
Sumário: Introdução. 1 Significado de fontes do direito. 2 Da articulação multicultural do bem. 3 Crise e esgotamento do modelo jurídico hegemônico diante das sociedades complexas e conflitivas de massa. 4 Do pluralismo ideológico das fontes do direito ao pluralismo jurídico de valores culturais. 5 O multiculturalismo e a articulação dos valores no território brasileiro. 6 A racionalidade do Outro (concretude da vida humana) como critério de legitimação da fonte de direito diante do multiculturalismo. Bibliografia.
Resumo
A diversidade de valores culturais, seja num mesmo contexto geográfico nacional, seja entre nações distintas, coloca em questão a legitimidade de aplicação de determinada fonte do direito para o efeito de regulamentar a conduta e dirimir as controvérsias que possam surgir pela opção individual na escolha desses valores.
Este trabalho pretende analisar a legitimidade de determinada fonte do direito em confronto com as diferenças culturais, tendo por fio condutor o princípio da “racionalidade do Outro”.
Pretende-se, portanto, sugerir (sem pretensão de verdade absoluta) um princípio racional como critério objetivo na análise da interculturalidade e na sua relação com as fontes de direito.
Palavras-chave: Interculturalidade. Fontes do direito. Racionalidade do outro. Valores culturais.
Introdução
Este trabalho foi apresentado no I Seminário Internacional Permanente do Departamento de Derecho Internacional, Eclesiástico y Filosofía del Derecho da Universidad Carlos III de Madrid, realizado em 25 de maio de 2010, cuja temática referiu-se às concepções das fontes do direito nas diferentes civilizações jurídicas.
O Comitê Científico do seminário foi formado pelos professores doutores Oscar Celador, professor titular de Derecho Eclesiástico del Estado; Jorge Zavala, professor titular de Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales; Mª del Carmen Barranco, professora titular de Filosofia del Derecho; e Félix Vacas, professor titular de Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales.
O seminário contou ainda com a participação dos seguintes professores: Dr. D. Mario Losano, professor ordinário de Filosofia del Derecho e de Informática Jurídica da Università del Piemonte Orientale “Amedeo Avogadro” de Alessandria; Prof. Dr. Agustín Motilla dela Calle, catedrático de Derecho Eclesiástico da Universidad Carlos III de Madrid; e Prof. Dr. Carlos Fernández-Liesa, catedrático de Derecho Internacional da Universidad Carlos III de Madrid.
Ressalta-se a importante contribuição da Enfam (Escola Nacional de Formação da Magistratura), que tem sede em Brasília, no Superior Tribunal de Justiça, e que não mediu esforços para que o trabalho pudesse ser exposto em Madri.
Diante da relevância do tema, pretende-se dar conhecimento à comunidade jurídica brasileira sobre o conteúdo do trabalho apresentado durante o seminário, uma vez que se trata de um tema pujante e muito atual no âmbito da Comunidade Europeia, principalmente a partir do momento em que a Europa abriu suas fronteiras para a imigração dos povos do leste europeu, da Ásia, da África, da América e de todas as demais partes do mundo.
Com isso, o conflito de valores passou a ser evidente, bem como a questão da legitimidade das fontes de direito para solucionar a controvérsia daí decorrente.
1 Significado de fontes do direito
A palavra fontes, em sua concepção original, é derivada do latim fons (nascente, manancial) e, segundo De Plácido e Silva,“entende-se, em lato sentido, o local em que nascem ou brotam as águas”.(1)
Fontes, segundo seu próprio sentido etimológico, origem, procedência, “é empregado para indicar tudo de onde procede alguma coisa, onde ela se funda e tira razão de ser, ou todo fato que dá nascimento a outro”.(2)
Direcionando-se este termo para a ciência do direito, pode-se afirmar que fontes do direito
“são sempre estruturas normativas que implicam a existência de alguém dotado de ‘um poder de decidir’ sobre o seu conteúdo, o que equivale a dizer ‘um poder de optar’ entre várias vias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declarada obrigatória, quer erga omnes, como ocorre nas hipóteses da ‘fonte legal’ e da ‘consuetudinária’, quer inter partes, como se dá no caso da ‘fonte jurisdicional’ ou na ‘fonte negocial’.”(3)
Planiol nos diz que a palavra fontes de direito pode ser tomada em dois sentidos diferentes. Quando se trata de direito antigo, refere-se aos documentos em que podemos estudar uma legislação extinta ou abolida, o que é importante para os historiadores (ex: o Código de Manou, as Leis Cretenses, a Lei das Doze Tábuas e o Corpus Juris Civilis). No segundo sentido, chamado législation vivante, que é o direito em vigor, significando “as diferentes maneiras pelas quais as regras jurídicas são estabelecidas”;ou, como diz Tito Fulgêncio, “são os mananciais donde aparece exteriorizado o princípio jurídico; ou ainda, como diz Espínola, são as formas concretas que o direito objetivo assume num Estado e num tempo determinado.”(4)
A expressão fontes do direito apresenta certa multivocidade, como nos diz Luiz Regis Prado e Munir Karam, convertendo-se aos olhos de muitos estudiosos em equivocidade, e não raros propõem substituí-la por outras.(5)
Kelsen afirma que fontes do direito é uma expressão figurativa, com mais do que uma significação. Para o jurista e antigo professor das universidades de Viena e Colônia, entende-se por fonte de direito, além do fundamento de validade de uma ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma fundamental, bem como todas as representações que, de fato, influenciam a função criadora e a função aplicadora do Direito, tais como, especialmente, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, pareceres de especialistas e outros (essas fontes devem ser claramente distinguidas das fontes do direito positivo). Para Kelsen, a equivocidade ou a pluralidade de significações do termo “fonte de Direito” fá-lo parecer como juridicamente imprestável.(6)
No entanto, nas línguas conhecidas do ocidente, emprega-se esse termo, utilizando-se, nos idiomas mais importantes do mundo, as seguintes versões: “sources du droit, sources of law, Rechtsquellen, fonti del diritto, fuentes del derecho”.(7)
Sustenta-se que há dois tipos de ordenamento jurídico bem definidos no que concerne à origem do direito, ou seja, o da tradição romanística (noções latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana (common law). A primeira enfatiza o primado do processo legislativo, acentuando-se após a Revolução Francesa, “quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da Nação, da vontade geral, tal como verificamos na obra de Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social”.Ao lado da tradição romanística, há o direito consagrado pelos povos anglo-saxões, “nos quais o Direito se revela muito mais pelos usos e costumes e pela jurisdição do que pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. Trata-se do Direito misto, costumeiro e jurisprudencial”.(8)
Miguel Reale nos brindou com um amplo apanhado geral pela história do direito, fazendo uma retrospectiva das fontes através do tempo, o que, segundo ele, só é possível à luz da Antropologia culturalou Etnologia(ciência da cultura material e espiritual dos chamados povos “selvagens” ou “primitivos”) e da História. Demonstra-nos o renomado doutrinador a importância do direito costumeiro nas sociedades primitivas, bem como que a jurisdição, a lei e a doutrina só apareceram em um momento já bastante evoluído da cultura jurídica, como se pode facilmente ver na história do Direito Romano e do Direito Contemporâneo do Estado Burguês.(9)
Contudo, essa análise histórica das fontes do direito, seja na tradição romana, seja no common law, permite-nos observar que a legitimação das fontes do direito seria proveniente de um certo monismo jurídico, no qual prevalece uma cultura jurídica unitária que reproduziu idealizações normativas reveladoras de certo tipo de racionalização formal, sem reconhecimento de alternativas outras também válidas e legítimas, ou seja, sem o reconhecimento de uma racionalização material de diversificação de valores e de cultura. Assim, tanto o Direito Estatal, legislado diretamente por um poder unitário e soberano, quanto o Direito dos Juízes, resultante de precedentes, irão gerar as bases racionais de uma tradição jurídica lógico-formalista unitária e sem se preocupar com a diversidade de culturas e de valores.
Mas na atual conjuntura, com a transposição das barreiras geográficas e a aproximação dos valores multiculturais, a legitimação das fontes de direito para efeito de regulação das convivências sociais demanda uma análise mais cuidadosa, evitando-se uma perspectiva arbitrária, totalitária e hegemônica, no sentido de que há culturas que devem prevalecer sobre outras, ou de que os valores culturais que não se amoldem às culturas ditas racionais serão considerados como não-ser em confrontação com o ser.
2 Da articulação multicultural do bem
Quando se fala na aproximação de valores multiculturais, o que se pretende afirmar é que, nas sociedades complexas e pluralistas, os indivíduos, diante de sua autonomia de pensamento e de articulação, estabelecem ordens prioritárias de “bem”. E qual seria o sentido dessa articulação do bem? O ponto de partida dessa indagação é que os bens somente existem para nós por meio de alguma articulação, isto é, “as compreensões deveras distintas do bem que vemos em diferentes culturas são o correlativo das diferentes linguagens que se desenvolveram nessas culturas”.(10)
Na verdade, uma concepção de bem vale para determinadas pessoas de uma determinada cultura quando vem a ser expressa de alguma maneira. O Deus de Abraão, por exemplo,
“existe para nós (isto é, a crença nele é uma possibilidade) porque se falou sobre ele, primordialmente na narrativa da Bíblia, mas também em inúmeras outras formas, da teologia à literatura devocional. E também porque se falou com ele de todas as diferentes maneiras da liturgia e da oração. Os direitos universais da humanidade existem para nós porque foram promulgados, porque filósofos teorizaram a seu respeito, porque revoluções foram feitas em seu nome etc. Em nenhum caso, naturalmente, essas articulações são uma condição suficiente para a crença. Há ateus em nossa civilização, nutridos pela Bíblia, bem como racistas no Ocidente liberal moderno. Mas a articulação é uma condição necessária de adesão; sem ela, esses bens não são nem mesmo opções.”(11)
A noção central dessa perspectiva é que a articulação pode nos aproximar mais do bem como fonte moral, pode lhe conferir poder. Deve-se ressaltar que “Bem” é usado aqui num sentido bastante geral, ou seja, designando algo como valioso, digno, admirável, de qualquer tipo ou categoria.(12)
Sendo a articulação o mecanismo de constituição do bem, isso significa dizer que devemos fazer justiça às diferenças, evitando cair num quadro demasiado uniforme das continuidades. Isso vale também para o monismo jurídico.
Atuamos, sim, a partir de uma posição ou orientação moral que consideramos certa. Essa é uma condição de ser um self operante.(13) Na verdade, a própria posição de qualquer ser humano é alimentada pela concepção cultural de bem.
Mas os conflitos dessa articulação sobre bens inevitavelmente ocorrerão, sendo que dependerá de como iremos conceber a fonte de nossa responsabilidade. Conforme leciona Ronald Dworkin:
“Imagínate a ti mismo en la posición de Abraham sosteniendo un cuchillo sobre el pecho de su hijo Isaac. Supón que crees tener un deber religioso absoluto de obedecer a un Dios, sin importar lo que exija, y también un deber moral absoluto de no dañar a tu propio hijo sean cuales sean las circunstancias, y concibes estos compromisos como deberes cuya fuente es independiente. Tu teología insiste tanto en que la autoridad de Dios no deriva en absoluto de la moralidad de sus mandatos como en que la autoridad de la moralidad de ninguna manera proviene de los mandatos de Dios. En la medida en que mantengas estas convicciones, estarás seguro de que no puedes evitar realizar algo incorrecto. Estás, para ponerlo en un símil, sujeto a dos soberanos – Dios y la moralidad – y en la dificultad trágica, al menos tal como tú entiendes la situación, de que el mandato de uno no cuenta para nada a los ojos del otro. Debes elegir y cualquier elección supone una deslealtad definitiva y terrible.”(14)
Verifica-se, portanto, que os nossos valores colidem profundamente, daí o porquê de Berlin afirmar que o ideal de harmonia não é somente inalcançável, mas também “incoerente”, já que assegurar ou proteger um valor implica necessariamente abandonar ou pôr em perigo outro.(15)
Segundo Dworkin,
“A visão de Berlin é mais complexa e interessante. Acreditou que os valores são efetivamente objetivos, porém também que há conflitos irresolúveis entre os valores verdadeiros. Isto é, argumentou não somente que a gente está em desacordo acerca de qual é a verdade, senão que há conflito dentro da verdade sobre esses temas.”(16)
Por isso, o monismo jurídico liberal estatal não é a solução mais razoável para a resolução de conflitos entre diferentes culturas e diferentes articulações de valores.
3 Crise e esgotamento do modelo jurídico hegemônico diante das sociedades complexas e conflitivas de massa
Tanto o racionalismo filosófico quanto o iluminismo político favoreceram os horizontes específicos do estado liberal burguês capitalista que, como fonte única de validade, foi capaz de exprimir em normas jurídicas as ideias, os objetivos, as necessidades e as relações sociais de segmentos dominantes da sociedade. Por isso, das diferentes expressões instrumentais de produção normativa (leis, precedentes, jurisprudência, doutrina etc) que têm revelado e sustentado o princípio do monismo jurídico na modernidade burguesa capitalista, doravante, há de se privilegiar e se ater tão somente à mais significativa formalização normativa da organização política moderna: o Direito Estatal burguês capitalista, assentado nos princípios da estatalidade, da unicidade, da positivação e da racionalização.(17)
Contudo, mesmo que se admita num primeiro momento a hegemonia do projeto jurídico unitário, especialmente do Direito Estatal, essa hegemonia não impede a existência concomitante do pluralismo jurídico de uma tradição bem mais antiga de formulações jurídicas comunitárias, com a manutenção de ordenamentos jurídicos independentes do estado e de seus órgãos institucionais (Parlamento e Judiciário), dentre os quais merecem destaque: o Direito Eclesiástico e o Direito Internacional.(18)
Mas essa hegemonia do projeto jurídico unitário tende a perder força, principalmente a partir da percepção da crise e do esgotamento do modelo jurídico liberal-individualista, que não oferece respostas satisfatórias (eficazes) aos reclamos político-sociais de segurança e certeza no atual estágio de evolução das sociedades complexas e conflitivas de massa, necessitando-se buscar uma nova perspectiva para as fontes do direito, perspectiva essa que leve em consideração o multiculturalismo coexistencial nas sociedades contemporâneas e globalizadas.(19)
Está-se diante de uma crise de legitimação que impõe a obrigatoriedade de se propor a discussão sobre a “crise de paradigmas”, uma vez que não se pode mais desconsiderar a incapacidade das ciências humanas de tratar eficazmente a totalidade da situação do ser humano em face das distorções das formas de “verdade” tradicionais e dos obstáculos epistemológicos ao saber vigente.(20)
Conforme ensina José Eduardo Faria:
“a ideia de crise aparece quando as racionalidades parciais não mais se articulam umas com as outras, gerando graves disfunções estruturais para a consecução do equilíbrio social. (...) a crise representa a Sociedade (...) invadida por contradições. Assim considerada, a crise é uma noção que serve para opor uma ordem ideal a uma desordem real, na qual a ordem jurídica é contrariada por acontecimentos para os quais ela não sabe dar respostas eficazes.”(21)
A crise do direito como paradigma da dogmática jurídica estatal está diretamente relacionada com a crise dos fundamentos e dos paradigmas que norteiam a modernidade.
Assim, diante dessa crise de paradigma, não é mais possível preconizar a legitimação das fontes do direito num aspecto meramente hegemônico e segundo as características do monismo estatal, sem se levar em consideração as diversidades culturais e de valores sociais.
4 Do pluralismo ideológico das fontes do direito ao pluralismo jurídico de valores culturais
A análise histórica e etnológica do direito irá mostrar que, tenha o direito por fonte o costume, o primado da legislação ou os precedentes jurisprudenciais, o certo é que o fundamento de validade do direito encontra-se sobrecarregado de interesses políticos, econômicos, sociais, condicionado por ideologias, sitiado por valores.(22) Há, assim, um constante pluralismo ideológico na perspectiva histórica das fontes do direito.
E esse pluralismo ideológico atravessa diferentes momentos da histórica ocidental, mundos medievais, moderno e contemporâneo, “inserindo-se numa rica e complexa multiplicidade de interpretações, possibilitando enfoques marcados pela existência de mais de uma realidade, de amplas formas de ação e da diversidade de campos sociais com particularidade própria”.(23)
Contudo, há necessidade de se transpor a análise do direito sobre a perspectiva de um pluralismo ideológico (o qual não rompe com o monismo jurídico), para ingressar agora no intitulado pluralismo jurídico, muito mais complexo e heterônomo.
Essa complexa multiplicidade torna-se mais evidente diante de um mundo globalizado, de fácil movimento migratório populacional, instituidor de comunidades comuns regionais ou continentais, quando não de multiculturas inseridas no interior de um mesmo Estado ou de uma mesma comunidade de Estados.
A complexidade cultural de interesses políticos, sociais, econômicos, étnicos, raciais, condicionada por ideologias e sitiada por valores, já não pode ser analisada e resolvida sob a perspectiva jurídica restritiva e fechada de um determinado Estado ou Nação, nem por um positivismo jurídico dogmático que permanece preso à legalidade formal escrita e ao monopólio estatal de produção normativa, afastando-se das práticas sociais, desconsiderando a pluralidade de novos conflitos sociais, étnicos, culturais.
Evidentemente que tratar a questão do pluralismo jurídico supõe necessariamente questionar os fundamentos inapeláveis do positivista, tão frequentemente dominante em nossas universidades, no sentido de que o fundamento de validade do direito encontra-se restrito ao pertencer a norma a um determinado ordenamento jurídico estatal, pouco importando a complexidade multicultural que se percebe cada vez mais nas relações sociais.(24)
Na verdade, o pluralismo jurídicocompreende muitas tendências com origens diferenciadas e caracterizações singulares, “envolvendo o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si”.(25)
Não é fácil consignar uma certa uniformidade de princípios essenciais, principalmente pela diversidade de modelos (fontes do direito) e de autores, “aglutinando em sua defesa desde matizes conservadores, corporativistas, institucionalistas, socialistas etc (...)”.(26)
Contudo, conforme afirma Antonio Carlos Wolkmer, “esta situação de complexidade não impossibilita admitir que o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é o de negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda produção do Direito”.(27)
5 O multiculturalismo e a articulação dos valores no território brasileiro
Um exemplo marcante no ordenamento jurídico brasileiro no que concerne à questão do pluralismo jurídico e à negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva da produção do Direito podemos verificar na análise e na interpretação do artigo 121 do Código Penal brasileiro (crime de homicídio), que assim estabelece: “Matar alguém: Pena – reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.”
Diante dessa fonte normativa de direito penal, qualquer cidadão brasileiro que matar alguém no território nacional estará sujeito à pena prevista no artigo 121 do Código Penal.
Contudo, no Brasil, existem tribos indígenas que vivem isoladas no interior da floresta amazônica e que apresentam um código ético e, por que não dizer, jurídico de conduta (ou seja, um conjunto normativo próprio com exclusividade de fonte de direito) próprio.
Diante desse código ético de conduta diferenciada, muitas mães indígenas praticam homicídio ou infanticídio contra as crianças que nascem com algum defeito físico ou são provenientes de relações extraconjugais, sob a alegação étnica, cultural e religiosa de que essas crianças teriam sido incorporadas por maus espíritos e de que a desgraça do nascimento poderia atingir a própria mãe ou a comunidade indígena como um todo. Diante dessa crença cultural, as mães enterram vivos os seus filhos para apaziguar os deuses.(28)
Sacrifícios humanos não são um comportamento exclusivo dos indígenas brasileiros. Também os astecas, no México, ofereciam aos seus deuses o coração de seus inimigos como forma de apaziguá-los. Talvez o sacrifício de aproximadamente 15.000.000 de índios, entre astecas (México), maias (Guatemala, Honduras e Sul do México) e incas (Peru, Bolívia, Chile e Equador), não tenha decorrido apenas da cobiça do ouro e da prata, mas também da diversidade cultural. Como nos ensina Hannah Arendt, no Século 17, quando os bôeres (na maioria, brancos holandeses) colonizaram a África do Sul, a segregação racial não se dava tanto pela cor da pele, mas pelo fato de que os afrodescendentes se comportavam como se fizessem parte da natureza, o que para os europeus significou a inexistência de um âmbito humano separado do mundo natural. Segundo os colonizadores, essa ligação íntima dos nativos com a natureza transformava-os em seres estranhos à espécie humana. Tendo em vista que pertenciam à natureza, passaram a ser um “objeto” a ser explorado, o que justificava serem configurados como escravos (mão de obra de produção mecânica) ou mesmo dizimados.(29)
Na visão de Karl-Otto Apel:
“Aproximadamente en el año 1500, las poblaciones indígenas de América, del África negra y de grandes partes de Asia fueron arrancadas (en general de manera violenta) de sus condiciones naturales y socioculturales de vida, siendo también en parte fuertemente diezmadas o exterminadas de plano; fueron asimismo despojadas en parte de sus avanzadas culturas, así como de su orden social; fueron esclavizadas y, en cualquier caso, condenadas a convertirse en su ‘grupo marginal’ extremadamente pobre de la humanidad, un grupo, además, dependiente económica y culturalmente del Norte.”(30)
Ginés de Sepúlveda, o filósofo moderno propriamente dito, “justificó la superioridad y violencia de la subjetividad moderna sobre las otras culturas”. Bartolomé de Las Casas, por sua vez, “inicia el ‘contra-discurso’ de la Modernidad, pero no desde Europa, sino desde la periferia mundial.”(31)
Evidentemente que para nós, ocidentais, de certa forma “racionais”, “direito à diversidade cultural nunca poderia ser evocado como justificativa para se tolerar práticas como a escravidão, a tortura, o genocídio ou o infanticídio”.
Contudo, não estamos diante de um cidadão ocidental brasileiro, culturalmente esclarecido e socialmente incorporado ao mundo “civilizado”, mas, sim, de mães indígenas, isoladas em sua cultura e em sua etnia de toda e qualquer influência da civilização ocidental, sem qualquer contato com essa civilização, bem como sem a mínima possibilidade de pensar e criticar, de forma racional, o mundo cultural, étnico e social em que se encontra envolvida, muito menos refletir sobre o significado da pessoa humana – valor tão significativo para as culturas ditas civilizadas ocidentais.
Como então, diante dessa diversidade interculturalista, poderíamos tratar de forma eminentemente positivista ou jusnaturalista a questão da validade da norma jurídica ou da legitimidade da fonte de direito para o efeito de sancionar penalmente a conduta dessas mães indígenas?
6 A racionalidade do Outro (concretude da vida humana) como critério de legitimação da fonte de direito diante do multiculturalismo
Diante dessa específica situação, representada por uma mulher indígena, sem qualquer vínculo com a cultura ocidental brasileira ou mesmo conhecimento crítico dessa diversidade cultural, devemos ter em mente a efetiva existência de um pluralismo jurídico no momento de analisar a questão da legitimidade da fonte de direito e resolver juridicamente a morte das crianças indígenas, segundo critérios que possam pôr em dúvida o denominado monismo jurídico.
Na realidade, “trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que pleiteia a supremacia de fundamentos ético-político-sociológico-culturais sobre critérios tecno-formais positivistas”.(32)
A multiplicidade de conflitos étnico-culturais entre normas de condutas e fontes normativas de direito pressupõe um rompimento necessário com perspectiva meramente formal do monismo de legitimidade jurídica como projeto da modernidade, pois a concretude da vida humana, sua diversidade social, cultural e étnica, passa a ser o fundamento legitimador mais importante para a aplicação ou não de determina fonte de direito.
A ética da concretudecorresponde ao critério de interligação entre o multiculturalismo e a legitimação da fonte do direito.
Por meio da inserção de uma ética de concretude da vida, justifica-se o reconhecimento da “exterioridade do outro” como razão de ser da análise da validade e da aplicação de determinada fonte normativa do direito.
Fala-se em reconhecimento da “exterioridade do outro”, e não simplesmente de tolerância em relação ao outro, pois tolerar não significa reconhecer a independência e a autonomia cultural, étnica e racial.
Parte-se de um pressuposto ético de que “[...] o fundamento do direito consiste numa especificação da racionalidade enquanto exterioridade”.(33)
A ética, como ciência normativa da conduta humana, é, portanto, o pressuposto fundante da legitimidade da fonte do direito quando diante de determinados conflitos de normatividade e de valores culturais, uma vez que essa ciência comportamental não se satisfaz com a mera descrição da conduta do ser humano. Usualmente aspira-se que o comportamento humano siga determinadas diretrizes consideradas necessárias ao seu aperfeiçoamento.
É na ética como ciência normativa que se irá estabelecer uma nova leitura sobre a aplicabilidade de determinado sistema normativo, para justificar um comportamento que leve em consideração as diferenças sociais, econômicas, culturais daqueles que participam da relação jurídica processual, civil ou penal.
Buscam-se para isso subsídios categóricos na filosofia da libertação, para a qual: “(...) o ser é o Outro, o simplesmente Outro, o absolutamente Outro em contraposição com o eu egoístico da subjetividade moderna ocidental (...)”.(34)
Não se trata, portanto, de uma ética regional, helenocentrista, egoísta e subjetivista, mas de uma ética de caráter universal, mais radical, que ultrapassa as denominadas éticas materiais regionais, que se baseiam exclusivamente numa totalidade dominadora, sem reconhecer a exterioridade daqueles que estão à margem desse sistema totalizador.
E essa ética de caráter universal somente pode decorrer, conforme afirma o filósofo argentino radicado no México Enrique Dussel, da constatação antropológica de que o ser humano é o único ser vivente responsável pela sua própria vida e da “(...) obligación universal de producir, reproducir y desarrollar la vida humana concreta de cada sujeto ético en comunidad”.(35) Esse princípio caracteriza-se por ser um princípio a priori universal e também fundamental, ainda que não suficiente, para a construção de uma ética da libertação, isto é, “(...) de una ética que intenta justificar filosoficamente las luchas de los oprimidos”.(36)
É na produção, na reprodução e no desenvolvimento da vida humana que Enrique Dussel estabelecerá o fundamento material de sua ética filosófica da vida. A vida humana, portanto, é o conteúdo específico da ética.(37)
Trata-se de um critério que tem por objeto produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade. Para Enrique Dussel, esse critério serve de fundamentação a um princípio que, por sua vez, terá pretensão de universalidade, realizando-se através das culturas e dos valores a serem perseguidos.(38)
Em razão desse princípio ético material, “(...) toda norma, ação, microestrutura, instituição ou eticidade cultural tem sempre e necessariamente como conteúdo último algum momento da produção, da reprodução e do desenvolvimento da vida humana em concreto”.(39)
A Ética da concreção é a ética moderna, isto é: “A ética do nosso tempo é uma Ética existencial, que põe acima de tudo a pessoa humana, não como abstração, à maneira de Boécio, mas como uma concreção vital, como valor fonte dos demais valores”.(40)
É com base no critério material (vida humana concreta) que se devem subsumir os outros aspectos materiais (como os valores, a lógica das pulsões etc). Esse critério material igualmente permite fundamentar ou desenvolver um princípio ético universal, supracultural.(41)
Esse critério de produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana não é algo a ser imputado à consciência humana, a um certo “consciencialismo” moderno que faz perder o sentido da corporalidade orgânica da existência ética.(42)
Se a espécie humana está formatada neurocerebralmente para a preservação e o desenvolvimento da vida humana, tal critério não é diferente nas relações sociais, como é o caso do direito e do processo, razão pela qual a atuação do juiz deverá ser guiada por esse “critério de verdade” prática.(43)
Esse critério material sobre o qual se funda a ética, a produção a reprodução e o desenvolvimento da vida humana é universal, não solipsista, mas comunitário. Diz respeito a uma comunidade de vida.
Se a humanidade perdesse essa consciência do Outro, diante de sua miséria, de sua impotência social, econômica e cultural, poderia precipitar-se num suicídio coletivo.(44)
O reconhecimento do Outro, como forma de produção e reprodução de desenvolvimento da vida humana, transforma-se de um critério de verdade prática numa exigência ética: no dever-reconhecer.(45)
O Poder Judiciário, como instrumento dessa ética existencial, pois é uma instituição que também atua mediante princípios éticos, deve pautar sua ação prática racional, no momento de realizar sua atividade básica e essencial, segundo o princípio material universal de produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana. Para tanto, deve (princípio ético) reconhecer as desigualdades sociais, econômicas e culturais que possam existir no âmbito da relação jurídica processual. Em outras palavras, deve reconhecer o “outro” como vítima potencial de um sistema totalizado.
Por tudo isso:
“(...) propomos a seguinte descrição inicial do que chamaremos princípio material universal da ética, princípio da corporalidade como ‘sensibilidade’ que contém a ordem pulsional, cultural-valorativa (hermenêutica-simbólica), de toda norma, ato, microfísica estrutural, instituição ou sistema de eticidade, a partir do critério da vida humana em geral: aquele que atua eticamente deve (como obrigação) produzir, reproduzir e desenvolver auto-responsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano, numa comunidade de vida, a partir de uma ‘vida boa’ cultural e histórica (seu modo de conceber a felicidade, com uma certa referência aos valores e a uma maneira fundamental de compreender o ser como dever-ser, por isso também, com pretensão de retidão) que se compartilha pulsional e solidariamente, tendo como referência última toda a humanidade, isto é, é um enunciado normativo com pretensão de verdade prática e, além disso, com pretensão de universalidade.”(46)
Mas, diante das desigualdades sociais, econômicas e culturais, somente se pode postular um critério/princípio da produção, da reprodução e do desenvolvimento da vida humana no âmbito do conflito de fontes normativas, sob um aspecto material positivo, desde que se perceba o surgimento do “rosto” que se destaca na ordem social vigente e que representa as vítimas não intencionais ou mesmo intencionais de um determinado sistema totalizado e, por que não dizer, globalizado. Isto é, “(...) o rosto sensível do outro homem, que tem fome e sangue, encontra-se para além do sistema onde o ser é o pensar (...). O ‘tu’, outro homem, é exterior ao âmbito ser-pensar (...).”(47)
Enrique Dussel, voltado para a efetiva existência do outro além de um determinado sistema, reporta-se, a partir dessa vítima, à verdade do sistema totalizador que começa a ser descoberta como não verdade, ao válido como não válido e ao factível como não eficaz. A construção temática passa do âmbito da positividade para a negatividade da existência de vítima.
A ética propriamente dita é a que a partir das vítimas pode julgar criticamente a “totalidade” de um sistema de eticidade.
É a partir da exterioridade de uma dada totalidade, em que se situam as vítimas, que se estabelece uma consciência crítica do sistema de eticidade dado. As vítimas “(...) são reconhecidas como sujeitos éticos, como seres humanos que não podem reproduzir ou desenvolver sua vida, que foram excluídos da participação na discussão (...)”.(48) No sistema de eticidade, “o bem” inverte-se no “mal” e causa dor, sofrimento, infelicidade ou a própria morte das vítimas.
É na Alteridade do Outro “como outro” que o sistema ético crítico se impõe. É a alteridade da vítima como oprimida (classe) ou como excluída (culturalmente). É o descobrimento do “outro” que se encontra encoberto pelo mito da Modernidade. Trata-se de uma ética que demonstra o terror de uma razão fechada na Totalidade, entre outras, a razão da Modernidade.
O “Outro” interpela-nos como vítima, como pobre, como oprimido, como culturalmente diferenciado, como índio, não como “Senhor”. A vontade é livre para assumir essa responsabilidade no sentido que queira, mas não é livre para recusar essa responsabilidade em si mesma.
Por isso, somente com o reconhecimento da exterioridade do Outro, no caso da mulher indígena que se encontra incorporada e moldada por seus sistemas ético, social e cultural, muito embora também reconhecida como cidadã brasileira, é que se pode romper com a totalidade de um sistema fechado e restritivo de fontes do direito.
Essa mulher indígena, exterior ao sistema de cultura dominante, não consegue participar do sistema totalizador vigente, justamente porque pertence à exterioridade do Outro, e não compreende o sentido do discurso jurídico do sistema fechado na sua racionalidade.
Não se deve esquecer que uma das condições indispensáveis para a validade de toda comunicação social é a inteligibilidad. E em razão dessa falta de inteligibilidad, ou patologias de la comunicación, como diz Habermas, a mulher indígena encontra-se fora da normatividad e do “mundo da vida” dos demais brasileiros “civilizados”; ou seja, estamos diante da exclusão do Outro da respectiva comunidade de comunicação. Daí a dificuldade das quatro pretensões de validade exigidas para a comunicação de toda e qualquer fonte normativa de direito: a) a de se estar expressando de forma inteligível; b) a de estar possibilitando a compreensão de algo; c) a de estar compreendendo-se a si mesmo; e d) a de estar entendendo-se com os outros.
Portanto, a legitimidade das fontes do direito nas sociedades contemporâneas está no efetivo reconhecimento da exterioridade do Outro e no reconhecimento de que a concretude do ser humano (como ser cultural, histórico e social) deve ser considerada no momento de se reconhecer o critério de aplicação ou não de uma determinada fonte de direito na resolução dos conflitos sociais. Como diz Dussel: “El miembro de otra cultura, el Otro cultural, ‘interpela’ por los derechos culturales populares propios (africanos, asiáticos, indígenas latinoamericanos, negros norteamericanos etc.). Es lucha a vida o muerte”.(49)
Na verdade, o que se pretende dizer é que se deve romper com o denominado monismo jurídico para proclamar aquilo que conhecemos como sendo o pluralismo jurídico, como a multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos,podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.(50)
Bibliografia
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Notas
1. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Forense, v. I e II, A-C e D-I, 1984. p. 311.
2. DE PLÁCIDO E SILVA., ibidem, loc. cit.
3. REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 11.
4. LIMA, João Franzen de. Curso de Direito Civil Brasileiro,v. I, introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, s/d. p.30.
5. PRADO, Luiz Régis; KARAM, Munir, Estudos de Filosofia do Direito.São Paulo: Revista dos Tribunais, s/d. p.73-74.
6. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.Trad. João Baptista Machado. 3. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1974. p. 323-324.
7. PRADO, L.; KARAM, M., op. cit., loc. cit.
8. REALE, Miguel, Lições Preliminares de Direito.Saraiva, 9. ed., p. 141-142
9. REALE, M.Ibidem, loc. cit.:. “Não vamos aqui abrir aulas sobre Etnologia jurídica, mas apenas fazer algumas indagações, a fim de que não se pense que o problema da lei surgiu repentinamente, ou que o problema da jurisdição, da atividade decisória dos juizes, tenha acompanhado o homem desde as suas origens. Não foi assim. O Direito foi, em primeiro lugar, um fato social bem pouco diferenciado, confuso com outros elementos de natureza religiosa, mágica, moral ou meramente utilitária. Nas sociedades primitivas, o Direito é um processo de ordem costumeira. Não se pode nem mesmo dizer que haja um processo jurídico costumeiro, porquanto as regras jurídicas se formam anonimamente no todo social, em confusão com outras regras não jurídicas. Os costumes primitivos são como que uma nebulosa da qual se desprenderam, paulatinamente, as regras jurídicas, discriminadas e distintas das regras morais, higiênicas, religiosas e assim por diante. Esse período do Direito costumeiro, diferenciado ou não, é o mais longo da humanidade. Alguns calculam em dezenas e até mesmo em centenas de milhares de anos a fase em que as formas de vida religiosa, jurídica etc., ainda não se distinguiam umas das outras. Mesmo quando a espécie humana começou a ter vaga noção dessas distinções; o Direito foi, durante milênios, pura e simplesmente um amálgama de usos e costumes. O homem viveu, preliminarmente, o Direito de forma anônima. Os processos de revelação do Direito primitivo, ou de sua concretização, constituem objeto de uma disciplina que se chama Etnologia jurídica. Os grandes etnólogos contemporâneos formulam hipóteses sugestivas sobre os fatores de produção das regras do Direito arcaico. Para simplificar a matéria, diremos que são dois os grandes canais, por meio dos quais o Direito se origina como costume. Um é representado pela força, pelo predomínio de um chefe – força aqui tomada na sua acepção tanto moral como física –, porque, às vezes, a supremacia de um indivíduo se impunha na tribo pelo prestígio de sua inteligência, de sua sabedoria, de sua astúcia, mais do que pela potência de seus músculos. O outro meio de expressão do Direito costumeiro primitivo manifesta-se através de procedimentos religiosos ou mágicos. Há uma ligação muito íntima entre o elemento mágico ou místico e as primeiras manifestações da vida jurídica. O homem primitivo, longe de ser o liberto, o emancipado de laços, como foi pintado pelos idealizadores de um paradisíaco ‘estado de natureza’, supostamente anterior à sociedade organizada, é antes um ser dominado pelo temor e que precisa defender-se de todos e de tudo. Podemos dizer que, antes de mais nada, ele se defende de si mesmo pela sua angústia permanente em face da existência, ante a natureza que o envolve e que ele não compreende. Essa posição do homem primitivo dá uma coloração mágica às primeiras regras jurídico-sociais que se ocultam na noite dos tempos. Não pensem que o Direito surgiu com os romanos ou que tenha a história curta do Código do rei Hamurabi, que é de dois mil anos antes de Cristo. Os etnólogos nos afirmam que, em épocas remotas, houve cavernas em que trabalhavam dezenas de indivíduos empenhados na fabricação de machados neolíticos, para serem vendidos em mercados distantes. A existência dessas cavernas implica uma discriminação de tarefas já naquela época e, por conseguinte, uma relação entre senhores e escravos, primeira e tosca forma de relação de trabalho, visando à realização de trocas etc. A Lei das XII Tábuas, que estão estudando em Direito Romano e é um documento fundamental do Direito do Ocidente, também se caracteriza por ser uma consolidação de usos e costumes do povo do Lácio. A lei não se distinguia do costume, a não ser por este elemento extrínseco, de ser escrita: apenas esculpia, para conhecimento de todos, aquilo que o poder anônimo do costume havia revelado. É só com o decorrer do tempo, por meio de uma longa experiência científica, que a lei passa a ter valor em si e por si, traduzindo a vontade intencional de reger a conduta, ou de estruturar a sociedade de modo impessoal e objetivo. Ao mesmo tempo em que se forma a norma legal ainda presa umbilicalmente ao costume, surge também a jurisdição. Quando aparece um órgão incumbido de declarar, no caso concreto, o que é o Direito, já estamos na adolescência da vida jurídica. O Direito primitivo é um Direito anônimo. Não sabemos quando nem onde surge o costume. A princípio é um chefe que, por um ato de prepotência ou astúcia, impõe uma regra de conduta. É bem possível que esta tenha ficado, durante alguns anos, ligada à sua pessoa. Aos poucos, porém, o nome cai no olvido e outra iniciativa vem ligar-se àquela, completando-a, modificando-a. Como bem se percebe, o Direito costumeiro é um Direito anônimo por excelência, é um Direito sem paternidade, que vai se consolidando em virtude das forças da imitação, do hábito, ou de ‘comportamentos exemplares’. Já em estágio mais evoluído da civilização, aparecem os primeiros órgãos, cuja finalidade específica é conhecer o Direito e declará-lo. São os chamados órgãos de jurisdição – jurisdicere, dizer o que é de direito em cada caso concreto, esta é a obra do juiz, é a obra dos pretores. O Direito Romano é um Direito doutrinário e jurisprudencial por excelência, porquanto é orientado pelo saber dos jurisconsultos combinado com as decisões dos pretores, ambos atuando em função da experiência. A grandeza de Roma não consistiu em doutrinar o Direito, mas em vivê-lo. Não existe uma teoria jurídica romana, na qual se procure, de maneira clara e intencional, distinguir o jurídico do não jurídico. Existiu, entretanto, uma experiência jurídica bem clara e bem consciente de sua especificidade. Quando surgia uma demanda, os juizes julgavam segundo a ratio júris,e não segundo critérios morais. Situando o problema no domínio propriamente jurídico, criaram órgãos destinados especialmente a esse fim. Outros povos já haviam percebido esse problema, como, por exemplo, o povo grego, mas é em Roma que a consciência da jurisdição aparece de maneira clara e concreta, por estar vinculada cada vez mais a um sistema objetivo de regras de competência e de conduta. Foi nesse momento que a Ciência do Direito lançou a sua base mais sólida e começou praticamente a existir, exigindo a elaboração de categorias lógicas próprias, através do trabalho criador dos jurisconsultos. Foi só mais tarde, bem mais tarde, depois do Direito Romano clássico, isto é, quando começou a decadência do mundo romano, que a lei,ou melhor, o processo legislativo,passou a prevalecer sobre o processo jurisdicional como fonte reveladora do direito.
10. TAYLOR, Charles. As fontes do self – a construção da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1994. p. 125.
11. TAYLOR, C., ibidem, p. 125 e 126.
12. TAYLOR, C., ibidem, p. 126 e 127.
13. TAYLOR, C., ibidem, p. 135.
14. DWORKIN, Ronald. La justicia con toga.Madrid: Marcial Pons, 2007. p.128.
15. DWORKIN, R., ibidem, p. 126.
16. DWORKIN, R., ibidem, p. 125.
17. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico – fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994. p. 39, 40, 58 e 59.
18. WOLKMER, A. C., ibidem, p. 39-40.
19. WOLKMER, A. C., ibidem, p. XII.
20. WOLKMER, A. C., ibidem, p. 62.
21. WOLKMER, A. C., ibidem, p. 63.
22. FALCON Y TELLA, Maria José. Conceito e fundamento de validade do direito, Trad. Stefani Borba de Rose Trunfo, Editora Triângulo, s/d, p.15.
23. WOLKMER, A. C., op. cit., p. XI.
24. FALCON Y TELLA, M. J., op. cit., p. 16-17.
25. FALCON Y TELLA, M. J., ibidem.
26. WOLKMER, A. C., op. cit., p. XI.
27. WOLKMER, A. C., ibidem.
28. INFANTICÍDIO nas comunidades indígenas do Brasil. Projeto Hakani. Disponível em: <http://www.hakani.org/pt/infanticidio_entrepovos.asp>. Acesso em: 21 fev. 2010:
“Enquanto faltam dados confiáveis, muitas das mortes por infanticídio são mascaradas nos dados estatísticos como morte por desnutrição ou causas inespecíficas.
Um dos primeiros desafios na erradicação do infanticídio é o levantamento de dados confiáveis. A tendência do governo é tentar minimizar o problema. Para o coordenador de assuntos externos da FUNAI, Michel Blanco Maia e Souza, os casos de infanticídio não merecem maior atenção do governo. ‘Não temos esses números, mas acredito que sejam casos isolados.’
Com base no Censo Demográfico de 2000, pesquisadores do IBGE constataram que, para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto, no mesmo período, a população não indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. A taxa de mortalidade infantil entre índios e não índios registrou diferença de 124%. O Ministério da Saúde informou, também em 2000, que a mortalidade infantil indígena chegou a 74,6 mortes nos primeiros 12 meses de vida. Curiosamente, nas notícias do IBGE e do Ministério da Saúde não há qualquer explicação da causa mortis.
Muitas das mortes por infanticídio vêm mascaradas nos dados oficiais como morte por desnutrição ou por outras causas misteriosas (causas mal definidas – 12,5%; causas externas – 2,3%; outras causas – 2,3%).
Segundo a pesquisa de Rachel Alcântara, da UNB, só no Parque Xingu são assassinadas cerca de 30 crianças todos os anos. E, de acordo com o levantamento feito pelo médico sanitarista Marcos Pellegrini, que até 2006 coordenava as ações do DSEI-Yanomami, em Roraima, 98 crianças indígenas foram assassinadas pelas mães em 2004. Em 2003 foram 68, fazendo dessa prática cultural a principal causa de mortalidade entre os yanomami.
A prática do infanticídio tem sido registrada em diversas etnias, entre elas estão os uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi.
‘Não existem dados precisos... O pouco que se sabe sobre esse assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que repassa as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da Saúde e lá se transformem em ‘mortes por causas mal definidas’ ou ‘externas’. Marcelo Santos, em ‘Bebês Indígenas Marcados para Morrer’ (Revista Problemas Brasileiros, SESC-SP, maio-junho/2007).”
29. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 223.
30. APEL, Karl-Otto. La ‘ética del discurso’ ante el desafío de la ‘filosofia de la liberación’ – un intento de respuestas a Enrique Dussel. In: Ética del Discuros y Ética de la Liberación. Madrid: Trotta, 2005. p. 196-197.
31. DUSSEL, Enrique. Respuesta inicial a Karl-Otto Apel y Paul Ricoeur (sobre el ‘sistema mundo’ y la ‘económica’ desde la ‘razón ética’ como origen del proceso de liberación). In: Ética del Discurso y Ética da La Liberación. Madrid: Trotta, 2005. p. 223.
32. WOLKMER, A. C., op. cit., p. XI.
33. LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razão: racionalidade jurídica e fundamentação do direito. Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de doutor no Curso de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997, p. 208.
34. ZIMMERMANN, Roque. América Latina: o não ser.2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 44.
35. COROMINAS, Jordi. Ética primera:Aportación de X. Zubiri al debate ético contemporáneo. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000. p. 74.
36. COROMINAS, J., ibidem, loc. cit.
37. “(...) O ser humano acede à realidade que enfrenta dia a dia a partir do âmbito de sua própria vida. A vida humana não é um fim nem um mero horizonte mundano-ontológico. A vida humana é o modo de realidade do sujeito ético (que não é o de uma pedra, de um animal irracional ou da ‘alma’ angélica de Descartes), que dá o conteúdo a todas as suas ações, que determina a ordem racional e também o nível das necessidades, pulsões e desejos, que constitui o marco dentro do qual se fixam fins. Os ‘fins’ (relativamente à razão instrumental formal weberiana) são ‘colocados’ a partir das exigências da vida humana.” (DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão.2. ed., Trad. Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 131)
38. DUSSEL, E., Ibidem, p. 93.
39. DUSSEL, E., ibidem, loc. cit.
40. REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (coord.). Uma nova ética para o juiz. São Paulo: RT, 1994. p. 146.
41. “De fato, não há ‘um horizonte último comum’ cultural, mas há um princípio material universal interno a cada uma e a todas as culturas, e isto Taylor não vê. Não é um ‘horizonte’; é um modo de realidade: a própria vida humana”. (DUSSEL, E., op. cit., 2002, p. 122)
43. “Do ponto de vista cerebral, o sistema avaliativo/afetivo cerebral responde da seguinte forma: em primeiro lugar responde às necessidades objetivas primeiras; em segundo lugar, articula-se com o nível linguístico-cultural e histórico; em terceiro lugar responde às exigências superiores e culturais universais de uma ética crítica. (Ibidem, p. 104)
44. “O projeto da Libertação dos oprimidos e dos excluídos é aberto, partindo da exclusão do Outro e indo mais além (jenseits) de qualquer situação apresentada. A estruturação de alternativas – mesmo que fosse necessária (o que não podemos descartar a priori) a de uma utopia ou a de uma nova sociedade – não consiste na ‘aplicação’ de algum modelo ou situação ideal ou transcendental, nem tampouco na execução autêntica de um determinado ‘mundo da vida’ (quer seja ele o moderno ou outro diferente), muito menos se for idealizado como efeito indestrutível de uma lógica necessária (a da teologia ou razão histórica de Hegel ou a do marxismo standart ou de Stalin); mas deverá ser uma ‘des-coberta’ responsável, como resposta à ‘interpelação’ do Outro, dentro de um lento processo de prudência (em que a teoria de uma ‘comunidade de comunicação real’ – que racional e processualmente chega a um consenso de validade intersubjetiva – nos ajuda a compreender melhor o progredir seletivo da fronésis de libertação), durante o qual o filósofo (tal como ‘intelectual orgânico’ de Gramsci deve tratar com seriedade as motivações éticas (com Taylor) da libertação dos oprimidos e excluídos.” (DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. Crítica à ideologia da exclusão. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. p. 119-120)
45. DUSSEL, E., Ibidem., 2002. p. 141.
47. DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação: superação analética da dialética hegeliana. São Paulo: Loyola, 1986. p. 148.
48. “(...) o sistema de eticidade vigente, que era para a consciência ingênua (que pode ser científica, ocupar a função de autoridade política ou econômica, ou ainda ser membro da elite moral do sistema, a ‘raça sacerdotal’ de Nietzsche) a medida do ‘bem’ e do ‘mal’, converte-se diante da presença de suas vítimas, enquanto sistema, no perverso (o ‘mau’). É toda a questão do ‘fetichismo’ de Marx, a ‘inversão dos valores’ de Nietzsche, a descoberta do ‘superego’ repressor em Freud, a sociedade ‘excludente’ de Foucault, a ‘dialética negativa’ em Adorno e a ‘totalidade’ de Lévinas.” (Ibidem, p. 303)
49. DUSSEL, Enrique; APEL, Karl-Ott. Ética del discurso y ética de la liberación. Madrid: Trotta, 2004. p. 162.
50. WOLKMER, A. C., op. cit., p. XII.
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