O elemento subjetivo nos atos de improbidade administrativa e a sua comprovação
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publicado em 30.10.2012
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Resumo: Sumário: Introdução. 1 Elemento Subjetivo. 2 A comprovação do elemento subjetivo. Considerações finais. Referências bibliográficas. Palavras-Chave: Improbidade administrativa. Dolo. Culpa. Prova. Introdução A preocupação do ordenamento jurídico para coibir atos que atentem contra a boa gestão do bem público já decorre de muitos anos. Na década de 50, o legislador instituiu duas leis visando a responsabilizar agentes por enriquecimento ilícito em prejuízo da Administração Pública: a Lei nº 3.164, de 1º de junho de 1957 (conhecida como Lei Pitombo-Godói Ilha), e a Lei nº 3.502, de 21 de janeiro de 1958. Antes disso, já havia sido promulgada a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, a qual veio definir os chamados crimes de responsabilidade. Mas foi com a Constituição Federal de 1988 que a proteção jurídica à probidade administrativa veio a ganhar status constitucional. Foi por meio da atual Carta Política que se previu expressamente a tutela à moralidade administrativa, constante no art. 37, caput. No parágrafo 4º desse dispositivo, ficou estabelecido que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. E foi visando a dar eficácia a esse comando constitucional que o legislador ordinário lançou, no ano de 1992, a Lei nº 8.429, a qual instituiu, em três artigos (9º, 10 e 11), os chamados atos considerados de improbidade administrativa, atentatórios, pois, à gestão do bem público, prevendo sanções graves aos autores de ditos atos, sejam eles agentes públicos, sejam eles particulares. Essa lei tem por intuito combater não só condutas que venham a gerar o enriquecimento ilícito em prejuízo da Administração Pública como também qualquer ato atentatório à coisa pública, seja gerando o indevido aumento patrimonial, seja tão somente causando dano ao erário, seja, por fim, contrapondo-se aos princípios que norteiam a gestão pública. Em que pese a necessidade da legislação e a sua imperativa aplicação, muitas questões vêm sendo tratadas no âmbito da doutrina e da jurisprudência em torno da atual Lei de Improbidade Administrativa, a ponto de se discutir, passados mais de 20 anos do seu advento, consideráveis alterações, senão o advento de uma nova lei. Este estudo visa a fazer uma análise acerca de uma das questões controvertidas que a Lei nº 8.429/92 trouxe para nosso sistema jurídico, qual seja, o elemento subjetivo que deve ou não compor o ato ímprobo e a sua comprovação a fim de gerar as sanções previstas no art. 12 da aludida lei. Nessa senda, estruturo o trabalho da seguinte forma: num primeiro momento, uma análise acerca da responsabilidade que reveste os atos de improbidade administrativa, passando, depois, ao encargo probatório e às discussões atinentes ao tema. Por fim, últimas considerações. Elemento Subjetivo Uma das discussões trazidas pela Lei nº 8.429/92 é acerca da sua natureza jurídica: seria ela uma lei voltada para a esfera penal ou uma lei de âmbito extrapenal? A dúvida advém em face das sanções previstas no seu art. 12, incisos I, II e III:(1) perda de bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do agente, ressarcimento integral do dano causado, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa e proibição de contratar com o Poder Público. Sem dúvida se trata de uma norma de caráter punitivo. Todavia, em que pesem os argumentos favoráveis à defesa do teor penal da lei, a jurisprudência inclina-se a reconhecer a natureza civil da legislação, tendo em vista que as sanções impostas por ela são de conteúdo cível e administrativo. Ademais, se se considerasse uma norma penal, deveria o processo respeitar regras tipicamente processuais penais, tais como, a título de exemplo, competência de juízo criminal nas unidades judiciárias com atribuição específica para tal, obediência às normas de instrução criminal etc. Independentemente dessa questão, como já referido, é incontroverso que se trata de uma lei que visa a punir o autor do ato ímprobo e, em face disso, resta evidente que a responsabilidade deve ser de natureza subjetiva, não podendo ser objetiva. Aliás, a regra em nosso sistema jurídico é a responsabilidade subjetiva, fundada na teoria da culpa, enquanto que a responsabilidade objetiva é a exceção, somente podendo ser aplicadas as teorias do risco quando expressamente previstas em lei. E nesse sentido já dizia o Código Civil de 1916, pelo seu art. 159,(2) como o atual Código, por meio do seu art. 186.(3) Dessa forma, é imperativo, para configuração do ato ímprobo, que haja a culpa ou o dolo do agente, não podendo ele ser punido apenas pelo agir equivocado, muitas vezes decorrente do próprio risco da atividade de gestor da coisa pública. Nesse sentido, discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro:(4) “O enquadramento na Lei de Improbidade Administrativa exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto.” Segundo a lei em questão, existem três tipos de atos de improbidade administrativa: os que geram enriquecimento ilícito;(5) os que causam prejuízo ao erário(6) e os que atentam contra os princípios da Administração Pública.(7)Pela leitura dos respectivos dispositivos legais, verifica-se que, com exceção do art. 10 (atos que causam prejuízo ao erário), não há previsão expressa acerca do elemento subjetivo, pelo que alguns passaram a defender a tese de que não haveria necessidade de se demonstrar o dolo ou a culpa. Contudo, tal posicionamento não se fortificou no âmbito jurisprudencial e na doutrina majoritária. Primeiro, porque a responsabilidade subjetiva é a regra, especialmente em se tratando de uma norma de natureza punitiva (independentemente de se tratar de norma penal ou extrapenal), cabendo a previsão expressa da responsabilidade objetiva; segundo, porque o conceito de improbidade nos remete à desonestidade, o que certamente não se coaduna com o erro, com o risco da atividade, mas sim com a má-fé. Mais uma vez trago à baila os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:(8) “A responsabilidade objetiva, além de ser admissível somente quando prevista expressamente, destoa do sistema jurídico brasileiro, no que diz respeito à responsabilidade do agente público, a começar pela própria norma contida no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição, que consagra a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados a terceiros, mas preserva a responsabilidade subjetiva do agente causador do dano.” Portanto, ainda que haja vozes sustentando a aplicação das teorias do risco frente à incidência da Lei nº 8.429/92, não resta dúvida ser amplamente majoritária a sustentação da responsabilidade subjetiva. O problema está em saber se o agente público ou particular que agir com culpa – leia-se: de forma imprudente, com imperícia ou negligência – estará cometendo ato de improbidade. Como já visto acima, apenas o art. 10 utiliza a expressão culpa. Os demais nada falam. Assim, aplicando-se doutrina de Direito Penal, que determina a exceção de culpa, ou seja, que só há delitos culposos quando a norma incriminadora assim prever, pode-se concluir que a culpa, como elemento subjetivo do ato de improbidade administrativa, só pode ser admitida nos casos que vierem a lesar o erário. Por outro lado, a lei não poderia deixar de punir o agente incompetente, que age de forma arriscada, colocando em risco não só o patrimônio público como também a moralidade administrativa lato sensu. Para essa corrente mais rigorosa, agindo contrariamente à legalidade e aos preceitos da boa administração pública, o agente incide nas sanções da Lei 8.429/92. Não poderia ele, por exemplo, ainda que de forma negligente, ferir as normas de um edital de concurso público, assim como não poderia dar publicidade, ainda que de forma imprudente, a um ato sigiloso. O STJ possuía, inclusive, orientação em afastar tanto o dolo como a culpa. Vide precedente: “ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DESPESAS DE VIAGEM. PRESTAÇÃO DE CONTAS. IRREGULARIDADE. LESÃO A PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. ELEMENTO SUBJETIVO. DANO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. SANÇÃO DE RESSARCIMENTO EXCLUÍDA. MULTA CIVIL REDUZIDA. 1. A lesão a princípios administrativos contida no art. 11 da Lei nº 8.429/92 não exige dolo ou culpa na conduta do agente nem prova da lesão ao erário público. Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade(destaquei). Precedente da Turma. 2. A aplicação das sanções previstas na Lei de Improbidade independe da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo tribunal ou conselho de contas (art. 21, II, da Lei 8.429/92). 3. Segundo o art. 11 da Lei 8.429/92, constitui ato de improbidade que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, notadamente a prática de ato que visa fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência (inciso I), ou a ausência de prestação de contas, quando esteja o agente público obrigado a fazê-lo (inciso VI). 4. Simples relatórios indicativos apenas do motivo da viagem, do número de viajantes e do destino são insuficientes para comprovação de despesas de viagem. 5. A prestação de contas, ainda que realizada por meio de relatório, deve justificar a viagem, apontar o interesse social na efetivação da despesa, qualificar os respectivos beneficiários e descrever cada um dos gastos realizados, medidas necessárias a viabilizar futura auditoria e fiscalização. 6. Não havendo prova de dano ao erário, afasta-se a sanção de ressarcimento prevista na primeira parte do inciso III do art. 12 da Lei 8.429/92. As demais penalidades, inclusive a multa civil, que não ostenta feição indenizatória, são perfeitamente compatíveis com os atos de improbidade tipificados no art. 11 da Lei 8.429/92 (lesão aos princípios administrativos). 7. Sentença mantida, excluída apenas a sanção de ressarcimento ao erário e reduzida a multa civil para cinco vezes o valor da remuneração recebida no último ano de mandato. 8. Recurso especial provido.”(9) Ocorre que a improbidade, como já discorrido, remete à desonestidade. Só pode ser considerado ímprobo aquele que age com um mínimo de má-fé, pois a lei não visa a punir o gestor desastrado que, por alguma infelicidade, equivocou-se em determinada decisão. Não basta que haja a ilegalidade em sentido lato. É necessária a ilegalidade qualificada, qual seja, aquela querida pelo agente público ou particular, sob pena de qualquer ato, muitas vezes irrelevante, sem qualquer intenção do agente, decorrente de um despreparo, vir a ensejar improbidade, aumentando, excessivamente e sem razão, o número de demandas no Judiciário. Afora isso, indiscutivelmente as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa são severas, como realmente deveriam ser. Refletem o pensamento de que são cabíveis para punir atos relevantes e graves, abarcando agentes públicos e particulares voltados à corrupção. Seria de total desproporcionalidade, por exemplo, suspender os direitos políticos de uma pessoa em razão de uma inobservância atinente a uma formalidade administrativa. É claro que situações tais implicam sanções administrativas, tais como uma advertência ou mesmo suspensão do cargo, mas impor o rigor das normas esposadas na Lei 8.429/92 sem que haja culpa grave ou, sobretudo, dolo, seria banalizar os institutos da lei, punindo desproporcionalmente fatos de pouca importância. Não obstante o precedente do STJ antes citado, a questão atualmente se encontra pacificada no âmbito da Corte Superior, entendendo-se pela imprescindibilidade do dolo, admitindo-se a culpa somente nos atos que venham a causar prejuízo ao erário. Nesse sentido colaciono o seguinte julgado: “ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ATRASO NO RECOLHIMENTO. CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS SERVIDORES MUNICIPAIS. CONTRIBUIÇÃO DO FUNDO DE SAÚDE. NECESSIDADE DO ELEMENTO SUBJETIVO PARA A CONFIGURAÇÃO DO ATO ÍMPROBO. JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento pela imprescindibilidade do elemento subjetivo para a configuração do ato de improbidade administrativa. 2. ‘As duas Turmas da 1ª Seção já se pronunciaram no sentido de que o elemento subjetivo é essencial à configuração da improbidade: exige-se dolo para que se configurem as hipóteses típicas dos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos culpa, nas hipóteses do art. 10’ (EREsp 479.812/SP, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª Seção, DJe 27.09.10). 3. O aresto impugnado reformou a sentença e entendeu pela não consumação do ato de improbidade do art. 11, II, da Lei 8.429/92 em face da ausência de dolo na conduta (fl. 1.383e). Assim, estando o acórdão recorrido em perfeita consonância com a jurisprudência deste Tribunal, incide, na espécie ora em exame, a Súmula 83/STJ. 4. Agravo regimental não provido.”(10)Assim também entende o Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE. ARTS. 10 E 11 DA LEI 8.429/92. UFPEL. IRREGULARIDADES NOS PROCESSOS SELETIVOS. DANO AO ERÁRIO. ELEMENTO SUBJETIVO. DOLO. CULPA. MÁ-FÉ. De fato, os Tribunais decidiram bem. A improbidade não está atrelada à mera ilegalidade, mas sim a uma vontade de praticar o ato ilegal. Atentar, sem uma cognição volitiva do ato, contra os princípios da Administração Pública pode e deve configurar infração administrativa. Contudo, isso não pode ser considerado ato de corrupção, que exige, por evidente, um querer agir, tendo conhecimento da ilicitude e das consequências desse agir ou assumindo o risco da sua conduta, especialmente no tocante ao enriquecimento ilícito. Portanto, a culpa só é admitida nos casos de lesão ao erário, tendo em vista a impossibilidade de se manter o prejuízo ao patrimônio público, ainda que cometido o ato de forma imprudente ou negligente. Nas demais espécies de atos de improbidade administrativa tratadas na lei, apenas é admissível o dolo. A comprovação do elemento subjetivoEm nosso sistema processual, o ônus da prova compete a quem alega, cabendo ao autor demonstrar a constituição do seu direito, enquanto que ao réu cabe provar apenas os fatos modificativos, extintivos e impeditivos desse direito. É o teor do art. 333, incisos I e II, do Código de Processo Civil. Na seara penal, vige o princípio da presunção de inocência, esculpido no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Dessa forma, resta claro que cabe ao autor da ação de improbidade comprovar, dentre os elementos a caracterizar a ilicitude, o dolo ou a culpa. Ocorre que a prática vem demonstrando que, muitas vezes, é difícil, quiçá impossível, produzir a prova do elemento subjetivo, podendo dar azo à impunidade. Isso porque o modus operandi dos atos de corrupção dá-se das formas mais variadas e complexas, gerando esquemas organizados que utilizam, muitas vezes, um grande número de pessoas, quando não transcendem as fronteiras do território nacional. Embora se entenda que a improbidade não pode estar desvinculada da má-fé, devem-se analisar no caso concreto as circunstâncias indicativas do dolo ou, no caso de prejuízo ao erário, da culpa, para poder, então, proceder a um juízo de condenação ou de absolvição. E, em muitos casos, a demonstração, tanto da ilicitude como do elemento subjetivo, dar-se-á por meio de circunstâncias indicativas. Um exemplo: em um concurso público, houve o favorecimento de um dos candidatos, ferindo, dessa forma, a moralidade administrativa e a impessoalidade que deve reger os certames. Descobriu-se, depois, que o candidato favorecido era parente do gestor público que atuava junto ao órgão em que seria preenchido o cargo vago. Nessa situação, os indicativos de que teria havido improbidade são muito fortes. Uma vez comprovado o indevido favorecimento e o parentesco com o administrador, resta evidente o dolo, cabendo aos réus demonstrar que inexistiu a má-fé, que dito beneficiamento ocorreu por erro administrativo e que, portanto, nenhum dos dois cometeu qualquer ato que viesse a ferir os princípios administrativos. Em situações como a narrada, torna-se praticamente inviável exigir do autor o encargo probatório acerca, além de ilicitude e do parentesco, do dolo, uma vez que tais circunstâncias fazem presumir que esse elemento subjetivo estava presente no ato. A prova, ainda referente ao exemplo dado acima, de que esse parentesco era distante, de que o gestor sequer sabia que seu parente estava participando do concurso, não tem o demandante condições de produzi-la. Aliás, tal prova está muito mais atrelada e viabilizada perante o campo de atuação processual dos demandados. Essa problemática fica muito evidente nos atos de improbidade que geram enriquecimento ilícito. Tais atos, além de resultar no ilegal aumento patrimonial do agente, implicam, em geral, danos ao erário. O art. 9º da Lei 8.429/92, por meio do seu inciso VII, prevê como ato de improbidade a ampliação desproporcional do patrimônio do agente público frente aos vencimentos que aufere no exercício do cargo. Com relação a esse dispositivo, discorre George Sarmento:(12) “A lei estabelece presunção de improbidade do agente público que incorpora ao patrimônio privado bens ou valores incompatíveis com seu nível vencimental. Trata-se de presunção relativa júris tantum, que pode ser afastada se o acusado provar a legitimidade dos recursos utilizados para a aquisição. Entretanto, o aumento injustificado do patrimônio, por si só, já é um forte indicativo de que o servidor usa os poderes inerentes ao seu cargo para amealhar vantagens econômicas ilícitas. A partir do momento em que se percebe a desproporcionalidade entre a remuneração e a evolução patrimonial do agente, a Administração Pública pode convocá-lo para prestar esclarecimentos, sobretudo para informar a origem do dinheiro empregado e de que maneira foi lançado no imposto de renda.” Logo, verificado que o patrimônio do agente não se coaduna com a sua realidade remuneratória, pressupõe-se um enriquecimento indevido, cabendo a ele a prova de que inexistiu ilicitude e, se houve, de que não agiu dolosamente. Ocorre que a maioria dos julgados impõe todo o encargo probatório ao autor da ação, cabendo ao réu, em casos tais, apenas negar a vinculação do seu aumento patrimonial desproporcional ao exercício do cargo. Nesse sentido é o ensinamento de Marino Pazzaglini Filho:(13) “A meu ver, data venia, incumbe, na ação civil de improbidade, a seu autor provar que o agente público adquiriu valores incompatíveis com a evolução de seu patrimônio e rendimentos em decorrência do exercício abusivo, corrompido, subvertido de seu mandato, cargo, emprego ou função pública. Com relação a esse tema, tramita no Congresso Nacional projeto de lei que, dentre outras disposições, prevê a exigência ao agente público de prestar esclarecimentos acerca da ampliação patrimonial não correspondente à remuneração auferida e, por conseguinte, comprovar a origem dessa ampliação (Projeto nº 7907/10). Em outras palavras, caberia ao autor do processo demonstrar o enriquecimento e a sua desproporcionalidade frente aos vencimentos do cargo, cabendo ao agente público demonstrar que a origem desse enriquecimento é lícita. Por evidente, isso deve abarcar não só a pessoa do agente público, como também terceiros que venham a auxiliar na ocultação desse aumento patrimonial e da sua origem ilegal, como os cognominados “laranjas”, “testas-de-ferro” etc. Ocorre que, para muitos, trata-se de uma inversão do ônus da prova, ferindo o princípio da presunção de inocência. Em outras palavras, partir-se-ia do pressuposto de que o agente cometeu o ato de improbidade, cabendo a ele comprovar a inexistência da ilicitude e/ou de sua má-fé. Na verdade, em meu entender, não se trata de inverter o encargo probatório, mas de delimitar o que cabe a cada sujeito do processo comprovar. Em outras palavras, cabe ao autor da ação, em geral o Ministério Público, demonstrar o ato ímprobo, qual seja, a ilicitude e o elemento subjetivo; ao Réu, como já referido, compete provar os atos modificativos, extintivos e impeditivos do direito sustentado pelo demandante. Nessa senda, nos casos envolvendo o enriquecimento ilícito, especialmente no que diz respeito ao inciso VII do artigo 9º da Lei 8.429/92, cabe ao postulante demonstrar que o patrimônio pessoal do réu não condiz com a sua realidade remuneratória, tendo auferido esse aumento de bens ou valores no exercício do cargo. Uma vez comprovado isso, ter-se-á demonstrada a improbidade, presumindo-a. Caso esse aumento seja legítimo, o réu não terá maiores dificuldades em apresentar provas de que a origem de seu patrimônio é lícita, desconstituindo a presunção. A prova da origem do enriquecimento pertence ao titular do patrimônio. É ele que detém os documentos que podem demonstrar a licitude de seus bens. Basta pensar em situações práticas. Um agente público que aufere remuneração no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), salvo alguma excepcionalidade, não pode ter um patrimônio que venha a superar R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais). Evidente que, nesse caso, há alguma irregularidade que deve ser esclarecida. Caso seja legítimo esse patrimônio, o agente terá plenas condições de comprovar, inclusive no âmbito administrativo, já que as provas, nesse sentido, estão à sua disposição. Portanto, não se trata de inverter o ônus da prova, mas sim de delimitar, como já dito, o encargo probante. O autor da ação continuará tendo a obrigação de demonstrar o ato ímprobo e seus elementos objetivos e subjetivos, mas, em determinadas situações, a comprovação ficará vinculada às circunstâncias que evidenciam esse agir ímprobo, cabendo à parte ré desconstituir a presunção decorrente dessas circunstâncias, cujos elementos de prova estão à sua disposição, podendo ser utilizados no seu campo de atuação processual. Considerações Finais A chamada Lei de Improbidade Administrativa adveio em nosso ordenamento jurídico visando a combater a odiosa corrupção no âmbito da Administração Pública. Regulamentou o art. 37, parágrafo 4º, da Constituição Federal e trouxe institutos jurídicos de extrema relevância para dar efetividade à tutela da moralidade administrativa. Mas, junto com esses institutos, muitas discussões também surgiram, seja no âmbito acadêmico, seja no âmbito jurisprudencial. Porém, acredito que a interpretação a ser dada aos dispositivos esposados na aludida lei deva ser sempre visando a assegurar a boa gestão da coisa pública, garantindo a própria eficácia da Constituição. Evidentemente que a aplicação da Lei 8.429/92 não pode ferir as garantias fundamentais do cidadão, também previstas na Carta Política de 1988. Por isso, a leitura deve ser feita de forma conjunta e sistemática. Em face disso, entendo que todo ato de improbidade deve estar atrelado à má-fé, à intenção de ferir o bem público para a obtenção de proveito pessoal próprio ou de terceiro. O elemento subjetivo deve restar claro para proceder-se a um juízo de condenação. Acredito, também, que a jurisprudência anda bem ao reconhecer a culpa stricto sensu nos casos envolvendo a lesão ao erário. Além de estar devidamente prevista na respectiva disposição legal, não pode a Administração Pública sofrer prejuízo em face da imprudência ou negligência de seu gestor. Não há, aqui, a necessidade de um dolo direto ou eventual (que, se demonstrado, o rigorismo das sanções deverá ser aplicado em maior grau), bastando a incompetência do administrador para dar causa ao ressarcimento da lesão causada. O que me parece que deve ser melhor aferido é a questão atinente à comprovação desse elemento subjetivo. É claro que haverá situações em que todos os pressupostos para configuração do ato ímprobo serão de fácil comprovação, não podendo o autor do processo deixar de produzir a prova. No entanto, nem sempre isso será possível, especialmente nos casos envolvendo grandes esquemas de corrupção. Penso que é nesses casos que a força probatória a ser atribuída às circunstâncias concretas deve ser maior, cabendo, nessas situações, fazer com que o réu comprove a licitude de seu agir, bem como a ausência de dolo (ou culpa, nos casos de lesão ao erário). Como salientado ao longo deste estudo, a prova da licitude e da ausência do elemento subjetivo estará à disposição do demandado, sendo que, se legítima a sua conduta, a comprovação não implicará grandes esforços. É nesse sentido que caminha a legislação, considerando o trâmite dos projetos de lei no Congresso Nacional. Contudo, muito já se discorre acerca das suas inconstitucionalidades, pois feririam a presunção de inocência, proporcionando uma indevida inversão do ônus da prova. Entendo que não se trata de inverter a obrigação probatória, mas de valorizar, no caso concreto, as circunstâncias que, naquela situação, fazem presumir o agir ilícito, distribuindo as pretensões probantes nos termos previstos pela legislação processual e evitando, dessa forma, a impunidade. A presunção sempre será de inocência, mas, conforme o caso, as circunstâncias comprovadas tornam evidente o agir ímprobo de forma dolosa ou culposa, o que pode ser desconstituído por meio da prova a ser produzida pela parte ré, cuja disponibilidade detém. Muitas críticas podem ser feitas à legislação atual, cabendo, certamente, uma revisão para sanar suas falhas. Mas garantir a punição aos agentes ímprobos é o que se espera dos operadores jurídicos, sendo um dos anseios da sociedade. É claro que se deve o respeito aos direitos e garantias individuais, uma das maiores conquistas, senão a maior, da Constituição de 88. No entanto, não se está a propor a criação ou a interpretação de leis voltadas à inconstitucionalidade, mas sim uma interpretação conjunta e sistemática, a ponto de atender às finalidades da legislação e da Lei Maior, assegurando a moralidade administrativa. CAPEZ, Fernando. Improbidade administrativa: Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992. 2. ed. São Paulo: Edições Paloma, 2000. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. MILARÉ, Edis. A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. MUKAI, Toshio. A inconstitucionalidade da lei deimprobidade administrativa – Lei Federal nº 8.429/92, Boletim de Direito Administrativo. Novembro de 1999. PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007. SARMENTO, George. Improbidade administrativa. Porto Alegre: Síntese, 2002. Notas 1. Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009). 2. Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. 3. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 5. Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: 6. Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: 7. Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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