Parecer: Alienação fiduciária em garantia. Bens do patrimônio do devedor. Art. 66, §§ 2º e 3º, do Decreto-Lei nº 911/69. Relevância da questão federal.(1)


Autor: Carlos Thompson Flores(2)

Ministro aposentado e ex-Presidente do STF

 publicado em 30.08.2011

O Banco de Desenvolvimento do Estado do Rio Grande do Sul – Badesul, por intermédio de um de seus procuradores judiciais, solicitou-me o exame da possibilidade de emitir parecer jurídico, a respeito da viabilidade de interposição de recurso extraordinário contra a decisão proferida pela Eg. Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, em data de 08.09.88.

Dita decisão houve por bem, à unanimidade, prover a apelação manifestada pela Coricel Comércio Riograndense de Cereais Ltda., reformando a sentença que acolhera o pedido de restituição de bens por ela dados em alienação fiduciária, formulado pelo consulente perante o juízo falimentar da devedora.

Para o devido exame das questões suscitadas, encaminhou-me o consulente farta documentação, extraída dos respectivos autos, e em forma de xerocópias.

Do estudo que procedi sobre o tema, convencido fiquei não só da cabência do recurso extraordinário, mas da possibilidade de alcançar sucesso perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal.

Por isso, e só assim, como tenho costumeiramente feito, dispus-me a proporcionar  ao consulente este parecer.

É o que, a seguir, passo a fazer.

I Os fatos

1. Os fatos, no que interessa para o esclarecimento do tema jurídico em apreciação, podem ser assim sumariados.

2. Por meio de longa e minuciosa escritura pública, lavrada perante o 1º Tabelionato desta Capital, em 05.01.79, em contrato de abertura de crédito, com garantia real e fidejussória, houve por bem o consulente, como colaboração financeira, abrir em prol da Coricel um crédito nunca superior a 18.261, em Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), a ser levantado em parcelas, sujeitas à detalhada disciplinação. Além de garantia hipotecária de seus bens imóveis, em particular, e da Sociedade, e de fiança de terceiros, ofereceu a Sociedade, em alienação fiduciária, bens móveis de sua propriedade, constantes de maquinaria destinada à sua específica atividade, a qual, com pormenores, ficou descrita na respectiva escritura.

3. Aconteceu que, decorridos quatro anos de vigência do contrato em questão, em 07.01.83, foi declarada a falência da devedora, passando, a partir de então, os bens dados em alienação fiduciária, via arrecadação, a integrar o acervo falimentar.

II Do procedimento judicial

1. Diante do ocorrido, formulou o consulente, perante o juízo da falência, pedido de restituição dos comentados bens que, como garantia da dívida, haviam sido dados em alienação fiduciária.

2. Dita dívida, à data do ajuizamento do pedido, 10.03.83, segundo cálculo do requerente, somava a importância de Cr$ 10.382.188,07.

3. Contestada a pretensão, a termo, sentenciou o magistrado, acolhendo o pedido. Fê-lo após desprezar a preliminar de intempestividade da contestação. E, apreciando a defesa arguida, reconheceu da admissibilidade fossem os bens objeto  da fidúcia, do pré-domínio do devedor; e, bem assim, que não eram eles imóveis, em qualquer sentido.

4. Inconformada, apelou a Sociedade devedora. E teve êxito, uma vez que, como antes referido, resultou provida a apelação. Considerou a Cda. Câmara julgadora que não prevaleceria a garantia proporcionada pela devedora apelante, pois os bens atribuídos em alienação fiduciária, antes do contrato, já integravam o patrimônio da devedora. Invoca, para tanto, precedentes do Tribunal, os quais também assim decidiram.

III Recurso Extraordinário

A) Considerações necessárias

1. O julgamento que está sendo considerado para o efeito de contra ele ser interposto recurso extraordinário teve lugar, como consignado ficou anteriormente, em 08.09.88.

