Parecer: Condomínio. Direito de preferência. Pressupostos de direito material e processual.(1)


Autor: Carlos Thompson Flores(2)

Ministro aposentado e ex-Presidente do STF

 publicado em 16.12.2011


Encaminhou-me o ilustre Professor Lenine Nequete consulta sobre a possibilidade de emitir parecer jurídico a respeito da matéria objeto da apelação interposta por seus constituintes Salah A. M. Baja e Saleh A. M. Bujaa na ação que lhes propôs a firma individual S. Almaleh, ora em tramitação perante o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado.

Para o fim solicitado, passou-me às mãos numerosas peças xerocopiadas, extraídas dos autos da respectiva ação.

Por expressarem elas os termos da controvérsia, tal como foi posta em juízo, procedi a seu minucioso estudo, findo o qual me dispus a atender sua pretensão, convencido do bom direito que lhes assiste, o qual não lhes foi reconhecido na r. sentença apelada.

I Os fatos

No essencial e nos aspectos que não ensejaram dissídio entre os litigantes, assim podem ser resumidos os fatos, tais como os expõem os consulentes:

“1. No inventário dos bens deixados por DOMINGOS TERZZI, falecido em 1971 ou 1972, procedeu-se à partilha de um prédio de dois pisos, nos 345, 349 e 355, sito à rua Tiradentes, na cidade de Canoas, RS, cabendo à viúva, d. ERNA FORNECK TERZZI, a metade ideal, e a outra metade, a FLORA TEREZINHA TERZZI FORNECK, casada com JORGE EDUARDO FORNECK.

2. Dito prédio, posteriormente, em ação de extinção de condomínio, foi considerado indivisível, não chegando, porém, o processo a seu fim (extinguindo-se, por despacho judicial, quando ainda ia em meio à avaliação).

3. Em 22 de janeiro de 1981, por escritura pública lavrada no 8º Tabelionato da Capital do Estado, FLORA TEREZINHA TERZZI FORNECK e seu marido JORGE EDUARDO FORNECK prometeram permutar sua metade ideal no prédio acima por dois apartamentos localizados em prédio em construção, à rua Casemiro de Abreu, em Porto Alegre, e que lhes seriam entregues pela firma S. ALMALEH. ‘Os permutantes – eis o que consta da escritura – efetivam a permuta nos seguintes termos: a primeira permutante, S. ALMALEH, dará ao casal, segundo permutante, no edifício descrito na cláusula primeira, um apartamento de cobertura de nº 502 (...) e ainda dará o apartamento de nº 202 (...). Em troca, o casal, segundo permutante, dará à empresa S. ALMALEH a parte ideal que lhes corresponde no imóvel descrito e caracterizado na cláusula segunda [isto é, a metade ideal do prédio objeto do inventário de DOMINGOS TERZZI]. O presente instrumento é irretratável e irrevogável, obrigando-se as partes, por si e por seus sucessores, a cumpri-lo fielmente em todas as suas cláusulas’.

4. Informava ademais o dito instrumento que a escritura definitiva da permuta deveria concretizar-se dentro do prazo máximo de (60) sessenta dias; e, em 26 de janeiro de 1981, ou seja, quatro dias apenas decorridos daquela promessa, o sr. SALOMÃO ALMALEH, titular da empresa S. ALMALEH, se constituía bastante procurador de FLORA TEREZINHA TERZZI FORNECK e JORGE EDUARDO FORNECK para o fim de promover a escritura definitiva da permuta, obtendo junto às repartições competentes todas as certidões e os demais papéis indispensáveis à concretização do negócio.

5. Isto posto, e como ainda em 17 de junho de 1981 não houvesse a empresa S. ALMALEH concluído o Edifício Aurora, onde se localizariam os apartamentos prometidos para permutar pela metade ideal de FLORA TEREZINHA e JORGE EDUARDO no prédio de Canoas, resolveu a condômina d. ERNA TERZZI vender a sua parte a quem melhor preço e mais vantagens lhe oferecia, isto é, a SALAH A. M. BAJA e SALEH A. M. BUJAA. E, para tanto, lavrou-se a escritura de promessa de compra e venda no Tabelionato da cidade de Canoas – escritura essa que traz a data de 17 de junho de 1981.

6. Ad cautelam, deu d. ERNA TERZZI oportunidade à outra condômina, FLORA TEREZINHA, para que exercesse, querendo, o seu direito de preferência. E, diante do desinteresse desta e de seu marido, não teve dúvidas em celebrar a promessa de compra e venda com SALAH A. M. BAJA e SALEH A. M. BUJAA, certa de que a empresa S. ALMALEH – não havendo até então entregue a FLORA TEREZINHA e JORGE EDUARDO os apartamentos pelos quais se comprometera – não se tornara, consequentemente, sua condômina no prédio em tela.”

II Do procedimento judicial e seu desfecho em primeira instância

1. Em 11.12.1981, ajuizou S. Almaleh, perante a 1ª Vara Cível da comarca de Canoas, contra os consulentes e suas mulheres, respectivamente Eneida Trinidad Baja e Adiles Bujaa, e, ainda, contra Erna Forneck Terzzi, ação que denominou de preferência e adjudicação.

Fundou-a, especialmente, no art. 1.139 do Código Civil, após longa exposição dos fatos e de seus antecedentes, terminando por pedir (fl. 20), verbis:

“[...] julgada a ação procedente, requer o reconhecimento do seu direito de preferência e consequentemente a adjudicação da fração ideal de 50% prometida vender aos réus, relativa ao prédio e ao respectivo terreno da rua Tiradentes, nos 345, 349 e 355, matrícula nº 17.849, Livro nº 2, com a decretação da nulidade ou da ineficácia do contrato de promessa de compra e venda feito pelos réus em todos os seus efeitos, inclusive alterações do registro imobiliário, se for o caso, bem como a sua condenação solidária em honorários advocatícios de 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa e nas demais cominações legais.”

2. A tempo, ofereceram os réus sua contestação. Suscitam as prejudiciais:

a) de carência da ação, porque transgredido o prazo de caducidade a que se refere o art. 1.139 do Código Civil, ou, quando assim não ocorra, pela absoluta ausência de titularidade da autora para o ajuizamento da ação que intentou, uma vez que não é ela condômina da metade ideal do prédio cuja preferência postula, qual seja, o da rua Tiradentes, nos 345, 349 e 355, na cidade de Canoas; e

b) de qualquer forma, caberia o decreto judicial de extinção do processo sem julgamento do mérito, pois a autora requereu o prévio depósito do preço, porém incompleto, da promessa de compra e venda, nele não figurando a indispensável comissão de corretagem.

3. Apresentada a impugnação por parte da autora, houve por bem o Dr. Juiz de Direito rejeitar as prefaciais suscitadas, originando agravo retido por parte dos prejudicados. Ao final, colhidas as provas, sentenciou o magistrado, terminando por acolher a ação (fls. 301-13).

4. Apelaram os vencidos, insistindo no acolhimento das preliminares arguidas, reforçando seu reconhecimento com outros argumentos.

5. Recebida e processada a irresignação, subiram os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça, onde tramitam.

6. Nessa fase processual, como se assinalou antes, é que me foi postulado o presente parecer, com o propósito de acompanhar memorial, por parte dos apelantes, a ser apresentado na oportunidade.

6. 1. Circunscreveram os consulentes suas dúvidas aos termos seguintes:

“À vista dos documentos apresentados, possuía a autora a condição de condômina, capaz de assegurar-lhe o direito de preferência de que fala o art. 1.139 do Código Civil? E essa condição em que momento se exige: no momento em que o outro condômino vende a sua parte a estranhos? ou poderia ela ser preenchida a posteriori, até o julgamento da apelação, ex vi do que dispõe o art. 462 do CPC?”

III O direito aplicável à solução das questões propostas

Dispõem, respectivamente, os arts. 1.139 do Código Civil e 462 do Código de Processo Civil:

“Art. 1.139. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino a quem não se der conhecimento da venda poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranho se o requerer no prazo de seis meses.”

“Art. 462. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.”

A) Das questões de direito material

1. Comecemos pelo primeiro deles, definindo o direito material que ele assegura ao condômino do bem indivisível.

Límpida e precisa é a sua linguagem, facilitando, de pronto, verificar os pressupostos que ele exige. Mesmo assim, recolhendo o uniforme ensinamento dos comentadores, houve por bem o Egrégio Supremo Tribunal Federal acentuar, no já distante julgamento de 10.10.1941, proferido no RE nº 5.150, do qual foi relator o saudoso Ministro Barros Barreto (in DJ de 15.01.1942, p. 692):

“Para eficácia do direito facultado no art. 1.139 do Código Civil, deve o autor provar: a) a qualidade de condômino da coisa indivisível; b) que depositou o preço da venda, propondo a ação dentro do prazo de 6 meses; c) que outro condômino, na mesma coisa, vendeu a sua parte a estranho sem consulta judicial aos demais, ou ao requerente.”

2. Para não desbordar dos termos da consulta, ater-me-ei ao primeiro dos atributos essenciais, antes referidos: a qualidade de condômino da coisa indivisível.

Há de decorrer ela, a qualidade, de prova documental precisa, que testemunhe ser ele, autor, titular do direito de condômino, o que equivale a dizer, de coproprietário, comunheiro, consorte, com outrem, no imóvel indivisível. É o que se lê em qualquer Enciclopédia de Direito, como, por exemplo, na de Carvalho Santos (Repertório Enciclopédico de Direito Brasileiro, 10, p. 385) e na Enciclopédia Saraiva de Direito, 17, p. 417.

E tal direito, o de propriedade, de domínio, só reconhece o Direito Brasileiro àqueles aos quais se refere o art. 530 e, no particular, seu inciso I, em conjugação com o art. 531, ao qual cabe, também, relacionar os arts. 533 e 856, todos do Código Civil.

Compete, pois, àquele que se arroga o direito de condômino aparelhar-se com prova documental, certa e precisa, oriunda do Registro Imobiliário, por meio da qual se apure sua qualidade de coproprietário no imóvel indivisível, ou seja, com o respectivo título devidamente transcrito, na linguagem do direito material (Cód. Civ., artigos citados) e do direito formal (Dec. 4.857/39, alterado pelo Dec. 5.318/40, arts. 178, b, III, e 200), ou matriculado e registrado (expressões adotadas segundo o disposto na Lei 6.015/73, arts. 167, I, 29, 176, parág. único, I e III, 3, 1ª parte, e 196, ora em vigor).

2. 1. Impunha-se, pois, à autora, ao ajuizar sua ação, apresentar prova documental, oriunda do Registro de Imóveis, demonstrativa da sua titulação como condômina, ou seja, coproprietária do imóvel indivisível, objeto de sua demanda. E isso porque tal prova constitui condição da ação, por ela intentada, nos termos dos arts. 267, VI, e 295, VI, e como manda o art. 396, 1ª parte, todos do Código de Processo Civil.

2.2. Todavia, limitou-se ela, posto tenha consignado na petição inicial, em comentário, que era condômina, a oferecer certidão extraída do Registro de Imóveis da comarca de Canoas, testemunhando apenas

“[...] averbação da promessa de permuta efetivada entre ela e Flora Terezinha e Jorge Eduardo Forneck, por meio de escritura pública lavrada no 8º Tabelionato de Porto Alegre, Livro 17-A, fls. 01 a 10, nº 6.136/010, em 22.01.1981.”

2.3. A toda evidência, dito documento é, juridicamente, imprestável ao fim propugnado pela autora.

O citado título por ela trazido sequer comprova uma promessa de permuta perfeita e acabada. É que um dos bens a permutar, os apartamentos situados no Edifício Aurora, em Porto Alegre, não estavam concluídos. Constituem eles, apenas, bens futuros, impossibilitando, dessarte, o aperfeiçoamento de dita permuta, a qual, por isso mesmo, era insuscetível de ser registrada no respectivo Cartório, acarretando, consequentemente, a inviabilidade do registro correspondente no Cartório onde se situa o outro imóvel, objeto da transmissão, ou seja, aquele de que cogita a ação, situado na cidade de Canoas.

Essa é a lição dos nossos doutrinadores, aplicando ao Direito Nacional, o qual não cuida dessa espécie de compra e venda (bens futuros), e cujas normas se estendem à troca ou à permuta (Cód. Civ., art. 1.164), como se verifica no ensinamento de Pontes de Miranda (Trat. de Dir. Priv., 39, 1972, § 4.266, n. 2); Caio Mario da Silva Pereira (Instit. de Dir. Civ., III, 1978, p. 150-1); Orlando Gomes (Contratos, 1975, p. 272) e outros.

2.4. Mas, ainda que a promessa de permuta se tivesse aperfeiçoado, o que não ocorreu, gerando a possibilidade do registro e de seu título no competente Ofício Judicial, e lograsse sua real efetivação, o que também não sucedeu, ainda assim, não se tornaria a autora condômina, no sentido já explicitado, da parte ideal do imóvel indivisível, pretendido na demanda.

É que dito contrato não constitui título hábil a transferir o domínio de bens imóveis, como se afirmou e comprovou anteriormente, ainda que contenha ele as cláusulas de irrevogabilidade e irretratabilidade. O registro a que está sujeito efeitos outros não têm do que investir, quando muito, o promitente comprador em direitos reais, e nada mais. Dono ou condômino somente se tornará com a alienação e a respectiva transcrição, hoje denominada, pela legislação formal, de matrícula e registro, como se acentuou antes.

2.5. Nem se argumente com a introdução, no contrato de permuta, das cláusulas referidas, nem que as prestações mencionadas na promessa se tivessem completado, originando a possibilidade de adjudicação, proporcionadora de transcrição. É que, no caso, não ocorreram nem a finalização da permuta nem o respectivo registro, como já foi considerado. Sabido é que, antes do comentado registro, o promitente vendedor pode, legalmente, alienar o bem objeto da promessa a outrem, o que prova que a transmissão não se completou e, consequentemente, o domínio não foi adquirido.

Serpa Lopes, quando no exercício da Vara de Registros Públicos do primitivo Distrito Federal, decidiu que tal operação é inteiramente legal, justificando, alentadamente, com respeitáveis razões, sua decisão (Trat. de Reg. Públ., IV, 1942, p. 195-8).

No mesmo sentido, Orlando Gomes (ob. cit., p. 295, n. 189; e Direitos Reais, 1980, p. 330, n. 239).

Na mesma linha de pensamento, tem-se firmado a jurisprudência dos Tribunais, inclusive do STF.

No já distante julgado de 22.12.42, proferido no RE nº 6.578 (in DJ de 29.07.1943, p. 3.110), afirmou, em sua ementa, verbis:

“Na vigência do Código Civil, não há transmissão do domínio sem a transcrição; mas não anteriormente a ela [...]”

E reiterou, em recente julgamento, a tese em comentário, negando seja o compromisso de compra e venda título, por si, hábil a transferir o domínio da propriedade imóvel.

Diz a ementa do decisório em questão, proferido na Representação 1.121-6, de Goiás, apreciada pelo Plenário da Augusta Corte, e da qual foi relator o eminente Ministro Moreira Alves:

“[...]

O compromisso de compra e venda, no sistema jurídico brasileiro, não transmite direitos reais nem configura cessão de direitos à aquisição deles, razão por que é inconstitucional a lei que o tenha como fato gerador de imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos.” (DJ de 13.04.84, p. 5.631; Ajuris, 31/138) (destaquei)

3. Certo é que a sentença, invocando Pontes de Miranda, admitiu tenha o saudoso jurista aceitado, como título suficiente a transferir o domínio, o pré-contrato de compra e venda, ao usar das expressões a ele se referindo: [...] são apanhados pelo art. 1.139, deduzindo a sem razão do decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de 18.08.43 (in RT, 146/115), que o teria desprezado.

A concisão das expressões do eminente mestre e a omissão da fundamentação do julgado criticado fazem pôr em dúvida o alcance do pretenso ensinamento, no qual se firmou o magistrado. Tanto mais que, com argumentos inteiramente convincentes, afirmou ele, peremptoriamente, verbis: “Não há aquisição entre vivos, translativa, sem o registro; [...]” (Trat. de Dir. Priv., 11, Borsoi, 1955. p. 208, nº 2), e isso ao versar matéria própria da transmissão da propriedade imóvel, por meio da transcrição.

4. Em resumo, a prova documental apresentada pela autora, com os atributos oferecidos, é totalmente inútil e inaproveitável para comprovar sua condição de condômina ou coproprietária no imóvel indivisível, situado na cidade de Canoas, e no qual disputa a preferência e a consequente adjudicação da outra parte ideal, vendida aos réus, ora consulentes. E isso pelas razões fartamente já deduzidas.

5. Mais, dita qualificação, isto é, de condômino no referido imóvel, deveria preexistir ou, pelo menos, coexistir, à data da alienação a estranho, da parte ideal pretendida, pois é da transmissão em referência, sem ouvida dos demais condôminos, que se origina o direito de preferência como, facilmente, se conclui decorrer do art. 1.139 do Código Civil e asseveram os doutores.

E, nesse sentido, é a jurisprudência da Excelsa Corte.

Assim, ao julgar o RE nº 62.805-PR, do qual foi relator o saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, em 22.08.67, unanimemente, a 2ª Turma, afirmando a tese em apreço, consignou na ementa do decisório:

“Condomínio – 1. A preferência, assegurada aos condôminos pelo art. 1.139 do C. Civil, deve ser entendida em favor dos que têm essa condição ao tempo da venda.” (in RTJ, 43/107) (destaquei)

E a mesma conclusão voltou a ser reiterada quatro anos após, pela mesma Turma, com outra composição, mas também por unanimidade, ao apreciar o RE nº 71.864, igualmente do Paraná, e do qual fui relator, com data de 18.10.1971 (in RTJ, 59/591-4).

Assim também já decidira a 1ª Turma, no julgamento do RE nº 49.154-ES, em 18.05.1964 (DJ de 04.06.1964, p. 314-5). Embora a tese principal fosse outra, as afirmações do decisório abonam o mesmo princípio. Tal julgado veio a ser mantido na via dos embargos de divergência, pelo Plenário, em sessão de 01.10.1964.

B) Das questões de direito formal, processual

1. Como se afirmou anteriormente, a ação proposta pela autora firmou-se no direito de preferência, a que se refere o art. 1.139 do Código Civil, especialmente, em sua segunda parte. Por isso, propôs-se ela comprovar sua condição de condômina no imóvel indivisível, cuja parte ideal fora vendida a estranhos sem que fosse ouvida. Visando a anular a transmissão, porque contra a citada disposição, em sua primeira parte, depositou o pretenso preço, correspondente, tanto por tanto, culminando por pedir sua adjudicação.

1.1. Demonstrou-se, outrossim, que a condição jurídica de condômina deve ser verificada no momento da alienação; e, mais, que a documentação apresentada pela autora, no decurso da ação, até o instante de ser ela sentenciada em primeiro grau, não testemunhava a sua qualificação de condômina no imóvel, cuja parte ideal postula para si.

1.2. Querem, agora, os réus, ora consulentes, que se lhes esclareça a repercussão daquelas afirmativas na tela processual, inclusive tendo presente o disposto no já transcrito art. 462 do Código de Processo Civil.

2. Diz o art. 283 do citado Código Processual:

“Art. 283. A petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação.”

2.1. Certo que o documento indispensável é o instrumento público comprobatório, no caso, da condição de condômina, ou seja, coproprietária no imóvel indivisível e caracterizado antes: escritura pública de permuta devidamente transcrita, ou seja, na linguagem do direito formal vigente, matriculado e registrado no Ofício de Imóveis. É o que se deduz do cotejo daquele artigo com os arts. 302, II, 320, III, e 366, do mesmo Código, e arts. 134, II, 530, I, 531 e 623, III, do Código Civil.

Constitui tal documento requisito essencial da “condição da ação”, a que se arroga seu autor, proporcionadora do seu invocado direito, ou seja, legitimidade ad causam, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil (MARQUES, José Frederico, Instituições de Dir. Proc. Civ., II, Forense, 1958, p. 35-6; Manual de Dir. Proc. Civ., 1º, Saraiva, 1975, p. 158-61, nos 136-8; ARRUDA ALVIM, Manual de Dir. Proc. Civ., I, Rev. dos Tribs., 1977, p. 223-7, nº 140; COSTA, Sergio, in Nuovo Digesto Italiano, Utet, 1938, v. VII, p. 46-8).

Por isso mesmo, deveria ele (documento) instruir a petição inicial da ação, ajuizada pela autora.

2.2. À grave omissão da autora impendia ter levado o juiz, como dispõe o art. 284 do Diploma Processual, a determinar o suprimento da falta, o que, lamentavelmente, não sucedeu. Mas, a toda evidência, tal falta não convalidaria a ausência da prova antes referida, mesmo porque o silêncio do magistrado não acarreta preclusão.

2.3. Quando muito, em face do proceder do julgador igualmente omisso, seria, quiçá, de se aceitar a produção da prova em questão, até a sentença, desde que a autora fizesse, também, prova de ocorrência de força maior, ou motivo outro a ela equivalente, impeditiva de exibi-la, como, mais por espírito de equidade, decidiu o Tribunal de Alçada de Minas, por sua 1ª Câmara Civil (in RT, 508/341-7).

Mas nem isso ocorreu. Assim, só restaria ao julgador decretar a extinção do processo, sem outro exame, como dispõe o art. 267, § 1º, do Código de Processo Civil, já que perdida ficara a oportunidade de indeferir a petição inicial, como também dispõe o mencionado Estatuto (art. 284, parág. único).

Essa, de resto, era a orientação dos comentadores do Código de Processo Civil de 1939, menos explícito e menos técnico que o atual, ao aplicar os arts. 159 e 160, 2ª parte, em conjugação com os arts. 201, VI, e 294, I (PONTES DE MIRANDA, Coments. ao CPC de 1939, II, Forense, 1958, p. 429-34), adotada pelos Tribunais, inclusive pelo Supremo (RF, 85/170-1).

3. Antes de mais nada, cumpre considerar que a disposição que se contém no art. 462 do Código de Processo Civil vigente, ao que se verifica, desde logo, é de caráter excepcional, devendo, pois, ser interpretada como tal, restritivamente (FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, Saraiva, 1937, p. 47-8, II). Em outras palavras, sem deslembrar o sistema de produção das provas, adotado pelo Código, máxime daquelas que constituem o próprio fundamento da ação que se quer propor: com a petição inicial, como o quer o art. 283, combinado com o art. 267, VI, já considerados.

3.1. Dita norma não havia no Direito Processual federal anterior, cuja disciplina mais afim era o parágrafo único do art. 159 e o § 3º agregado ao art. 64 pela Lei 4.632/65, limitada às custas e aos honorários de advogado, todos do Código de Processo Civil de 1939.

Constava ela do Projeto, provinda do Código de Processo Civil de Portugal, de 1961 e 1967, art. 663, e não sofreu alteração no Congresso Nacional.

Seu texto teve uma única modificação, por proposta do Executivo, substituindo sua expressão “decisão” por “julgamento”, e que é a que nele figura (Lei 5.925/75).

3.2. Considero, assim, que o art. 462 somente autoriza a levar em consideração o fato novo que tem sentido próprio e específico, ou seja, aquele que não coexistia ao tempo da propositura da demanda, era ignorado pelo autor, estava em poder do réu, ou só o juiz poderia requisitá-lo; ou, referindo-se ao réu, ao ensejo da contestação, em circunstâncias equivalentes às do autor, e que, em qualquer caso, importe influir no julgamento da lide, por ser ele constitutivo, modificativo ou extintivo do direito nela debatido.

É o que, ademais, se extrai das lições dos comentadores (PONTES DE MIRANDA, Coments. ao CPC, V, p. 100-1; MARQUES, José F., Manual de Dir. Proc. Civ., III, 2. ed., 1976, n. 680; AMARAL SANTOS, Coments. ao CPC, IV, For., 1976, n. 333, e outros).

No mesmo sentido, o longo e bem fundamentado acórdão do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, por sua 1 ª Câmara, de 20.03.79 (in RT, 527/107-37).

3.3. Assim, o fato, cuja prova cumpria ter feito a autora, qual seja, o da sua condição ou qualidade de condômina no imóvel indivisível, não era novo, deveria coexistir ao tempo da alienação realizada pela outra condômina; e, por isso mesmo, porque constitutivo do seu direito, não poderia, eficazmente, ser produzido a posteriori, salvo a ocorrência das circunstâncias excepcionais referidas, das quais jamais cogitou a autora.

Acresce que ineficaz se tornou a comprovação ulterior da condição de condômina no imóvel em apreço, quando o próprio direito, se ocorrera, e ele não ocorreu, já teria, agora, perecido, alcançado que fora pelo prazo decadencial de seis meses, a que se refere o art. 1.139 do Código Civil.

4. Todavia, quando se pudesse sustentar que o discutido art. 462 permitisse a apresentação da prova de condômina da autora, após o ajuizamento da ação, o que se faz ad argumentandum tantum, sem consentir, ainda assim, certamente não alcançaria a fase posterior à sentença, ou seja, como diz a disposição legal, ao julgamento. Deve ele ser compreendido como o de 1ª instância.

Não fora assim, se estaria quebrando o próprio sistema de produção de provas, instituído pelo Código de Processo Civil, em seus arts. 332 e seguintes, notadamente, com vista ao caso, à prova documental (arts. 396 e 397).

É a lição do mais autorizado comentador do Código de Processo Civil, no concernente ao tema de provas e sua produção, o saudoso Ministro Amaral Santos, que, ao comentar o referido art. 462 (Coments. ao CPC, For., 1977, IV, p. 444-5), finaliza com estas expressões: [...] até o encerramento da discussão da causa.

Atentaria exegese ampliativa contra dois outros cânones processuais: o do contraditório, erigido em garantia individual, assegurada pela Constituição no âmbito criminal (art. 153, § 16), por sua própria relevância, e o do duplo grau de jurisdição.

4.1. Mas, por amor à discussão, admita-se que a prova do fato novo possa ser trazida para o juízo da apelação, como propugnam alguns comentadores (PIMENTEL, W. Moreira, Coments. ao CPC, III, RT, 1975, p. 523, n. 3; PAULA, Alexandre de, CPC Anotado, II, RT, 1980, p. 433, n. 3).

Ainda assim, mesmo que a autora viesse comprovar perante os julgadores em segundo grau sua condição de condômina, com título de alienação da parte ideal no imóvel indivisível, devidamente matriculado e registrado (transcrito) no Registro de Imóveis de Canoas, onde se situa, certo não convalidaria sua qualificação, nem teria efeito retro-operante e, consequentemente, não teria o mérito de obstar a fluência do prazo decadencial de seis meses previsto no art. 1.139, 2ª parte, do Código Civil, e já ocorrido. Assim, para o caso, de todo ineficaz.

5. Versadas e esclarecidas todas as questões suscitadas na consulta, por vezes até quase com certa redundância, mas com o propósito único de afastar imprecisões, resta, apenas, para encerrar este parecer, responder às questões formuladas. É o que se passa a fazer em seguimento.

IV Respostas conclusivas às dúvidas suscitadas

1. Quanto à 1ª, não. O documento que instruiu a inicial da ação e os juntados posteriormente, antes da sentença, simples averbações no Registro de Imóveis de Canoas, onde se situa o imóvel objeto da demanda, não comprovam a condição de condômina ou coproprietária da autora no imóvel em questão; e, assim, destituída da qualificação jurídica capaz de assegurar-lhe o direito de preferência, ao qual se refere o art. 1.139 do Código Civil.

2. Quanto à 2ª, sim. A condição de condômina, no imóvel em questão, deve, pelo menos, coexistir, no momento da alienação que se procura anular, pois é dessa transmissão que decorre o direito de preferência ao condômino; é do conhecimento, por parte do condômino, como tal qualificado, que passa a fluir o prazo decadencial de seis meses, referido na resposta anterior.

3. Quanto à 3ª, não. A condição de condômina há de ser comprovada, com documentação hábil, segundo a resposta da questão 1ª: ao ser ajuizada a ação, nos termos dos arts. 283 e 396, ou no prazo que se lhe venha a conceder, segundo o art. 284, todos do Código de Processo Civil; e isso porque o título em questão é indispensável à propositura da ação, como causa de pedir. Daí a sanção a que se refere o parágrafo único do art. 283 e o art. 267, VI – ilegitimidade ad causam –, do mesmo Diploma. O art. 462 do citado Estatuto não compreende as provas que devem instruir a petição inicial. Quiçá, caso ocorra força maior, ou motivo outro equivalente, devidamente comprovados, possa dita comprovação (condição de condômina) ser produzida até a prolação da sentença.

Acrescento: quando se pudesse aceitar a produção da prova documental em questão no juízo da apelação, para o caso, seria ela de todo ineficaz, porque já decorrido o prazo decadencial ao qual se refere o art. 1.139 do Código Civil.

É o parecer.

Porto Alegre, 20 de outubro de 1984.

Notas

1. Parecer lavrado em 20.10.1984.

2. Em 2011, comemora-se o centenário de nascimento do Min. Carlos Thompson Flores, falecido em 2001.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2011. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS