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publicado em 28.02.2013
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Dispõe o § 3º do artigo 58 da Constituição da República que o Poder Legislativo está autorizado a criar Comissões de Inquérito para apurar fato determinado, observados os requisitos ali traçados. A investigação parlamentar somente pode ter por objeto fato determinado ou, como decorrência, fatos determinados que se encadeiem ou se seriem. A respeito, colha-se o ensinamento do Mestre Pontes de Miranda, em seus festejados Comentários à Constituição, verbis: “3) COMISSÃO DE INQUÉRITO SOBRE FATOS DETERMINADOS. — (a) Fato determinado é qualquer fato da vida constitucional do país, para que dele tenha conhecimento, preciso e suficiente, a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal; e possa tomar as providências que lhes couberem. Se fizerem funcionar tal regra jurídica, se lhe revelarem todo o conteúdo e a tornarem, na prática, o instrumento eficaz que o texto promete, ter-se-á conferido à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal relevante função no regime presidencial, ainda asfixiante, que a Constituição manteve, crendo tê-lo atenuado quanto devia. Embora o art. 58, § 3º, da Constituição Federal atribua amplos poderes à Comissão Parlamentar de Inquérito, acrescidos pela nova ordem constitucional inaugurada pela Constituição de 1988, o fato é que, inclusive em homenagem ao princípio da separação e harmonia dos Poderes, insculpido no art. 2º da Lei Maior, a competência das Comissões de Inquérito não ultrapassa a própria competência do Poder Legislativo. Dessa forma, o fato determinado sobre o qual pode se debruçar a Comissão Parlamentar de Inquérito é, única e exclusivamente, aquele que esteja dentro das atribuições da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal para servir de base à edição de nova legislação, ao seu controle, à sua aprovação ou rejeição, enfim, ao âmbito de sua fiscalização. Demonstra-o lucidamente George B. Galloway, de maneira que se me afigura irretorquível, como que advertindo os parlamentares com estas palavras, verbis: “Any analysis of congressional investigations must take account of their political motivation. (...) There exists a strong temptation to transcend the proper limits of a public inquiry and a great disposition to enter the domain of private life. The door is open to an indefinite search after evidence; and the suspension of the usual rules of evidence and of judicial procedure has often transformed the legislative committee into a tribunal of inquisition.”(2) Em nosso país, de há muito encontra-se pacificado o entendimento de que o Poder Legislativo, inclusive por meio de seus órgãos fracionários como o são as comissões de inquérito, não tem o poder para convocar o Presidente da República. E a pergunta que se impõe, até porque pouco versada na doutrina, é: pode o Parlamento convocar o ex-Presidente da República para se pronunciar sobre atos ou fatos ocorridos em seu governo? Atentaria tal proceder contra a letra e o espírito do princípio da separação dos Poderes previsto no artigo 2º da Lei Maior? A resposta a essas indagações exige a exata compreensão do especial significado na vida institucional de uma Nação da grandeza e da peculiaridade do cargo de Presidente da República. Quadra lembrar aqui a observação do Presidente Truman, que assim se pronunciou em suas consagradas memórias, verbis: “No one who has not had the responsibility can really understand what is like to be President, not even his closest aides or members of his immediate family. There is no end to the chain of responsibility that binds him, and he is never allowed to forget that he is President.”(3) Como dizia o admirável jurista João de Oliveira Filho, verbis: “O art. 37 da Constituição, em que se dispõe que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal criarão Comissões de Inquérito sobre fato determinado sempre que o requerer um terço dos seus membros, não ultrapassa a competência do Poder Legislativo da União, não dá a tais comissões poder absoluto de pesquisa sobre tudo e sobre todos, nem poder de coerção sobre todos, cidadãos e autoridades, membros dos poderes estaduais e respectivos funcionários, órgãos da administração municipal e respectivos funcionários. Em 1953, após ter deixado a Presidência dos Estados Unidos, a Câmara dos Representantes convocou o ex-Presidente Truman para depor acerca de fatos ocorridos em seu governo. O ex-Presidente recusou-se a comparecer, escrevendo uma longa e erudita carta ao Presidente da Comissão declinando os seus motivos, cujo teor merece ser reproduzido, verbis: “‘Apesar de meu desejo pessoal de cooperar com sua Comissão disse o ex-Presidente Truman, vejo-me obrigado, por meu dever para com o povo dos Estados Unidos, a declinar do cumprimento da intimação. Da mesma forma, durante o episódio conhecido como o “escândalo de Watergate”, o Congresso Americano chegou a cogitar de convocar o Presidente Nixon para depor. No dia 07 de julho de 1973, o Presidente Nixon dirige uma correspondência ao Senado em que manifesta a sua recusa a uma eventual convocação para depor, expressa nestes termos, verbis: “The question of my own testimony, however, is another matter. I have concluded that if I were to testify before the Committee irreparable damage would be done to the Constitutional principle of separation of powers. My position in this regard is supported by ample precedents with which you are familiar and which need not be recited here. It is appropriate, however, to refer to one particular occasion on which this issue was raised. Entendimento contrário comprometeria, de maneira irremediável, a independência dos Poderes, consagrada no art. 2º da Constituição. Commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat. Na república norte-americana, desde sempre se reconheceu ao Presidente da República a competência para determinar que funcionários diretamente a ele subordinados deixassem de comparecer ao Legislativo para depor quando convocados, ou mesmo que não se disponibilizassem documentos solicitados pelo Parlamento, principalmente em temas de segurança nacional e de política externa, constituindo-se tal prerrogativa no denominado “Executive Privilege”.(7) De todo o exposto, apreende-se, à evidência, que o conjunto preceptivo do disposto no § 3º do artigo 58 da Constituição Federal tem o inequívoco sentido quer por sua letra, quer por sua função no contexto da Lei Maior, de ordenação, composição e competência da Comissão Parlamentar de Inquérito de excluir do âmbito de sua abrangência o Presidente da República, mesmo após o término de seu mandato. Consoa esse entendimento com a interpretação que José Wanderley Bezerra Alves, em alentada monografia sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, dá ao alcance do § 3º do artigo 58 da Carta da República, verbis: “O princípio da separação dos Poderes, expresso no artigo 2º da Carta Política Nacional, também constitui um limitador às comissões de inquérito, no que diz respeito à pretensão de tomada de depoimento de autoridades. A seu turno, ao julgar o caso Nixon v. Fitzgerald, em 24 de junho de 1982, disse o Chief Justice Warren Burger, ao recusar o pretendido direito à indenização contra o ex-Presidente Nixon em razão de atos praticados durante o seu mandato como Presidente, verbis: “The immunity of a President from civil suits is not simply a doctrine derived from this Court’s interpretation of common law or public policy. Absolute immunity for a President for acts within the official duties of the Chief Executive is either to be found in the constitutional separation of powers or it does not exist. (…) Exposing a President to civil damages actions for official acts within the scope of the Executive authority would inevitably subject Presidential actions to undue judicial scrutiny as well as subject the President to harassment.”(9) Noutro passo, consta do julgado da Suprema Corte, verbis: “Former President of the United States was entitled to absolute immunity from damages liability predicated on his official acts as functionally mandated incident of his unique office…”(10) À luz desses ensinamentos, recolhendo-se a experiência da Democracia Americana, pode-se concluir que, dentre os amplos poderes que a Constituição confere às Comissões Parlamentares de Inquérito, em seu artigo 58, § 3º, não está o de convocar para depor o Chefe do Poder Executivo, mesmo após o término do seu mandato, em razão do princípio da separação dos Poderes, insculpido no artigo 2º da Lei Maior. Doutrinando a respeito do assunto na consideração do direito americano, manifestou-se o Justice Brandeis em célebre voto proferido na Suprema Corte, em 1920, por ocasião do julgamento do caso Atherton Mills v. Johnston, verbis: “One branch of the Government cannot encroach upon the domain of another without danger. The safety of our institutions depends in no small degree on a strict observance of this salutary rule.”(11) 1. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. t. III, p. 49. 2. GALLOWAY, George B. Governmental Investigations. In Encyclopaedia of the Social Sciences. New York. The Macmillan Co., 1937. v. 8, p. 256. 3. TRUMAN, Harry S. Memoirs by Harry S. Truman. Garden City, N. Y.: Doubleday & Co., 1956. v. 2, p.1. 6. In Public Papers of the Presidents of the United States – Richard Nixon – 1973. Washington: United States Government Printing Office, 1975. p. 637/8. 7. Nesse sentido, farta é a doutrina: BERGER, Raoul. Executive Privilege: A Constitutional Myth. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1974. p. 373 e seguintes; COLLINS, Philip. The Power of Congressional Committees to obtain information from the Executive Branch. In: The Georgetown Law Journal, v. 39, 1950-1951, p. 563/598; KRAMER, Robert; MARCUSE, Herman. Executive Privilege – A Study of the Period 1953-1960. In:The George Washington Law Review, v. 29, 1960-1961, p. 898/909 e 914/916. Da mesma forma, os documentos constantes em Public Papers of the Presidents – Harry S. Truman – 1950. Washington: United States Government Printing Office, 1965. p. 229/230 e 270/271; e em Public Papers of the Presidents – Richard Nixon – 1973. Washington: United States Government Printing Office, 1975. p. 184/7. Do Presidente Nixon, ainda, da mesma coleção, Public Papers of the Presidents – Richard Nixon – 1974. p. 478/481. Importante referir, ainda, as seguintes obras: TRUMAN, Harry S. Memoirs by Harry S. Truman. Garden City, NY: Doubleday & Co., 1956. p. 430/431 e 452/454; NIXON, Richard. The Memoirs of Richard Nixon. New York: Grosset & Dunlap Publishers, 1978. p. 896/903.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT): |
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