Sumário: Introdução. 1 Do ordenamento jurídico anterior a 1988. 2 Do regime constitucional vigente. 3 Da regra legal de transição. 4 Das regras permanentes. Conclusões.
Introdução
A concessão de benefícios previdenciários aos segurados especiais vem gerando grandes polêmicas, em inúmeros aspectos jurídicos diferentes, com imensas repercussões sociais e financeiras. Tanto que este foi um dos temas escolhidos para debate no Fórum de Direito Previdenciário promovido pela Escola de Magistratura Federal da 4ª Região, pelo Conselho da Justiça Federal, pelo Centro de Estudos Jurídicos e pela Associação dos Juízes Federais, realizado no dia 12.09.2012 em Curitiba/PR.
Ao iniciarmos este trabalho, tínhamos a intenção de abordar várias controvérsias. Pretendíamos analisar a diferença entre o trabalho individual e o regime de economia familiar, a questão do limite do tamanho da terra em módulos fiscais, a contratação de trabalhadores para auxiliar na atividade, a existência de outras fontes de renda, etc. Tudo especialmente sob a atual visão normativa trazida pela Lei 11.718/2008.
Todavia, antes de ingressarmos naqueles temas, não poderíamos deixar de passar por um pressuposto imprescindível: a exigência ou não do pagamento de contribuições, com foco no segurado especial, principalmente no trabalhador rural, uma das suas espécies. Acerca da questão, Leandro Bernardo e William Fracalossi asseveram que uma primeira linha jurisprudencial entende ser essencial a existência de produção agrícola para fins de comercialização, não fazendo jus a benefício aquele que planta apenas para a subsistência, pois a contribuição decorre justamente da venda do excedente. Outra corrente, porém, aduz que a Lei 8.213/91 (LBPS) não exige a comercialização dos produtos para fins de enquadramento como segurado especial (BERNARDO; FRACALOSSI, 2011, p. 129). Uma leitura dos itens abaixo, porém, demonstra que o último pensamento é amplamente majoritário, inclusive em sede doutrinária.
Ocorre que, ao estudar o tema, verificamos que ele vem sendo apresentado, data venia, sem o devido cuidado, situação que terminou concentrando toda nossa atenção. Isso prejudicou a abordagem dos demais assuntos, ante a evidente necessidade de efetuar um corte metodológico que impedisse a condução ao infinito, maxime quando se trata de um simples paper.
Destarte, optamos por realizar uma análise crítica da palestra relacionada ao tema, ministrada no citado Fórum, sem olvidar idêntica abordagem da doutrina e da jurisprudência. Para isso, teremos que nos aproximar do modelo americano de desconstrução da dogmática e dos precedentes, não só mediante uma nova visão dogmática do instituto, mas também por meio da sua apreciação filosófica, ainda que sucinta. E faremos isso objetivando uma crítica construtiva, desinteressada, mas no mínimo visando à reflexão do leitor, a fim de que ela possa contribuir para uma melhor aplicação da matéria.
1 Do ordenamento jurídico anterior a 1988
Até a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 não existia um conceito normativo de Seguridade Social, sendo tudo tratado como matéria previdenciária. Tampouco havia previsão constitucional específica sobre os benefícios dos trabalhadores rurais. Da mesma forma, embora o art. 165, parágrafo único, da CF/67 já previsse a impossibilidade de criação, majoração ou extensão de benefício sem a correspondente fonte de custeio total, reproduzindo princípio surgido com a Emenda Constitucional (EC) 11/65, ainda não havia regra determinando o caráter contributivo dos benefícios previdenciários.
No plano infraconstitucional, a Lei 3.807/1960, no seu art. 3º, II, expressamente excluía os trabalhadores rurais do regime previdenciário da época, situação que foi alterada apenas em 1963, com a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural pela Lei 4.214, prevendo uma série de benefícios rurais, mas sem implantação prática. Posteriormente, embora o Decreto-Lei 276/67 tenha encarregado o Funrural do custeio da assistência social e médica dos trabalhadores, isso também não chegou a ser efetivado, havendo inclusive a subsequente sustação formal da concessão das prestações rurais, na forma do art. 2º do Decreto 61.554/67. Somente com a Lei Complementar (LC) 11/1971, alterada pela LC 16/73, instituidora do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – Pro-Rural, foi finalmente implantada a “previdência social” rural, com a concessão de alguns benefícios, com valor inferior ao salário mínimo (PALMEIRA FILHO, 2012, p. 242/244 e FORTES; BECKER; CASTILHO, 2012, p. 78).
Para a concessão dos benefícios não havia nenhuma exigência de pagamento de contribuição pelo segurado rural (MARTINS, 2001, p. 35). No sistema pretérito à Constituição de 1988, os regimes de previdência social eram distintos, e os trabalhadores rurais não vertiam contribuições para o "Programa de Assistência ao Trabalhador Rural".(1)
Na verdade, embora o art. 15, I, da LC 11/71 já estabelecesse a obrigação contributiva do produtor, a responsabilidade pelo recolhimento era do adquirente (alínea a), somente cabendo àquele no caso de ele próprio industrializar os produtos ou vendê-los diretamente ao consumidor no varejo ou a adquirente domiciliado no exterior (alínea b), situação que terminava por excluir a grande maioria dos agricultores do regime contributivo. Não é por outra razão que Cláudia Vianna defende que o custeio do sistema era garantido apenas por contribuições patronais, devidas pelos produtores rurais sobre o valor comercial dos produtos (VIANNA, 2012, p. 263).
2 Do regime constitucional vigente
A CF/88 inovou no campo dos direitos sociais ao abarcar o conceito de “seguridade social”, termo genérico que passou a designar o sistema de proteção que abrange três programas: a previdência, a saúde e a assistência social. Ao tempo em que a última independe de qualquer contribuição, tratando de hipossuficientes selecionados com base na maior necessidade, a primeira é um seguro compulsório, de natureza contributiva (ROCHA; BALTAZAR JR., 2003, p. 33/35). Em outras palavras, enquanto os benefícios previdenciários exigem o pagamento de contribuição de seus segurados, situação diversa ocorre com a assistência social, prestada a quem dela necessitar, sem nenhuma contraprestação do beneficiário.
Na verdade, a regra é exposta constitucionalmente desde 1988. Com efeito, o caput do art. 201 da Lex Legum, na sua redação original, estabelecia que os planos de previdência atenderiam a diversas coberturas, mas já dependiam de contribuição. E a regra ficou ainda mais clara com a EC 20/98, quando o art. 201, caput, passou a ter a seguinte redação:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
(...)”
Por sua vez, o art. 203, caput, da CF/88 mantém a sua redação original, estabelecendo para a assistência social justamente o contrário da previdência, isto é, que ela deverá ser prestada independentemente de contribuição. Vejamos a sua redação:
“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
(...)”
Destarte, a partir da promulgação da atual Lei Maior, não há qualquer permissão para a concessão de benefício previdenciário sem que haja o pagamento de contribuição pelo beneficiário. Tal possibilidade limita-se aos benefícios assistenciais. No campo específico da Previdência do segurado especial a Carta Magna foi inclusive específica, no seu art. 195, § 8º:
“§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei.”
Então, pergunta-se, por que se concede, não só judicialmente, mas também administrativamente, benefícios não contributivos aos segurados especiais? Com justificativa na Constituição Federal, encontramos um único precedente, oriundo do TRF da 3ª Região:
“É de se ter presente que, no regime previdenciário, a regra é a existência de certo equilíbrio entre o que se paga (daí o caráter contributivo) e os benefícios auferidos. No que toca aos segurados especiais, a tônica é a proteção ao hipossuficiente, como forma de se garantir a dignidade da pessoa humana, deixando-se em segundo plano, no particular, o equilíbrio financeiro e o caráter contributivo do regime.”(2)
De acordo com o julgado, a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da CF/88, limitaria o caput do art. 201 do mesmo Pacto Fundamental, fazendo com que o caráter contributivo da previdência se aplicasse a todos os segurados, menos aos segurados especiais, ante a sua evidente hipossuficiência.
Data maxima venia, essa não é a melhor interpretação sistemática ou teleológica das normas constitucionais vigentes. Se o legislador constituinte quisesse dar tal alcance à dignidade da pessoa humana, simplesmente teria previsto o caráter assistencial dos benefícios devidos aos segurados especiais, o que não aconteceu, embora tenha feito exatamente isso com outras espécies de prestações. Além do mais, tal interpretação levaria à necessidade da decretação de inconstitucionalidade do § 8º do art. 195 da CF, que externou expressamente a forma contributiva do segurado especial, implicando a adoção da afastada teoria das normas constitucionais inconstitucionais.
Daí a razão de entendermos que os benefícios rurais, mesmo quando devidos aos segurados especiais, possuem uma natureza constitucionalmente contributiva. De qualquer forma, ainda é necessária uma análise da legislação infraconstitucional sob alguns aspectos, o que passaremos a fazer a partir de agora, visando a melhor fixar a matéria.
3 Da regra legal de transição
Com visto acima, os regimes do Funrural e do Pro-Rural, anteriores a 1988, em regra, não possuíam caráter contributivo, permitindo a concessão de certos benefícios a algumas espécies de lavradores.
Evitando surpresas que causariam sérios prejuízos a eles, a Lei 8.213/91 estabeleceu uma regra de transição, concedendo um tempo que permitia a organização da classe. Embora não houvesse direito adquirido para quem não tivesse implementado as condições para o recebimento do benefício pela legislação anterior, nada impedia o estabelecimento da regra, que apenas objetivava harmonizar os ditames anteriores com os posteriores. Assim, foi previsto o art. 143, cuja redação original era a seguinte:
“Art. 143. O trabalhador rural ora enquadrado como segurado obrigatório do Regime Geral de Previdência Social, na forma da alínea a do inciso I, ou do inciso IV ou VII do art. 11 desta lei, ou os seus dependentes, podem requerer, conforme o caso:
I – auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-reclusão ou pensão por morte, no valor de 1 (um) salário mínimo, durante 1 (um) ano, contado a partir da data da vigência desta lei, desde que seja comprovado o exercício de atividade rural com relação aos meses imediatamente anteriores ao requerimento do benefício, mesmo que de forma descontínua, durante período igual ao da carência do benefício; e
II – aposentadoria por idade, no valor de 1 (um) salário mínimo, durante 15 (quinze) anos, contados a partir da data da vigência desta lei, desde que seja comprovado o exercício de atividade rural nos últimos 5 (cinco) anos anteriores à data do requerimento, mesmo de forma descontínua, não se aplicando, nesse período, para o segurado especial, o disposto no inciso I do art. 39.”
Uma leitura do dispositivo demonstra que os agricultores que começaram a trabalhar antes de 24.07.1991 continuavam com o direito ao recebimento de benefícios não contributivos. Quanto à aposentadoria, tal direito permanecia por 15 anos, ou seja, até 2006, tempo mais que suficiente para a necessária adaptação.(3)
A aposentadoria por invalidez e o auxílio-doença, assim como, no que toca aos dependentes, o auxílio-reclusão e a pensão por morte, foram mantidos no seu caráter não contributivo apenas até 1995. Eis a melhor interpretação histórica da norma, já que a Lei 9.032/95 modificou a redação do art. 143 da LBPS, excluindo aqueles benefícios para manter somente o direito à aposentadoria, nos seguintes termos:
“Art. 143. O trabalhador rural ora enquadrado como segurado obrigatório no Regime Geral de Previdência Social, na forma da alínea a dos incisos I e IV e nos incisos VI e VII do art. 11 desta lei, pode requerer aposentadoria por idade, no valor de 1 (um) salário mínimo, durante 15 (quinze) anos, contados a partir da data de vigência desta lei, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, em número de meses idênticos à carência do referido benefício. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)”
É bom observar, todavia, que, ao contrário do que pensam alguns, o direito não estava limitado aos segurados especiais (art. 11, VII, da LBPS). Pelo contrário, os incisos do art. 11 da Lei 8.213/91, referidos pelo transcrito art. 143, deixam claro que ele também abrangia os empregados rurais (I, a), os antigos “autônomos” rurais (IV, a) e os avulsos rurais (VI). Este, aliás, é o entendimento da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência (TNU):
“É assente que o benefício de Aposentadoria por Idade Rural, então previsto no art. 143 da Lei 8.213/91, destinava-se ao gênero trabalhador rural, a englobar o empregado rural, o autônomo e o segurado especial. Pelos termos do texto legal em destaque, norma transitória e especial, bastava o trabalhador rural demonstrar período trabalhado no campo equivalente ao número de contribuições exigidas, de acordo com a tabela do art. 142, da mesma lei de benefícios, para a obtenção do benefício em questão. O benefício em questão era essencialmente não contributivo.”(4)
Logo depois, a Lei 9.063/95 concedeu nova redação ao citado art. 143. Mas o fez apenas para retirar o avulso rural dos titulares da aposentadoria não contributiva, assim como já fazia a redação original da norma, apresentando redação muito parecida com a anterior.(5)
Todavia, normas legais posteriores terminaram por ampliar o prazo inicialmente estabelecido. Foi isso o que fez, por exemplo, a Lei 11.718/2008. Nada obstante, considerando a natureza constitucionalmente contributiva do benefício, e já passado o prazo de transição, parece-nos evidentemente inconstitucional a ampliação, por nitidamente ofensiva ao disposto no caput do art. 201 da CF/88, já mencionado no item 2 supra.
Com efeito, o prazo de 15 anos estabelecido no art. 143 da LBPS se justificava porque, a partir da publicação da Lei 8.212/91 (LCPS), em atenção à CF, todos os trabalhadores urbanos e rurais deveriam obrigatoriamente contribuir. Assim sendo, se regularmente contribuintes desde julho de 1991, em julho de 2006 já contariam com 180 contribuições mensais para o Regime Geral e poderiam requerer o benefício de aposentadoria nas mesmas condições dos trabalhadores urbanos (VIANNA, 2012, p. 265/266).
Este, todavia, não foi o pensamento da TNU, que, na mesma decisão antes citada, assentou, dentre outras coisas, que para o empregado rural e o autônomo a regra vigeu até 31.12.2010, solução a meu ver equivocada, mas que fica aqui registrada.
4 Das regras “permanentes”
4.1 Do aspecto dogmático
Mesmo já passado o prazo da regra de transição explicada no tópico anterior, o INSS continua a conceder administrativamente benefícios rurais não contributivos aos segurados especiais. E, ao menos no âmbito da 5ª Região, a Procuradoria Federal não costuma apresentar o óbice em suas contestações.
Parecendo caminhar na mesma linha, Jane Lucia Berwanger, em brilhante palestra durante o referido Fórum de Direito Previdenciário, ao tratar de um “Conceito-Base de Segurado Especial”, expôs que o elemento constitucional é apenas o trabalho. Segundo ela, o que faz alguém ser segurado especial é apenas a comprovação do efetivo trabalho, não se podendo descuidar da necessidade de inclusão daqueles que não vendem o excedente. Apesar disso, também mencionou que o objetivo seria o de fazer o agricultor produzir não apenas para ele, mas também para venda, em função da necessidade consumidora do país.
Uma pesquisa na parte de jurisprudência do Portal da Justiça Federal(6) demonstra que não são tantos assim os precedentes relacionados ao tema. Isso porque, na realidade, o Judiciário já parte da possibilidade de concessão de tais benefícios não contributivos como primado absoluto, somente discutindo outras controvérsias decorrentes. E o argumento mais utilizado pela doutrina especializada é a aplicação do art. 39 da LBPS (PALMEIRA FILHO, 2012, p. 253 e VIANNA, 2012, p. 269), praticamente repetido no seu art. 48, § 3º, como já fez até mesmo a TNU, senão vejamos:
“A jurisprudência dominante desta Turma Nacional firmou-se no sentido de que, em se tratando de aposentadoria rural por idade, além dos requisitos da idade e da ‘carência’, exige a lei a comprovação do exercício do labor rural no período imediatamente anterior ao implemento da idade ou ao requerimento administrativo (arts. 39, I; 48, § 2º; e 143 da Lei nº 8.213/91), de modo a se preservar a especialidade do regime não contributivo dos rurícolas.”(7)
Para uma melhor apreciação da argumentação jurídica utilizada, atentemos para a redação do citado art. 39:
“Art. 39. Para os segurados especiais, referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, fica garantida a concessão:
I – de aposentadoria por idade ou por invalidez, de auxílio-doença, de auxílio-reclusão ou de pensão, no valor de 1 (um) salário mínimo, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, igual ao número de meses correspondentes à carência do benefício requerido; ou
II – dos benefícios especificados nesta Lei, observados os critérios e a forma de cálculo estabelecidos, desde que contribuam facultativamente para a Previdência Social, na forma estipulada no Plano de Custeio da Seguridade Social.
Parágrafo único. Para a segurada especial fica garantida a concessão do salário-maternidade no valor de 1 (um) salário mínimo, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, nos 12 (doze) meses imediatamente anteriores ao do início do benefício.”
Pois bem. Uma interpretação isolada do art. 39 certamente leva à conclusão que vem normalmente sendo tomada, seja no âmbito do INSS, seja na seara jurisdicional. Deveras, uma comparação dos seus incisos I e II indicaria a exigência de contribuição apenas na segunda hipótese, de forma que os benefícios descritos na primeira seriam não contributivos.
Nada obstante, em primeiro lugar, a interpretação do art. 39 deve ser efetuada conforme a Constituição. O fato de o seu inciso I não mencionar expressamente a necessidade de contribuição não caracteriza silêncio eloquente ou proposital do legislador, em especial em função do prévio e categórico ditame constitucional contributivo.
