A incongruência do tipo penal de contrabando ou descaminho


Autor: Marcelo Roberto de Oliveira

Juiz Federal Substituto, Especialista em Direito Público pela UnB

 publicado em 03.05.2012


Resumo

O presente trabalho tem por objetivo sugerir alteração legislativa no art. 334 do Código Penal, ao demonstrar que a ausência de previsão legal da pena de multa no crime de Contrabando ou descaminho incentiva dita prática criminosa, em especial na faixa de fronteira.

Palavras-chave: Contrabando ou descaminho. Pena de multa. Previsão legal. Ausência. Incongruência.

Há um aspecto, a meu sentir, pouco debatido na seara criminal, que é a incongruência do tipo penal do crime de contrabando ou descaminho, previsto no art. 334 do Código Penal.

Assevera o Codex:

"Contrabando ou descaminho

Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.”

Mesmo previsto no capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração em geral, é cediço que há um forte componente financeiro a envolver a prática cada vez mais reiterada de aludida conduta, em especial na faixa de fronteira.(1)

Não por outra razão, a jurisprudência do Colendo 4º Regional assenta que “o delito de contrabando ou descaminho tutela a Administração Pública, em especial o erário, protegendo também a saúde, a moral, a ordem pública”,(2) dando particular ênfase à repercussão econômica da infração ora sob análise.

O aspecto econômico é inerente ao tipo examinado, tanto que a aplicação do princípio da insignificância, “que se revela inteiro pela sua própria denominação”,(3) tem por base o patamar monetário de R$ 10.000,00 (dez mil reais),(4) pois se o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto de Importação (II) incidentes sobre as mercadorias indevidamente internalizadas importarem em valor menor que o referido, a conduta restará abrangida por esse princípio.

Fixada tal premissa, resta claro que há uma omissão no tipo analisado, consubstanciada na ausência de previsão da pena de multa quando da prática de tal conduta.

Muito se discute sobre as motivações do criminoso, o que o leva a agir de tal e qual forma,(5) mas afigura-se plausível o raciocínio segundo o qual a criminalidade age nos vazios de poder, procurando ocupar espaços onde a atuação estatal seja insuficiente, ou em certos casos de todo omissa.

Nesse norte, inegável que, sendo o contrabando ou o descaminho crime praticado com intuito lucrativo, e não havendo fixação da pena de multa, na seara criminal, quando do seu cometimento, há aqui um vazio que está a incentivar a prática reiterada de tais condutas por parte de organizações criminosas cada vez mais preparadas para tal.

No particular, cumpre trazer à baila dados da Secretaria da Receita Federal acerca de apreensões de mercadorias estrangeiras irregularmente internalizadas, ou de importação proibida:(6)

Comparativo de Mercadorias Apreendidas

DESCRIÇÃO

Janeiro a Junho de 2010

Janeiro a Junho de 2011

Variação 2010/2011

Munições

2.965 unid.

16.461 unid.

455,18%

Bebidas alcoólicas

R$ 2.740.188,93

R$ 2.808.615,69

2,50%

Brinquedos

R$ 5.791.327,49

R$ 8.015.688,42

38,41%

Bolsa e acessórios

R$ 10.200.236,91

R$ 34.376.391,93

237,02%

Cigarros

R$ 38.320.047,42

R$ 56.237.464,83

46,76%

Eletro-eletrônicos

R$ 73.527.324,84

R$ 47.319.036,53

-35,64%

Veículos

R$ 47.105.964,23

R$ 61.102.240,42

29,71%

Vestuário

R$ 31.584.476,89

R$ 38.480.083,99

21,83%

Relógios

R$ 31.852.416,13

R$ 67.133.868,68

110,77%

Medicamento

R$ 2.378.464,18

R$ 11.486.066,15

382,92%

Inseticidas, fungicidas, herbicidas, desinfetantes

R$ 899.156,24

R$ 1.916.002,76

113,09%

Mídias gravadas (CD e DVD)

R$ 1.637.761,46

R$ 2.842.139,41

73,54%

Quando se está a cuidar da prática em comento, uma simples análise aritmética desses dados faz ver que, na quase totalidade das variáveis discriminadas, é exponencial o aumento do número de apreensões de mercadorias contrabandeadas e/ou descaminhadas e dos valores monetários envolvidos nessas apreensões.

Dentro de tal realidade, o que se vê é que quadrilhas cada vez mais especializadas dedicam-se à prática de contrabando ou descaminho, sendo que ditas organizações detêm elevado poderio financeiro, com distribuição de tarefas entre seus integrantes, e estão dispostas mediante estrutura hierarquizada, a qual conta com chefes, financiadores, que podem ou não também ser chefes de quadrilha, adquirentes da mercadoria, olheiros, batedores da carga, motoristas, carregadores, enfim, toda uma linha de produção de cunho nitidamente fordista, com objetivo de levar a efeito com sucesso seus intentos criminosos.

A experiência no dia a dia do Foro diz que o aspecto financeiro, o objetivo de auferir lucro com a internalização indevida de mercadorias, é o que move a maioria, para não dizer a totalidade, dos agentes que praticam tais condutas.

No ponto, merece especial atenção o contrabando de cigarros, empreitada extremamente lucrativa aos agentes nela envolvidos, cujas apreensões sofreram sensível aumento entre os anos de 2010 e 2011, a saber:(7)

COMPARATIVO 1º SEMESTRE 2011/2010

 

1º SEM 2011

1º SEM 2010

VARIAÇÃO EM (R$)
1º Sem 2011 / 1º Sem 2010

CIGARROS

nº maços

valor (R$)

nº maços

valor (R$)

 

81.648.448

56.237.464,83

57.476.476

38.320.003,55

46,76%

Tais importações, desnecessário dizer, são um verdadeiro veneno para a indústria nacional, porquanto concorrem de forma desleal no abastecimento do mercado interno, pela ausência de recolhimento dos tributos devidos, somada ao desrespeito a todo regramento a que estão submetidas as indústrias nacionais, no tocante à garantia dos produtos, à aferição de sua qualidade, ao registro de marcas e patentes, dentre outras.

Essas são vantagens competitivas decisivas em um mercado movido a aumentos contínuos de produtividade, que levam ao achatamento progressivo das margens de lucro e à consequente necessidade de otimização permanente dos processos produtivos.

Desse modo, a ausência da previsão de pena de multa para referida prática não faz sentido, pois o bem jurídico tutelado de forma precípua pela norma é justamente a ordem econômica, além da higidez da própria atividade industrial pátria, o que, em última análise, faz com que o aspecto econômico seja preponderante tanto para quem pratica o crime em tela, quanto para os afetados por seus efeitos deletérios.

Ademais, em um simples cotejo com o tipo do art. 318 do Código Penal,(8) que trata da facilitação de contrabando ou descaminho por parte de funcionário público no exercício da função, fica clara a disparidade de tratamento entre condutas assemelhadas, porquanto nesse tipo, ao contrário do que ocorre com a previsão do art. 334, há a imposição da pena de multa quando da prática criminosa por parte do funcionário público.

Isso quer dizer que, em um mesmo contexto fático, pode haver tratamento indevidamente distinto, pois o contrabandista não será apenado com a multa, ante a prática do tipo inserto no art. 334 do Código Penal; ao passo que o funcionário público o será, pelo fato de a capitulação de sua conduta dar-se no art. 318 do mesmo Código.

Essa realidade faz com que, segundo a análise que se faz, seja necessária a alteração no tipo do art. 334 do CP, a saber:

Contrabando ou descaminho

Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”(9)

Tal alteração daria maior racionalidade ao sistema penal, e viria ao encontro da prevenção geral positiva da pena, enquanto “forma de manifestação de força do Estado sobre os indivíduos, mas não com o intuito primordial de tutela de bens jurídicos lesados (...) mas sim como um instrumento de manutenção das expectativas sociais depositadas sobre a norma”.(10)

Cumpre seja feito esclarecimento adicional.

Não se está aqui a defender imposição de pena de forma absolutamente draconiana, mas sim adequação do tipo penal à natureza da criminalidade que visa coibir, sempre tendo em conta a necessária proporcionalidade entre a conduta praticada e a punição, porquanto “devem ser mais fortes os obstáculos que afastam os homens dos delitos na medida em que estes são contrários ao bem comum e na medida dos impulsos que os levam a delinquir. Deve haver, pois, uma proporção entre os delitos e as penas”.(11)

Neste norte, o Código Penal, notadamente em seus arts. 49-52 e 60, traz parâmetros que permitirão aplicação escorreita da nova previsão, com a possibilidade de adequada distinção entre condutas que mereçam maior ou menor reprovação por parte do intérprete autêntico da norma.

Convencido da pertinência e da aplicabilidade prática de toda a argumentação desenvolvida no presente trabalho, trago o tema ao debate, com o firme propósito de tornar a legislação pátria mais adequada ao combate da criminalidade organizada, no ponto discutido no decorrer desta explanação.

Referências Bibliográficas

ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. 10. tir. São Paulo: Saraiva, 2002.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 2. ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Resultado da Fiscalização Aduaneira – 1º Semestre 2011. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/destinacaomercadorias/
mercadoriasapreendidas/resultfiscalizacao.htm> Acesso em: 17 fev. 2012.

Notas:

1.  Lei nº 6.634/79. Art. 1º. É  considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 km (cento e cinquenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira.

2. TRF4, HC 5017007-82.2011.404.0000, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 12.12.2011 (destaquei).

3. ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. 10. tir. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 133.

4.TRF4 5000681-03.2010.404.7204, Sétima Turma, Relator p/ Acórdão Márcio Antônio Rocha, D.E. 15.12.2011. PENAL. PROCESSO PENAL. DESCAMINHO. ART. 334 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VALOR DOS TRIBUTOS ELIDIDOS. Firmou-se, no âmbito da Quarta Seção deste Tribunal o entendimento no sentido de que "o parâmetro estabelecido para operar o princípio da insignificância em delitos de descaminho reside na cifra de R$ 10.000,00 (dez mil reais) – valor dado pela Lei n° 11.033/2004 ao artigo 20 da Lei n° 10.522/2002" (Enul. Nº 2006.70.07.000110-1/PR, Relator Des. Federal Amaury Chaves de Athayde). Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, "As contribuições instituídas pela Lei nº 10.865/04, nos termos do seu art. 2º, inciso III, não incidem sobre bens estrangeiros que tenham sido objeto de perdimento, motivo pelo qual o montante do valor devido do crédito tributário, referente às mercadorias estrangeiras apreendidas, deve ser calculado sem a incidência do PIS e do Cofins" (REsp 1202274/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 15.09.2011, DJe 10.10.2011).

5. “Freud procurou relacionar a motivação à personalidade, e, no momento, os psicanalistas procuram demonstrar que os fatores externos que participam na formação da vontade criminosa se agregam às variáveis psíquicas, de tal modo que o comportamento criminoso pode ser a expressão objetiva do conjunto dos conflitos internos da pessoa.” BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 214.

6. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/
destinacaomercadorias/mercadoriasapreendidas/
resultfiscalizacao.htm> Acesso em: 17.02.20112.

7. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/
destinacaomercadorias/ mercadoriasapreendidas/
resultfiscalizacao.htm> Acesso em: 17.02.2012.

8. Facilitação de contrabando ou descaminho.

Art. 318 – Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou descaminho (art. 334):

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)

9. Acréscimo legislativo sugerido em negrito.

10. BOSCHI, op. cit., p. 123.

11. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 2. ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 50.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2012. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS