A eleição do conselho fiscal na sociedade anônima (comentário ao art. 161, § 4º, a, da Lei nº 6.404/76)


Autor: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Desembargador Federal do TRF da 4ª Região

 publicado em 03.05.2012


“(...) todo início de sociedade é despreocupado e fácil como uma lua de mel. As incompreensões surgem depois, sobrevêm, às vezes, violentamente. No ato de contratar, poucos serão os sócios que atentam para certas particularidades do contrato social. A regra é a facilidade e a confiança mútua. As cláusulas, especialmente as cláusulas mais cheias de riscos, só adquirem significado com o decurso do tempo, à medida que a experiência pessoal lhes vai revelando o conteúdo.” (RF, v. 98/570)
Miguel Reale

Com efeito, tanto a Lei nº 6.404/76 como a lei anterior – arts. 161, § 4º, a, e 125 do Decreto-Lei nº 2.627/40 – consignam a regra assegurando aos acionistas titulares de ações preferenciais e aos dissidentes ou minoritários o direito de comparecer à assembleia geral e eleger, em votação em separado, cada grupo, um membro do conselho fiscal e o respectivo suplente.

É este o teor do art. 161, § 4º, a, da Lei nº 6.404/76, verbis:

“Art. 161. A companhia terá um conselho fiscal e o estatuto disporá sobre seu funcionamento, de modo permanente ou nos exercícios sociais em que for instalado a pedido de acionistas.

(...)

§ 4º Na constituição do conselho fiscal serão observadas as seguintes normas:

a) os titulares de ações preferenciais sem direito a voto, ou com voto restrito, terão direito de eleger, em votação em separado, 1 (um) membro e respectivo suplente; igual direito terão os acionistas minoritários, desde que representem, em conjunto, 10% (dez por cento) ou mais das ações com direito a voto;”

Trata-se, pois, de um direito intangível do acionista que lhe permite fiscalizar, na forma da lei, a gestão dos negócios sociais.

Dessa forma, sequer os estatutos da sociedade anônima, ou mesmo deliberação da assembleia geral, poderão privar qualquer acionista desse direito.

Verificando-se tal ilegalidade, impõe-se a intervenção judicial, sempre discreta, sem comprometer a vida da sociedade anônima.

Nesse sentido, o voto do Justice Brandeis, no célebre case Ashwander v. Tenessee Valley Authority, julgado pela Suprema Corte em fevereiro de 1936, verbis:

Within recognized limits, stockholders may invoke the judicial remedy to enjoin acts of the management which threaten their property interest. But they cannot secure the aid of a court to correct what appear to them to be mistakes of judgment on the part of the officers. Courts may not interfere with the management of the corporation, unless there is bad faith, disregard of the relative rights of its members, or other action seriously  threatening their property rights.” (In Supreme Court Reporter. St. Paul, Minn.: West Publishing, 1936. v. 56. p. 481)

Da mesma forma, a lição de Louis Fredericq, in Précis de Droit Commercial. Bruxelles: Émile Bruylant, 1970. p. 391-2, nº 357, verbis:

Si l’assemblée générale a délibéré en violation des formalités légales ou statutaires, la nullité de la décision peut être poursuivie en justice. Comme la loi n’édicte aucune sanction expresse, les juges appréciant librement ne prononceront la nullité que lorsque l’omission des formalités vicie essentiellement la décision prise, de manière telle qu’un nouveau scrutin pourrait altérer le résultat du premier.

S’il est vrai qu’en principe, une décision acquise en observant les formalités légales et la lettre des statuts lie la minorité, encore ne faut-il pas que la majorité exerce sa suprématie à des fins essentiellement égoïstes. En matière de sociétés aussi, la bonne foi s’impose, et le juge constatant des abus de majorité a le devoir de réduire à néant les décisions qui trahissent l’intérêt collectif en lésant injustement les associés opposants.”

Na mesma esteira, o pronunciamento de Pierre Coppens, in L’Abus de Majorité dans les Sociétés Anonymes. Louvain: René Fonteyn, 1947. p. 10-1, nº II, verbis:

De bonne foi les actionnaires majoritaires peuvent voter des résolutions malencontreuses. Errare humanum est. Il ne serait pas admissible de recourir en justice contre ces délibérations. Mais s’il est établi que la majorité ne s’est prononcée que pour se réserver des avantages anormaux, la décision ne peut alors être considérée comme inattaquable.

Afin de protéger les droits des minorités, la loi a prévu certaines garanties d’ordre formel: mode et délai de convocation aux assemblées sociales, conditions de quorum et de majorité, conditions de tenue des délibérations.

A l’usage, ces garanties ne se sont pas affirmées suffisantes. Les délibérations doivent aussi pouvoir se réclamer d’une régularité intrinsèque, c’est-à-dire ne pas comporter une exploitation de la minorité des associés.”

Nesse sentido, ainda, Dominique Schmidt, in Les Droits de la Minorité dans la Société Anonyme. Paris: Sirey, 1970. p. 175, nº 232; Henry W. Ballantine, in Cases and Materials on the Law of Corporations. Chicago: Callaghan, 1939. p. 289-290; A. Berle, Corporate Power as Powers inTrust, in Harvard Law Review, v. XLIV, 1930-1, p. 1.049-1.074; Willian H. Fain, Limitations of the Statutory Power of Majority Stockholders to Dissolve a Corporation, in Harvard Law Review, v. XXV, 1911-2, p. 677-690.

No que diz respeito ao procedimento a ser adotado pela sociedade anônima para proceder à eleição de membros do seu Conselho Fiscal, nos termos do disposto no art. 161, § 4º, “a”, da Lei nº 6.404/76, deliberou o Eg. Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE nº 92.609-GO, sendo relator o Ministro Thompson Flores, verbis:

“Sociedade Anônima. Ação visando à declaração de nulidade de assembleias que elegeram o Conselho Fiscal (25.04.77) e a nova diretoria (02.05.78) e aprovou o novo Estatuto Social (31.10.77). Medida cautelar deferida. Demandas acolhidas em ambas as instâncias.
II. Recurso só em parte conhecido e provido para validar a assembleia de 25.04.77 e, consequentemente, a eleição do Conselho Fiscal.

1. Incabível a irresignação ao atacar a decisão proferida em procedimento cautelar. Incidência do R.I., art. 308, V, desistida que foi a arguição de relevância.

2. Negativa de vigência dos arts. 20, 37, caput, e 39 do CPC, bem como dos artigos 122 e 296, § 1º, da Lei 6.404/76, não reconhecida.

3. Igualmente do art. 153 do Código Civil, não ventilado nas decisões impugnadas (Súmula 282 e 356).

4. Os titulares de ações preferenciais – sem direito a voto, ou com voto restrito –, e os acionistas minoritários que representem, em conjunto, 10% (dez por cento), ou mais, das ações com direito a voto, têm o direito de comparecer à Assembleia Geral e eleger, em votação em separado, cada grupo, um membro do Conselho Fiscal e respectivo suplente. Negativa de vigência dos arts. 161, § 4º, a, da Lei 6.404/76 e 125 do DL 2.627/40.

5. A divisão das ações ordinárias de Companhia de capital fechado em classes diversas é facultativa. Inocorrência de negativa de vigência ao art. 16 da Lei 6.404/76.

6. Dos Estatutos da Companhia, formada também com ações preferenciais, constarão, obrigatoriamente, as vantagens e preferências atribuídas a cada classe dessas ações, bem como as restrições a elas impostas; é, entretanto, facultativa a previsão referente ao direito de resgate, amortização, conversão de uma classe em outra ou em ordinárias, e dessas em preferenciais, hipótese em que fixará as respectivas condições. Negativa de vigência do art. 19 da Lei 6.404/76 desprezada.” (In RTJ 99/766).

Nesse julgamento, após transcrever excertos de autorizada doutrina, o eminente Ministro Cunha Peixoto profere substancioso voto nestes termos, verbis:

“8 – A lei anterior, como a atual, sobre sociedade anônima, atribuiu à minoria dissidente e aos acionistas preferenciais o direito à eleição de membro no conselho fiscal. Dizia o art. 125 do Decreto-Lei nº 2.627, de 1940:

‘É assegurado aos acionistas dissidentes, que representarem um quinto ou mais do capital social, e aos titulares de ações preferenciais o direito de eleger, separadamente, um dos membros do conselho fiscal e o respectivo suplente.

Esse dispositivo foi reproduzido, com pequena modificação – que não importa no caso subjudice na letra a do § 4º do art. 161 da Lei nº 6.604/76, de 1976:

‘Na constituição do conselho fiscal serão observadas as seguintes normas:

a) os titulares de ações preferenciais sem direito a voto, ou com voto restrito, terão direito de eleger, em votação em separado, um membro e respectivo suplente; igual direito terão os acionistas minoritários, desde que representem, em conjunto, 10% (dez por cento) ou mais das ações com direito a voto.

Verifica-se que os acionistas preferenciais sem direito a voto e os ordinários dissidentes têm direito a eleger, separadamente, respectivamente, um membro de cada Classe. Mas o que eles têm direito é de eleger um desses membros, e não o de indicar o nome para que a maioria o faça. Esses elementos são eleitos; nas preferenciais, pelo voto da maioria dos titulares dessas ações; e, quanto aos dissidentes com direito à eleição, ocorre pelo voto da maioria destas. De toda maneira, é necessária sempre a eleição e, consequentemente, o comparecimento dos titulares dessas ações na assembleia geral. Essa, aliás, é a opinião de todos os comentadores, quer da lei antiga, quer da atual. Mencionaremos apenas os escritores trazidos à colação pelo acórdão recorrido. Trajano de Miranda Valverde, em escólio ao art. 125 do Decreto-Lei nº 2.627/40, escreveu:

‘O art. 78 incluiu, entre os direitos intangíveis do acionista, o de fiscalizar, pela forma estabelecida na lei, a gestão dos negócios sociais. Nem os estatutos, nem a assembleia geral, poderão privar qualquer acionista desse direito. Mais, ainda: os meios, processos ou ações que a lei dá ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelos estatutos.

Para assegurar a realização desse direito, o decreto-lei estabeleceu a norma do art. 125, que não é senão o meio pelo qual os acionistas dissidentes, que representam um quinto ou mais do capital social, e os titulares de ações preferenciais poderão eleger, separadamente, um dos membros do Conselho Fiscal e o respectivo suplente.’ (Sociedades por Ações, v. II, p. 351, nº 651)

Wilson Batalha, comentando o art. 161 da atual lei, estabelece:

‘Não se admite voto múltiplo para eleição dos conselheiros fiscais. Entretanto, os titulares de ações preferenciais, sem direito a voto, ou com direito a voto restrito (art. 111), poderão eleger, em votação em separado, na própria assembleia geral (sem necessidade de assembleia especial), um membro e respectivo suplente. Igual direito terão os acionistas minoritários representando, em conjunto, dez por cento ou mais das ações com o direito a voto. Os outros acionistas elegerão igual número mais um, desde que sejam titulares de direito de voto.’ (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, v. II, p. 743)

O acórdão trouxe também à colação o ensinamento de Romano Cristiano. Vejamos o que diz esse comentarista:

‘A constituição do conselho fiscal deverá obedecer às seguintes normas:

a) os acionistas minoritários, desde que representem 10% ou mais do capital votante, poderão eleger um membro e respectivo suplente, em votação em separado;

b) os acionistas preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito – se houver – poderão eleger outro membro e respectivo suplente, também em votação em separado;

c) os demais acionistas com direito a voto elegerão os membros restantes e respectivos suplentes, que deverão ser em número igual aos já eleitos, mais um.’ (Nova Estrutura da Sociedade Anônima, p. 144)

Portanto, todos os membros do conselho fiscal – representantes da maioria, dos acionistas sem direito a voto e da minoria dissidente – são eleitos na assembleia geral ordinária, como já acentuávamos em comentários ao Decreto-Lei nº 2.627/40, verbis:

‘Se, por ocasião da eleição dos membros do conselho fiscal, se verificar a existência de acionistas dissidentes, representando, no mínimo, um quinto do capital social, e acionistas preferenciais que desejam eleger, separadamente, seus representantes, a Mesa determinará, inicialmente, a eleição do representante ou representantes da maioria e, em seguida, cada um por sua vez, o da minoria e dos acionistas preferenciais.’ (Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, in Sociedade por Ações, v. IV, p. 137, nº 997)

Para que os acionistas preferenciais e titulares de ações ordinárias dissidentes tenham um membro no conselho fiscal, precisam comparecer à assembleia ordinária e eleger seus candidatos.

Ora, como se verifica, o autor, ora recorrido, não compareceu à sessão ordinária de 25.04.77 (fl. 19) e, portanto, não poderia eleger seu candidato. Limitou-se ele a escrever duas cartas, uma datada de 24 de março e outra de 19 de abril, indicando nomes para o Conselho Fiscal e suplentes. Na primeira, mencionava dois nomes; e na segunda, três, substituindo um da primeira.

Por aí se verifica que queria ter um elemento, no Conselho Fiscal, como representante das preferenciais; e outro como dissidente.

O quórum para a eleição daquele seria o da maioria presente à assembleia, uma vez que ela enfeixava a maioria de ações preferenciais e, assim, o direito seria dela, e não do recorrido, de eleger esse fiscal. Ele próprio informa que, mesmo nesse particular, é minoritário.

Para ter um representante no Conselho Fiscal como dissidente, seria indispensável que o autor, ora recorrido, tivesse comparecido à assembleia geral e votado em seu candidato.

A lei exige a eleição, e não simples indicação, não sendo a maioria obrigada a dar seu voto à pessoa indicada pelo acionista ou pelos acionistas dissidentes, mesmo que esses tenham o percentual que lhes conferiu tal direito.

Não houve, pois, violação do art. 161 da Lei sobre Sociedade Anônima. Ao contrário, tendo a sentença, apoiada pelo acórdão recorrido, dispensado a eleição para que os titulares das preferenciais e o acionista tivessem um elemento no Conselho Fiscal, ela, sim, é que violou, expressamente, frontalmente, o § 4º, letra a, do art. 161 da Lei nº 6.404, de 1976.

Nessa parte, pois, merece conhecimento e provimento o recurso, para que se restabeleça o disposto na Assembleia de 25.04.1977.” (In RTJ 99/776-8)

Dessa forma, o que é assegurado pelo art. 161, § 4º, a, da Lei nº 6.404/76 aos acionistas preferenciais, sem direito a voto, e aos ordinários dissidentes é o direito a eleger, separadamente, um membro de cada classe e o respectivo suplente, e não simplesmente o de indicar o nome para que a maioria o faça.

Impõe-se, pois, o comparecimento dos titulares dessas ações à assembleia geral e, via de consequência, a eleição de seus candidatos pelos acionistas ali presentes.

A Lei nº 6.404/76 requer a eleição, e não a simples indicação, consoante decidido pelo Pretório Excelso no RE nº 92.609-GO, não sendo a maioria obrigada a meramente chancelar o nome da pessoa indicada pelo acionista dissidente ou pelos acionistas dissidentes, ou mesmo pelos acionistas minoritários que representem, em conjunto, 10% ou mais das ações com direito a voto, ainda que esses possuam o percentual que lhes concedeu tal direito.

Non ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod est, regula fiat.

Essa é a lição da doutrina mais autorizada (Trajano de Miranda Valverde, in Sociedade por Ações, v. II, p. 351, nº 651; Wilson de Souza Campos Batalha, in Comentário à Lei de Sociedades Anônimas, Forense, 1977, v. II, p. 743; Min. Carlos F. Cunha Peixoto, in Sociedade por Ações, v. IV, p. 137, nº 997; Fran Martins, in Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 2. ed., Rio: Forense, 1984, v. 2, Tomo I, p. 424, nº 715; Modesto Carvalhosa, in Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 5. ed., Saraiva, 2011, v. 3, p. 514-516).

Ademais, o legislador, por meio do mencionado dispositivo legal, visou, também, a integrar os acionistas minoritários na administração da sociedade, procurando evitar o lamento de Pierre Vigreux, quando registrou em obra já clássica, verbis:

(...) les actionnaires ont donc pris l’habitude, d’une façon quasi générale, de ne pas assister aux assemblées des sociétés dans lesquelles ils ont une participation. Tel est le fait.

Mais, en se comportant ainsi, ils renonçaient à exercer l’une des prérogatives essentielles que leur donnait la propriété de leurs actions: celle qui consiste à exercer le pouvoir souverain qui, dans les sociétés anonymes, est dévolu au capital.

Ne pas assister à l’assemblée générale des actionnaires, ce n’est pas seulement ne pas répondre à une convocation. C’est renoncer au droit de venir demander des explications au conseil d’administration, à celui de formuler des critiques ou des suggestions, à celui surtout enfin de voter éventuellement contre les décisions qui seront soumises à l’assemblée.

Si l’abstentionnisme n’était que le fait exceptionnel d’un nombre limité d’actionnaires, il n’aurait guère d’importance pratique. Mais dès l’instant qu’il se généralisait, il devait avoir une incidence directe et considérable sur le fonctionnement des sociétés anonymes.

Ce pouvoir des actionnaires est ainsi tombé en désuétude. Non pas qu’il n’existe plus en droit; mais simplement parce qu’il n’est plus exercé en fait.” (In Les Droits des Actionnaires dans les Sociétés Anonymes. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias, 1953. p. 36-7, § 1º)

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abr. 2012. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS