Limites à revogação do ato administrativo


Autor: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Desembargador Federal

 publicado em 29.06.2012

 

L’exercise de la fonction administrative est dominé par le principe fundamental de la legalité. Ce principe signifie que les autorités administratives sont tenues, dans les décisions qu’elles prennent, de se conformer à la loi ou plus exactement à la légalité, c’est-à-dire à un ensemble de règles de droit dont beaucoup, mas non point toutes, sont contenues dans des lois formelles.

Ce principe concerne toutes les activités des autorités administratives: d’abord, au premier chef, les décisions administratives individuelles pour lesquelles il signifie que toute mesure particulière doit être conforme aux règles générales préétablies; mais aussi les actes administratifs réglementaires qui doivent eux-mêmes respecter la légalité.

(André de Laubadère, in Droit Administratif, 1967, t. 1. p. 203).

É ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência que a mudança de critério na interpretação da norma jurídica não autoriza a anulação ou a revogação do ato administrativo fundado em interpretação anterior.

Com efeito, é reconhecido à Administração Pública o poder-dever de anular os próprios atos quando editados em contrariedade à Constituição ou à própria lei.

Tais princípios, de há muito, encontram-se consagrados na jurisprudência consolidada do Eg. Supremo Tribunal Federal, com a edição das Súmulas nos 346 e 473, condensando julgamentos seus, amparados na melhor doutrina.

Contudo, quando se trata de interpretação da lei, que não contraria a sua letra ou seu espírito, o fato de a Administração ter adotado interpretação que, posteriormente, considere menos correta ou conveniente, tal fato não legitima a anulação dos atos anteriores.

É o princípio da continuidade do serviço público, sobre o qual não pode pairar a dúvida da legitimidade.

Ao proferir voto como relator do Recurso Ex Officio nº 164.800, disse o saudoso Ministro Rodrigues de Alckmin, quando Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, verbis:

“Esta pode anular os próprios atos, contrários à lei (v. Súmula número 346, do colendo Supremo Tribunal Federal). Mas, quando se trata de interpretação da lei, que não a ofenda nem destoe dos princípios, o fato de a Administração ter adotado interpretação que ulteriormente considere menos correta ou conveniente não justifica a anulação dos atos anteriores. Assim, a anulação somente se legitima se o ato contraria a lei; mas se se cuida de interpretação que não desatende à letra da lei, a mudança de orientação da Administração não legitima a anulação.”

(In Revista Forense, v. 223/184).

Nesse sentido, excelente julgado da Corte de Contas da Itália, do ano de 1945, cuja expressiva ementa dispõe, verbis:

Revocazione. Mutamento di Giurisprudenza e cause di revocazione (art. 395 c.p.c.)

Il mutamento della giurisprudenza non può ammettersi come motivo di revocazione, non rientrando in alcuna delle ipotesi dalle norme in materia.”

(In Rassegna di Diritto Pubblico, anno I, fascicolo II, aprile-giugno – 1946. CEM, Napoli, p. 294.)

Tal exegese concilia-se com a melhor doutrina, pois, se assim não fosse, a ordem jurídica perderia a estabilidade necessária e as relações entre a administração pública e os administrados não teriam nenhuma segurança, pois desapareceria a certeza do direito do particular diante das possíveis variações de interpretação de cada funcionário público e de cada nova Administração que discordasse da anterior.

Os doutrinadores têm versado o assunto de forma exaustiva, a começar por Francisco Campos, seguindo-se Seabra Fagundes, Miguel Reale, Themístocles Cavalcanti, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, para não citar os mestres estrangeiros, em cujos ensinamentos se inspiraram aqueles.

 A propósito, leciona Francisco Campos, em conhecido estudo, verbis:

“A irrevogabilidade dos atos administrativos que declaram, reconhecem ou geram direitos se funda, na minha opinião, em várias razões, cada qual mais poderosa do que a outra.

1º) É indubitável que em um sistema jurídico que veda a retroatividade da lei, ou a aplicação da lei posterior a um ato consumado sob o regime legal anterior, será inadmissível o privilégio que se pretende conferir à autoridade administrativa de poder, livremente, anular, mediante ato revocatório, os efeitos já produzidos por um ato administrativo anterior. Quanto mais que o ato administrativo, cujo conteúdo consiste em aplicar a lei, adquire, por isso mesmo, o caráter geral de norma jurídica para o caso ou os casos que foram objeto da disposição administrativa. O ato administrativo substitui-se, nessa hipótese, à lei ou é a própria lei em relação ao caso ou aos casos a que a autoridade administrativa aplicou o preceito legal. Não se compreende que a administração não se vincule por aquele ato, da mesma maneira que o legislador é vinculado, ao editar a nova lei, pelos efeitos produzidos sob a vigência da lei anterior.

2º) No caso em que o ato administrativo se limita à aplicação da lei, a atividade administrativa é obviamente de natureza jurisdicional. É perfeitamente legítimo, portanto, nessa hipótese, atribuir-se ao ato administrativo a força ou a eficácia material atribuídas às decisões dos órgãos jurisdicionais, no sentido de a relação jurídica fixada no ato administrativo não poder mais ser alterada ou mudada pela autoridade que editou o ato, senão nos casos expressamente admitidos em lei. Veja-se sobre este aspecto do problema a admirável explanação de MERKL (Allgemeines Verwaltungrsrecht, § 14, p. 201-213; Teoria Geral de Derecho Administrativo, § 14, p. 263-278). A lição de MERKL pode resumir-se no seguinte período: o ato administrativo que aplica a lei a um caso concreto só pode ser revogado ou modificado por outro posterior na hipótese e na medida em que a própria lei atribua a esse ato posterior a força modificadora ou revocatória da mesma maneira que uma sentença judicial só poderá ser revogada ou modificada por outra posterior nos casos admitidos em lei.”
(In Revista Forense, v. 139/57-8.)

Sobre a controvérsia, Bennoit Jeanneau ensina, verbis:

Si les autorités administratives pouvaient impunement assortir leurs décisions d’une portée retroactive, les administrés auraient le sentiment d’une insécurité permanente et ne sauraient jamais quelle est la réglementation en vigueur.

(In Les Principes Généraux du Droit dans la Jurisprudence Administrative. Paris: Sirey, 1954, p. 92.)

É esse, também, o pensamento do Professor André de Laubadére, verbis:

La théorie des retraits est dominée par un de ces principes généraux du droit qu’applique, on le sait, le juge administratif: le principe de l’intangibilité des effets individuels des actes administratifs. Ce principe a pour fondement une exigence élémentaire de sécurité juridique; il signifie que lorsqu’une décision d’une autorité publique a produit des effets à l’égard des individus, ce effets individuels doivent être respectés.

(In Traité Élémentaire de Droit Administratif. Paris: LGDJ, 1967, t. 1. p. 283-4, n. 508)

Além das obras especializadas, também os tratados e estudos de direito administrativo veiculam a mesma doutrina: Paul Duez e Guy Debeyre, in Traité de Droit Administratif. Paris: Dalloz, 1952, p. 215, n. 329, n. IV; Marcel Waline, in Traité Élémentaire de Droit Administratif. 6. ed. Paris: Sirey, 1952, p. 436; Louis Delbez, “La Révocation des Actes Administratifs”, in Revue du Droit Public. Marcel Giard, Paris, 1928, t. 45, p. 468; Oswaldo A. Bandeira de Mello, in  Princípios Gerais de Direito Administrativo. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v. I, p. 562-4; Themístocles Brandão Cavalcanti, in Teoria dos Atos Administrativos. Revista dos Tribunais, 1973, p. 192 e seguintes; Miguel Reale, in Revogação e Anulamento do Ato Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 81-2; Miguel Seabra Fagundes, in Pareceres do Consultor-Geral da República. Volume único. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº, 1947, p. 132-3.

Essa doutrina assenta as suas raízes no célebre Arrêt Cachet, julgado pelo Conselho de Estado da França, em 3 de novembro de 1922, e considerado por Hauriou “un des exemples les plus nets du pouvoir créateur du Conseil d’Etat”.

Depois de rememorar a jurisprudência do Conselho de Estado, que até então admitia a livre revogação de atos administrativos quando eivados de nulidade, Hauriou anotou, verbis:

Mais le pouvoir de retrait ou d’annulation de l’Administration pouvait-il s’exercer indéfiniment et à toute époque? Est-ce que jamais les situations créé es par les décisions de ce genre ne deviendraient stables? Combien de dangers pour la sûreté des relations sociales recèlent ces possibilités indéfinies de révocation et, d’autre part, quelle incohérence dans une construction juridique qui n’ouvre aux tiers intéressés les recours contentieux en annulation que pendant un bref délai de deux mois et qui laisserait à l’Administration la possibilité de manier l’annulation d’office contre la même décision sans lui imposer aucun délai!

E, adiante, em significativa passagem, conclui, verbis:

Les réflexions que ces rapprochements et ces considérations ont provoquées au sein du Conseil d’Etat nous sont révélées dans les conclusions de M. Rivet et les travaux d’approche exécutés discrètement pour préparer un revirement nous y sont indiqués. C’est dans l’arrêt Cachet du 3 novembre 1922, qu’éclate la solution et les trois autres arrêts ne font que la confirmer. Cette solution est qu’on enfermera le droit d’annulation d’office de l’Administration dans les mêmes délais que le recours contentieux en annulation, c’est-à-dire dans le délai de deux mois à compter de la notification de l’acte à l’intéressé.

Ainsi, toutes les nullités juridiques des décisions administratives se trouveront rapidement couvertes, soit par rapport au recours contentieux, soit par rapport aux annulations administratives; une atmosphère de stabilité s’étendra sur les situations créé es administrativement.

(M. Hauriou, in Notes d’Arrêts sur Décisions du Conseil d’État. t. 2. Paris: Sirey, 1929, p. 105-6)

Dessa forma, por meio de construção pretoriana, estabeleceu-se um limite temporal à revogabilidade do ato administrativo que, não obstante ilegal, haja produzido efeitos, originando direitos.

Nesse sentido, precedente do Eg. Supremo Tribunal Federal, em que foi relator o eminente Ministro Bilac Pinto, o RE nº 85.179-RJ, julgado em 04.11.1977, verbis:

“Ato administrativo. Seu tardio desfazimento, já criada situação de fato e de direito, que o tempo consolidou. Circunstância excepcional a aconselhar a inalterabilidade da situação decorrente do deferimento de liminar, daí a participação no concurso público, com aprovação, posse e exercício.

Recurso extraordinário não conhecido.”
(In RTJ 83/921).

Ora, como bem acentua o Professor Miguel Reale, na obra citada, p. 71, verbis:

“Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela.”

Discorrendo acerca dos limites à revogação dos atos administrativos, o Professor Frederico Cammeo, a respeito, escreveu, verbis:

La facoltà dell’amministrazione di far valere l’invalidità per via di revoca od annullamento sembra imprescrittibile. Tuttavia se essa sia esercitata dopo lungo tempo in danno di situazione consolidatasi e senza sufficiente utile pubblico, la revoca o l’annullamento possono essere alla lor volta invalide per eccesso di podere.

(In Corso di Diritto Amministrativo. Padova: CEDAM, 1960, p. 612)

Nesse sentido, ainda, é o pensamento dos seguintes autores: Pierre Delvolvé, in L’Acte Administratif. Paris: Sirey, 1983, p. 256, nº 655; Jean Rivero, in Droit Administratif, Paris: Dalloz, 1977, p. 107, n. 103; Gaston Jèze, in Les Principes Généraux du Droit Administratif La Technique Juridique du Droit Public Français, Marcel Giard, Paris, 1925, p. 102-4; Maurice Hauriou, in Droit Administratif, Paris: Sirey, 1927, p. 363, “c”; Aldo Sandulli, in Manuale di Diritto Amministrativo. Napoli: Casa Editrice Dotti Eugenio Jovene, 1952, p. 247; Umberto Fragola, in Gli Atti Amministrativi. 2. ed. Napoli: Casa Editrice Dotti Eugenio Jovene, 1964, p. 186 e seguintes; Santi Romano, in Corso di Diritto Amministrativo. 3. ed. Padova: CEDAM, 1937, p. 291, n. 2; Arnaldo de Valles, in La Validità degli Atti Amministrativi, Padova: CEDAM, 1986, p. 435-6, n. 77; Oreste Ranelletti, in Le Guarentigie della Giustizia nella Pubblica Amministrazione. Milano: Giuffrè Editore, 1934, p. 139; Norbert Achterberg, in Allgemeines Verwaltungsrecht, CF Müller Juristischer Verlag, Heidelberg, 1986, p. 597, § 23; Ludwig von Köhler, in Grundlehren des Deutschen Verwaltungsrechts, Stuttgart – Berlin: Verlag von Kohlhammer, 1935, p. 192-3.

Embora se reconheça o poder-dever da Administração em anular seus próprios atos quando eivados de ilegalidade, porquanto da inteira submissão da atuação administrativa ao princípio da legalidade, o certo é que essa prerrogativa precisa ser compatibilizada com outro princípio próprio do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da segurança jurídica.

Mesmo considerando que "a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos", tal prerrogativa somente pode ser levada a efeito no limite temporal insculpido no art. 54 da Lei nº 9.784/99. Ultrapassado o prazo decadencial da norma referida sem que o ato impugnado fosse expurgado do universo jurídico, prevalece a segurança jurídica em detrimento da legalidade da atuação administrativa.

Nesse sentido, também o entendimento da doutrina, consoante leciona Fritz Fleiner, verbis:

"L'autorité ne doit faire usage de sa faculté de retirer ou de modifier une disposition édictée para elle que lorsque l'intérêt public l'exige. Elle ne doit pas troubler à la légère des situations existantes, qui se sont établies sur la base de ses dispositions; elle ne doit pas davantage, parce que son point de vue juridique aurait changé, déclarer non valables des possessions des citoyens qu'elle a laissées subsister sans contestation pendant des annés, quand il n'y a pas nécessité absolue. La maxime quieta non movere et le principe de la bonne foi (Treu und Glauben) doivent valoir pour les autorités administratives également. Mais évidemment, la possibilité du retrait d'une disposition qui lui est avantageuse est toujours suspendue sur la tête du citoyen comme une épée de Damoclès. Le législateur a par suite dû songer à limiter ce droit de retrait des dispositions pour le cas où la considération de la sécutité juridique l'exige. C'est ainsi qu'il a reconnu l'immutabilité notamment aux dispositions créatrices de droits ou d'obligations que ne peuvent être édictées par l'autorité qu'après une procédure d'opposition ou d'enquête approfondie. Car une telle procédure a précisément pour objet, d'une part d'assurer la possibilité d'un examen des intérêts publics sous toutes les faces, mais d'autre part aussi d'offrir au citoyen la garantie que la disposition édictée de cette façon ne sera plus modifiée.

(In Les Principes Généraux du Droit Administratif Allemand. Traduction de Ch. EISENMANN, Paris: Librairie Delagrave, 1933, p. 126-7)

Em voto que proferiu quando integrante do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, publicado na Revista do TRF/4ª Região, v. 6, p. 269, disse o então Des. Federal Gilson Dipp, verbis:

"a Administração Pública pode, de modo implícito, pelo silêncio ou pela inação, durante prolongado lapso temporal, ratificar ato administrativo. O Poder Público atentaria contra a boa-fé dos destinatários da administração se, com base em supostas irregularidades, por ele tanto tempo toleradas, pretendesse a supressão do ato."

Incide, pois, o disposto no art. 54 da Lei nº 9.784/99.

Nesse sentido, recente precedente do Eg. Supremo Tribunal Federal, verbis:

“MS 24268 / MG Rel. Acórdão Min. GlLMAR MENDES DJ 17.09.2004

Mandado de Segurança.

2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos.

3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo.

4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador.

5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos.

6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica.

7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente.

8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo.

9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV).”

Nesse sentido, também, precedentes do Eg. Superior Tribunal de Justiça, verbis:

“ADMINISTRATIVO SERVIDOR PUBLICO LEI 1. 711/52. CUMULAÇÃO DE VANTAGENS. REVISÃO DE APOSENTADORIA. DECADÊNCIA PARA ADMINISTRAÇÃO REVER SEUS ATOS. OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO

1. É entendimento pacífico desta Corte de se reconhecer a decadência do direito da administração de proceder a revisão de aposentadoria quando transcorridos mais de cinco anos entre o ato concessivo do referido benefício e a instauração do procedimento administrativo.

2. Agravo regimental desprovido.”
(STJ, 5ª Turma, AGA 422441, Rel.: Min. Laurita Vaz, DJ: 24.02.2003).

É oportuno, no caso, o ensinamento do saudoso Mestre Miguel Reale em sua obra clássica Revogação e Anulamento do Ato Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 70-2, verbis:

“Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si só convalecer – como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico –, mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato.

Escreve com acerto José Frederico Marques que a subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo razoável pode ser considerada requisito implícito no princípio do due process of law. Tal princípio, em verdade, não é válido apenas no sistema do direito norte-americano, do qual é uma das peças basilares, mas é extensível a todos os ordenamentos jurídicos, visto como corresponde a uma tripla exigência, de regularidade normativa, de economia de meios e formas e de adequação à tipicidade fática. Não obstante a falta de termo que em nossa linguagem rigorosamente lhe corresponda, poderíamos traduzir due process of law por devida atualização do direito, ficando entendido que haverá infração desse ditame fundamental toda vez que, na prática do ato administrativo, for preterido algum dos momentos essenciais à sua ocorrência; porém destruídas, sem motivo plausível, situações de fato, cuja continuidade seja economicamente aconselhável, ou se a decisão não corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade social tipicamente configurada em lei.

Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela. Desde o famoso affaire Cachet, é essa a orientação dominante no Direito francês, com os aplausos de Maurice Haurion, que bem soube pôr em realce os perigos que adviriam para a segurança das relações sociais se houvesse possibilidade de indefinida revisão dos atos administrativos.

Da França tal doutrina passou para a Itália, granjeando o apoio de seus mais ilustres mestres, como Cino Vitta e D’Alessio, cuja doutrina é oportunamente lembrada por José Frederico Marques ao tratar deste assunto. Consoante ponderação do primeiro dos administrativistas citados, ‘uma grande distância de tempo, pode parecer oportuno manter o ato em vida, apesar de ilegítimo, a fim de não subverter estados de fato já consolidados, só por apego formal e abstrato ao princípio de legitimidade. Não se olvide que o ordenamento jurídico é conservador no sentido de respeitar fatos ocorridos há muito tempo, muito embora não conformes à lei’.”

Diversa não é a doutrina americana.

Em seu clássico tratado, Albert Constantineau aduz, verbis: “Salary paid to a facto officer cannot presumably be recovered back” (In A Treatise on the Facto Doctrine. New York: The Lawyers Co-operative Publishing Co., 1910, § 240, p. 336).

Nessa linha, Ernest Freund, ao transcrever julgado da Suprema Corte de New York, de 1845, em que se decidiu, verbis:

But it is equally settled that the acts of an officer de facto, though his title may be bad, are valid so far as they concern the public, or the rights of third persons who have an interest in the thing done. Society could hardly exist without such a rule.

(In Cases on Administrative Law. St. Paul: West Publishing Co., 1911, p. 113).

Essa é a communis opinio doctorum.

Realmente, o problema relativo às consequências da revogação de um ato administrativo, importando na nulidade do anterior, exige certa contemporização com as situações de fato criadas, especialmente quanto às vantagens usufruídas pela prática do ato antes de sua revogação e, também, pela sua repercussão na esfera dos direitos de terceiros.

Daí, a teoria do erro comum, a mesma que se ajusta à situação dos funcionários de fato.

Incide, aqui, o magistério de Zachariae, plenamente aplicável ao direito público, verbis:

“(...) nous persistons à croire que la bonne foi doit être appréciée en fait e non en droit, et que si elle est moins facilement présumable quand on allègue l’erreur de droit que lorqu’on allègue l’erreur de fait, ce n’est pas une raison pour qu’elle ne puisse pas exister dans un cas comme dans l’autre.

(In Le Droit Civil Français. t. 2. Traduzido por G. Massé e Ch. Vergé. Paris: Auguste Durand Éditeur, 1855, p. 106, nota 11.)

É o que Proper Weil denomina “a vitória do fato sobre o direito”, mas que, em realidade, é uma necessidade que visa a assegurar a estabilidade e a segurança da ordem jurídica (In Les Consequences de L’Annulation D’un Acte Administratif par Exccès de Pouvoir. Paris, 1952).

Nesse sentido, o erudito voto proferido pelo Ministro Leitão de Abreu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 89.108-GO, julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em 28.08.1980, verbis:

“Observo, ainda, que a ficção jurídica da retroatividade, concebida em termos absolutos, radicais, insuscetíveis de qualquer temperamento, porque a lei inconstitucional não é lei, nunca foi lei, está em desacordo com a regra, acolhida pela Suprema Corte Americana, onde se entende, ou entendeu, consoante mostrou o Ministro Cordeiro Guerra, com base no testemunho de Cheter J. Antieau, que, na hipótese de uma lei ser declarada inconstitucional num caso e posteriormente constitucional, noutro caso, é dispensável a restauração da lei, uma vez que uma lei inconstitucional é simplesmente inoperante, mas não nula no sentido de que é revogada ou abolida. Desse modo, enquanto perdura a decisão que declarou a inconstitucionalidade, a lei, sobre a qual incidiu o julgamento, dorme, porém não está morta. Donde ser válida desde o seu advento, se declarada, em caso diverso, a constitucionalidade.”

E, noutro passo, conclui, verbis:

“A hipótese é aventada, exclusivamente, com o objeto de mostrar que, se a lei inconstitucional não é varrida inexoravelmente do mundo jurídico, é lícito admitir, também, que alguns de seus efeitos permanecem íntegros, notadamente quando são representados por situações jurídicas, cujos titulares procederam de boa-fé, na presunção da legitimidade da lei, presunção de que participavam todos os que concorreram à conquista de tais situações.”

(In RTJ 101/222).

É a lição de Oliver Field, amparada na jurisprudência das Cortes americanas, verbis:

“Declaring a statute unconstitutional does not necessarily render it void ab initio. It is an axiom of practical wisdom, coeval with the development of the common law, founded upon necessity, that de facto acts of binding force may be performed under presumption of law. There is another rule so uniform in its application that it, too, has become a legal maxim, that ‘all acts of the legislature are presumed to be constitutional’.”

(In The Efect of an Unconstitutional Statute. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 1935, p. 118.)

São inumeráveis – leciona o saudoso Mestre Cirne Lima – as reações com que o Direito se sobrepõe ao curso irreversível do tempo, citando, dentre as mais notórias, a prescrição, a nulidade dos atos jurídicos e a condição suspensiva, projetando-se sobre a relação de direito administrativo, a desafiar soluções para as mais intrincadas questões jurídicas, buscando uma solução equitativa, temperando o rigor da lei (Ruy Cirne Lima, in Preparação à Dogmática Jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1958, p. 227 e seguintes).

A propósito, disse o eminente Ministro Carlos Thompson Flores ao votar no já citado RE nº 89.108-GO, verbis:

“Vezes várias, perante esta Suprema Corte, tenho, em meus votos, salientado o fator tempo, como relevante, influindo nas relações dos homens.

Tenho lembrado, em tais oportunidades, memorável voto proferido, nos idos em que vigorava a Constituição de 1937, quando integrava o Conselho Administrativo do Estado do Rio Grande do Sul o saudoso mestre Alberto Pasqualini, no qual, valendo-se de sua vasta cultura geral e especialmente filosófica e jurídica, faz erudita e sábia argumentação sobre o fator tempo, nas relações humanas, criando-as, alterando-as, extinguindo-as.”

(In RTJ 101/224).

A doutrina consagrada afeiçoa-se, integralmente, à jurisprudência dos Tribunais, inclusive do Pretório Excelso, desde o leading case relatado pelo Ministro Bilac Pinto, o RE nº 85.179-RJ, julgado pela Primeira Turma, no já distante ano de 1977.

O problema dos limites à revogação do ato administrativo é da maior importância, eis que a sua revogação implica a supressão dos efeitos do anterior, com consequências na estabilidade da ordem jurídica.

É hoje pacífica a doutrina e a jurisprudência no sentido de que é vedado à Administração Pública a revogação do ato administrativo em razão da mudança de critério na interpretação da norma jurídica, notadamente em razão de situações de fato criadas pela prática do ato antes de sua revogação e pela sua repercussão em relação aos direitos de terceiros, sob pena de contrariar o princípio da segurança jurídica, hoje alcançado pela proteção constitucional (art. 5º, LV, da CF/88).

Para concluir, seja-me permitido colacionar a lição de Anne-Laure Valembois, em consagrada monografia, verbis:

L’intangibilité des actes créateurs de droit est considérée comme une nécessité sociale immanente au droit public. Elle constitue surtout ‘une garantie fondamentale de sécurité juridique’. Dans sa dimension dynamique, l’exigence de sécurité juridique s’oppose donc à ce que les situations puissent être remises en cause indéfiniment par les autorités normatives et implique une cristallisation des situations juridiques subjectives. Elle anime ainsi la théorie de la forclusion et de la prescription et domine celle des droits acquis. Elle explique l’autorité de chose décidée et de chose jugée. Là encore, elle renvoie à l’interdiction de la rétroactivité des normes.

De manière générale, dans sa dimension stabilisatrice, l’exigence de sécurité juridique semble très liée à un principe qui n’est plus inconnu de juristes français tant les études à son sujet se sont également multipliées, à savoir le principe de protection de la confiance légitime ou principe de confiance légitime.

(In La Constitutionnalisation de L’Exigence de Sécurité Juridique en Droit Français. Paris: LGDJ, 2005, p. 17, nos 22-3.)

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2012. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS