Ausência de notificação do acusado para apresentação de defesa preliminar (art. 514 do CPP): nulidade absoluta ou relativa?


Autor: Danilo Andreato

Professor de Direito Penal e Processual Penal do Curso Aprovação, Especialista em Direito Criminal pela UniCuritiba, Titulado em Formação Especializada em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha)

publicado em 16.12.2010

Já disse o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, com acerto, que não se interpreta o Direito em tiras. Por isso, para melhor compreensão do art. 514 do Código de Processo Penal – análise que se centrará apenas na natureza da nulidade advinda do seu não cumprimento –, é fundamental interpretá-lo aliado ao dispositivo que o precede, o art. 513, assim redigido:

“Nos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, cujo processo e julgamento competirão aos juízes de direito, a queixa ou a denúncia será instruída com documentos ou justificação que façam presumir a existência do delito ou com declaração fundamentada da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.”

O Código de Processo Criminal de 1832 não admitia a instauração de inquérito policial nos crimes praticados por funcionários públicos, os chamados crimes funcionais.

De acordo com José Frederico Marques, citado pelo ministro do STF Sepúlveda Pertence no voto condutor do julgamento do Habeas Corpus 89.686/SP, essa inadmissão foi desarrazoadamente reproduzida por nossos legisladores no CPP/1941, ainda vigente no Brasil, razão pela qual o seu art. 513 menciona a necessidade de a ação penal estar instruída com documentos ou justificação – leia-se “peças de informação” – a permitirem a percepção indiciária do delito.

Será dispensada a apresentação dessas peças de informação somente quando não for possível exibi-las, conforme ressalvado na parte final do dispositivo, situação em que, a título de substituição, haverá “declaração fundamentada da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas”. O art. 513 do CPP não alude a inquérito porque, à luz do Código de Processo Criminal de 1832, não era possível a sua instauração com o propósito de apurar crimes funcionais. Só por isso.

Como atualmente não há norma jurídica que impeça a instauração de inquérito policial para investigação de crimes funcionais, cujo processo na esfera judicial deverá seguir o procedimento estipulado nos arts. 513 a 518 do CPP, é de se concluir que as peças de informação exigidas pelo art. 513 serão prescindíveis quando houver o respectivo inquérito em que tenham sido coletados os elementos necessários para subsidiar eventual ação penal.

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, em 13.09.2006, sedimentou na Súmula 330 o entendimento sobre a dispensabilidade da resposta preliminar prevista no art. 514 do CPP nos casos em que a ação penal estiver embasada em inquérito. Eis o seu teor: “É desnecessária a resposta preliminar de que trata o art. 514 do Código de Processo Penal, na ação penal instruída por inquérito policial”.

Para o STJ, o acusado já teve a oportunidade de expor suas justificativas na etapa extrajudicial e, por essas justificativas não terem se revelado o bastante para que o Ministério Público deixasse de promover ação penal, não seria necessário conceder-lhe nova oportunidade, no caso, a defesa preliminar do art. 514 do CPP.

Embora o STF também comungasse desse posicionamento, o giro hermenêutico veio em 28.02.2007, no julgamento do HC 85.779/RJ. Sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, na ocasião, fixou-se como obiter dictum que a ausência da notificação prévia estabelecida no art. 514 do CPP constitui violência ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, da CF), ao direito constitucional de defesa (art. 5º, LV, da CF), ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) e ao contraditório (art. 5º, LV, da CF). Isto é, passou o STF a entender que a falta de notificação prévia do art. 514 do CPP não se cuidava de nulidade relativa, mas sim de nulidade absoluta (STF, Tribunal Pleno, HC 85.779/RJ, DJU 29.06.2007).

Obiter dictum,
que no plural é obiter dicta,é uma locução latina usada para designar os argumentos empregados na motivação da decisão, os quais, porém, não têm força vinculante, porque são juízos acessórios, secundários, que não compõem a razão de decidir (ratio decidendi).

Mesmo sem caráter vinculante, esse obiter dictum manejado no HC 85.779/RJ por Gilmar Mendes foi utilizado pela 1ª Turma do STF, que, em 12.06.2007, por votação unânime, afirmou que o fato de a denúncia fundamentar-se em inquérito policial não dispensa a defesa preliminar do art. 514 do CPP (1ª Turma, HC 89.686/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 17.08.2007).

Na sessão do dia 17.03.2009, foi a vez da 2ª Turma do STF decidir que a circunstância de a denúncia estar embasada em elementos de informação colhidos em inquérito policial não dispensa a obrigatoriedade, nos crimes afiançáveis, da defesa preliminar de que trata o art. 514 do CPP. Ao considerar que o descumprimento do art. 514 é causa de nulidade absoluta, a 2ª Turma anulou, desde o início, ação penal instaurada para apurar suposta prática dos delitos imputados a servidor público que não fora intimado a oferecer a referida defesa preliminar (HC 96.058/SP, Rel. Min. Eros Grau, Informativo 539).

Como se vê, a Súmula 330 do STJ está superada, não devendo mais ser aplicada, tendo em vista a firme posição do STF, que lhe é posterior, de reconhecer a desobediência ao art. 514 do CPP como causa de nulidade absoluta.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2010. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS