Pornografia infantil: sigilo, ampla defesa e dever de guarda

Uma análise sobre o cuidado com o acesso das partes (e de seus procuradores) aos autos da investigação policial ou do processo criminal


Autor: José Luís Luvizetto Terra

Juiz Federal Substituto

 publicado em 30.08.2011

Resumo

O presente trabalho tem por escopo o enfrentamento do problema relacionado com o acesso das partes (e de seus procuradores) aos autos da investigação policial (ou ao processo criminal) que trata do crime de pornografia infantil, através dos prismas do sigilo processual, do acesso aos autos pelas partes e do dever de guarda do Poder Judiciário. Por fim, serão apresentadas as soluções possíveis diante do ordenamento jurídico brasileiro.

Sumário: Introdução. 1 Da publicidade dos atos judiciais. 2 Do sigilo processual. 3 Do acesso aos autos e da ampla defesa. 4 Do dever de guarda das representações da pornografia infantil. 5 Da extensão, dos destinatários e do modo de restrição decorrente do dever de guarda nos processos criminais envolvendo pornografia infantil. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

O problema relacionado com o acesso das partes (e de seus procuradores) aos autos da investigação policial (ou ao processo criminal) que trata do crime de pornografia infantil foi discutido durante a palestra “Child Exploitation Prosecutions,(1) de Keith Backer,(2) no evento “International Centre for Missing & Exploited Children Law Enforcement Training”.(3)

Diante disso, propõe-se a análise do acesso das partes (e de seus procuradores) aos autos da investigação policial (ou ao processo criminal) que trata do crime de pornografia infantil, através dos prismas do sigilo processual, do acesso aos autos pelas partes e do dever de guarda do Poder Judiciário, a fim de se obter a solução mais adequada para a proteção do bem jurídico tutelado penalmente.

1 Da publicidade dos atos judiciais

A Constituição Federal de 1988 determina que “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (inciso LX do artigo 5º) e que “ todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (inciso IX do artigo 93).

A publicidade dos atos processuais é garantia constitucional, sendo que

“a publicidade, apesar de garantia relevante, que assegura a transparência da atividade jurisdicional e possibilita a sua fiscalização pelas partes e pela própria comunidade, pode sofrer limitações necessárias à proteção de interesses relevantes do processo”.(4)

Na fase do inquérito policial, “o sigilo na fase do inquérito policial atende a duas finalidades: necessidade para a elucidação do fato e interesse social”,(5) tendo em vista a disposição do artigo 20 do CPP.

Como bem lembrado por Fernandes,

“esse sigilo (durante o inquérito policial) não pode, contudo, impedir o acesso de advogado aos autos de inquérito, que lhes é assegurado pelo artigo 7º, XIV, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil”.(6)

Nesse sentido é a Súmula Vinculante nº 14 do STF:

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Portanto, para o correto enfrentamento da situação há que se diferenciar (a) sigilo processual, (b) acesso aos autos para o exercício da ampla defesa e (c) dever de guarda das representações da pornografia infantil.

2 Do  sigilo processual

A decisão que decreta o sigilo processual deverá necessariamente apontar (1) o destinatário do sigilo, (2) a razão pela qual o momento exige a sua decretação e (3) a extensão do sigilo nos autos.

Quanto ao destinatário do sigilo, pode-se afirmar que a decretação pode atingir o acesso aos autos das partes, dos seus advogados, dos agentes públicos (servidores do MPF, da Polícia Federal e da Justiça Federal) e do público em geral. No que concerne ao momento do sigilo, conclui-se que a decretação pode ocorrer tanto na fase investigatória como na fase judicial, desde que necessária. Por fim, a extensão do sigilo pode atingir integral ou parcialmente as informações contidas nos autos.

É sabido que

“a regra é a publicidade plena, somente restringível quando a limitação se fizer necessária para a defesa da intimidade, por interesse social (art. 5º, LX, da CF) e para evitar escândalo, inconveniente grave ou quando existir perigo de perturbação da ordem (art. 792, § 1º, do CPP)”.(7)

Ademais, no que tange à defesa da intimidade como restrição da publicidade, cumpre referir que a intimidade protegida pelo sigilo processual poderá ser do réu (p. ex. quebra de sigilo fiscal do investigado na fase investigatória) ou da vítima.

Fernandes lembra da

“necessidade de cuidados nas divulgações de fatos e dados relativos à vítima na fase da investigação policial. (...) Exemplo gritante é o dos crimes sexuais violentos em que a divulgação expõe a mulher ofendida à curiosidade pública, impondo-lhe, após o sofrimento do crime, novos dissabores e impedindo que possa logo retornar a sua vida particular, com a sua privacidade resguardada, protegida, amparada”.(8)

Lembro, ainda, que o sigilo processual tem por característica a possibilidade de ser transferível, isto é, “as autoridades a quem forem repassadas as informações têm o dever funcional de manterem o sigilo”.(9)

Conclui-se, portanto, que o sigilo processual (1) pode ocorrer para não frustrar a investigação (p. ex. tornar sigilosa a existência de pedido de busca e apreensão antes do seu cumprimento) ou para garantia da intimidade de determinada pessoa (quando apresenta a qualidade da transferência do dever de sigilo), (2) poderá ser decretado em qualquer momento (fase investigatória ou judicial), atingir total ou parcialmente os autos e estar direcionado a determinados destinatários.

3 Do acesso aos autos e da ampla defesa

Pacelli de Oliveira afirma que

“enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o princípio da ampla defesa vai além, impondo a realização efetiva dessa participação, sob pena de nulidade, se e quando prejudicial ao acusado”.(10)

Indispensável a reprodução da lição de Grinover sobre o assunto:

“Ao estabelecer o princípio da proteção judiciária, dispondo que ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’ (art. 5º, XXXV, da CF), a Constituição eleva ao nível constitucional os direitos de ação e de defesa, face e verso da mesma medalha. E mais: dá conteúdo a esses direitos, pois não se limita a permitir o acesso aos tribunais, mas assegura também, ao longo de todo o iter procedimental, aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, tutelam as partes quanto ao exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se das garantias do ‘devido processo legal’.

Passando a especificar analiticamente tais garantias, a Constituição assegura aos litigantes em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, da CF). Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa: mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.”(11)

O acesso aos autos pelo acusado ou por meio do defensor decorre diretamente do princípio da ampla defesa, pois permite o amplo conhecimento da acusação e viabiliza o efetivo contraditório.

Nesse sentido é o entendimento da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 94.387/RS, quando restou decidido que “O acesso aos autos de ações penais ou inquéritos policiais, ainda que classificados como sigilosos, por meio de seus defensores, configura direito dos investigados” e que “a oponibilidade do sigilo ao defensor constituído tornaria sem efeito a garantia do indiciado, abrigada no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, que lhe assegura a assistência técnica do advogado”.(12)

Indubitável que o acesso aos autos pelo réu ou por meio de seus defensores deflui diretamente do exercício da ampla defesa, condição sine qua non para o respeito ao devido processo legal e para a instauração do contraditório.

4 Do dever de guarda das representações da pornografia infantil

Impõe-se a transcrição do regramento penal previsto na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, com redação dada pela Lei 11.829/08):

“Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: 

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. 

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. 

§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: 

I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; 

II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou 

III – prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento.

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: 

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; 

II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

§ 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o material a que se refere o caput deste artigo.

§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por:

I – agente público no exercício de suas funções;

II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;

III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário.

§ 3º As pessoas referidas no § 2º deste artigo deverão manter sob sigilo o material ilícito referido.

Art. 241-C.  Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.

Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:

I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;

II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita.

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão ‘cena de sexo explícito ou pornográfica’ compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.”

No que concerne ao bem jurídico tutelado penalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8.069/90, Ricardo Breier sustenta corretamente que

“o objetivo da proteção penal para estes casos é a dignidade da pessoa humana, a imagem, a formação moral, a honra e a integridade física da criança e adolescente, uma tutela relacionada aos direitos fundamentais que a Constituição Federal reconhece de forma absoluta”.(13)

O referido autor sintetiza, na mesma obra, o conceito de pornografia infantil, demonstra sua relação com pedofilia e exploração sexual de crianças e aponta a transformação da pornografia infantil após a criação da Internet.(14)

Augusto Rossini giza que

“A Internet é a rede mundial de computadores que, em última e singela análise, nada mais é do que um grande computador interligado, pois cada pessoa que o acessa nele se insere e dele passa a fazer parte, naquele momento e por meio da autoria mediata do provedor ou portal. No momento em que o usuário acessa a Internet, se pluga, sua máquina compõe o Grande Computador e, na medida em que os endereços são digitados, novos contatos se estabelecem, para qualquer finalidade.”(15)

Tendo em mira (1) a efetiva proteção do bem jurídico tutelado, (2) o conceito de pornografia infantil, (3) o papel da Internet como facilitador da proliferação da representação da pornografia infantil, há que se analisar a real extensão dos §§ 2º e 3º do artigo 241-B da Lei 8.069/90.

Repito o teor da norma legal (grifei):

“Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

§ 1º (...)

§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por:

I – agente público no exercício de suas funções;

II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;

III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário.

§ 3º As pessoas referidas no § 2º deste artigo deverão manter sob sigilo o material ilícito referido.”

Nota-se a preocupação do legislador quanto ao sigilo do material ilícito armazenado pelas pessoas elencadas no § 2º quando da comunicação às autoridades competentes. Entendo que a preocupação é plenamente relevante.

O material ilícito apreendido pelo comunicante do delito configura o próprio delito (e não é apenas prova do delito), o que ocorrerá também com os materiais apreendidos pela autoridade policial durante a investigação.

O comunicante entra em contato com a autoridade policial, armazena os documentos digitais de imagens e vídeos de pornografia infantil e os repassa para a polícia, tudo sob o manto do sigilo obrigatório do § 3º do art. 241-B da Lei 8.069/90, sendo que a não observância do sigilo fará incidir o crime previsto no caput.

Durante a investigação, a autoridade policial poderá (1) realizar a visualização de telas de ambientes online onde está representada a pornografia infantil e/ou (2) capturar tais telas utilizando arquivos digitais (p. ex. .pdf) ou páginas impressas. Posteriormente, deferidas a busca e a apreensão, restarão apreendidos diversos objetos que contenham representações da pornografia infantil (p. ex., HD de computadores, pendrives, CDs, DVDs e imagens impressas). Realizada a perícia técnica no material apreendido e relatado o Inquérito Policial, aguarda-se o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. A partir desse ponto, o sigilo processual será transferido para o Poder Judiciário.

Lembro que, durante a investigação criminal, as representações dos abusos infantis foram captadas (copiadas) e retiradas de circulação da Internet pela autoridade policial.

Contudo, eventual quebra de sigilo dos autos relacionados com representações de pornografia infantil (e posterior divulgação das imagens) gerará nova lesão (real e efetiva) às vítimas, pois o crime ocorrerá com a simples divulgação do material da pornografia infantil.

Exige-se, portanto, medidas de segurança efetivas para evitar nova lesão ao bem jurídico tutelado por meio da nova circulação das representações das violências contra crianças que estejam na posse do Poder Judiciário.

Trata-se de verdadeiro dever de guarda imposto ao Poder Judiciário, decorrente da peculiaridade do modo como o delito de pornografia infantil ocorre (simples divulgação por qualquer meio – eletrônico ou não).

Diferencia-se a quebra de sigilo envolvendo pornografia infantil das demais situações de quebra de sigilo ou do desaparecimento (ainda que culposo) da prova da materialidade do delito. Explico tal afirmação por meio de comparações.

A divulgação indevida de conversas telefônicas oriundas de processo criminal de tráfico de drogas protegido pelo segredo de justiça (1) atingirá a intimidade dos réus, (2) não atingirá novamente o bem jurídico lesado pelo réu e (3) o responsável pela quebra do segredo de justiça responderá pelo delito previsto no artigo 10 da Lei 9.296/96 – delito autônomo de quebra de segredo de justiça.

O desaparecimento de entorpecente que estava em depósito durante o processo criminal (1) não atingirá a intimidade de qualquer pessoa (réu ou vítima), (2) atingirá novamente o bem jurídico lesado pelo réu (permitiu que a droga seja novamente comercializada e, posteriormente, consumida) e (3) o responsável pelo desaparecimento responderá pelo delito previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06, e o coautor servidor público responsável pela guarda, com a incidência da causa de aumento do inciso II do artigo 40 da referida lei.

Por sua vez, a divulgação de representação de pornografia infantil acautelada no processo criminal protegido por segredo de justiça (1) atingirá a intimidade das vítimas, (2) atingirá novamente o bem jurídico lesado pelo réu (a representação da pornografia infantil poderá ser novamente publicizada) e (3) o responsável pela violação do segredo de justiça responderá pelo delito previsto no §1º-A do artigo 153 do Código Penal (divulgação de informações sigilosas) em concurso com o delito previsto no artigo 241-A da Lei 8.069/90.

Tendo em mira que (1) o dever de guarda do material apreendido (pornografia infantil) é mais amplo do que o simples dever de cuidado relacionado com o sigilo processual e (2) jamais foi requerida ou autorizada a carga da prova da materialidade nos processos criminais em que ocorre a sua apreensão (como, p. ex., o entorpecente), passo a analisar as consequências do dever de guarda nos processos envolvendo pornografia infantil.

5 Da extensão, dos destinatários e do modo de restrição decorrente do dever de guarda nos processos criminais envolvendo pornografia infantil

Há que se estabelecer a extensão, os destinatários e o modo de restrição do sigilo relacionado ao material que contém a representação da pornografia infantil.

Consigno que não se trata de desconfiança em relação às pessoas que tenham acesso aos autos (servidores públicos, Delegados de Polícia Federal, Procuradores da República ou advogados), pois estes certamente serão cautelosos com o manuseio e a guarda das representações da pornografia infantil. Ocorre que qualquer pessoa está sujeita à ocorrência de caso fortuito que poderá dar azo à divulgação indevida do material.

Em se tratando de representações de pornografia infantil, há que se adotar medidas que minimizem o risco potencial de dano ao bem jurídico tutelado decorrente de eventual divulgação indevida do material que se encontra na posse do Poder Judiciário, ainda que decorrente de caso fortuito.

A extensão do sigilo deve ser ampla (englobando todo e qualquer registro de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança e adolescente) e atingirá qualquer meio (físico ou digital).

O destinatário do sigilo deve ser qualquer pessoa que tenha contato com os autos do processo criminal, sejam partes ou procuradores, sejam servidores dos diversos órgãos públicos (inclusive do próprio Poder Judiciário).

O modo de restrição deverá ser suficiente para proteger o bem jurídico tutelado, sem, contudo, inviabilizar a atuação daqueles que atuam no processo. Deve-se adotar uma medida que anule (ou pelo menos atenue) eventual risco de divulgação do material apreendido.

A restrição total não se mostra razoável, pois é odiosa a existência de provas secretas. A ausência de restrição (acesso amplo e irrestrito) fragiliza a proteção do bem jurídico tutelado, sendo igualmente desarrazoada. Há, isso sim, que se restringir parcialmente o acesso ao material, a fim de que os riscos de nova circulação sejam os menores possíveis.

O material deverá ser guardado em local seguro (cofre da Vara Criminal), tendo acesso somente pessoas determinadas (servidores autorizados pelo Juiz do processo). As partes (réus e Ministério Público Federal) e seus procuradores (advogados) poderão acessar o material apreendido dentro da secretaria, ficando vedada carga ou extração de cópia por qualquer meio (físico ou eletrônico).

Conclusão

Adotando-se a restrição parcial de acesso ao material apreendido, minimiza-se o risco potencial de dano ao bem jurídico tutelado decorrente de eventual divulgação indevida do material que se encontra na posse do Poder Judiciário (ainda que decorrente de caso fortuito), observam-se os princípios da ampla defesa e do contraditório e não se inviabiliza a atuação do Ministério Público Federal.

Referências bibliográficas

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FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

GRINOVER, Ada Pelegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades do processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.

ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e direito penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004.

TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. 2. ed. rev. atual. de acordo com as Leis 11.829/08 e 12.015/09. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

Notas

1. Palestra denominada “Child Exploitation Prosecutions – Overview of federal U.S. statutes; Proving the case/Case studies: Child Pornography, Online Enticement, Child Prostitution, and Child Sex Tourism; Sentencing: Understanding the harm caused by child pornography offenders”.

2. Trail AttorneyChild Exploitation Obscenity Section (CEOS)US Department of Justice.

3. Brasília, Brasil, 2 e 3 de junho de 2011.

4. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 67.

5. FELDENS, Luciano; SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Investigação criminal e ação penal. 2. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 52.

6. FERNANDES, Antonio Scarance, ob. citada, p. 68.

7. FERNANDES, ob. cit., p. 68.

8. Idem, ibidem, p. 69.

9. REsp 1111248/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.12.2009, DJe 10.02.2010.

10. PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. p. 35.

11. GRINOVER, Ada Pelegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades do processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 76 e 77.

12. STF, HC 94387, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 18.11.2008, DJe-025 DIVULG 05.02.2009 PUBLIC 06.02.2009 EMENT VOL-02347-04 PP-00637 LEXSTF v. 31, n. 362, 2009, p. 417-423 LEXSTF v. 31, n. 363, 2009, p. 403-409 RJTJRS v. 44, n. 274, 2009, p. 29-32.

13. TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. 2. ed. rev. atual. de acordo com as Leis 11.829/08 e 12.015/09. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 112.

14. A pornografia poderá ser definida de acordo com a sua natureza. Do ponto de vista positivo, relaciona-se com a representação gráfica, escrita ou sonora, visando à excitação sexual. Negativamente, quando há ausência de valores éticos, informativos ou científicos. Nesse contexto é que podemos diferenciar pornografia, erotismo e nu artístico (Diéz Ripollés, 1982, 279).

A pornografia infantil está relacionada diretamente com a pedofilia. As Nações Unidas a define como todo o tipo de representação, por vários meios de comunicação, de prática sexual real ou simulada, de imagens de órgãos genitais com o propósito sexual (Convenção sobre Tráfico de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, artigo 2º, c) envolvendo crianças e adolescentes entre si, com adultos ou animais. A pornografia infantil igualmente está ligada à exploração sexual, pois a mesma torna-se condição sine qua non para a elaboração de material pornográfico. Neste cenário, crianças ou adolescentes são constrangidos a interpretar com total naturalidade para que o registro das atividades sexuais pareça o mais natural possível.

A Internet transformou a pornografia infantil numa indústria universal e sofisticada (Saint Maur, 1999, p. 103). A rapidez da comunicação faculta e agiliza a comercialização e a divulgação do material, pois anteriormente a distribuição era restrita, já que o distribuidor e o cliente comercializavam diretamente, em lugar determinado, geralmente em sexshops. Estima-se que a Internet seja acessada aproximadamente por mais de 1,2 bilhão de pessoas, segundo Estatísticas Mundiais de Usuários de Internet (Cf. www.internet-worldstats.com), e, destes, seguramente um grande grupo de consumidores de material pornográfico infantil.

Pela facilidade de se mover pela rede (web, mail, mensagem instantânea/ICQ, Internet Relay, Chat (IRC), news-groups/quadros de avisos, e peer-to-peer), a Internet se converteu no paraíso dos pedófilos. Por meio da rede, os pedófilos estão em contato direto com crianças na intenção de obter fotografias, vídeos e até marcar encontros. Os pedófilos não só potencializam riscos diretos às crianças, mas igualmente sustentam as redes organizadas de pedofilia, ao adquirirem, mediante paga, o material pornográfico infantil. O lucro das redes organizadas é altíssimo, como já citado na introdução, em virtude da produção das imagens ser um processo rápido, dinâmico e de custo baixo. A Internet permite que as imagens e filmes digitalizados sejam reproduzidos a dezenas de milhares de pessoas conectadas na rede.

A Internet só agravou a difusão da pornografia infantil, em virtude da facilidade da proliferação, onde qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, a qualquer momento, poderá ter acesso a esse tipo de material. As inovações tecnológicas propiciaram aos pedófilos um olhar em múltiplas dimensões da criança, pois, com espaço cibernético, ela ganhou status dos significantes da pedofilia, em virtude da disputa por materiais mais bizarros em que ela é o ator principal; tal prática está a expor, infelizmente, uma realidade na qual as crianças não poderiam estar inseridas (Hisgail, 2007, p. 80) – in Ob. Cit., p. 100 e 101.

15. ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e direito penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. p. 25.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2011. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS