Introdução. 1 O uso racional de medicamentos e a atuação do Judiciário. 2 A política pública de medicamentos. 2.1 Os medicamentos genéricos: destaque de algumas políticas públicas. 2.1.1 Os medicamentos excepcionais. 2.1.2 Política Nacional de Atenção Oncológica. 3 A Audiência Pública nº 4 e a política judiciária construída. 4 A Recomendação nº 31/2010 do Conselho Nacional de Justiça como uma política pública do Judiciário para o enfrentamento das questões envolvendo a saúde. Conclusão.
Introdução
Os médicos egípcios há 5000 anos usavam como símbolo da saúde o olho de Hórus. Hórus, filho de Isis, perdera a visão por ataque de uma entidade maligna, recuperou-a quando Isis invocou a ajuda do deus Imhotep.(2) O símbolo,(3) que reproduzo ao pé da página, significa e trazia saúde e felicidade para os egípcios. O símbolo persistiu naquela cultura milenar, estando presente no peitoral do rei Tutancâmon 1300 anos mais tarde. Foi adotado pelos médicos gregos. Escravizados, levaram-no para Roma. Nero (37 a 68 d.C.) tentou alterar seu significado, ligando-o ao Deus Júpiter, pretendendo submeter os médicos ao poder do Estado. Roma tentou cristianizá-lo, reescrevendo-o com um duplo “R”,(4) com uma invocação ao anjo Rafael, denominando-o Responsum Raphaelis, obrigando aos médicos a utilização em suas prescrições. É aposto até hoje. De código secreto a símbolo da prescrição médica. Na era da razão, diz-se que a inicial “R” do latim “recipe” significa “receba esta prescrição”.(5)
Outro símbolo, também muito antigo, com diversos significados é o caduceu,(6) vareta de ouro em torno da qual se enrolam em sentido inverso duas serpentes. Possui duplo aspecto simbólico, benéfico e maléfico, simbolizando o equilíbrio de tendências (as serpentes teriam sido enroladas por Hermes, mensageiro dos deuses e guia dos seres em suas mudanças de estado). É atribuído a Asclépio/Esculápio, “pai dos médicos” e “deus da medicina”, por saber utilizar as poções para curar os enfermos e ressuscitar os mortos. A aventura da medicina se desenvolve no mito de Asclépio – “a verdadeira cura e a verdadeira ressurreição são as da alma”. O veneno da serpente pode ser remédio, é o símbolo privilegiado do equilíbrio psicossomático. Utilizado pelos artistas da renascença, como se vê da obra de Botticelli “Primavera”, em que no lado esquerdo Mercúrio levanta o caduceu para afastar o mau tempo. O artista utilizou o símbolo, fazendo talvez uma brincadeira com a família que encomendou a obra, os “Medici”. Assim, o que se pretende fazer ver é que a medicina se originou com a civilização, mas não com a ciência, era uma crença, ou um dom concedido pelos deuses. (7)(8)(9)(10)

Clique aqui para ver este quadro ampliado
O mito escorre na realidade e encontra a racionalidade. A título de introdução, são diferentes os símbolos da medicina e da saúde dos da Justiça, os mais conhecidos: a balança e a espada empunhadas por uma figura feminina de olhos vendados. Racionalidade ou magia nos julgamentos? Julgamentos perdidos na antiguidade, o julgamento dos mortos em uma pintura em papiro da XIX dinastia egípcia, 1275 a.C. Cena de julgamento de um homem chamado Ani.

Clique aqui para ver esta imagem ampliada
Ele está parado ao lado da mulher, assistindo à pesagem do seu coração num prato da balança, no outro está a “pena da verdade” levíssima, símbolo de Maat, a ordem divina. A operação é feita por Anúbis, deus da cabeça de chacal. Se o coração estivesse muito pesado seria devorado pela criatura da direita. O “julgamento”, uma simples operação de “ver o peso” comparado com uma pluma. Na Babilônia, durante o reinado de Hamurabi (1948 a 1905 a.C.), encontrou-se o primeiro código de responsabilidade médica. O artigo 215 fixava honorários e a pena no caso de morte de paciente homem livre: “o médico deverá ter a suas mãos cortadas”.(11)
O Judiciário, em suas decisões, tem contribuído para a racionalidade no campo da saúde? Como nos comportamos nos nossos julgamentos? Para prosseguir no necessário diálogo entre campos tão específicos e distintos, ofereço este pequeno estudo sobre o uso racional de medicamentos e a contribuição do Judiciário, sem pretensão de esgotar o assunto.
1 O uso racional de medicamentos e a atuação do judiciário(12)
Medicamento é o produto farmacêutico com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. O conceito legal é dado pela Lei nº 5.991/1973, artigo 4º, e pela Portaria nº 3916.
A Organização Mundial da Saúde, em 1985, estabeleceu que o uso racional de medicamentos pressupõe o uso da medicação apropriada para a sua situação clínica, em doses que satisfaçam as necessidades individuais, pelo período adequado, ao menor custo possível para o paciente e para a comunidade.
A prescrição médica é afetada por inúmeros fatores, dentre eles os apelos à automedicação, o relacionamento entre a indústria farmacêutica e o segmento médico e o fenômeno denominado “medicalização da vida”.
Observa-se uma tendência a privilegiar a medicação, obtendo os medicamentos predominância no meio social, suplantando outros aspectos tão ou mais importantes para a prevenção/recuperação da saúde, como o saneamento básico, a nutrição adequada, o estilo de vida, a prevenção por meio de vacinas, informação e educação. Ocorre uma crescente patologização de situações normais da vida, como o envelhecimento, a rebeldia dos jovens, a inquietude das crianças, os dissabores normais da vida, tudo é levado à condição de patologia a ser medicada.
Por outro lado, o medicamento não se oferece desacompanhado, mas vem introduzido por um séquito de estudos pseudocientíficos, propaganda, brindes, oportunidades inúmeras para expansão do mercado. A produção de medicamentos se concentra nos países do primeiro mundo, como Estados Unidos da América, Reino Unido, França, Suíça e Alemanha.(13) O negócio farmacêutico trata de fazer dinheiro. A Organização Mundial da Saúde chega a dizer que “há um conflito de interesses intrínseco entre os objetivos legítimos de negócio dos fabricantes e a as necessidades sociais, médicas e econômicas dos provedores e do público para selecionar e usar os medicamentos de forma mais racional”.
A questão dos medicamentos no Brasil tem oferecido toda a sorte de situações, que são normalmente trazidas ao grande público de forma bastante expressiva. Cito exemplificativamente as reportagens das Revistas Veja e Isto é: SAKATE, Marcelo. O preço de viver mais. Com os avanços da medicina e o envelhecimento da população, o custo da saúde sobe acima da inflação. Veja, São Paulo, 7 jul. 2010. LOPES, Adriana Dias; MING, Laura; MAGALHÃES, Naiara. Não faz sentido. A intenção da Anvisa de banir os anorexígenos das farmácias, além de ferir as liberdades individuais, é uma ameaça à saúde de 16 milhões de brasileiros que, por questões de ordem biológica, precisam de remédio para emagrecer. Veja, São Paulo, 23 fev. 2011. BUCHALLA, Ana Paula. A era dos super-remédios. De poderosos analgésicos a drogas contra a impotência, a depressão e o colesterol alto, os medicamentos de última geração estão devolvendo a esperança a milhões de pessoas. Veja, 26 jun. 2002. ALCÂNTARA, Eurípedes. Gordura tem remédio. Depois da era das bruxarias, um medicamento assume o posto de maior aliado do gordo na hora da dieta. Veja, 27 nov. 1996. ALVES FILHO, Francisco; ALMEIDA, Gustavo de. O perigo dos remédios falsos. Pelo menos 20% dos medicamentos vendidos no Brasil são ilegais. Falsificados, contrabandeados ou sem registro, eles colocam a vida em risco. Istoé, São Paulo, 27 maio 2009. CÔRTES, Celina; TARANTINO, Mônica. Poderosa pílula. Acaba de ser liberado no Brasil o Acomplia, um remédio audacioso que, ao mesmo tempo, ataca a obesidade, melhora o colesterol e a diabete. Um dia ele poderá ajudar você. Istoé, 2 maio 2007. PEREIRA, Cilene; RODRIGUES, Greice; CASTELL, Lena. Você sabe o que está tomando? Suspeita de males causados por remédios e contestação da imparcialidade na aprovação de drogas deixam doentes e médicos em alerta. Istoé, São Paulo, 8 jun. 2005. ZACHÉ, Juliane. Quero ser jovem! Um anestésico e suplementos que incluem de vitaminas a aminoácidos tornam-se mania entre os que desejam adiar o envelhecimento. Istoé, São Paulo, 8 out. 2003. BOCK, Lia; TARANTINO, Mônica. Atração perigosa. O brasileiro exagera nos remédios, consumindo-os sem consultar o médico e colocando sua saúde em risco. Istoé, São Paulo, 10 out. 2001. A tendência, nessa amostragem, é favorável à medicação e aos novos medicamentos.
Sempre há uma pauta para notícias do setor saúde em todos os jornais, como podemos observar diariamente, cito exemplificativamente: GENÉRICO eleva déficit comercial da saúde. Ampliação do uso dos medicamentos aumenta importações de insumos, e rombo do setor cresce 167% desde 1999. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 maio 2011. Mercado. LABORATÓRIO boicota remédio com desconto. Governo paulista diz que indústria se recusa a participar de licitações quando lei obriga venda com preço menor. Folha de São Paulo, São Paulo, 4 abr. 2011. Cotidiano. CONSUMO de emagrecedor despenca após restrições. Vendas de sibutramina, controlada desde abril, caíram 60% no trimestre. Folha de São Paulo, 6 ago. 2011. Cotidiano. REMÉDIOS custarão R$ 200 milhões. Valor se refere a substâncias de alta tecnologia e voltadas a doenças raras. Correio do Povo, Porto Alegre, 13 maio 2011. Geral. ANVISA proíbe venda de emagrecedor. Remédio é fabricado por empresas que não têm registro na agência. Correio do Povo, Porto Alegre, 1º abr. 2011. Neste outro grupo de notícias, a ênfase é no alto custo dos medicamentos e a atuação dos órgãos de controle.
Nos últimos anos um novo ator vem interferindo na racionalidade do uso de medicamentos e insumos para a saúde, o Judiciário, que, pressionado pela sociedade, busca concretizar o direito de todos ao acesso a medicamentos.
Chegou-se a um ponto em que o então Ministro da Saúde expressou que o Judiciário pretendia ocupar o lugar dos médicos. Efetivamente, os apelos ao Judiciário começaram a crescer expressivamente, ocasião em que também se multiplicavam as Reclamações perante o Supremo Tribunal Federal, tantas que o então Presidente, Ministro Gilmar Mendes, convocou a Audiência Pública nº 4, que foi um marco positivo na condução do tema tão complexo para o Judiciário,(14) abrindo possibilidades para um conhecimento maior sobre o tema, elemento fundamental para conduzir à racionalidade.
A crescente interferência do Judiciário na dispensação de medicamentos, embora os seus bons propósitos, acaba tendo repercussão negativa no quesito da racionalidade. Não é rara a ocorrência de autorização para medicamentos experimentais ou até aqueles não aprovados pelas autoridades brasileiras, o que pode causar graves danos ao paciente e à saúde pública. A quebra da racionalidade e a fuga das políticas públicas existentes acabam comprometendo o princípio da precaução. A falta de racionalidade compromete a sustentabilidade das políticas públicas na matéria sanitária. A busca da necessária racionalidade se dá pela construção de políticas públicas, providência recomendada desde a década de 70 pela Organização Mundial da Saúde.
2 A política pública de medicamentos
O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 estabelece que o direito à saúde será garantido mediante políticas públicas.
Para efetivamente ser possível o uso racional dos medicamentos e de outros insumos destinados à saúde pública e privada,(15) é necessária a construção de uma política pública que, em resumo, é um guia para a ação das autoridades e dos gestores. Não se trata de legislação, mas um conjunto de princípios e valores que orientam a tomada de decisão. A Organização Mundial da Saúde, desde a década de 70, vem sinalizando no sentido de que os países adotem políticas farmacêuticas para assegurar aos mais pobres a obtenção dos medicamentos básicos, bem como para promover o uso racional. O Brasil, neste particular, foi sensível às indicações da Organização Mundial da Saúde. Em 8 de julho de 1975, foi disponibilizada a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), fruto do trabalho de comissão técnica.
Uma política de medicamentos, além de ter a função de orientar o setor farmacêutico, deve estar inserida na política de saúde geral para todas as pessoas em obter medicamentos eficazes e seguros e colocar a saúde pública acima de outros interesses.
Os objetivos de tal política, ainda segundo a orientação da Organização Mundial da Saúde, devem ser adequados às peculiaridades do país, incluindo todas as etapas do setor farmacêutico, podendo assim ser sintetizados:
1º) promover do uso racional;
2º) facilitar a obtenção de medicamentos necessários, especialmente para os menos favorecidos;
3º) indicar no sentido da oferta de medicamentos para que se ajuste às necessidades de cada país;
4º) garantir a eficácia, a segurança e a qualidade dos produtos;
5º) promover a fabricação local (no país) dos medicamentos ao menor custo;
6º) contribuir para o bem-estar da comunidade.
Apenas a vontade política dos governantes não é suficiente para a construção de uma política, ela é muito importante, entretanto, não é o bastante. É necessária a participação de diferentes setores, desde os prescritores aos consumidores, passando pela indústria. Para serem comercializados e prescritos no Brasil, os medicamentos necessitam de Registro na Anvisa, conforme o disposto no artigo 12 da Lei nº 6.360/1976. Há um dever genérico e subsidiário do Poder Público da garantia de qualidade dos medicamentos. O consumo de medicamentos de baixa qualidade ou não aprovados pode ter graves consequências para a saúde individual e coletiva. As autoridades têm o dever de garantir a qualidade, impedindo a entrada ou retirando de circulação de produtos inseguros ou ineficazes.
Uma política permissiva relativamente a medicamentos, apenas para baratear preços, pode ser desastrosa para a saúde pública. Os Estados mais exigentes são os Estados Unidos da América e a União Europeia, ao passo que China, Índia e Argentina seriam bem menos exigentes, segundo referência de Jónatas Machado e Vera Raposo.(16)
O estabelecimento de uma política nacional de medicamentos é uma questão até de soberania nacional, diante do processo de globalização e concentração da indústria farmacêutica.
Evoluímos com a Lei nº 8.080/1990, que no seu artigo 6º estabeleceu no campo de atuação do SUS a formulação da política de medicamentos.
O propósito específico de tal política foi o de garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos e a promoção de seu uso racional, bem como o acesso da população a eles. Anote-se com ênfase que o acesso aos serviços do SUS dá-se na forma da Lei nº 8.080/1990 e do artigo 9º do Decreto nº 7.508, de 28.6.2011, acesso universal, igualitário e ordenado.(17)
A implementação da aludida política pública considerou o mercado farmacêutico brasileiro e estabeleceu diretrizes para a sua implantação, a saber: a) a adoção da relação de medicamentos essenciais; b) a regulamentação sanitária dos medicamentos; c) a reorientação da assistência farmacêutica; d) a promoção do uso racional; e) o desenvolvimento científico e tecnológico; f) a promoção da produção; g) a garantia da segurança e da qualidade.
2.1 Os medicamentos genéricos: destaque de algumas políticas públicas
Um grande esforço político foi necessário para a instituição da política pública de incentivo aos medicamentos genéricos, Lei nº 9.787/1999, tendo por escopo maior a redução dos preços. Foi um ganho para a população.(18)
2.1.1 Os medicamentos excepcionais
Pela Portaria MPAS/MS 03/82 eram contemplados os medicamentos excepcionais que a Portaria nº 142/93 transformou na Política Nacional de Medicamentos Excepcionais, que tem o seu conceito na Portaria nº 3/82: “são aqueles medicamentos cuja aquisição, governamental, é feita em caráter excepcional, individual, e com recursos financeiros independentes daqueles destinados aos medicamentos da Rename”. O assunto vem evoluindo graças à atuação de portadores de doenças, sendo que tal custeio, segundo estabelecido pelo Pacto em Defesa do SUS, Portaria CM/MS 2.577/2006, pela responsabilidade das Secretarias Estaduais de Saúde pela aquisição, ficando o financiamento por conta do Ministério da Saúde. Tais medicamentos são submetidos aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde, protocolos clínicos que revelam outra política pública na questão dos medicamentos.
2.1.2 Política Nacional de Atenção Oncológica
A Portaria nº 2.439/GM, de 8 de dezembro de 2005, instituiu a Política Nacional de Atenção Oncológica, que tem sistemática própria. Em resumo, os medicamentos são fornecidos pelo Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon), onde o medicamento é integrado a outros processos como cirurgia, radioterapia, etc. O tratamento não é focado no medicamento, mas no tratamento integral do paciente.
Apenas citando exemplificativamente sobre a introdução de algumas políticas públicas, temos a dos Portadores de AIDS/HIV, pela Lei nº 9.313, de 13.11.1996; a do atendimento de urgência, SAMU, que é do Decreto nº 5.055/2044; a política de saúde do idoso, implantada pela Lei nº 8.842, de 04.01.1994; para o usuário de drogas, a Lei nº 10.409, de 11.01.2022.
Concluindo, há inclusive política para tratamentos experimentais, denominada de “acesso expandido”, nos termos da Resolução RDC 26/99, tratamento que deve ser custeado pelo fabricante do produto e controlado eticamente pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Pois bem, vê-se que as políticas públicas sobre a dispensação de medicamentos têm pelo menos mais de uma década de existência, com produção acentuada de 1998 a 2002. Não são perfeitas, podem ser melhoradas, mas não se pode dizer que inexistem. O que parece faltar é efetividade e continuidade na sua implantação e evolução. Há projetos de lei em andamento (projeto de Tião Viana e Flávio Arns), agora unificados em demorada tramitação legislativa. Onze anos após a Lei nº 8.080/1990, sobreveio decreto regulamentatório, Decreto nº 7.508/2011.(19)
3 A audiência pública nº 4 e a política judiciária construída
Em 5 de março de 2009, por iniciativa do então Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, foi convocada a Audiência Pública nº 4, cuja abertura se deu no dia 28 de abril de 2009. Teve o ato um profundo significado simbólico para a importância do tema. Constituiu-se em um marco para a compreensão da matéria e para o conhecimento da prática das políticas públicas.(20) Inicialmente programada para efetuar-se em dois dias, resultou prorrogada por mais de três, tendo como resultado a reunião de ampla gama de pontos de vista. Em um momento, o Ministro Gilmar Mendes afastou os radicalismos, tanto dos que negam a atuação do Judiciário, como dos que pretendem a existência de direitos ilimitados. Convocou a todos para uma posição equilibrada, manifestando a esperança de que o debate aprimorasse as políticas em saúde pública.(21)
Em prosseguimento, procurando extrair consequências práticas da Audiência Pública, iniciativa inédita pelo que se tem notícia, o Ministro Gilmar Mendes constituiu, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, um grupo de trabalho para dissecar os elementos colhidos na Audiência Pública nº 4, propondo medidas concretas e normativas referentes às demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde pública. Seguiu-se a Recomendação nº 31/2010, que acolheu algumas das proposições feitas, construindo e reforçando uma política pública para o Judiciário. Ressalta-se aqui a questão da racionalidade. Os aspectos focados pela Resolução nº 31/201 procuraram conferir racionalidade às demandas envolvendo a saúde pública. Deu-se ênfase à conciliação prévia,(22) pois muitas ações poderiam ser evitadas por uma simples troca de informações entre o juiz e o gestor público.
4 A recomendação nº 31/2010 do Conselho Nacional de Justiça como uma política pública do judiciário para o enfrentamento das questões envolvendo a saúde
Sem dúvida, a Recomendação nº 31 procurou dar mais segurança e efetividade à decisão judicial em matéria de saúde pública. Considerou as dificuldades enfrentadas pelos magistrados e afirmou a relevância da matéria para a garantia de uma vida digna para a população brasileira. Reforçou sobre a necessidade de qualquer insumo ou medicamento a ser disponibilizado possuir aprovação e registro na Anvisa. Este é um postulado básico, exigência legal, afastando da seara judiciária as aventuras terapêuticas. Evita-se que experiências sejam custeadas com os recursos destinados à saúde de toda a população. É o princípio da precaução.
A Recomendação nº 31 reafirma a importância da oitiva prévia dos gestores públicos do SUS.
É questão elementar a garantir a sustentabilidade do sistema. Incentiva a orientação para um acordo prévio, antes do ingresso da ação. Há o prestigiamento dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. A escolha dos medicamentos e a construção dos parâmetros, bem como a incorporação de novas tecnologias, é matéria afeta aos gestores públicos da área médica. Escolhas precisam ser feitas, e tais escolhas não são apanágio dos países pobres, os países desenvolvidos as fazem. Sistemas de Saúde universais e igualitários precisam fazer escolhas criteriosas, sob pena de não serem sustentáveis. Não pode o Judiciário afastá-las, porque “a saúde é um direito e há risco de vida [...]”, colocando por terra esforços gerenciais, mais uma vez, ressentem-se de racionalidade tais decisões.
Em outro giro, o juiz não deve decidir à beira do leito, tal posição é do médico. No caso de demandas dirigidas contra serviços do SUS, a nova política pública sobre a assistência farmacêutica, explicitada pelo Decreto nº 7.508/2011, artigo 28, dispõe que o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe cumulativamente:
“I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III – estar a prescrição em conformidade com a Rename e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e
IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.”
Tais diretivas, como se percebe, objetivam conferir racionalidade ao sistema, tendo sido talvez inspiradas em precedentes oriundos no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Cito exemplificativamente o seguinte acórdão:
“FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. GARANTIA CONSTITUCIONAL. LITISCONSÓRCIO PASSIVO. UNIÃO. ESTADO. MUNICÍPIO. ATENDIMENTO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. NECESSIDADE. Tratando o pedido de fornecimento de medicamento disponibilizado pelo SUS, a adequação desse sistema ao fornecimento de medicamentos para as situações de exceção deve ser coordenada entre as três esferas políticas, União, Estado e Município, não sendo permitido, dado o texto constitucional, imputar-se a responsabilidade a apenas um dos operadores. Cabível o fornecimento do medicamento receitado por médico integrante do SUS, em atendimento no âmbito do Sistema, que deverá ser feito diretamente ao Centro de Alta Complexidade em Oncologia - Cacon, responsável pela administração ao paciente.” (TRF4, AG 2009.04.00.043652-8, Quarta Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 12.04.2010)
Ao fim, cabe registrar que, entre as recomendações do Conselho Nacional de Justiça, há aquela que remete como tarefa das escolas judiciais a promoção de estudos e seminários, congregando os diversos operadores do sistema de saúde e do Judiciário.
Conclusão
O Poder Judiciário, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), está a construir, gradativamente, organização e procedimentos, no sentido de tornar possível uma decisão segura do Juiz nas questões envolvendo a saúde. As orientações vertidas na Recomendação nº 31/2010 constituem política pública judicial para melhor composição dos litígios, com maior efetividade e racionalidade.
Notas
1. Texto-base para a palestra em Curitiba/PR, em 28.07.2011.
2. Inhotep era o deus da medicina dos egípcios, a medicina egípcia combinava o racionalismo empírico com o misticismo. Os regulamentos religiosos e as recomendações médicas se confundiam.
3. Olho de Hórus
4. 
5. ARANHA, Márcio Iorio; TOJAL, Sebastião Botto de Barros (orgs.). Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília-DF: Fiocruz, Universidade de Brasília, Escola Nacional de Saúde Pública, 2002.
6. 
7. LOPES, Octacílio de Carvalho.A medicina no tempo. São Paulo: USP, 1969.
8. SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: a história da medicina na literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
9. SOCIEDADE BRASILEIRA DE VIGILÂNCIA DE MEDICAMENTOS; ACCIÓN INTERNACIONAL PARA LA SALUD EN AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. O que é uso racional de medicamentos? São Paulo: HUCITEC-ABRASCO, 2001.
10. AGUIAR, Eurico de. Arte e cura: passado, presente e futuro. Porto Alegre: Simers, 2009.
11. Hipócrates (450 a 370 a.C.) rompeu com a magia e o misticismo e deu à medicina os fundamentos da ciência como arte racional.
12. Sobre a atuação do Judiciário nas políticas públicas, ver: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Coords.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
13. Sobre a questão, os filmes O Óleo de Lorenzo. Título original: Lorenzo’s Oil. Direção: George Miller. Produção: George Miller, Doug Mitchell. Roteiro: George Miller, Nick Enright. Intérpretes: Nick Nolte, Susan Sarandon, Peter Ustinov, Kathleen Wilhoite, Gerry Bamman, Margo Martindale. EUA: Universal Pictures, 1992. O Jardineiro Fiel. Título Original: The Constant Gardener. Direção: Fernando Meirelles. Produção: Simon Channing-Williams. Roteiro: Jeffrey Caine. Intérpretes: Ralph Fiennes, Daniele Harford, Danny Huston e outros. EUA/Reino Unido, 2005. E os livros SKLOOT, Rebecca. A vida imortal de Henrietta Lacks. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ABAD, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, Sobre a vida do médico sanitarista Abad Gómez na Colombia.
14. Resumo das principais manifestações na Audiência Pública nº 4 feitas no trabalho “A Justiça e a efetividade na Saúde Pública”, dissertação FGV/Direito Rio.
15. Sobre os planos privados e seguro-saúde, ver: BAHIA, Lígia; SCHEFFER, Mário. Planos e seguros de saúde: o que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil. São Paulo: UNESP, 2010.
16. MACHADO; Jónatas E. M.; RAPOSO, Vera Lúcia. Direito à saúde e qualidade dos medicamentos: proteção dos dados clínicos numa perspectiva de direito brasileiro, comparado e internacional. Lisboa: Almedina, 2010. 222 p.
17. Verificar: BAHIA, Ligia; SCHEFFER, Mário. Paulada no SUS. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 jul. 2011. Opinião. O uso da capacidade instalada do SUS pelos planos particulares em São Paulo.
18. DIAS, Cláudia Regina Cliento. Medicamentos genéricos no Brasil de 1999 a 2002: análise da legislação, aspectos conjunturais e políticos. 108 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2002.
19. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Regulamentar significa ditar regras jurídicas como competência exclusiva do Poder Executivo, artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, não é delegável. A regulamentação é mais política do que técnica (regulação é mais técnica), exercida no caso com função de ordenamento social e federativo.
20. Resumo sobre a Audiência Pública nº 4 no trabalho “A Justiça e a efetividade na saúde pública”.
21. Ver Anais. Abertura e encerramento. Ministro Gilmar Mendes.
22. Audiência Pública para discutir incorporação de novo medicamento para câncer, pela Vara Federal em Porto Alegre/RS, em sede de Ação Civil Pública.
|