Todavia, a publicação do julgado só presentemente ocorreu.

Nesse interregno sucedeu a promulgação, e posterior publicação, da vigente Constituição Federal de 5 de Outubro, a qual introduziu acentuadas alterações no recurso em questão. É o que decorre do confronto das respectivas disposições ora em vigor (art. 102, III, letras a, b e c, e das anteriores, art. 119, III, letras a, b, c e d).

2. Cabe, em tais circunstâncias, perquirir quais das normas apontadas regulam o extraordinário em comentário.

2.1. Considero que merecem aplicação, apenas,  as últimas. É que, entre nós, vige o princípio do direito adquirido processual, o que equivale a afirmar que "os postulados imperantes na data da Sentença resolvem sobre sua impugnabilidade, os remédios, a admissibilidade de qualquer recurso (...),” são expressões de Maximiliano, invocando doutrinadores e julgados do STF (Direito Intertemporal, F. Bastos, 2. ed., 1955, 278, n. 238, e nota 1).

3. Ademais, qualquer dúvida porventura ocorrente encontraria cabal solução segundo o disposto pela Constituição em vigor, no art. 27 do Ato de suas Disposições Transitórias, verbis:

"Art. 27 – § 1º – Até que se instale o Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal exercerá as atribuições e competências definidas na ordem constitucional precedente."

4. Em consequência, sendo certo que vige para o presente recurso o direito anterior, impõe-se seu exame frente ao que estatuía o já referido art. 119, III, e suas alíneas, em conjugação com os arts. 325 e seguintes, do Regimento Interno do STF, com a redação que lhes atribuiu a Emenda nº 2, de 04.12.85.

B) Do Recurso Extraordinário em sua substância

1. Para prover a apelação interposta pela Coricel, e, em consequência, desatender o pedido de restituição dos bens dados em alienação fiduciária ao Badesul, e ora na posse do acervo falimentar da citada devedora, assim se fundamentou o acórdão que se visa atacar via recurso extraordinário:

"Acontece que as máquinas e os equipamentos dados em garantia já faziam parte do patrimônio da devedora.

Inexiste a figura do vendedor indispensável para a configuração do negócio subjacente que é a compra e venda, que dá  causa à alienação fiduciária.

A Lei nº 4.728/65 e o Dec.-Lei nº 911/69, que tratam desta, tiveram como finalidade dinamizar os negócios, para facilitar a circulação da riqueza, base do capitalismo, procurando estimular a compra e a venda.

Por isso, além do vendedor e do comprador surge o financiador que recebe em garantia o próprio bem móvel financiado, servindo a compra e venda como negócio subjacente para causar a alienação fiduciária. Esta não pode existir sem aquela.

Como os bens dados em garantia já faziam parte do patrimônio do devedor, inexistiu a figura do vendedor, já que se trata de contrato de mútuo."

2. Verifica-se dos termos do julgado que inadmitiu ele a eficácia da garantia da dívida por meio de alienação fiduciária, pura e simplesmente, porque recaiu ela em bens que já integravam o patrimônio do devedor, o que, no seu entender, não é permitido nem pela Lei 4.728/65, nem pelo Decreto-Lei 911/69, todavia, sem precisar qual o dispositivo de uma ou de outra em que se arrimou.

3. Acontece que, em assim decidindo, divergiu o r. aresto de numerosos julgados de outros tribunais, ao apreciar a mesma tese, como, a seguir, passa a ser demonstrado, procurando, cuidadosamente, atender ao disposto no art. 322 do mencionado Regimento.

4. Versando, como no caso, pedido de restituição de bens dados em alienação fiduciária, com base no art. 74 da Lei Falimentar, admitiu-a o Eg. TJSP, por sua 1ª C.C., ao julgar a apelação 76.051, em 14.04.87.

Do acórdão padrão, destaco:

“Sem razão a sociedade falida e a massa falida quando sustentam que a alienação fiduciária foi irregularmente constituída, por ter por objeto bens já pertencentes à falida, quando somente poderiam incidir sobre bens adquiridos com o produto de financiamento que ela garante. Como realçado no douto parecer da fl. 139, da lavra do Procurador de Justiça, Dr. Claudio Ferraz de Alvarenga, é licita a alienação fiduciária em garantia de pagamento de cédula industrial recaindo em bens não adquiridos com o produto de financiamento assim obtido. Nesse sentido as lições de Paulo Restiffe Neto (Garantia Fiduciária, Ed. RT, 1975, p. 60) e Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, Forense, 1979, p. 73), com destaque para o argumento de que, se os bens garantidores podem ser até mesmo de terceiro, não faz sentido exigir não possam ser do próprio financiado, embora anteriormente adquiridos (Cf. fls. 141).” (destaquei) (in RT 622/64 e, também, Lex – RJTJSP 109/204)

5. Postos em confronto os dois vereditos, o paradigma mencionado, por meio do destaque transcrito e, notadamente, das expressões grifadas, sem qualquer dificuldade, apura-se que guardam inteira semelhança. Todavia, ao aplicar a lei pertinente, dissentiram no seu entendimento. É o que caracteriza o dissídio  pretoriano, a justificar, pelo fundamento da letra d do permissivo constitucional, o conhecimento do recurso.

6. No mesmo sentido podem ser indicados os julgados proferidos pelo TJRJ, na Ap. 1.281, julgada em 09.12.75 (RT 505/229 – xerox anexo), e pelo de SC na Ap. 18.634, julgada em 03.02.83, in Jurisprudência Catarinense, 39, p. 196-9 (xerox anexo).

6.1. Do primeiro, proferido, também, em pedido de restituição de bens dados em alienação fiduciária na falência, acentuou o acórdão concluindo, verbis:

“(...) Logo, admite a Lei [referia-se ao art. 66, § 2º, do Decreto-Lei 911/69] que, à época do contrato, o devedor já seja proprietário da coisa fiduciariamente alienada.” (destaquei)

6.2. Do segundo dos padrões, embora proferido em ação de depósito, oferece igual préstimo, ao afirmar, em sua ementa, extraída do corpo do acórdão, invocando o ensinamento do eminente ministro Moreira Alves, verbis:

“(...) O fiduciante participa do negócio translativo na condição de alienante.

A exigência legal é de ser ele proprietário do bem sobre o qual tenha poder de disposição." (destaquei)

7. Mas, além da divergência pretoriana, antes deduzida, a qual por si seria suficiente para abrir as portas ao conhecimento do extraordinário, encontra ele seguro apoio no permissivo constitucional da letra a.

Com efeito.

Aceitando a tese de que os bens postos em alienação fiduciária em garantia não podem ser aqueles que já integravam o patrimônio do devedor, à época do contrato, o julgado recorrido, sob o pretexto de atender ao disposto no art. 66, § 2º, do Decreto-Lei 911/69, ainda que conjugado com o § 3º, em verdade, lhes negou vigência. Isto é, deixou de aplicá-los, como devia, ignorou seu real sentido e alcance. É o entendimento que, ao preceito constitucional (art. 114, III, a, da CF de 1967), desde logo, lhe deu a Eg. Suprema Corte, conduzida pelo exaustivo voto do saudoso Min. Prado Kelly (RTJ 43/670-84).

8. Em verdade.

O núcleo da questão repousa, por inteiro, no art. 66 e seus dez parágrafos, do Decreto-Lei 911/69.

Disciplinaram tais normas, com detalhes, o direito material e processual pertinentes.

Todavia, por mais que se perquira, neles não se encontra uma palavra sequer que permita inferir da existência do óbice reconhecido pelo acórdão, ou seja, da impossibilidade de oferecer o devedor, em alienação fiduciária, bens que, ao tempo, já integravam o seu patrimônio.

Ao contrário, se o § 2º do citado artigo, reconhecendo que o alienante não seja, então, proprietário do bem a garantir, admitiu que outrem, terceiro, possa proporcionar a garantia.

8.1. Tal inferência harmoniza-se com o disposto no art. 28 do Decreto-Lei 413/69, ao estabelecer, com a mesma finalidade do Decreto-Lei 911/69, o instituto da alienação fiduciária em garantia, por meio de seu art. 19, II.

Diz o precitado dispositivo:

“Art. 28 – Os bens vinculados à cédula de crédito industrial continuam na posse imediata do emitente, ou de terceiro prestante da garantia real ..." (destaquei)

8.2. Em tais condições, se terceiro pode ser, também, garante, com os bens que já dispõe, que razão e que lógica proibiriam ser ela oferecida pelo próprio devedor, com bens que, à época, integravam o seu patrimônio? Nenhuma, é a natural resposta.

8.3. O que é mister não perder jamais de vista para dar acertada exegese, seja à lei do Mercado de Capitais  (Lei 4.728/65, com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei 911/ 69), seja às que a ela sucederam, e com a mesma finalidade,  a exemplo da que dispôs sobre títulos de crédito industrial (Decreto-Lei 413/69), é proporcionarem segura garantia ao credor, prevenindo-se de prejuízos futuros, no caso de inadimplência; e por meio de procedimento simples e rápido. É o que se vê sublinhado  na Exposição de Motivos que acompanhou o projeto do aludido Decreto-Lei 911, da lavra do então Ministro da Fazenda, Prof. Delfim Netto. Cabe transcrever suas observações finais.

Dizem elas, verbis:

“(...) A elaboração do projeto, em última análise, visa a dar maiores garantias às operações feitas pelas financeiras, assegurando o andamento rápido dos processos, sem prejuízo da defesa, em ação própria, dos legítimos interesses dos devedores." Apud P. Restiffe Neto (Garantia Fiduciária, RT, 2. ed., 1976, p. 617; os destaques são nossos)

8.4. Tal orientação é que servirá de seguro roteiro ao intérprete da legislação em comentário. Nela, ademais, não há de caber a interpretação restritiva como bem assinala o mestre Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, For., 3. ed., 1987, p. 100 e s., invocando bem deduzido estudo do juiz e professor Penalva Santos, in R.F. 253/77).

Dita exegese, restrita e limitativa, desvirtuaria o sentido dessa legislação cujo mérito assentou em proporcionar o desenvolvimento mais intenso do mercado de capitais, proporcionando, por meio das várias linhas de crédito que instituiu, o crescimento econômico-social do País.

A propósito, invoca-se o magistério de Henri de Page, verbis:

Le droit n’est pas une science rationnelle. C’est une science appliquée. Le succès d’une telle science dépend presque exclusivement de l’observation rigoureuse d’un principe de technique élémentaire : la judicieuse élaboration des moyens propres à atteindre les fins proposées, et la saine et précise adaptation de ceux-là à celles-ci. C’est la seule méthode susceptible de faire à la fois oeuvre viable, utile et salutaire.” (In De L’Interprétation des Lois, Bruxelles: Libr. Des Sciences Juridiques, 1925, t. 2º, p. 141-2)

O aplicador, pois, de tais leis há de se orientar pelos princípios da interpretação finalística, racional, construtiva.

9. E por ela (exegese) trilhou a Suprema Corte. Admitiu, assim, quando perduravam sérias dúvidas sobre a viabilidade de recair a garantia em bens fungíveis, a começar com o julgamento do R.E. 86.541 do RJ (RTJ 81/306). A ele seguiram-se os R.R.E.E. 86.329 de SP, do qual fui relator (RTJ 93/674); 93.176, SP, relator Min. S. Muñoz; 96.907, SP, relator Min. A. Buzaid; 99.629, MG, relator Min. M. Alves; e, mais recentemente, o R.E. 101.356, relator Min. C. Madeira (RTJ 116/1.098).

9.1. Outrossim, e com a mesma linha de coerência, reconheceu legitimidade aos consórcios, situando-os na compreensão ampla de financeiras. Nesse sentido me manifestei, acompanhando o alentado voto do eminente Min. Moreira Alves, ao serem apreciados, em julgamento conjunto, os R.R.E.E. 90.636 e 90.652, ambos de São Paulo (RTJ 93/1274-83 e 97/742-51, respectivamente).

9.2. Tudo conspira, dessarte, que dita linha interpretativa da legislação em comentário venha a perseverar o Excelso Pretório, ao apreciar o recurso extraordinário a ser interposto no presente caso. Há de reconhecer, no exame de seu merecimento, que o devedor, nas alienações fiduciárias, reguladas pelo Decreto-Lei 911/69, pode oferecer em garantia bens que, ao tempo do contrato, já eram de seu domínio e posse.

Assim preleciona o Min. Moreira Alves, ao referir, verbis:

“(...) Ainda com relação ao alienante, é de se salientar que tem ele de ser proprietário da coisa a ser alienada fiduciariamente, e de poder dispor dela, pois, somente assim, poderá transferir – embora sob condição resolutiva – o domínio ao adquirente." (Ob. cit. p. 100, infra)

No mesmo sentido o magistério de P. Restiffe Neto (ob. citada, p. 61).

10. Poder-se-ia, a esta altura deste parecer, cuidar de seu encerramento, versadas que foram todas as questões pertinentes ao recurso extraordinário.

Assim, porém, não ocorre, em face das restrições impostas pelo art. 325 e seus incisos, do Regimento Interno do STF, com a redação que lhe atribuiu a Emenda 2/85.

E isso porque o procedimento no qual foi proferido o julgado objeto de futuro recurso (pedido de restituição de bens na falência) não se encontra entre as hipóteses relacionadas nos seus incisos de I a X, inclusive.

Incide, assim, o inciso XI.

Requer ele que a questão federal suscitada no recurso em questão seja, preliminarmente, reconhecida como relevante.

É o que impende, agora, considerar.

IV Da arguição de relevância da questão federal

1. Posto que na dependência do reconhecimento da relevância da questão federal, o recurso extraordinário, para obter sucesso, requer que satisfeitos estejam os pressupostos que lhes são inerentes. Em outras palavras, a comprovação de dissídio pretoriano, ou a negativa de vigência de tratado ou lei federal (Constituição, art. 119, III, a e d; e RISTF, art. 325, inc. XI, e art. 329 e seus parágrafos)

2. Embora instituída a arguição de relevância por meio da Emenda Regimental 3/75, e alterada por outras que lhe seguiram, somente veio ela a ser conceituada, a relevância, pelo § 1º do art. 327 da Emenda Regimental nº 2/85, ao dispor:

"Art. 327 – (Omissis)

§ 1º – Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal."

3. Antes, a matéria vinha sendo tratada em vários artigos de doutrina, a maior parte deles referida por Theotônio Negrão, em seu CPC, RT, 18. ed. 1988, p. 980 e segs., notas ao art. 325.

O certo, porém, é que a inspiração do tema assentou no Judiciary Act, de 1925, com base no qual a Suprema Corte Americana outorgou-se o poder discricionário de  somente  apreciar as questões por ela consideradas importantes, pelo interesse público que encerrarem. Justificando-o, acentuou Willian Taft, seu  Presidente, que as partes têm os seus direitos assegurados  nos julgamentos pelas instâncias ordinárias. A missão da Corte Suprema é examinar os casos que envolvem princípios de amplo interesse governamental ou público.

E foi com essa orientação que, desde o advento do sistema, passou a operar a nossa Suprema Corte, mesmo sem definir, em disposição regimental, o seu conceito.

4. No presente caso, considero que ocorre a relevância da questão federal.

A tese sustentada no r. acórdão, em vias de impugnação, e que reflete o pensamento da maioria da ala Cível do Tribunal de Justiça, com a vênia devida, interpretando restritivamente o instituto da alienação fiduciária em garantia, adotado pela Lei do Mercado de capitais (Lei 4.728/65, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 911/69), bem como a que dispõe sobre títulos de crédito industrial (Decreto-Lei 413/69), e outras do mesmo gênero, se projetaria negativamente sobre as instituições financeiras e com o mais comprometedor reflexo sobre o crédito do consumidor; e, consequentemente, afetando gravemente o desenvolvimento econômico do país.

4.1. Por isso, acentuando a importância político-econômica da legislação, observa P. Restiffe Neto:

"A lei do Mercado de Capitais (Lei nº 4728, de 14.07.1965) constitui-se  na pedra de toque do sistema desenvolvimentista programado, impulsionado e controlado pelas autoridades governamentais, como base na captação de recursos advindos da poupança para incrementar o surgimento de novas fontes de produção e consumo, num ciclo em espiral, dinâmico e progressivo, na circulação de riqueza, formada pelo complexo poupança-crédito-produção-consumo." (obra referida, p. 52-3)

4.2. Dessarte, toda  aplicação da legislação  em comentário que possa afetar ou tolher seus propósitos, os mais salutares, há de comprometer a distribuição do crédito pelas instituições nomeadas, matéria de maior interesse público, traduzido no desenvolvimento da indústria e do comércio. Matéria, pois, de manifesta relevância.

5. E foi assim que o Eg. STF, em sessão de Conselho, acolheu arguição de relevância, em mais de um caso, provocado em processos de alienação fiduciária em garantia.

Refiro-me às que ensejaram o processamento dos R.R.E.E. 90.636; 96.907; e 99.629, in RTJ 93/1274; 105/385; e 106/883, respectivamente.

E ainda na Arg. de Relevância nº 55 (Theotônio Negrão, ob. cit., p. 984, nota); idem, em Arguição de Relevância da Questão Federal, Ministro Sydney Sanches, in RT 627/262, 1ª Col. supra.

6. Versadas que foram todas as questões relacionadas com a pretendida interposição do recurso extraordinário contra o acórdão indicado inicialmente e, em parte, transcrito, esclarecidas, por vezes, até com certa insistência, mas com o propósito único de dirimir possíveis dúvidas, resta, apenas, de forma concisa e objetiva, responder às questões propostas pelo consulente.

V Respostas ao questionário proposto

Quanto à 1ª questão: sim. O acórdão unânime da C. 3ª Câmara Cível, proferido na apelação nº 588.029.496, comporta interposição de recurso extraordinário.

Quanto à 2ª questão: sim. Encontra dito recurso amparo no art. 119, III, a e d, da Constituição vigente à época do julgamento, 08.09.88, uma vez que, além de divergir ele, acórdão, dos  julgados de outros tribunais antes indicados, negou vigência  ao art. 66, §§ 2º e 3º, do Decreto-Lei 911/69, como resultou demonstrado e, ainda, como ficou deduzido, é de aguardar-se seja acolhida a arguição de relevância da questão federal enfocada no recurso, tudo com esteio no RISTF, arts. 325, XI, e 327, § 1º.

Quanto à 3ª questão: sim. O recurso é, fora de dúvida, o extraordinário; e deve ser apreciado pelo Eg. Supremo Tribunal Federal, fundado nos pressupostos definidos na Carta anterior, ante o que dispõe o § 1º do art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 05 de outubro último.

É o parecer.

Porto Alegre, 04 de novembro de 1988.

Notas

1. Parecer lavrado em 04.11.1988.

2. Em 2011, comemora-se o centenário de nascimento do Min. Carlos Thompson Flores, falecido em 2001.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2011. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS