Elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa

Zenildo Bodnar

Autor: Eduardo Nepomuceno de Sousa

Promotor de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Belo Horizonte, Pós-graduado em Ciências Penais, Professor do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

 publicado em 30.10.2012


Palavras-chave: Improbidade Administrativa. Elemento Subjetivo. Dolo. Má-fé. Culpa. Ônus da prova. Presunção legal. Prova processual.

A Lei de Improbidade Administrativa, 8.429/92, estabelece, em seus artigos 9º, 10 e 11, as hipóteses de improbidade administrativa, qualificando-as por meio dos bens jurídicos violados (enriquecimento ilícito, lesão ao erário e aos princípios constitucionais).

Os atos que causam lesão ao erário serão punidos, de acordo com a lei, em quaisquer ações dolosas e/ou culposas, conforme previsão expressa do artigo 10. Nos outros dois dispositivos, artigos 9º e 11, não se faz qualquer menção ao elemento subjetivo.

Segundo Fábio Medina Osório(1):

"A responsabilidade subjetiva, no bojo do tipo proibitivo, é inerente à improbidade administrativa, sendo exigível o dolo ou a culpa grave, embora haja silêncio da LGIA sobre o assunto. Isso se dá, como já dissemos à exaustão, por força dos textos constitucionais que consagram responsabilidades subjetivas dos agentes públicos em geral, nas ações regressivas, e que contemplam o devido processo legal, a proporcionalidade, a legalidade e a interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos no desempenho de suas funções sancionatórias. Portanto, a improbidade administrativa envolve, modo necessário, a prática de condutas gravemente culposas ou dolosas, inadmitindo responsabilidade objetiva."

Parte-se da premissa que a responsabilidade civil, relacionada aos atos de improbidade administrativa, é de caráter subjetivo, exigindo-se o dolo ou a culpa, esta última somente nos casos de lesão ao erário.

O dolo, segundo a doutrina(2) penalista, apresenta os componentes intelectivo e volitivo, sendo o primeiro a representação ou a consciência do fato e o segundo, vontade de praticar a conduta e atingir o resultado. Atuar dolosamente, em linhas gerais, significa agir de forma livre e consciente, pretendendo alcançar um resultado.

O dolo como elemento subjetivo da conduta não se confunde com o dolo (má-fé), que vicia o negócio jurídico, tornando-o anulável.

Em Direito Civil, dolo é uma espécie de vício de consentimento, caracterizada na intenção de prejudicar ou fraudar um outro. É o erro induzido, ou proposital, daí surgindo a ideia da má-fé.

Note-se que o exame a respeito da má-fé estará presente, na relação jurídica, quando ausente a boa-fé (conceito negativo). Segundo Miguel Reale(03):

“Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas consequências.

Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta: a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que  a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’.”

A improbidade administrativa, embora cuide de responsabilização de natureza civil, necessita da configuração de um elemento subjetivo semelhante àquele do Direito Penal, ou seja, dolo e culpa. Note-se que a Lei 8.429/92, ao tratar do assunto, constou a expressão conduta dolosa ou culposa e, não, agir com dolo ou má-fé, confirmando a premissa ora adotada. Não se trata, pois, de boa-fé subjetiva ou objetiva.

O Superior Tribunal de Justiça, nos julgados de sua alçada, não só confirma a indispensabilidade do elemento subjetivo na conduta, como, ainda, exige a prova de sua existência.

À guisa de exemplos, pode ser citado o seguinte julgado:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES SEM CONCURSO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO OU CULPA GRAVE) NA CONDUTA DO DEMANDADO.

1. É firme a jurisprudência do STJ, inclusive de sua Corte Especial, no sentido de que ‘Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10’ (AIA 30/AM, Corte Especial, DJe de 27.09.2011).

2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no REsp 975540 / SP. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2007/0180690-1. Relator(a): Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124). Órgão Julgador: T1 – PRIMEIRA TURMA. Data do Julgamento: 17.11/2011 Data da Publicação/Fonte: DJe 28.11.2011)
 
No entendimento pacífico da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é necessária a existência do elemento subjetivo dolo para caracterização da improbidade administrativa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 e, ao menos a culpa, para a hipótese do artigo 10.

Registre-se, contudo, no julgado, a menção à figura da “culpa grave”, não descrita na norma, que fala, apenas, em “conduta culposa”. Já se percebe a intenção daquela Corte em diferenciar o elemento subjetivo, dando-lhe tratamento jurídico diverso da própria nomenclatura legal.

Vejamos outro julgado do mesmo STJ:

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PREFEITO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROMOÇÃO PESSOAL INDEVIDA NO CEMITÉRIO LOCAL POR OCASIÃO DO FERIADO DE FINADOS. ART. 11 DA LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO) NÃO CONFIGURADO. AGRAVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL DESPROVIDO.
1. A Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) objetiva punir os praticantes de atos dolosos ou de má-fé no trato da coisa pública, assim tipificando o enriquecimento ilícito (art. 9º), o prejuízo ao erário (art. 10) e a violação a princípios da Administração Pública (art. 11); a modalidade culposa é prevista apenas para a hipótese de prejuízo ao erário (art. 10).
2. Não se tolera, porém, que a conduta culposa dê ensejo à responsabilização do servidor por improbidade administrativa; a negligência, a imprudência ou a imperícia, embora possam ser consideradas condutas irregulares e, portanto, passíveis de sanção, não são suficientes para ensejar a punição por improbidade; ademais, causa lesão à razoabilidade jurídica o sancionar-se com a mesma e idêntica reprimenda demissória a conduta ímproba dolosa e a culposa (art. 10 da Lei 8.429/92), como se fossem igualmente reprováveis, pois objetivamente não o são.
3. O ato ilegal só adquire os contornos de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvada pela má intenção do administrador, caracterizando a conduta dolosa; a aplicação das severas sanções previstas na Lei 8.429/92 é aceitável, e mesmo recomendável, para a punição do administrador desonesto (conduta dolosa) e não daquele que apenas foi inábil (conduta culposa).
4. No presente caso, a conduta imputada ao agravado consiste na suposta realização de promoção pessoal indevida no cemitério local por ocasião do feriado de Finados que, utilizando-se de funcionários públicos municipais, fez com que estes, na madrugada do dia 2 de novembro de 2003, distribuíssem por todos os túmulos existentes no cemitério municipal um botão de rosa acompanhado de cartão (fls. 10).
5. Na linha da orientação ora estabelecida, a sentença de primeira instância julgou improcedente o pedido do Ministério Público por ter entendido ausentes o dolo ou a má-fé do recorrente.
6. Ocorre que o Tribunal de origem, apesar de reconhecer a ausência do elemento subjetivo (dolo) ao afirmar que, muito embora, a princípio, não se vislumbre má-fé na atitude do prefeito apelado, nem se tenha evidências de que teriam sido utilizados recursos financeiros públicos na empreitada motivadora do ajuizamento da presente ação, ao contrário (fls. 372), classifica esse mesmo comportamento como ato de improbidade administrativa.
7. Não tendo sido associado à conduta do recorrente o elemento subjetivo doloso, qual seja, o propósito desonesto, não há que se falar em cometimento de ato de improbidade administrativa.
8. Agravo Regimental do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL desprovido.” (AgRg no AREsp 21662/SP AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2011/0078141-5. Relator(a): Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133). Órgão Julgador: T1 – PRIMEIRA TURMA. Data do Julgamento: 07.02.2012. Data da Publicação/Fonte: DJe 15.02.2012)

Percebe-se, com clareza, que o e. Relator entendeu que o elemento subjetivo “dolo”, exigido para a prática da improbidade, significa “má-fé”. Aqui reside um importante ponto de dissensão, pois, para nós, a Lei 8.429/92, em momento algum, quis restringir as condutas ímprobas à demonstração de má-fé, mas, distintamente, entendeu ser necessária a ação dolosa ou culposa. Ora, ação dolosa não significa, necessariamente, má-fé (ausência de boa-fé objetiva), mas, sim, conforme já delineado, intenção livre e consciente de praticar uma conduta e obter um determinado resultado.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro,(4) a respeito do tema, entende que:

“A rigor, qualquer violação aos princípios da legalidade, da razoabilidade, da moralidade, do interesse público, da eficiência, da motivação, da publicidade, da impessoalidade e de qualquer outro imposto à Administração Pública pode constituir ato de improbidade administrativa. No entanto, há que se perquirir a intenção do agente para verificar se houve dolo ou culpa, pois, de outro modo, não ocorrerá o ilícito previsto na lei, (...).

O enquadramento na Lei de Improbidade exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele a presença de um comportamento desonesto.”

Não se questiona, jamais, notadamente em razão da expressa previsão legal, acerca da necessidade da presença de dolo (ou culpa, no caso do artigo 10) nas hipóteses de improbidade. Todavia, tal análise exige um entendimento claro sobre em que, de fato, consistiria tal exigência.

Quando o ordenamento brasileiro adotou a teoria finalista da ação e as ideias subsequentes de WELSEL e outros juristas, admitiu-se que o dolo se encontra presente na própria conduta. Em outras palavras, se o agente atua, fá-lo porque o quer, de forma livre e consciente.

O jurista Waldo Fazzio Júnior(5) também faz uso de conceitos do Direito Penal para identificar o fundamento para a responsabilização subjetiva dos atos de improbidade administrativa. Vejamos:

"A subsunção do agente às hipóteses da Lei nº 8.429/92 reclama a presença de dolo e culpa.

Sobre o vínculo subjetivo que liga o agente ao fato ilícito, Nelson Hungria (1959, p. 112) lembra que ‘somente com a averiguação in concreto desse nexo subjetivo se pode atribuir ao agente, para efeito de punibilidade, uma conduta objetivamente desconforme com a ordem ético-jurídica, ou reconhecer sua incidência no juízo de reprovação...’.

Estendendo esse fundamento penal para o plano dos atos de improbidade, para que se considere um ato como passível de sofrer sanções, não é suficiente a existência da conexão causal objetiva (entre a ação [ou omissão] e o resultado) nem sua subsunção típica (em um artigo da LIA). É imprescindível a culpabilidade (culpa lato sensu) do agente público. Não se pune com fulcro na responsabilidade objetiva.
O mínimo de responsabilidade por ato de improbidade administrativa é a culpa (dolo e culpa), uma vez que nulla poena sine culpa."

Entretanto, seu argumento se sustenta na doutrina causalista, segundo a qual a perquirição sobre dolo ou culpa se dá na análise da culpabilidade.(6) Na teoria finalista da ação, conforme já asseverado, dolo e culpa saem da culpabilidade e vão para a ação.

No dizer de Miguel Reale Júnior(7):

“Todo agir é um conduzir-se. Toda ação é fruto de uma escolha, e toda escolha é fundada em valores que se põem como fim de agir. O homem age voltado para um resultado ou, por outras palavras, segundo uma ‘intencionalidade significativa’.

O resultado almejado é reflexo de uma valoração que constitui o motivo do agir, conscientemente reconhecido como tal.

(...)

Concluindo: o dolo integra a ação, é parte de um todo ontologicamente indecomponível, não podendo estar fora de seu ente real por força de exigências metodológicas. Todo o comportamento é, em suma, teleológico e axiológico.

A intencionalidade integra a ação.”

A ação finalista se dirige à produção de um resultado intencional.
Nessa linha, se o agente público presta contas, ou não, de gastos com recursos públicos, agiu com dolo de praticar, ou não, a conduta. Se as prestou, fê-lo porque o quis (intenção de fazer e produzir o resultado) e o mesmo se diz na hipótese de deixar de prestá-las (intenção de não fazer a ação). Não há qualquer objetividade, muito menos a responsabilidade objetiva, em tal exemplo, já que o elemento subjetivo – dolo ou culpa – encontra-se na ação ou omissão do autor.

Note-se que não existe tipo legal, previsto na Lei 8.429/92, consistente em “praticar ato de improbidade administrativa”. Se houvesse, absurdamente, tal hipótese, aí sim, poder-se-ia perquirir se o agente praticou a conduta de forma dolosa ou culposa quanto à improbidade. Mas a LIA (Lei de Improbidade Administrativa) descreve outras condutas, de formas diversas, tais como apropriar-se de bem público em proveito próprio, frustrar procedimento licitatório, realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares, dentre outras.

A vontade do agente público, assim, está em praticar a conduta descrita no tipo (apropriar-se de bem público em proveito próprio, frustrar procedimento licitatório, realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares, dentre outras). Se tal prática caracteriza ou não ato de improbidade administrativa, sê-lo-á por força da subsunção do fato à norma, ou, em outras palavras, a lei é quem dirá se a conduta é caracterizadora ou não de improbidade.

O elemento subjetivo não é o fator de definição da improbidade, mas, sim, a própria norma. Dolo e culpa deverão ser analisados no momento da ação ou da omissão do agente, conforme repetidamente destacado. A caracterização da improbidade será determinada pela lei.

Tal entendimento não torna “objetiva” a responsabilidade civil do agente, pois o operador não está desobrigado de sua missão de demonstrar a “culpa” latu sensu do autor do fato. Segundo a doutrina;

“A utilização da responsabilidade civil como meio de reparação ou de ressarcimento de danos em cada caso concreto depende da presença de diversos elementos, sem os quais o agente não pode ser obrigado a responder pelos prejuízos sofridos pelo lesado. Não há discordância quanto ao fato de que quem pratica um ato – ou deixa de fazê-lo, quando tinha o dever de praticá-lo – do qual resulta dano a outrem deve repará-lo. Em outras palavras, há, de certo modo, consenso quanto à obrigatória presença dos elementos fato, dano e nexo de causalidade como pressupostos inafastáveis da responsabilidade civil.

Resta, ainda, a culpa, elemento cujo estudo é indispensável à compreensão do instituto. Esse elemento é relativo à ligação do agente com a situação fática que dá origem à obrigação de indenizar.”(8)

Leonardo A. Colombo assevera que:

“Em dois sentidos deve entender-se o conceito de culpa: em um, mais amplo, abrange tanto o dolo quanto a culpa propriamente dita; e, no outro, contém somente esta última.”(9)

O especialista no tema improbidade administrativa Emerson Garcia, em obra que escreveu com Rogério Pacheco Alves,(10) discorre que:

"No direito moderno, assume ares de dogma a concepção de que não é admissível a imputatio juris de um resultado sem um fator de ligação psíquica que a ele vincule o agente.

Ressalvados os casos em que a responsabilidade objetiva esteja expressamente prevista no ordenamento jurídico, é insuficiente a mera demonstração do vínculo causal objetivo entre a conduta do agente e o resultado lesivo. Inexistindo um vínculo subjetivo unindo o agente à conduta, e esta ao resultado, não será possível demonstrar ‘o menosprezo ou descaso pela ordem jurídica e, portanto, a censurabilidade que justifica a punição (malum passionis ob malum actionis)’."

O jurista, portanto, exige a presença do dolo (ou da culpa) na ação, sem o qual não se admite a responsabilização do agente. Concordamos com a premissa, mas nossa crítica está no aspecto processual da questão: a quem compete provar a existência ou não de dolo?

Analisemos outro julgado, importante para definir os contornos jurídicos do problema:

“ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DOLO GENÉRICO NÃO DEMONSTRADO. SÚMULA 7/STJ.

1. Trata-se na origem de ‘Ação Ordinária de Improbidade Administrativa’ movida pelo ora agravante contra ex-prefeito de Orizânia, em razão da ausência de prestação de contas referente a convênio. A sentença de improcedência foi mantida pelo Tribunal de origem.

2. A despeito de fazer referência à inobservância de princípios, o agravante descura da exposição dos elementos subjetivos que orientam a condenação de sujeitos com amparo no art. 11 da LIA. Incidência da Súmula 284/STF.

3. O Recurso Especial pressupôs uma violação objetiva decorrente da não prestação de contas, o que confronta com a necessidade de se demonstrar, ao menos, o dolo genérico para a condenação. Afinal, ‘o dolo, ainda que genérico, é elemento essencial dos tipos previstos nos arts. 9º e 11 da Lei nº 8.429/92’. (AgRg no AgRg no Resp 1.191.095/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, Dje 25.11.2011)

4. Agravo Regimental não provido.” (AgRg no AREsp 9439/MG. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2011/0050843-5. Relator(a): Ministro HERMAN BENJAMIN (1132). Órgão Julgador: T2 – SEGUNDA TURMA. Data do Julgamento: 13.03.2012. Data da Publicação/Fonte: DJe 12.04.2012)

No julgado, infere-se que o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a conduta do agente público, consistente em deixar de prestar contas de convênio, viola objetivamente a norma, mas, para a configuração da improbidade, é indispensável a demonstração, ao menos, do dolo genérico.

O exemplo serve de paradigma para a crítica que se faz ao entendimento majoritário jurisprudencial. Os tribunais superiores têm exigido, para a configuração da improbidade, a chamada prova do dolo ou da culpa.

A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, já decidiu:

"(...) 4. A conduta do recorrido, ao contratar e manter servidores sem concurso público na Administração, amolda-se ao caput do art. 11 da Lei nº 8.429/92, ainda que o serviço público tenha sido devidamente prestado, bem como não tenha havido má-fé na conduta do administrador.”(11)

Tal julgado, contudo, sofreu severas críticas na doutrina especializada, sob o argumento de se pretender instalar a responsabilidade objetiva. Em verdade, a decisão se harmoniza com os conceitos de dolo e culpa e, principalmente, com o tema “ônus da prova”.

No presente artigo, defendemos o posicionamento de que a prova do dolo, no processo, é desnecessária, por força de presunção legal. Leciona Heleno Fragoso(12):

“O que se pretende afirmar é que não mais subsiste qualquer presunção juris de dolo (dolus in re ipsa), própria do direito medieval: o componente psíquico indispensável à configuração do delito deve ser positivamente demonstrado. Como diz Gianturco, La prova indiziaria, 1958, 08, é indispensável não se contentar com as aparências e descer intus et in oute no ânimo do delinquente, em que não é possível penetrar, se não por meio de ilações e conjecturas, que defluem das modalidades peculiares e das circunstâncias do fato, bem como a conduta do réu, antecedente, concomitante e subsequente ao crime.”

Impossível para o Direito penetrar na mente do indivíduo para identificar sua intenção. O chamado “elemento subjetivo”, ou seja, dolo e culpa, deve ser analisado por meio do exame objetivo de fatos.

Em outras palavras, para se provar dolo e culpa, faz-se necessária a prova da ação (conduta) do agente. Demonstrando-se que o autor praticou o ato, presume-se que o tenha feito dolosamente, ou seja, agiu por vontade própria, de forma livre e consciente, a fim de atingir determinado resultado.

Voltando ao exemplo anterior, se o agente público não prestou contas, a prova relativa ao elemento subjetivo de sua ação limitar-se-á à demonstração de que tinha ciência da obrigação (de prestar contas) e não a cumpriu. Não se exige a prova material de sua intenção, posto ser impossível conhecer sua mente ou seu pensamento.

Prova-se a prévia ciência da obrigação de forma objetiva, ou seja, juntando-se, por exemplo, o termo, contrato ou convênio, em que se expressava tal dever ou, ainda, em muitos casos, por força da própria lei (lembrando-se que a ninguém é dado se escusar do cumprimento de obrigação ou justificar ação ou omissão com base em suposto desconhecimento da lei).

Assim, se o agente não prestou contas e foi possível demonstrar, de forma objetiva, sua ação ou sua omissão, presume-se que agiu com dolo e, portanto, encontra-se presente o elemento subjetivo de sua responsabilidade.

Se a conduta irá configurar improbidade administrativa, conforme já se destacou, será a própria Lei quem o dirá.

Poderá o agente, contudo, negar a intenção e dizer que “não teve dolo”. Nesse caso, não cabe ao autor da ação, Ministério Público, fazer prova negativa da ausência de elemento subjetivo. Primeiramente, compete ao autor a prova dos fatos alegados (o ônus da prova é de quem alega). Em segundo lugar, e, valendo-se do mesmo princípio, expresso no ordenamento processual, caberá à própria defesa tal mister, pois se trata de fato modificativo do direito do autor.(13)

A suposta ausência de dolo, portanto, é questão a ser trazida aos autos e provada pela defesa e, não, pelo autor, pois é fato que modifica a descrição fática. A lição de Denílson Feitoza Pacheco(14) é primorosa:

“A jurisprudência construiu a interpretação segundo a qual o dolo é presumido, mas se trata de presunção relativa, a qual pode ser afastada, competindo ao réu provar que não agiu com dolo. Por exemplo, se o réu subtraiu um carro apenas para passear, sem ânimo de se tornar proprietário, presume-se que agiu dolosamente para praticar o crime de furto, competindo ao réu demonstrar que não tinha dolo de furto (...).”

E finaliza seu posicionamento:

“Generalizando, a acusação basicamente deve demonstrar a existência do fato típico nos seus aspectos subjetivos. A conduta objetiva do agente, por exemplo, de sacar um revólver e matar uma vítima, permite supor, de maneira razoável, que o agente atuou dolosamente, ou seja, com consciência e vontade de matar. Se a acusação tivesse que provar que o agente não tem dolo nessa conduta objetiva, isso equivaleria à prova de fato negativo, pois ainda não há meios técnicos ou científicos de se demonstrar cabalmente o que alguém efetivamente pensa. A mera alegação pela defesa de justificativas da ilicitude ou dirimentes da culpabilidade (impropriamente denominadas causas de exclusão) não faz com que a acusação tenha o ônus de demonstrar que não ocorreram, pois novamente equivaleria a fato negativo, isto é, provar que um fato não ocorreu. Ora, presume-se razoavelmente que a infração penal existiu a partir da demonstração do fato típico no seu aspecto objetivo.”

Tal posicionamento doutrinário abarca toda a argumentação exposta no presente artigo e lhe dá o fundamento teórico indispensável e desejado. Vai-se, dessarte, ao encontro do posicionamento adotado, contrário à orientação jurisprudencial, que exige do autor a prova do dolo, quando, em verdade, trata-se de uma presunção.

Assim, se a hipótese for de ausência de dolo ou dolo diverso do resultado alcançado, tal ônus será de responsabilidade da própria defesa e, não, do autor da ação, cuidando-se de verdadeiro fato modificativo do direito.

Conclusão

Feitas as considerações a respeito do tema, podemos concluir que a Lei de Improbidade Administrativa exige, para a configuração da improbidade, a presença de dolo, nas três hipóteses de caracterização e, ao menos da culpa, no caso do artigo 10.

O dolo exigido não significa ausência de boa-fé objetiva, mas, sim, vontade e consciência de praticar determinada conduta, visando à produção de um resultado.

A Lei 8.429/92 não exige, em nenhum dos artigos, culpa grave para caracterização da improbidade, mas, apenas, a conduta meramente culposa nos casos de prejuízo ao erário.

O dolo se encontra na própria ação e, de acordo com a teoria finalista, presume-se que, se o agente pratica determinada conduta, tem a intenção e a consciência de fazê-la, pretendendo alcançar resultado específico.

A caracterização da improbidade estará na conduta do agente, a qual deverá subsumir-se às hipóteses ou aos tipos legais, previstos na Lei 8.429/92. A lei elege quais condutas serão consideradas ímprobas.

A prova da ocorrência de dolo é feita de modo objetivo, ou seja, cabe ao autor demonstrar a ocorrência do fato e a responsabilidade do autor, não sendo exigível o exame da mente ou do pensamento do agente, visto ser impossível a produção de tal prova.

Bibliografia

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Notas

1. OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. São Paulo: RT, 2007. p. 291.

2. LEAL, João José. Direito penal geral. Atlas: São Paulo. 2008.

3. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>

4. DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas. p. 821-823.

5. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de Improbidade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2007. p. 80.

6. Por meio do conceito analítico e clássico de crime, que é, para a doutrina, ato típico, ilícito e culpável. O exame de dolo e culpa, para os causalistas, dar-se-ia no momento de analisar a culpabilidade.

7. REALE JR., Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT. 1998. p. 62-63.

8. SAMPAIO, Francisco José M. Responsabilidade civil e reparação de danos ao meio ambiente. São Paulo: Lúmen Júris, 1998. p. 42.

9. Apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 74.

10. GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 266-267.

11. 2ª Turma, REsp 988.374/MG, Rel. Min. Castro Meira, v.u., DJe 16.05.2008.

12. Disponível em: <http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/heleno_artigos/arquivo22.pdf>

13. Conforme prevê, expressamente, o Código de Processo Civil, em seu artigo 333:
“Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.”

14. PACHECO, Denílson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis.3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2005. p. 846.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2012. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS