Arbitragem e contratos administrativos: análise do caso Copel S/A v. Aneel, Energética Rio Pedrinho S/A, Consórcio Salto Natal Energética e outro – do TRF 4ª Região(1)

Autores: Luciano Benetti Timm

Advogado, Pós-Doutor pela U.C. Berkeley (EUA), Professor Adjunto da PUCRS

Luiz Gustavo Meira Moser

Pós-Graduado em Direito Internacional pela UFRGS

publicado em 29.10.2010

Sumário: Introdução. 1 Aspectos processuais. 2 Aspectos substanciais: arbitrabilidade e a equação econômica do contrato.

Introdução

Conforme o relatório do processo em análise, não obstante a eleição de cláusula compromissória e um procedimento arbitral previsto de acordo com o regulamento da Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem firmado entre as partes litigantes, pretendeu a empresa Copel Distribuição S/A (Copel), perante o Poder Judiciário Federal, ingressar com medida cautelar contra Energética Rio Pedrinho S/A e Consórcio Salto Natal Energética, entre outros réus, para impedir a declaração de vencimento antecipado do contrato e inscrição da devedora nos órgãos de proteção ao crédito e deferimento de remessa de ofício à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para a emissão de Certidão de Adimplemento de Obrigações Setoriais em seu favor.

O argumento da Copel funda-se na existência de ação popular com objetivo de anular o contrato de compra e venda de energia elétrica entabulado entre as partes litigantes e, por consequência, a própria convenção arbitral. Além disso, argumenta tratar-se o contrato em questão de direito indisponível e, por via de consequência, não passível de solução arbitral.

O TRF da 4ª Região (TRF4) manteve a decisão de improcedência do 1º grau ao decidir que a solução de eventual controvérsia deveria ocorrer exclusivamente por via da arbitragem, inclusive a questão de natureza cautelar.

1 Aspectos processuais

A decisão em comentário reconheceu a eficácia negativa da convenção de arbitragem (A) e foi ainda mais longe, ao defender a validade da cláusula híbrida e delimitar a competência da Câmara de Arbitragem para deferir medidas de urgência (B).

(A) Eficácia negativa da convenção de arbitragem

É cediço que a convenção de arbitragem, a par de conferir aos árbitros a função ad hoc de julgadores, produz ipso facto o efeito negativo de repelir a jurisdição estatal e macular, na origem, o processo judicial, razão por que cumpre ao juiz togado, em face de uma convenção arbitral constante em pleito perante o judiciário, extinguir o processo sem resolução do mérito (art. 267, inc. VII, do CPC).

Percebe-se que a Corte posicionou-se pelo entendimento que admite a arbitragem como um exercício privado de jurisdição, de modo a proclamar que, na hipótese de eleição de cláusula arbitral, “a providência almejada pela Copel na presente ação cautelar deve ser apreciada pelo juízo arbitral, devendo ser extinto o presente feito com fundamento no art. 267, VII, do CPC, tendo em vista a existência de convenção de arbitragem”. Portanto, reconheceu uma modalidade distinta de jurisdição que seria a privada, a qual não poderia sofrer intervenção estatal inclusive.

No caso concreto, o contrato firmado entre as partes litigantes tinha cláusula compromissória, que remetera para julgar qualquer litígio emergente do contrato por arbitragem, de acordo com o regulamento de Arbitragem da Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem. Eis o teor da cláusula escalonada em questão, aqui citada apenas para fins ilustrativos (segundo o acórdão do TRF 4ª Região):

“Cláusula 32. Caso a controvérsia não tenha sido resolvida amigavelmente, ou por mediação da Aneel em até 60 (sessenta) dias da primeira notificação por uma PARTE, nos termos da cláusula 30, tal disputa deverá ser resolvida de forma definitiva e vinculante por meio de procedimento arbitral.


Cláusula
33. A arbitragem será conduzida de acordo com o Regulamento da Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem.”

Embora carente de análise no acórdão, a cláusula compromissória em exame é sequencial ou escalonada, modalidade cuja redação prevê o cumprimento de etapas antecedentes à composição do corpo de julgadores, de modo a permitir a redução dos custos de transação, pois as partes estipulam um prazo para composição de eventuais disputas oriundas do contrato.(2) Poderia até se discutir no caso concreto se a referida cláusula compromissória retiraria ou não a possibilidade de cautelares pré-arbitrais concedidas pelo Judiciário antes de constituído o tribunal arbitral, o que não foi feito no caso em discussão, como será visto abaixo.

(B) Tutelas de urgência, procedimento arbitral e Judiciário cooperativo

A prática negocial demonstra que, via de regra, perpassa-se certo lapso temporal – o que em muitas vezes é a essência do contrato – entre o efetivo advento de uma controvérsia derivada do contrato com previsão de arbitragem e a composição do painel de julgadores. Ora, a constituição do corpo de julgadores para o caso concreto demanda tempo, negociações prévias das partes acerca da nomeação de árbitros, conforme a cláusula e/ou câmara de arbitragem, cumprimento dos termos pactuados na avença e observância à liturgia do art. 19 da LA. Logo, diante de uma contingência em que se exija urgência em provimento de natureza cautelar, por exemplo, e em face da não instauração do corpo de árbitros, socorre-se excepcionalmente à jurisdição estatal, a fim de se evitar uma espécie de “hiato jurisdicional”. Uma vez constituído o corpo de árbitros, este assume na plenitude sua função jurisdicional, competindo-lhe a condução do procedimento arbitral em sua integralidade, inclusive apreciação relativa ao pleito de tutelas de urgência (art. 22 LA), sem que se sonegue a importância do poder de imperium confiado exclusivamente à jurisdição estatal.

Com efeito, a doutrina é praticamente unânime em sustentar que, enquanto não instituída a arbitragem, com aceitação do encargo pelo(s) árbitro(s) (art. 19 LA), quem tem poder para conceder medidas de urgência é o Poder Judiciário, salvo eventual procedimento pré-arbitral de urgência previsto no regulamento aplicável ao caso concreto,(3) cenário não diagnosticado no caso em apreço.

Em que pese o afastamento judicial prévio de tutela de urgência no julgamento do caso concreto, nada impediria que as partes buscassem o judiciário pleiteando tutelas de urgência antes de instituída a arbitragem; ou mesmo que pactuassem ex ante incursões judiciais, em situações-limite, de medidas de urgência. Eis o pleno exercício da autonomia privada das partes, que deve orquestrar a confecção e a interpretação da cláusula arbitral.

Também é possível às partes estipularem um foro estatal para tais tutelas de urgência e mesmo para todo e qualquer contato do “mundo privado da arbitragem” com o “mundo exterior” da jurisdição estatal.

A aproximação circunstancial do juiz togado consiste em municiar as partes de meios coercitivos adequados para colaborar com a resolução do caso concreto via arbitragem, ao valer-se de seu poder de imperium.(4)

No caso concreto, os contratantes optaram pelo foro de Curitiba:

“Cláusula 45. AS PARTES elegem o foro da comarca de CURITIBA, ESTADO DO PARANÁ, como o competente apenas para promover a execução da cláusula compromissória, da sentença arbitral, bem como de medidas acautelatórias e de conservação de direitos, na forma prevista na Lei nº 9.307/96.”

Por meio da cláusula compromissória dessa natureza, as partes poderão valer-se do poder cautelar do Judiciário sem que se considere desistência ou renúncia à arbitragem, tampouco infração à cláusula compromissória.

Esses pontos não foram tratados no acórdão em comento, mas são ressalvas doutrinárias importantes ao decisum. Preferiu, em todo caso, a decisão do TRF4 deixar a apreciação da pretensão cautelar ao árbitro, afirmando que o árbitro tem o poder de conceder medidas cautelares que tenham pertinência com questões relativas ao contrato firmado entre as partes, cabendo à autoridade jurisdicional, quando necessário, a adoção dos atos tendentes à sua efetivação ou implementação.

No entanto, a ausência de tal cláusula híbrida não retira a possibilidade das partes se valerem do Poder Judiciário lastreadas nos dispositivos da LA e no Código de Processo Civil (poder cautelar geral do juiz), a respeito de propositura de medidas cautelares pré-arbitrais. Apenas, pelo exame do acórdão, não foi essa a opção do TRF4 no exame do caso concreto.

2 Aspectos substanciais: arbitrabilidade e a equação econômica do contrato

A) Arbitrabilidade em contratos públicos

A decisão aplicou os precedentes do STJ no tocante à arbitrabilidade de contratos de compra e venda de energia elétrica, ainda que firmados por sociedades de economia mista (REsp 606.345-RS).

O STJ já afirmara naquele caso paradigmático que uma sociedade de economia mista poderia perfeitamente firmar contratos com cláusula arbitral, quando o interesse em jogo seja “secundário”, ou seja, quando não haja diretamente um interesse social a ser atendido por serviço público. Nos dizeres do STJ, quando uma sociedade de economia mista atua “sob o regime de direito privado e celebrando contratos situados nessa seara jurídica (disse o relator do Recurso), não parece haver dúvida quanto à validade da cláusula compromissória por ela convencionada”.

Nesse ponto, não houve inovação do TRF4, apenas aplicação de precedentes de tribunais superiores, o que é uma boa notícia do ponto de vista de previsibilidade e de segurança jurídica.

(B) Impactos econômicos da decisão

Ainda que não vivamos em um país de família anglo-americana, os precedentes ganham cada vez mais força. A uma porque agregam previsibilidade e segurança jurídica, emitindo importante sinal ao mercado. A duas porque aumentam a eficiência das cortes de justiça estatais, evitando a repetição de demandas idênticas e que oneram os contribuintes. A justiça, como qualquer bem público, deve evitar virar um “terreno baldio”,(5) ocupado por usuários de má-fé de seu sistema de distribuição de justiça. E uma das formas de fazer isso é manter a integridade do Direito, evitando uma “esquizofrenia” decisória com julgados conflitantes.

Ademais, a decisão do TRF4 reconheceu o efeito econômico de manutenção da cláusula arbitral e optou por observar os vetores de orientação da conduta das partes no iter negocial.

A razão de decidir adotada pelo TRF4, no sentido de reconhecer a plena validade e eficácia da cláusula compromissória, encontra-se na boa-fé negocial e na arbitragem como integrante da “equação econômica do contrato”, conforme feliz expressão cunhada por José Emílio Nunes Pinto. Essa decisão, apesar de curta e resumida, é rica de significados e opções políticas, econômicas e legais.

Ela revela, de um lado, a correta percepção do substrato econômico do contrato e da natureza da operação (na melhor acepção de Enzo Roppo do contrato como roupagem jurídica de um ato econômico); e, de outro lado, opta por respeitar o binômio liberdade-responsabilidade, preferindo aproximar a boa-fé contratual do cumprimento do contrato, e não de uma visão paternalista de tomar decisões acima da vontade das partes.

E a liberdade contratual que lastreia e justifica a cláusula compromissória e outros dispositivos contratuais não é apenas um anacrônico princípio originado de um Código Civil burguês (o Code Napoléon de 1804); ele é um princípio que se conecta, de um lado, à dignidade humana – que é valor supremo constitucional –, permitindo a toda pessoa escolher seu destino e por ele responder; e, de outro lado, tem uma significação econômica, de forma a permitir às partes criarem eficiências paretianas(6) por meio de suas transações e permitindo também alocar riscos e responsabilidades, planejando o futuro.

Vale lembrar que no planejamento do futuro não há racionalidade perfeita dos agentes econômicos, nem se pode presumir a perfeição do mercado. Existirão, portanto, limitações cognitivas às partes, haverá assimetria de informações entre as partes e ocorrerão custos de transação. Mas, nesse ambiente de incertezas, a melhor presunção ainda é a do respeito ao pacta sunt servanda e deixar para o direito antitruste e regulatório corrigir as eventuais falhas de mercado.

Juízes e tribunais fazem ponderações econômicas sobre as consequências de suas decisões, ainda que inconscientemente. A literatura de law and economics há tempos sugere que existem “efeitos de segunda ordem” das sentenças judiciais.(7) Talvez de forma implícita o TRF4 tenha percebido que a intervenção estatal em determinados contratos é capaz de reverberar efeitos negativos a diversos agentes econômicos direta ou indiretamente envolvidos no vínculo negocial, justamente num momento em que o Brasil se moderniza e precisa de investimentos privados para modernizar a infraestrutura do país.

Bem entendido, existiria um conteúdo econômico fundamental para o cumprimento da cláusula arbitral inserta em contratos complexos: a segurança jurídica como mecanismo de desenvolvimento desse nicho negocial. Segurança não apenas porque baseada na liberdade de contratação que tem proteção constitucional, mas também porque prevista na ordem jurídica internacional e na lex mercatoria.(8)

Em conclusão, agiu bem o TRF 4ª Região, na esteira do STJ e de tribunais estrangeiros de prestígio, ao valorizar a autonomia privada, reconhecendo a escolha feita entre os contratantes pela via arbitral.

Notas

1. Apelação Cível nº 0000249-07.2007.404.7000/PR. Rel: Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler.

2. LEMES, Selma Ferreira. As peculiaridades e os efeitos jurídicos da cláusula escalonada: mediação ou conciliação e arbitragem. In: Arbitragem doméstica e internacional: estudos em homenagem ao Prof. Theóphilo de Azeredo Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 359-376; MOSER, Luiz Gustavo Meira. Contrato Internacional de Licenciamento – cláusula escalonada ou sequencial – reconhecimento da validade da sentença arbitral sem a observância ao procedimento pré-arbitral – Tribunal Federal Suíço – 6 de junho de 2007 – X. Ltda v. Y. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 15, jul./set. 2007, p. 181-199.

3. A propósito do procedimento cautelar pré-arbitral da ICC, ver WALD, Arnoldo. Decisão em cautelar pré-arbitral da CCI. Sentença arbitral de mérito. Distinção.Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 20, abr./jun. 2003, p. 356-361; HANOTIAU, Bernard. A experiência da cautelar pré-arbitral da CCI (tradução – Valéria Galíndez). Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 17, jul./set.2002, p. 325-328.

4. Consultar mais em CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. São Paulo: Atlas, 2004. p. 268; MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 246; AYOUB, Luiz Roberto. Arbitragem: O Acesso à Justiça e a Efetividade do Processo – uma nova perspectiva.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

5. A expressão aqui é de Fernando Araújo, aludindo à “tragédia dos baldios”, numa adaptação ao português de tema já clássico da literatura econômica americana denominada de tragedy of commons, que é a tendência à exaustão de bens públicos pela sobreutilização dos privados. ARAÚJO, Fernando. Capítulo 2 de A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios. Almedina, 2008. Ver também SZTAJN et al. Economia dos direitos de propriedade. Capítulo 5 deDireito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Organização Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn. Campus, 2005.

6. Eficiência paretiana faz alusão ao conceito de eficiência de Pareto, isto é, uma ideia de que a sociedade maximiza o seu bem-estar até o momento em que alguém não se prejudique para alguém se beneficiar. Nesse sentido, “Diz-se que uma situação específica é Pareto eficiente se for impossível modificá-la de modo a tornar, pelo menos, a posição de uma pessoa melhor (conforme a sua avaliação) sem, em contrapartida, piorar a posição de outra (também conforme a sua avaliação)”. Cf. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. Boston, Addison Wesley, 2003. (Tradução livre de “A particular situation is said to be Pareto efficient if it is impossible to change it so as to make at least one person better of (in his own estimation) without making another person worse off (again, in his own estimation)”. De acordo com o modelo, cada parte teria poder de veto para bloquear as situações em que se sentisse em posição desfavorável (COOTER, op. cit., p. 44).

7. COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Capítulo 5 de The Firm, the Market and the Law. The University of Chicago Press, 1988.

8. As regras que orquestram o comportamento dos contratantes no comércio internacional são baseadas nos usos e costumes do tráfico negocial. Ver KHAN, Philip. Les principes généraux du droit devant les arbitres du commerce international. Paris: JDI, 1989. p. 301 et seq; GALGANO, Francesco. Lex Mercatoria. Bologna: Il Mulino, 2001; MARRELLA, Fabrizio. Lex mercatoria e Principi Unidroit – Per una reconstruzione sistemática del diritto del commercio internazionale. In: Contratto e Impresa-Europa, 5, 2000, p. 29-79; GOLDMAN, Berthold. Frontières du droit et lex mercatoria. In: Archives de Philosophie du Droit, Droit, tome IX, p. 177 et seq; OPPETIT, Bruno. La notion de source du droit et le droit du commerce international. In: Archives de Philosophie du Droit, Droit, tome XXVII, p. 43-53.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2010. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS