As decisões do STF e do STJ entre a integridade e a análise econômica do Direito |
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Autora: Giovanna Mayer Juíza Federal Substituta, Mestre em Direito Econômico pela UFPR publicado em 29.10.2010
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Resumo Palavras-chave: Análise Econômica do Direito. Decisões judiciais. Integridade. Sumário: Introdução. 1 Direito e Economia: um diálogo necessário. 2 O diálogo Posner versus Dworkin. 3 A AED no Brasil: aplicações no STF e no STJ. 4 Racionalidade econômica institucionalizada na lei: a suspensão de segurança. Conclusão. Referências bibliográficas.Introdução Direito e Economia são interligados. São raros os fatos e atos jurídicos que não são quantificáveis e que não possuem repercussão econômica. Verificam-se traços econômicos em grande parte dos elos sociais: a filiação gera direitos sucessórios, os quais são patrimoniais; o casamento é um contrato, o que revela sua faceta econômica, sobretudo se levarmos em conta que se trata de um contrato de longo prazo e incompleto; as artes contemplativas geram bens, os quais podem assumir grandes valores e direitos autorais; o estudo, que custa tempo e dinheiro, agrega valor ao indivíduo, ainda que seja para o seu próprio interesse pessoal. Além dessa percepção, some-se a constatação de que o homem é um ser racional, que maximiza as utilidades nos mais diferentes comportamentos sociais. Mesmo de maneira inconsciente, responde a incentivos. Há estudos que comprovam, por exemplo, como a prática do aborto diminui os índices de criminalidade e como, para os pais cuidadosos, é mais perigoso deixar uma criança brincar em uma casa com piscina do que deixá-la divertir-se em uma casa cujos donos possuem armas.(1) Tudo isso leva à percepção de que o homem não vive apenas sob a égide do contrato social. É um homem econômico, que também responde a estímulos.(2) Pegue-se o exemplo das sanções imputadas a indivíduos que dirigem sob o efeito de álcool. Há alguns meses, a direção nessas condições era tolerada em certa medida e não acarretava a perda da carteira nacional de habilitação, a menos que houvesse um acidente. Hoje, se houver a devida fiscalização, quase não há tolerância, pois, conforme a dosagem alcoólica, o cidadão pode perder sua habilitação. Com o agravamento da lei, o cidadão efetuou um cálculo de custo/benefício. As consequências foram a diminuição de acidentes e os custos com saúde.(3) Mas conceber o homem como um ser racional, que reage a estímulos, não significa que ele deseje maximizar seus lucros a qualquer custo. Não há lugar, portanto, para o utilitarismo puro e simples. E é aqui que florescem as equivocadas críticas ao movimento Direito e Economia, ou Análise Econômica do Direito, doravante AED. Há um temor de que o Direito se dispa de seu objetivo tido como central – o justo – para vestir uma roupagem de eficiência, desprovida de questões morais e éticas. O objetivo do presente trabalho é analisar, tendo como pano de fundo o debate Posner versus Dworkin, as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que envolvam a questão Direito e Economia. Após traçar breves linhas sobre a AED, o debate Posner versus Dworkin será analisado e, por fim, será realizada uma leitura das decisões do STF e do STJ que contenham as expressões Direito e Economia para verificar se existe ou não uma inclinação das Cortes Superiores no Brasil para uma ou outra tendência, ou seja, se há uma persecução pelo princípio integrativo ou se há juízos de conveniência, informados por uma racionalidade econômica, nas decisões envolvendo economia. Para tanto, é preciso conhecer no que consiste esse diálogo entre Direito e Economia para então verificar a sua aplicabilidade nas decisões do STF. 1 Direito e Economia: um diálogo necessário A interlocução do Direito e da Economia possui algumas características as quais podem assustar o operador do direito. O exemplo a seguir, do mercado de bebês, é emblemático: nossa sociedade não consegue conviver com ideias que ataquem a moral mediana, tampouco consegue discutir tais questões com outro enfoque, além do que estamos acostumados.(4) O apreço de Posner, talvez o maior divulgador da AED, pela Economia é tão grande que ele propôs uma análise mercadológica da adoção. Ele vê a adoção como método de transferência da custódia de crianças de famílias que não investiriam tanto no desenvolvimento do menor para famílias dispostas a realizar tais investimentos. Não se trata, portanto, de uma questão de filiação, mas de investimento. No entanto, com o planejamento familiar – incluídos os métodos contraceptivos e de fertilização artificial –, há uma diminuição das crianças colocadas à adoção, bem como a diminuição de famílias que querem adotar, sem que isso represente uma diminuição da demanda. Ou seja, por mais que haja meios de planejamento familiar, sempre haverá casais ou pessoas dispostas a adotar. Além dessa demanda constante, Posner constata que nos Estados Unidos da América a proibição de venda de direitos parentais não impede que haja um mercado negro de bebês. Argumenta que, em virtude da ilicitude do negócio, os preços são muito elevados. Sugere a instituição e regulação do mercado de bebês para evitar essa elevação de preços, o que significa, em outras palavras, a possibilidade de venda de direitos parentais. Conclui que há necessidade de um mercado regulado, porque as pessoas dispostas a pagar por um bebê provavelmente investirão – financeira e afetuosamente – mais na criança. Avalia que “a quantidade substancial de dinheiro para obter uma criança atesta a seriedade com que o comprador deseja a criança”. O absurdo do exemplo da venda de bebês causa, à primeira impressão, a rejeição de toda uma teoria. Afinal, quem irá compactuar com algo que traz o pior dos valores à tona: a “precificação” da vida?(5) Note-se que em nenhum momento Posner leva em conta o afeto, a criação de vínculos socioafetivos, a relação parental. Tudo é uma questão de investimento, de preço, de demanda. Por isso, em virtude desse exemplo, refuta-se toda a AED (sem levar em conta que as ideias de Posner foram embrionárias), apenas para jogar luz sobre determinada nuance de um problema. Cabe ao operador analisar criticamente todas as cores do movimento, de modo a verificar se há algum ensinamento ou instrumental aproveitável. É essa a tentativa deste capítulo: revelar no que consiste a AED. A análise econômica do Direito significa a utilização de instrumentos de economia para a resolução de problemas jurídicos. Não há o afastamento total do Direito, pois, do contrário, seria uma análise econômica; tampouco há a aplicação pura do Direito, sem levar em conta o que diz a Economia. Na AED, por exemplo, há um abrandamento do método clássico de análise jurídica, o qual parte da premissa de que as relações em que há atos ilícitos ou com abuso de direito ensejam uma reparação (art. 927 do Código Civil), de modo que a relação posta sob análise do operador é uma relação de ganha-perde. Segundo a AED, é necessário examinar os custos e os benefícios para todas as partes envolvidas na relação para só então decidir qual a solução mais justa, que deverá conter uma apreciação sobre o uso mais eficiente de determinado bem. É aqui que reside uma das principais críticas de Dworkin, dirigida ao movimento pragmático como um todo. Para ele, quando os defensores do pragmatismo – e aqui se insere a AED – defendem que não há direito preexistente, há uma desconstrução de todo o passado, da tradição, do direito como integridade, o qual é elemento central de sua teoria. Mas tal raciocínio – o de que toda questão indenizatória deve envolver a ponderação de custo-benefício – não se aplica apenas ao direito de propriedade e responsabilidade civil. No direito penal há o princípio da dúvida em favor do réu (in dubio pro reo), segundo o qual, havendo qualquer dúvida sobre a materialidade e autoria do crime, o juiz deve julgar em favor do réu, absolvendo-o ou subsumindo a sua conduta em tipo penal mais brando. Além de não ser justo, sancionar a conduta de alguém sem haver a certeza de que esse indivíduo cometeu um crime não é eficiente. Abstraindo a questão da justiça e da moral, quais os ganhos para a sociedade em condenar alguém contra quem não se tem certeza se cometeu ou não um crime? Perdas para o indivíduo, para sua família e para a própria sociedade e a Justiça, as quais terão seu respeito e a força institucional diminuídos ao julgar mal. Abandona-se a ideia de que o retorno ao status quo ante é a situação desejável em casos de ilícito. A tutela inibitória nem sempre será a melhor saída, razão pela qual há um abrandamento do artigo 461 do CPC. Como a AED visa a redução dos custos de transação, a efetivação de uma tutela inibitória pode ser mais custoso do que deixar as partes chegarem a um acordo, inclusive monetário, sobre determinado direito. O Direito abandona sua faceta exclusivamente retrospectiva para transformar-se também em incentivo. Tais incentivos podem servir para a mudança de comportamento, para a redução de custos e, até mesmo, para aumentar o grau de segurança e previsibilidade das ações humanas. Afinal, o ser humano é racional e responde a incentivos. Além disso, por conceber a norma como incentivo, o movimento é contrário à “tácita e ingênua” teoria predominante: a de que os indivíduos modelam seus comportamentos segundo os padrões estabelecidos pela norma jurídica.(6) A norma jurídica, segundo a AED, é apenas uma variável levada em conta na ação. As perdas e ganhos advindos da observância da norma são outras variáveis consideradas. Com todas essas características, o Direito perderia seu valor principal, que é a busca pelo justo,(7) passando a utilizar a eficiência alocativa(8) ou a riqueza como diretriz. E é justamente essa particularidade da AED que merece um estudo mais aprofundado. Isso porque, no nosso sistema da tradição romano-germânica, não pode haver um abandono do que prescreve a Constituição. Como mencionado acima, não se trata de uma análise econômica, tampouco uma análise jurídica, mas uma análise econômica do direito. Do contrário, sem o elemento “direito”, em uma relação pura de custo-benefício, pode ser mais eficiente matar todos os doentes que os curar. No entanto, neste caso, a racionalidade jurídica barra a racionalidade econômica,(9) a qual depende do Direito e do justo para que não vire uma constante. Além disso, não se pode ignorar que a AED foi criada em um sistema da common law, o que, aliado a uma “incompatibilidade óbvia das elucubrações de Posner com a dogmática jurídica brasileira”, deve servir de alerta para o operador do Direito, o qual não pode simplesmente importar modelos vindos do exterior.(10) Defende-se, portanto, que a AED é um instrumento para a reflexão de questões colocadas diariamente ao operador jurídico. No entanto, não é, tampouco pode ser, o único instrumento. Isso porque, dentro do sistema jurídico, é preciso a persecução de decisões que apliquem o “direito como integridade” de Dworkin. Não se pode desconsiderar, no entanto, que, às vezes, é necessário utilizar elementos de economia para chegar a uma decisão mais justa. É esta a concepção de AED que será aplicada no presente trabalho: a que alia o Direito e a Economia. 2 O diálogo Posner versus Dworkin Richard Posner parte da premissa que o mundo é um local de recursos limitados e, por isso, o homem deve fazer escolhas: escolher entre o lazer e o trabalho, entre alimentar-se com um alimento com gordura hidrogenada ou com uma salada, entre dedicar seu tempo ao estudo ou aos afazeres domésticos. Toda a escolha é racional: não há espaço para a inconsciência. Além disso, as escolhas visam à maximização de riquezas.(11) O argumento central da teoria de R. Posner consiste na ideia de que a utilidade que um determinado bem representa para um indivíduo pode ser representada pelo quanto ele deseja pagar por esse objeto.(12) Alguns exemplos podem ser úteis para demonstrar seu pensamento. Um tênis de corrida, por exemplo, para um maratonista, possui um valor X. É o quanto ele está disposto a pagar para adquirir esse tênis, pois sabe os benefícios que um bom tênis pode trazer para suas articulações e para o seu rendimento. Uma pessoa sedentária, para a qual o tênis não possui a menor utilidade, estaria disposta a pagar X/10 para obter o mesmo tênis. R. Posner, no entanto, rejeita o conceito puro de utilidade, trazido do utilitarismo, pois apenas a felicidade e o bem-estar não completam o indivíduo. Além disso, reconhece que o conceito de utilidade e de maximização das riquezas não diz nada sobre a distribuição dessa riqueza e sobre sua justiça. Com enfoque nesses pontos, o que o estudo da AED pode fazer é auxiliar na análise dos custos e das ações que devem ser tomadas para modificar determinada distribuição de riqueza.(13) Posner afirma que o valor econômico de algo é traduzido no quanto alguém deseja pagar por um determinado bem e, se já possui esse bem, quanto deseja para vendê-lo. A maximização de riquezas significa atribuir direitos de propriedade a quem mais valoriza tais bens.(14) Apesar de Dworkin possuir o mesmo conceito de maximização de riquezas de Posner, ou seja, apesar de afirmar que ela “é alcançada quando bens e outros recursos estão nas mãos dos que a valorizam mais, e alguém valoriza mais um bem se puder e estiver disposto a pagar mais em dinheiro (ou no equivalente do dinheiro) para possuí-lo”,(15) sua conclusão é diferente. Ao privilegiar a maximização das riquezas, o movimento da AED daria, segundo Dworkin, a impressão de que seus doutrinadores desejam ver o mesmo comportamento das empresas nas outras relações sociais.(16) No entanto, o próprio Posner reconhece a insuficiência do termo “eficiência”, o qual significa a “alocação de recursos na qual o valor é maximizado”.(17) Reconhece, ademais, que a economia não dá respostas se a distribuição de renda é justa ou injusta. No entanto, isso não pode afastá-la da análise de quanto custa modificar a distribuição existente ou quanto custará a implementação de determinada lei.(18) Cotejar as ideias de Dworkin e Posner é uma tarefa árdua, sobretudo porque ambos partem de premissas diferentes e veem as decisões judiciais de formas diametralmente opostas. Enquanto para Posner, o juiz da common law é o promotor da eficiência,(19) a qual exige decisões diferentes e contingentes, para Dworkin há apenas uma solução ótima, extraída de uma norma jurídica, a qual deve buscar a integridade, promovendo a equidade.(20) O próprio Dworkin parece reconhecer que esse momento ótimo não é tarefa para os homens comuns, tanto é que denomina o seu juiz de Hércules.(21) A partir desse momento, revela-se o embate entre a prática e a teoria, por vezes, inconciliáveis. As racionalidades que informam seus pensamentos são diferentes e, portanto, não podem ser contrapostas. No entanto, ambos não perceberam que se trata de duas perspectivas antagônicas e não comparáveis e mesmo assim travam um debate intenso.(22) Dworkin sustenta não haver qualquer explicação do motivo pelo qual a maximização de riquezas deve ser o objetivo de todas as decisões judiciais. Não há, ademais, consenso se a maximização de riquezas é um componente de valor ou apenas um instrumento de outros valores sociais perseguidos pela sociedade.(23) Dworkin entende que a riqueza é um componente de valor, ou seja, uma sociedade com riqueza não é, necessariamente, melhor que outra, pois outros valores podem estar prejudicados, como, por exemplo, a distribuição dessa riqueza.(24) É contrário, portanto, à ideia de que a maximização de riquezas é instrumental. Isso porque, caso utilizado como instrumento para o atendimento de outros valores, os resultados podem ser indesejáveis, diferentes da equidade e da justiça,(25) sem atenção ao direito como integridade. Dworkin pondera que riqueza social não é um valor em si, mas um instrumento que pode auxiliar no alcance de outros valores, tais como sucesso e felicidade. Isso porque “o ganho de riqueza social, considerado por si só e separadamente de seus custos ou de outras consequências, boas ou más, não é absolutamente um ganho”.(26) E aqui residiria o equívoco do movimento da AED. Segundo Dworkin, não há motivo algum que faça crer que uma sociedade mais rica é melhor que uma sociedade como menor riqueza.(27) E isso é coerente com o seu pensamento, o qual procura uma decisão jurídica, baseada em princípios do direito, de modo que essa solução seja forte e, portanto, ótima. Se Dworkin procura a teoria forjando uma prática consubstanciada no juiz Hércules, Posner procura a prática, construindo uma teoria a partir dela. Com isso, percebe-se que é preciso ter cuidado quando se critica a AED com vistas a um determinado marco teórico. Não se podem pinçar apenas alguns aspectos de um e de outro teórico, sem verificar quais as suas intenções com determinada teoria. O equilíbrio entre as proposições parece ser o melhor caminho, sem esquecer que na AED não se pode prescindir do direito, tampouco da economia. Além disso, com a humildade de quem nunca será um Hércules, o aplicador do Direito deve ter consciência de quando a AED pode ser aplicada, quando sua aplicação pode ser desastrosa e quando ela pode agregar qualidade a uma decisão. É uma análise que deve ser feita no caso concreto. 3 A AED no Brasil: aplicações no STF e no STJ Uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça pode indicar se a AED está ou não presente na fundamentação das decisões da Corte. A primeira decisão que pode trazer indícios da aplicação da AED pelo STF é a decisão sobre os cruzeiros bloqueados pelo Plano Collor. Na Medida Cautelar ajuizada na ADI 534/DF houve um ensaio de alguns Ministros – Celso de Mello, Paulo Brossard e Néri da Silveira – para determinar a liberação dos cruzeiros bloqueados. Os Ministros mencionados ficaram vencidos. No entanto, nota-se que o diálogo entre o Direito e a Economia foi utilizado como fundamento de alguns votos, em ambos os sentidos, ainda que de forma subconsciente, ou seja, não há qualquer indício de que os Ministros sabiam que estavam aplicando alguns preceitos da AED, mas o fizeram de forma empírica. O Relator da Medida Cautelar, Min. Celso de Mello, realizou uma digressão doutrinária sobre o direito de propriedade, afirmando que a indisponibilidade de ativos financeiros configuraria violação ao direito de propriedade. No entanto, o Min. Celso de Mello foi além: analisou que com a declaração de inconstitucionalidade da lei, a devolução de ativos financeiros não teria grande impacto econômico, pois já tinha sido efetuada a restituição de grande parte dos valores: “Dados oficiosos ministrados pela douta Advocacia-Geral da União, em memorial apresentado a esta Corte, evidenciam que o valor bloqueado, em 19.06.94, atinge a NCz$ 8 trilhões e 187 bilhões, ou seja, pouco mais de um trilhão e quatrocentos bilhões de cruzados novos, sobre o valor aferido em março, o que constitui, numa perspectiva macroeconômica – e tendo presente, ainda, a existência de instrumentos regulatórios da liquidez na economia, postos à disposição do Governo Federal –, uma diferença pouco significativa, especialmente se se considerar que tal valor agrega os correspondentes juros e índice de correção monetária. A análise econômica de uma possível decisão favorável não parou por aí. O Min. Ilmar Galvão argumentou que a liberação dos ativos por parte do Judiciário poderia frustrar o Plano Econômico e os danos seriam imensuráveis. Já o Min. Paulo Brossard pontuou que a questão jurídica trazida nos autos não era “excepcional”, reputando que, diante do confisco de ativos, o assalto ao trem pagador era mera “história da carochinha”. Brossard, em seu voto que concedia a liminar, distinguiu a diferença entre a perspectiva ex ante e ex post, referentes à economia e ao direito. Confira-se: “Afirmou-se, por exemplo, que a liberação do dinheiro sequestrado acarretaria deletérias consequências na economia do país. Além de não ser jurídica, a alegação dá como certo o que não foi demonstrado. Encerra típico círculo vicioso. A essa alegação seria de opor outra, com maior verossimilhança, segundo a qual o bloqueio causou dolorosas consequências na economia do país e na vida das pessoas – o desemprego, a recessão, a queda do produto interno bruto, a insegurança, a destruição do crédito público, sem eliminar a inflação. De qualquer sorte a alegação terrorista além de não ser jurídica, ficou indemonstrada. Não passou e não passa de uma afirmação e nada mais.”(29) Apesar de existirem votos favoráveis à liberação do dinheiro, na ação principal, que era a ADI 534/DF, o STF não se pronunciou sobre a constitucionalidade da Lei, pois o ajuizamento tardio da ação declaratória de inconstitucionalidade fez com que a questão chegasse ao Tribunal depois que os efeitos decorrentes da lei já tivessem sido exauridos. No entanto, do voto do Min. Celso de Mello, abre-se a brecha para que todos os que se sentiram prejudicados com o ato governamental ajuizassem demandas com esse propósito.(30) Portanto, em que pese o ensaio de alguns Ministros em possibilitar a liberação dos valores bloqueados, como não houve o deferimento da liminar, pode-se concordar com Lima Lopes quando afirma que o STF “recusou-se a decidir a questão da constitucionalidade do programa de estabilização e não correu o risco de decidir sobre essa séria matéria com consequências imprevistas”.(31) Esse exemplo da liberação dos cruzeiros bloqueados pode não conter elementos explícitos de AED, mas indica uma sinalização de que, às vezes, nem sempre o Direito dá o tom, sozinho, nas decisões do STF. A análise das consequências do ato judicial é uma das facetas da AED que não pode ser desconsiderada. É preciso, no entanto, focalizar como está a aplicação da AED pelo STF na atualidade. Por meio do mecanismo de buscas disponível no site do STF foram colocadas as expressões “análise econômica do Direito” e “AED”, as quais não receberam nenhuma indicação de correspondência de documentos no sistema. Partiu-se, então, para os argumentos “direito prox economia”, o qual não obteve nenhum resultado. Por fim, com os argumentos direito e economia, o resultado foi de 522 combinações. A pesquisa foi refinada para os acórdãos com data posterior a janeiro de 2005, a fim de apanhar decisões da presente composição do Tribunal, o que reduziu o número para 80 acórdãos.(32) Constatou-se que, na maioria das vezes, o STF utilizou as palavras Direito e Economia sem qualquer ligação com a AED. Foram computados, por exemplo: (i) trinta e seis acórdãos mencionando o vocábulo economia para decidir questões em suspensão de segurança ou suspensão de liminar; (ii) dez acórdãos mencionando o princípio da economia processual; (iii) quatorze, sobre sociedades de economia mista; (iv) dois, contendo citações de livros cujo título continha a palavra “economia” e; (v) dois sobre direito penal, contendo a expressão economia formal. No entanto, foi nas ADIs nº 2591 e nº 3512 que se revelou o embate entre a AED e o método jurídico tradicional. Curiosamente, os votos foram vencidos em ambos os casos em que foram utilizados argumentos de AED, o que indica uma rejeição do STF à utilização de elementos de economia de modo expresso em suas decisões. A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2591, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro, questionava a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários, sob os seguintes fundamentos: (i) somente lei complementar poderia regular o sistema financeiro nacional, consoante dispõe o artigo 192 da Constituição; (ii) a Constituição faria uma distinção implícita entre consumidor e cliente bancário; (iii) violação do princípio da proporcionalidade, pois os integrantes do setor financeiro não poderiam arcar com todos os deveres impostos pelo Código de Defesa do Consumidor; (iv) submissão às regras do Conselho Monetário Nacional, com exclusão do CDC. O Relator original da ADI era o Ministro Carlos Velloso, o qual utilizou obras doutrinárias dos escritores do Código de Defesa do Consumidor como subsídio de seu voto, a fim de esclarecer o que entendia por consumidor, incluídos aí os clientes de bancos. Já o Min. Néri da Silveira passou ao largo da questão do conceito de consumidor e focou-se na desnecessidade de lei complementar para regular a questão dos juros. Após solicitação de vista, o Min. Nelson Jobim utilizou conceitos de economia, como a diferença entre o consumidor, o poupador e o mutuário para afastar a aplicabilidade da lei aos contratos bancários. Segundo ele, “a relação que se estabelece entre poupador e banco e entre banco e mutuário perfaz algumas etapas do ciclo do dinheiro e da moeda que cumpre sua função com a simples circulação. Não há a ligação entre operações bancárias e a ideia de consumo”.(33) Foi com esses argumentos que o Ministro Jobim votou pela procedência da ADI. Percebe-se, contudo, que o Ministro Jobim não procurou o conceito legal de consumidor, mas se ateve ao conceito econômico, o qual diferencia o consumidor do poupador (aquele que guarda moeda) e do mutuário (aquele que empresta moeda para gerar outro bem). Além disso, o Ministro fez uma distinção entre operação e serviços bancários para dizer que apenas os serviços bancários, ou seja, a cobrança de tarifas, o fornecimento de extratos, de talões de cheque, etc. estariam cobertos pelo Código de Defesa do Consumidor. As operações bancárias, ou seja, as atividades típicas dos bancos, não estariam sujeitas à legislação consumerista. Com a aposentadoria do Min. Carlos Velloso, o Min. Eros Grau foi designado para ser o relator do acórdão. Para ele, o conceito de consumidor é um conceito normativo, não podendo receber influências da economia. Segundo o Min. Eros Grau: “Inútil, diante disso, qualquer esforço retórico desenvolvido com base no senso comum ou em disciplinas científicas para negar os enunciados desses preceitos normativos. Não importa seja possível confirmar, por a + b , que tal ente ou entidade não pode ser entendido, economicamente, como consumidor ou fornecedor. O jurista, o profissional do Direito não perde tempo em cogitações como tais. Diante da definição legal, força é acatá-la. Cuide apenas de pesquisar os significados dos vocábulos e expressões que compõem a definição e de apurar a sua coerência com o ordenamento constitucional.”(34) Já nas ADIs 1950 e 3512, as quais tratam, respectivamente, de meia-entrada para os estudantes e para os doadores de sangue, foram relatadas pelo Min. Eros Grau. Após discorrer sobre os mercados, apoderando-se da ideia de Irti no sentido de que eles são construídos pelo Direito(35) e, como construções, suas estruturas podem ser forjadas pelo Estado, inclusive com a imposição de normas de incentivo. Segundo Eros Grau, admite-se a limitação à propriedade privada para promover a “superação da oposição entre os desígnios de lucro e acumulação de riquezas da empresa e o direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes”.(36) Os votos vencidos em ambas as ADIs foram do Min. Marco Aurélio, o qual ponderou que essa interferência na livre iniciativa não pode ser efetuada sem uma contraprestação, pois, do contrário, o Estado estaria “cumprimentando com o chapéu alheio”.(37) Percebe-se, portanto, que a questão da norma incentivadora foi vista sob dois prismas: o primeiro, vencedor, que admite a interferência na propriedade privada a fim de tutelar um bem maior (doação de sangue, acesso à cultura); o segundo, vencido, o qual não admite essa interferência sem uma contraprestação do Estado, sob pena de levar as empresas promotoras de cultura à falência. O Min. Marco Aurélio procurou avaliar as consequências do ato, o que nada mais é do que a Análise Econômica do Direito. Em outro exemplo, na ADI 3273, na qual o Governador do Estado do Paraná questionava dispositivos da Lei nº 9.478/97, que dispõe que a propriedade do gás natural e do petróleo, após a sua extração, é do concessionário. O Min. Carlos Britto, relator originário, fez uma leitura da Constituição a partir dela mesma, ou seja, analisou todos os artigos constitucionais que versavam sobre recursos minerais, gás natural, jazidas e petróleo, para decidir que a propriedade dos bens não poderia ser do concessionário, após a exploração. Permaneceria, portanto, da União.(38) O Min. Marco Aurélio, após uma longa digressão histórica sobre o petróleo e o regime de monopólio, concluiu que o petróleo é um bem público especial, o qual não pode, simplesmente, ter sua propriedade transferida para o particular, sob pena de o STF compactuar com um crime de lesa-pátria.(39) Por fim, o Ministro Eros Grau iniciou seu voto fazendo uma distinção do enquadramento em que o petróleo possui dentro do regime de bens da União, rejeitando a tese de que se trata de bem de uso especial. Discorreu sobre os tipos de monopólio e afirmou que o monopólio do petróleo é um monopólio da atividade de extração, mas não da propriedade. Alertou que a concessão seria materialmente impossível se o concessionário não pudesse se apropriar do bem que explora. No entanto, esse concessionário não possui a propriedade livre do bem explorado, pois ela está sujeita a uma forte regulação da Agência Nacional do Petróleo. É, portanto, um novo regime de propriedade que se instala no direito brasileiro. O Min. Eros Grau votou, portanto, pela improcedência da ADI. Os demais Ministros acompanharam o voto do Min. Eros Grau. Merece destaque o voto do Min. Sepúlveda Pertence que alertou sobre como a Constituição deveria ser interpretada neste caso. Com a queda do monopólio do petróleo, não haveria mais substrato constitucional para a pretensão trazida da ADI, não se podendo fazer uma interpretação retrospectiva da Constituição. Segundo ele: “a arguição de inconstitucionalidade, embora sustentada com inteligência por ambos os votos referidos, a meu ver, soa o que Barbosa Moreira tem chamado de ‘interpretação retrospectiva’, com uma boa dose de ‘wishifull thinking’: a primeira, por insistir em ler na Constituição o que nela já não está; a segunda, por ler a Constituição e a lei de acordo com o que desejaríamos que continuassem a ser. Mas não são mais.”(40) Percebe-se que o Supremo, ao flexibilizar o monopólio sobre o produto da exploração da lavra, permitiu a transferência da propriedade do petróleo extraído à empresa concessionária (art. 26 da Lei 9.478/97), viabilizando a exploração mais eficiente desse recurso escasso, o que é elemento central da AED.(41) Conclui-se que, nos casos recentes envolvendo o Direito e a Economia, há uma predominância no STF em privilegiar as questões de princípio, sempre procurando a integridade do Direito. Com algumas exceções, a maioria de votos vencidos, há uma prevalência de argumentos políticos, os quais fogem da integridade. Nos casos analisados, houve uma tendência, com exceção do último caso, em privilegiar o princípio da integridade. O princípio da integridade ou “o direito como integridade” é a busca incessante pela coerência das decisões tendo em vista as decisões passadas. O ideal é que o juiz conhecesse todas essas decisões anteriores, a fim de fundamentar melhor sua decisão, conferindo-lhe coerência. No entanto, essa tarefa é própria do Juiz Hércules. No caso da propriedade da extração do petróleo, a AED foi utilizada, ainda que não explicitamente, para agregar mais elementos para a decisão do Min. Eros Grau. No entanto, mesmo se retiradas as suas ponderações sobre monopólio e propriedade, típicos assuntos de AED, a questão poderia ser resolvida exclusivamente pela interpretação constitucional, como bem observou o Min. Sepúlveda Pertence. No entanto, percebe-se que ao utilizar argumentos de AED, possíveis de ser aplicados pelo direito brasileiro, a decisão do Min. Eros Grau encontrou uma certa coerência, não com a ordem constitucional passada, a qual já tinha sido revisada pelo Constituinte derivado, mas com a realidade e com os fatos colocados para sua análise. Já no Superior Tribunal de Justiça é possível encontrar um exemplo, também de voto vencido, no qual a AED forneceu substrato para que conceitos econômicos não fossem modificados pela vontade legal. Existem conceitos econômicos como custo, preço, demanda, os quais não podem virar faturamento, renda e oferta por simples disposição legal. O Min. Herman Benjamin, em voto vencido no REsp 771.787, alertou seus companheiros de Turma que é preciso se socorrer de conceitos como o da elasticidade da oferta e da procura na constituição do preço, e que isso não pode ser ignorado pelo Poder Judiciário. Tais conceitos, dinâmicos permitem que haja uma real distribuição de ônus em uma relação jurídica. No caso mencionado, tratava-se de pedido de indenização em virtude de fixação do preço do setor de cana-de-açúcar pelo governo, a qual teria se dado em valor menor que o fixado como custo pela FGV. A tese dos recorrentes era a de que, em virtude disso, é devido indenização, calculada entre o valor do custo fixado pela FGV e o preço fixado pelo governo. O Min. Herman Benjamin alertou seus colegas que a economia é dinâmica e que o recorrente gostaria de praticar o capitalismo sem risco, ou seja, não ter prejuízo algum.(42) Seu voto, construído com base na AED, foi rechaçado pelos seus colegas, apesar de fazer uma análise criteriosa do que estava posto em análise, sem qualquer medo de utilizar a criatividade. Em outro curioso caso, o STJ deparou-se com uma questão de indenização por acidente de carro. Uma senhora possuía um veículo comum, sem qualquer valor histórico, com ano de fabricação de 1983. Em 1992 esse veículo foi abalroado por um veículo do Município de São Paulo, ocasionando a sua destruição total. A senhora ajuizou ação indenizatória pleiteando a reparação do veículo. Todavia, reparar o veículo ficaria mais caro que comprar um carro semelhante. O STJ decidiu que caso o conserto de um carro seja mais dispendioso que a aquisição de um semelhante, é “antieconômico” determinar a sua restauração. Empiricamente, como se verá adiante, o STJ valeu-se do conceito de eficiência para decidir a questão. O Ministro Humberto Gomes de Barros, relator desse Recurso Especial, realizou uma análise sobre a depreciação do bem e o quanto deveria ser indenizado: Poder-se-ia afirmar que esses exemplos não possuem qualquer ligação com a AED e que se trata apenas de argumentação. Isso é válido apenas se for possível retirar o fundamento econômico dessas decisões e ainda assim elas continuarem a ter sentido. No caso dos cruzados novos, os argumentos utilizados em alguns votos não foram jurídicos, mas econômicos. O próprio Ministro Paulo Brossard fez essa denúncia no caso dos cruzeiros bloqueados. Já no caso da indenização do setor sucroalcooleiro, o voto do Min. Herman Benjamin não teria qualquer sentido se ele não utilizasse o argumento/constatação de que a economia é dinâmica para indeferir a pretensão dos autores, analisando os conceitos de preço, custo e risco do empreendimento. Por fim, no caso do acidente de carro, ao refutar o que pedia a Autora, por ser antieconômico, e ao realizar uma ponderação singela sobre desvalorização de bens, o Relator utilizou elementos de economia para basear a sua decisão. Caso não houvesse tais elementos, a decisão seria incompreensível. Tudo isso para dizer que, nesses exemplos acima mencionados, a AED fez-se presente para auxiliar na elaboração das decisões e não apenas como instrumento de retórica. No entanto, com base nos acórdãos analisados, não é possível identificar qualquer tendência das Cortes Superiores – STF e STJ – em abandonar o método jurídico que procura uma decisão baseada no princípio da integridade para baseá-la apenas em fundamentos econômicos. É de se ressaltar, ademais, que o objetivo desse trabalho não foi identificar qualquer fundamento pragmático para as decisões do STF,(44) mas apenas procurou identificar que em certas decisões a AED é rejeitada pelos Ministros em prol de decisões mais fortes, que procuram a integridade do ordenamento jurídico, em uma interpretação prospectiva e coerente. 4 Racionalidade econômica institucionalizada na lei: a suspensão de segurança Por mais objeções que se coloquem quando se trata do diálogo entre Direito e Economia, fato é que a própria lei admite que, por razões econômicas, uma decisão judicial seja suspensa. Tal previsão está contida no art. 4º da Lei 4.348/64 que assim dispõe: “Art. 4º. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar, e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de dez dias, contados da publicação do ato.”(45) (destaque ausente no original) A suspensão de segurança possui natureza de contracautela,(46) ou seja, visa suspender qualquer decisão que tenha efeitos imediatos proferida contra a Fazenda Pública. O Presidente do Tribunal não examina o mérito da decisão, mas apenas se os seus efeitos podem prejudicar a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas. É, pois, um julgamento político do Presidente do Tribunal. Os tribunais utilizam-se, com respaldo legal, de razões macroeconômicas para suspender decisões jurídicas. A Min. Ellen Gracie, na Suspensão de Segurança 3237, ao suspender decisão que modificava o regime de recolhimento do ICMS de uma refinaria de petróleo, levou em consideração as perdas que a economia do Estado do Rio de Janeiro enfrentaria caso a decisão persistisse. Segundo a Ministra: “Observo também a ocorrência da grave lesão à economia pública, na medida em que a arrecadação estadual perde vultosa quantia em decorrência do regime diferenciado concedido à Refinaria de Petróleos de Manguinhos S/A, fato que se encontra devidamente atestado pelas autoridades fazendárias estaduais.”(47) Já o Min. César Asfor Rocha, do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar um pedido de suspensão de segurança contra o deferimento do aumento de 33,66% nas tarifas do transporte público no Município de São Luis, Maranhão, cotejou tanto o interesse dos usuários quanto o interesse das concessionárias de serviço público. O Min. Presidente do STJ reconheceu ser: No entanto, o Ministro reconhece que o aumento das tarifas, sem a realização de “amplos estudos técnicos de composição tarifária” impõe um ônus maior aos usuários, os quais deverão pagar de imediato tarifas reajustadas sem critérios certos.(48) Percebe-se, portanto, que ao cotejar quem sairia mais prejudicado com uma decisão antecipatória, o Presidente do STJ concluiu que o usuário seria mais afetado, de modo a suspender o aumento tarifário. Nada mais é, portanto, que uma análise econômica simples de quem pode arcar mais com o prejuízo. Ressalta-se, por fim, que o Supremo Tribunal Federal considera, por maioria, a suspensão de segurança adequada aos mandamentos constitucionais, admitindo, portanto, que razões econômicas suspendam uma decisão judicial.(49) Percebe-se, portanto, que neste caso, a racionalidade econômica supera a racionalidade jurídica. E aqui que impera o paradoxo existente no STF: em decisões envolvendo as questões econômicas, há uma tendência em aplicar o Direito, com leves aportes de economia. No entanto, tudo isso é deixado de lado quando se está diante de uma Suspensão de Segurança. Aqui, todas as questões de direito e a própria busca pela integridade são esquecidas para dar lugar a uma decisão, monocrática, baseada muitas vezes em critérios de economia vulgar. E ao superar a racionalidade jurídica, afasta-se a AED. Trata-se, pois, de análise econômica, sem qualquer amparo do Direito, além do suporte formal. São casos diferentes, portanto, dos acórdãos mencionados acima. Não há, portanto, análise econômica do direito nas decisões de suspensão de segurança. Nos casos acima mencionados, em que houve aportes de AED, havia uma questão de fundo jurídica: a existência ou não de ato ilícito e a reparação desse ato. No caso dos cruzados, decidiu-se que havia o ato ilícito, mas que a sua reparação poderia ser obstada a fim de se preservar um Plano Econômico. No caso da indenização pela fixação de preços pelo governo, a AED serviu para o Ministro fundamentar seu voto no sentido de que não havia qualquer ato ilícito. Por fim, no acórdão referente à indenização por acidente de veículo, a AED deu os fundamentos para se delimitar o dano e para fixar as possibilidades de sua reparação. Já no caso da suspensão da segurança, ignora-se qualquer legalidade ou ilegalidade da decisão judicial em nome da economia ou de fundamentos econômicos. A diferença não é meramente argumentativa: trata-se da função que a Economia possui nas decisões judiciais. Na AED serve de substrato para uma decisão, ao passo que na suspensão de segurança serve para afastar a própria decisão, a qual pode ter sido proferida com argumentos exclusivos de direito. Conclusão Ao privilegiar a eficiência alocativa, o direito estaria a premiar os mais fortes, deixando desprotegidos os oprimidos, aqueles que não possuem tantas armas para lutar contra os dominantes.(50) No entanto, economia e eficiência não são sinônimos de egoísmo e de opressão. Como pondera Posner: “Não economistas tendem a associar a economia com dinheiro, capitalismo, egoístico, reduções, uma irreal concepção humana de motivação e comportamento, um instrumental matemático formidável, tendente a conclusões cínicas, pessimistas e conservadoras. (...) Todavia, a essência da economia não é nenhuma dessas características. A essência é extremamente simples, muito embora a simplicidade decepcione (..) A maioria das análises econômicas consiste em traçar consequências a partir da premissa de que as pessoas são mais ou menos racionais nas suas relações sociais.”(51) Assumir que apenas a eficiência ou o bem-estar devem guiar a decisão do juiz é negar o próprio sentido do direito, bem como negar a legitimidade das decisões judiciais. Concorda-se com Dworkin quando ele afirma que os juízes devem decidir conforme o princípio da integridade, ou seja, o que requer que “nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas”.(52) No entanto, ignorar que a eficiência e o bem-estar podem auxiliar nas decisões legais e jurídicas e, mais ainda, ignorar o instrumental que a AED coloca à disposição do operador jurídico consiste em preconceito dirigido a esse movimento.(53) Preconceito contra algo novo, contra as mudanças. É, também, um temor de que os juristas sejam substituídos por economistas. Isso não irá acontecer se o Direito, como espelho da sociedade, tiver entendido que, em certos casos, o justo deve estar aliado ao eficiente. No entanto, se a persecução pelo justo ignorar, em todas as matérias, a eficiência e o bem-estar, o espelho será quebrado. Referências bibliográficasBERNARDES, Patrícia; FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. A moderna concepção da norma jurídica como estrutura de incentivos. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, a. 6, n. 23, p. 141-157, jul./set. 2008. CARVALHO, Lucas Borges de. Jurisdição constitucional e democracia: integridade de pragmatismo nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2007. CUNHA, Leonardo José Carneiro. A fazenda pública em juízo. 4. ed. São Paulo: Dialética, 2006. DERRIDA, Jacques. Força de lei. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DUBNER, Stephen J.; LEVITT, Steven. Freaknomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta. Trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. DWORKIN, Ronald. A riqueza é um valor?In: ______. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. 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Os críticos da economia frequentemente apresentam o homem econômico como uma caricatura. Hartford descreve esse homem econômico imaginado como um ser que não frui de emoções humanas como o amor, a amizade, a caridade, a raiva e a inveja. Ele é governado por sua mente e capacidade acima da média de fazer cálculos. Nesta concepção, o homem econômico e o psicopata não possuem nada de diferente. Essa caricatura é internalizada por muitos críticos do Direito e da Economia. Castanheira Neves afirma que com o Direito e a Economia, o homem deixa de ser sujeito de direitos para ser “simples objeto de programação e de benefícios planificáveis”. Passa a ser, portanto, um número. Já Alexandre Morais da Rosa, por exemplo, sugere que com a análise econômica do direito há a substituição do sujeito de direito pelo homem econômico. 3. PINHO, Márcio. Internações de vítimas de trânsito caem 28,3% após a lei seca. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ 5. Muito embora a ideia pareça absurda, o Município de Jaboticabal, situado no Estado de São Paulo, instituiu projeto para que a partir de 2011 ocorra um auxílio financeiro chamado de “bolsa adoção”, destinado a pessoas que queiram retirar crianças e adolescentes dos abrigos. Não há notícia da aprovação da lei. No entanto, denota-se a existência de cores, ainda que pálidas, de “precificação da vida”. 6. KORNHAUSER, Lewis A. El nuevo análisis económico del derecho: las normas jurídicas como incentivos, p. 20. 7. Compactua-se nesse estudo com as lições de Derrida, para quem direito e justiça são duas categorias distintas. A justiça não equivale ao direito, pois as regras estão acobertadas pelo passado. Segundo Derrida, “...uma regra dada, inventada ou reinventada, reafirmada: ela já não é presentemente justa plenamente justa. Em nenhum momento uma decisão parece poder ser dita presente e plenamente justa (...) Desse paradoxo decorre que em nenhum momento podemos dizer presentemente que uma decisão é justa, puramente justa (isto é, livre e responsável), nem dizer de alguém que ele é um justo e, ainda menos, que ‘eu sou justo’. No lugar de ‘justo’, podemos dizer legal ou legítimo, em conformidade com um direito, regras ou convenções autorizando um cálculo, mas com um direito cuja autoridade fundadora apenas faz recuar o problema da justiça”. DERRIDA, Jacques. Força de lei, p. 47 e 45. É, portanto, pretensão do direito dizer que ele é justo e que a economia é injusta. A justiça é algo inalcançável, quase uma utopia. Direito e Economia servem de instrumentos de decisão, ou seja, são ferramentas para fechar questões abertas, com pretensão de justiça, mas sem nunca alcançá-la. 8. Sobre as características do Direito e Economia, FORGIONI, Paula. Análise econômica do direito: paranoia ou mistificação, p. 427-428. 10. FARACO, Alexandre Ditzel; MUNIZ, Fernando. Análise econômica do direito e possibilidades aplicativas no Brasil, p. 43. 21. “Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules”. O próprio Dworkin reconhece, em momento posterior, após descrever o método e as objeções ao juiz Hércules, que mesmo que haja ceticismo em torno de sua teoria, a metáfora do juiz Hércules serve “a qualquer juiz, como um poderoso lembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir os casos difíceis com humildade”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 165 e 203. 22. Ver a respeito a resenha de Dworkin sobre dois livros de Posner: DWORKIN, Ronald. Philosophy & Mônica Lewinski. Em seguida, a resposta de Posner em: POSNER, Richard. An affair of state: an exchange. No primeiro parágrafo de Philosophy & Monica Lewinski, Dworkin insinua que Posner não se dedica à sua função principal, que é a de juiz. Ironicamente diz: “He has produced books on a variety of legal subjects in numbers that would be amazing even if he had no other responsibilities. To judge from the copious footnotes in all his books, he is a voracious speed-reader as well”. 28. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 534 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 27.06.1991. Os grifos são do próprio Ministro Relator. 29. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 534 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 27.06.1991. 30. “A resenha doutrinária e jurisprudencial que vem sendo feita acentua, a meu juízo pessoal, o extremo relevo que assume a questão referente à indenização patrimonial dos prejuízos causados por ato inconstitucional emanado do Poder Político. 35. A importância da lei para os mercados evidencia-se no momento em que se constata que o mercado não é algo natural. É algo construído pelo direito. Mercados são instituições socioeconômicas de circulação de riquezas e bens. A ideia laissez-faire é, portanto, um mito, pois “mercados livres dependem da existência do direito”. IRTI, Natalino. L’ordine giuridico dell mercato, p. 04; STAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa, p. 32. 41. BERNARDES, Patrícia; FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. A moderna concepção da norma jurídica como estrutura de incentivos, p. 150. 42. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 771.787, Rel. Min. João Otávio Noronha, 2a Turma, por maioria, DE 27.11.2008. 43. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 56.408/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. 1a Turma, por unanimidade, DJ 10.04.1995. 44. Esse trabalho foi maestralmente realizado por Lucas Borges de Carvalho, o qual identificou que muitas das decisões do STF, sobretudo aquelas envolvendo planos econômicos e necessidade de avaliação do perigo da demora, são decisões pragmáticas, sem qualquer persecução à integridade. Carvalho concluiu que o STF decide, muitas vezes, com argumentos de política. Isso não deixa de ser verdade. No entanto, o objetivo do presente trabalho não é analisar o pragmatismo das decisões, mas a AED, o que é diferente. Enquanto o pragmatismo conforma-se de certa forma, com o status quo, sobretudo nas questões de política econômica, a AED sempre procura o uso mais eficiente de determinado bem. São pequenas diferenças, que afastam as duas escolas. CARVALHO, Lucas Borges de. Jurisdição constitucional e democracia, p. 257 e seguintes. 45. A suspensão da segurança também é prevista pelo art. 12 da Lei 7.347/85, que trata da ação civil pública, e pelo artigo 4º da Lei 8.437/92. 46. Não é objeto do presente estudo cuidar da suspensão de segurança. CUNHA, Leonardo José Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo, p. 406-443; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A suspensão de segurança,p. 146-161. E ainda: VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 47. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, SS 3273 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 16.04.2008, DJe 112 DIVULG 19.06.2008 PUBLIC 20.06.2008 EMENT VOL-02324-02 P-00225. 48. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, AgRg na SLS .943/MA, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 04.03.2009, DJe 30.03.2009. 49. A constitucionalidade da suspensão de segurança é contestada pelo Min. Marco Aurélio, que entende que a suspensão fere a isonomia processual, pois apenas o Poder Público pode utilizá-la, bem como promove um julgamento per saltum por parte do STF. Conferir seu entendimento em SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, SS 3259 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 07.04.2008, DJe 088 DIVULG 15.05.2008 PUBLIC 16.05.2008 EMENT VOL-02319-02 P-00296. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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