativas.
Por conseguinte, deve competir ao legislador brasileiro a eleição de critérios para definição dos destinatários das políticas de discriminação inversa. Como sugere Neves, o legislador poderá atribuir a função a conselhos federais, estaduais e municipais voltados à promoção dos direitos humanos ou a conselhos que se dirigem à solução da questão racial, integrados pela representação democrática da totalidade de grupos étnicos, além de assessoria técnica especializada.(49)
A inserção de políticas de discriminações afirmativas deve prezar pelo exame da realidade brasileira. Caso contrário, as estratégias de eliminação das discriminações sociais negativas surtirão apenas efeitos simbólicos (legislação-álibi),(50) gerando a identificação do governo, do Estado e do legislador com as políticas de inclusão de grupos marginalizados, além da edição de diplomas legais sem eficácia normativa.(51) A atuação do poder público não pode desconsiderar as reais condições do contexto brasileiro, principalmente as graves iniquidades sociais, que obstaculizam a concretização do ideal de generalização da cidadania, cuja solução perpassa a adoção de políticas públicas universalistas e não apenas o emprego de discriminações inversas que, embora atuem na redução de desigualdades sociais, não se encontram aptas a resolver definitivamente o problema da generalização de relações de subintegração e sobreintegração.
Conclusão
O debate sobre as discriminações inversas no Brasil tem impedido o surgimento de soluções efetivas para reduzir as iniquidades sociais entre os grupos e os indivíduos discriminados por motivos relacionados à etnia, “raça”, religião, opção sexual, entre outros. O poder público tem adotado um conjunto de práticas importadas da realidade norte-americana, cujas circunstâncias que geram as desigualdades são distintas. O contexto norte-americano, marcado pela integração de parcela majoritária da população e pela presença minoritária de indivíduos e grupos discriminados, possibilita a maior efetivação dos objetivos propostos pelas práticas discriminatórias inversas, pois visa à integração isonômica à sociedade primariamente dos grupos “marginalizados”, ampliando a cidadania. No Brasil prepondera quantitativamente a população subintegrada em decorrência da estrutura econômico-social, alijada do exercício dos direitos fundamentais, situação na qual a cidadania não se realiza. As discriminações inversas já implantadas têm como foco a totalidade de subintegrados indistintamente, gerando dificuldades para atingir os indivíduos submetidos a discriminações sociais específicas.
A solução proposta consiste na implantação de discriminações inversas acompanhadas de políticas públicas universalistas voltadas a direitos sociais clássicos, que atingirão a parcela majoritária da população (subintegrada), enquanto as primeiras se destinarão à parcela dos grupos e indivíduos discriminados socialmente, evitando assim que as discriminações afirmativas se limitem à camada reduzida da população “marginalizada”, cujos membros, em certo grau, já se encontram inseridos nos subsistemas sociais.
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Notas
1. O termo “ação afirmativa” foi empregado pela primeira vez pelo oficial da administração Kennedy, Hobart Taylor, ao versar sobre a abordagem de Kennedy na Comissão de Prática de Emprego Justas ( Fair Employment Practices Comission – FEPC), uma sessão no Projeto de Lei que veio a se tornar no governo de Johnson a Lei dos Direitos Civis de 1964 (WALTERS, R. Racismo e ação afirmativa. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 106-109).
2. Segundo Neves, a “ação afirmativa”, tal como nos moldes norte-americanos, corresponde ao conjunto de: “(...) regulamentações e intervenções compensatórias que implicam direitos sociais clássicos a serem gozados por todo indivíduo que se encontre na situação legal prevista abstratamente, sem que se estabeleça qualquer vantagem competitiva direta para um grupo em relação a um mesmo benefício.” (NEVES, M. Estado Democrático de Direito e discriminação positiva: um desafio para o Brasil. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 259). Skidmore apresenta distintas formas de “ações afirmativas”: a primeira consiste na preferência por um integrante de um grupo discriminado socialmente em uma disputa entre dois candidatos igualmente qualificados; a segunda, o aumento de candidatos bem-sucedidos entre os grupos discriminados; a terceira, a adoção de uma cota ou razão numérica de acordo com alguma forma de representação, tal como a verificação da quantidade de indivíduos discriminados entre a totalidade de pessoas de uma dada localidade ou o número de sujeitos discriminados no grupo de candidatos aptos e assim estabelecer a cota (SKIDMORE, T. E. Ação afirmativa no Brasil? Reflexões de um brasilianista. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 130).
3. NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 264.
4. O sistema de “cotas” implantado por universidades federais brasileiras é exemplo de “ação afirmativa”. Trata-se de uma espécie de programa que estipula a reserva de parcela das vagas a candidatos que preencham determinadas condições, definidas de acordo com critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, por exemplo. Essa sistemática não é indene a críticas, encontradas até mesmo no país que a originou, como no caso Regents of the University of Califórnia v. Allan Bakke. Segundo o relato de Dworkin, a Corte Suprema norte-americana não se pronunciou de forma pacífica quanto à questão, destacando-se o voto do Justice Powell, ao declarar a inconstitucionalidade do programa, sustentando a possibilidade de emprego do critério racial com o intuito de ampliar a diversidade do ambiente universitário, desde que não constituísse o único critério, além da exigência de que o método não adotasse um número fixo de vagas para membros de minorias (DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 437-469).
5. Consoante lecionam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, o termo “minoria” corresponde aos grupos sociais que, independentemente de sua quantidade, se apresentam “qualitativamente em uma situação de inferioridade, seja por fatores sociais, técnicos ou econômicos”. E concluem: “a vulnerabilidade é o critério central para a definição e identificação das minorias”. (TEPEDINO, G.; SCHREIBER, A. Minorias no Direito Civil Brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil. São Paulo, v. 10, p. 135-155, 2002. p. 136).
6. Skidmore apresenta três justificativas que fundamentam o emprego de “ações afirmativas” nos Estados Unidos. A primeira consiste na compensação pela discriminação sistemática realizada contra minorias e mulheres na sociedade norte-americana; a segunda, na ampliação da diversidade na sociedade, tendo em vista que a tomada de decisões exige o conhecimento de todos os aspectos sociais, o que não é possível com o monopólio de homens brancos; a terceira, no aumento dos exemplos de ascendência social de minorias e mulheres, encorajando novas gerações a atingir posições outrora inalcançáveis. (SKIDMORE, T. E. Op. Cit., p. 128-129).
7. Outra justificativa apresentada refere-se à exigência de maior presença de grupos discriminados sub-representados nas diversas esferas que compõem o ambiente da sociedade, correspondendo à heterogeneidade social, marcada por diversidade de crenças, etnias, valores e interesses no campo social e político, almejando-se a integração igualitária de todos na sociedade, sem o intuito de impor uma homogeneidade da sociedade, respeitando as desigualdades fáticas entre indivíduos e grupos.
8. “Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...).”
10. NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 263.
11. Luhmann afasta a teoria sistêmica de concepções axiológicas ou morais do direito. Impede a incorporação monopolizante da justiça pela ética, o que demandaria a absorção da ética pelo direito. Portanto, o direito juridifica normas morais ao se referir a elas, comprovando por meio de textos jurídicos (LUHMANN, N. El derecho de la sociedad. 2. ed. México: Herder, 2005. p. 278), e não as empregando diretamente sem a filtragem por seu código de preferência e programas próprios.
12. LUHMANN, N. La differenziazone del diritto. Mulino: Società editrice il Mulino, 1990. p. 330.
14. LUHMANN, N. La differenziazone..., p. 333.
15. NEVES, M. A constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 139.
16. LUHMANN, N., El derecho…, p. 284.
17. Como observa Neves, o princípio da igualdade neutraliza desigualdades no âmbito do exercício de direitos, consistindo em “igualdade de direito” e não “igualdade de fato”. Não se trata de igualdade conteudística de direitos e poder de indivíduos ou grupos, porém, a “integração ou acesso igualitário às instituições e aos procedimentos jurídicos”(NEVES, M. Justiça e diferença numa sociedade global complexa. In: SOUZA, J. (org.), Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 334). Tampouco o princípio da igualdade visa à homogeneidade social, pois seu surgimento e concretização pressupõem heterogeneidade social e complexidade (NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 167).
18. LUHMANN, N., El derecho…, p. 167.
19. Enuncia Aristóteles: “Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais)” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 108-109).
20. LUHMANN, N., El derecho…, p. 167.
21. NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 261.
22. LUHMANN, N., El derecho…, p. 168.
24. Para tanto, os procedimentos constitucionais devem ser “sensíveis ao convívio dos diferentes”, viabilizando um tratamento jurídico-político isonômico (NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 170).
25. NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 175.
27. NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 173.
28. LUHMANN, N. El derecho…, p. 168.
29. NEVES, M. Justiça e diferença..., p. 340.
30. NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 178
31. Em 06 de março de 1961, Robert Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, criou a Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Emprego (Equal Employment Opportunity Comission), pela Ordem Executiva nº 10.925, com o objetivo de revisar as políticas segregacionistas estatais, tornando-as neutras. (KAUFMANN, R.F.M. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparada do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 169). Lyndon Johnson criou a Ordem Executiva nº 11.246 em continuidade à política de não discriminação de Kennedy, utilizando a expressão “ação afirmativa” ao estabelecer que os particulares que celebrassem contratos com o Executivo deveriam cumprir práticas não discriminatórias (KAUFMANN, R.F.M. Op. Cit., p. 171; LEONARD, J.S. O impacto da antitendência dos EUA e a ação afirmativa na desigualdade social. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 88).
32. Neves emprega o modelo “centro/periferia” ao se referir ao desenvolvimento da sociedade moderna, demonstrando a existência de problemas distintos para as organizações político-jurídicas. Emprega a distinção ao observar que o advento da sociedade moderna se vincula à intensa desigualdade econômica no desenvolvimento entre regiões, gerando consequências na reprodução da totalidade dos sistemas sociais, principalmente o político e o jurídico, uma vez que estatalmente organizados. Embora correspondam a conceitos típico-ideais na vertente weberiana e, portanto, não encontrados na realidade social tal qual se apresentam nas formas puras, servem como esquemas de interpretação ao enfatizarem unilateralmente relevantes aspectos do objeto examinado. Neves não desconhece que a atual sociedade moderna é “multifacetada”, possibilitando a utilização do referido esquema em vários níveis, tampouco que os diferentes desenvolvimentos da sociedade mundial assinalam a mobilidade das posições de centro e periferia, além de tendências à periferização do centro (NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 226-228; NEVES, M. A constitucionalização simbólica..., p. 170-173).
33. A concepção de modernidade de Luhmann, marcada pela hipercomplexidade acompanhada de diferenciação funcional, com o surgimento de sistemas sociais autopoiéticos, não se realizou suficientemente nos países periféricos. Isto não permite afirmar que constituam sociedades tradicionais, pois estão integrados aos países da modernidade central e entre si no mercado mundial e na realização de relações internacionais (NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 17-18).
34. NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração: a cidadania inexistente. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, 1994, p. 264.
35. NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 237-238.
36. NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração..., p. 253; NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 268-269; NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 248-256; NEVES, M. A constitucionalização simbólica..., p. 76-8.
37. Luhmann passa, em seus trabalhos, a retratar a inclusão tomando como referencial a dependência e não o acesso, distinguindo em suas últimas obras “setor de inclusão” (no qual os seres humanos são contados como pessoas) e “setor de exclusão” (em que os homens são concebidos simplesmente como corpos), o primeiro debilmente integrado e o segundo fortemente integrado (LUHMANN, N., El derecho…, p. 662-663). Luhmann entende integração em sentido negativo, na forma de dependência, como redução dos níveis de liberdade das partes integrantes (Ibid., p. 662).
38. NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 267. A “exclusão” está presente em ambas as modernidades, porém, na modernidade central se apresenta como secundária, enquanto na modernidade periférica trata-se de exclusão primária, de maior gravidade, pois os sistemas sociais são em sua maioria excludentes.
39. NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 250.
41. Segundo Neves, a diferenciação funcional e a autorreferência sistêmica exigem a inclusão generalizada da população nos vários subsistemas sociais. Consequentemente, opta por uma interpretação que limita criticamente a construção luhmanniana que caracterizaria a sociedade moderna (mundial) pelo primado da diferenciação funcional e cuja principal diferença intrassocietariamente seria “sistema/ambiente”. Portanto, a exclusão em massa impediria o modelo luhmanniano. Luhmann refaz sua formulação no tocante à diferença “inclusão/exclusão”, entendendo se tratar de uma metadiferença ou metacódigo mediatizador de todos os demais códigos (LUHMANN, N., El derecho…, p. 661; LUHMANN, N. La sociedad de la sociedade. México: Herder, 2007, p. 501), o que para Neves viabilizaria admitir que a sociedade mundial se diferenciaria primariamente por esse binômio (NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã..., p. 251-252).
42. NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração..., p. 266.
43. As políticas públicas universalistas, ao garantirem a inclusão social generalizada, implicariam a redução da parcela de indivíduos e grupos discriminados negativamente (por motivo de etnia, “raça”, opção sexual, deficiência) entre os subintegrados, pois a universalização de direitos fundamentais como o acesso à educação, à saúde, à habitação e ao emprego abrangeria indiscriminadamente os subcidadãos, gerando o acesso a todos os indivíduos, inclusive de grupos específicos, que são os maiores atingidos por políticas de “exclusão” social. Cf. GUIMARÃES, A.S.A. A desigualdade que anula a desigualdade. Notas sobre a ação afirmativa no Brasil. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 239. MARX, A.W. A construção da raça no Brasil: comparações históricas e implicações políticas. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 166. ANDREWS, G.R. Ação afirmativa: um modelo para o Brasil? In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 143.
44. Estas práticas visam assegurar o acesso às instituições de ensino superior a indivíduos e grupos “marginalizados” principalmente por motivos étnico-raciais e econômico-sociais. Nesse último caso, a reserva de vagas para candidatos advindos de escolas públicas, os desigualando aos egressos do ensino particular, diminuiria as pressões por políticas públicas abrangentes que solucionem a questão definitivamente (pelo menos substancialmente), reduzindo a visibilidade sobre a incapacidade do Estado de oferecer aos seus subcidadãos ensino público fundamental, que os dotaria de conhecimentos suficientes para competir isonomicamente. Esse programa, nos moldes já implantados, não consiste propriamente em uma “ação afirmativa”, ao atingir indiscriminadamente os sujeitos “excluídos” das prestações dos subsistemas, e não os grupos sujeitos a discriminações sociais específicas.
45. As relações de “subintegração e sobreintegração” são mantidas por sobreintegrados que procuram manter as vantagens e os privilégios, obstaculizando a obtenção de benefícios negados a subintegrados, garantindo a permanência de sua dominação (NEVES, M. Entre Subintegração e Sobreintegração..., p. 262).
46. Mesmo após a abolição da escravatura nos Estados Unidos não houve inclusão do negro como um igual, em que pese a 14ª Emenda assegurar a proteção isonômica perante as leis. Somente com as políticas de não discriminação iniciadas por Robert Kennedy e Lyndon Johnson o panorama discriminatório norte-americano foi paulatinamente sofrendo alterações. Para um contexto histórico das relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil: KAUFMANN, R.F.M., Op. Cit., p. 31.
47. OLIVEIRA, L.R.C. de. Ação afirmativa e equidade.In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997. p. 151.
48. Para Andrews, o racismo brasileiro, com caracteres distintos do norte-americano, possui impacto e força histórica comparável à segregação norte-americana ou ao apartheid sul-africano (ANDREWS, G.R. Op. Cit., p. 144).
49. Nada obstante, a heterogeneidade étnico-racial variável de acordo com a região brasileira exige a concretização de discriminações afirmativas por estados e municípios, competindo à União a criação legislativa de instrumentos para a realização desses programas e a definição dos critérios classificatórios e de acesso aos benefícios, de acordo com a realidade intrínseca de cada região brasileira (NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., 1997, p. 266).
50. A legislação-álibi se insere na classificação proposta por Kindermann de legislação simbólica, que apresenta três diferentes tipos: a) que confirma valores sociais, b) que apresenta compromissos dilatórios e c) a legislação-álibi. O primeiro se apresenta quando é exigida uma tomada de posição do legislador a respeito de conflitos sociais sobre valores, o qual reconhece a prevalência de certa carga valorativa relacionada à vitória de um dos grupos envolvidos no debate, colocando em segundo plano a eficácia normativa da lei. O segundo tem a função de postergar a solução de conflitos sociais, por meio da edição de lei, aprovada consensualmente pelas partes, considerada a ineficácia do diploma normativo. O terceiro é empregado com o objetivo de criar nos cidadãos a confiança nos sistemas político e jurídico. O legislador veicula diplomas normativos em decorrência de pressões dos cidadãos visando à satisfação de suas expectativas, embora não existam condições para a efetivação das normas previstas (Ibid., p. 270-271; NEVES, M. A constitucionalização simbólica..., p. 33-41).
51. NEVES, M. Estado Democrático de Direito..., p. 271-272.
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