Em segundo lugar, o inciso I do art. 39 silenciou neste aspecto por uma razão muito clara: a Lei 8.213/91 tem a intenção primordial de tratar dos benefícios previdenciários, ficando o seu custeio para a LCPS, a qual, no seu art. 25, previu a obrigação e responsabilidade contributiva do segurado especial. Ademais, a contribuição mencionada no inciso II do art. 39 da LBPS é a facultativa, o que coaduna o dispositivo com o § 1º do art. 25 da LCPS, que prevê a possibilidade de o segurado contribuir facultativamente, mas de forma cumulativa com a obrigatória contribuição antes mencionada. Para que não haja dúvida, percebamos a redação atual da norma:
“Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de: (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001)
I – 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)
II – 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)
§ 1º O segurado especial de que trata este artigo, além da contribuição obrigatória referida no caput, poderá contribuir, facultativamente, na forma do art. 21 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 8.540, de 22.12.92)”
A nossa orientação, aliás, se amolda perfeitamente ao conteúdo do art. 55, § 2º, da mesma LBPS. Este dispositivo somente permite o cômputo do tempo rural não contributivo do período anterior a 1991. E qual a sua razão? Evidentemente a de que o benefício era não contributivo antes da sua vigência, passando à natureza contributiva depois.
Nossa afirmação também se conforma à criação do já transcrito art. 143 da mesma LBPS. Se a intenção da norma fosse considerar o benefício do art. 39, I, não contributivo, para quê a própria norma previu o art. 143 como regra de transição? Se antes não era contributivo e agora também não, dispensada ficaria a transição, parece-nos claro.
Em similar linha de raciocínio, Simone da Roza, ainda que em trabalho que objetiva assegurar direitos aos trabalhadores, não afasta a obrigatoriedade de suas contribuições. Realmente, segundo ela, a fim de obedecer ao princípio constitucional da equidade na forma da participação de custeio (art. 194, V), a Lei 8.212/91, em seu art. 25, passou a exigir dos trabalhadores rurais a correspondente contribuição previdenciária (ROZA, 2012, p. 34), a qual apenas aponta critérios mais vantajosos que a dos trabalhadores em geral.
Diante disso, data venia, verifica-se o equívoco da praxe não só judicial, mas até mesmo administrativa, em continuar deferindo tais tipos de prestações. Sob o nosso enfoque, apenas o TRF da 4ª Região vem apresentando decisões corretas sobre o tema:
“No que tange ao período posterior a novembro de 1991, a LBPS assegura aos segurados especiais, independentemente de contribuição outra que não a devida por todo produtor rural sobre a comercialização da produção (art. 25 da Lei nº 8.212/91), apenas os benefícios dispostos no art. 39, inc. I e parágrafo único, da Lei nº 8.213/91; a obtenção dos demais benefícios especificados neste Diploma, inclusive aposentadoria por tempo de serviço ou contribuição, depende do aporte contributivo na qualidade de segurados facultativos, conforme se lê nos arts. 39, inc. II, da LBPS e 25, § 1º, da Lei nº 8.212/91.”(8)
Portanto, fica estabelecido o correto entendimento dogmático a respeito da imprescindibilidade de o segurado especial efetuar o recolhimento de contribuições, situação quase inexistente na prática, no mínimo nos Estados integrantes do TRF da 5ª Região. Os benefícios não contributivos não mais podem ser deferidos, salvo para aqueles que, atendidos os demais requisitos legais, tenham começado a trabalhar, ingressando no sistema, até 24 de julho de 1991 e tenham completado a idade até 25 de julho de 2006, por força do art. 143 da LBPS.
4.2 Do aspecto filosófico
Não temos a menor pretensão de ingressar nos temas da “teoria da motivação jurídica” ou do “ativismo judicial”. Não obstante, é necessário ressaltar que a admissão de benefícios rurais não contributivos, na realidade, não decorre de razões jurídicas, saindo do âmbito do direito para ingressar no campo da ideologia, ainda que se pretenda dar uma roupagem técnica aos argumentos utilizados. Daí a necessidade de também abordarmos, ainda que superficialmente, algumas observações filosóficas sobre a questão.
No citado Fórum de Direito Previdenciário, Jane Lucia Berwanger explicou que a agropecuária é subsidiada não só no Brasil, mas em todo o mundo. Na Espanha, inclusive, o trabalhador rural ganharia R$ 1.000,00 por ano por cada gado que cria. Na França, por sua vez, já foram aplicados recursos consideráveis a fundo perdido, visando à proteção social dos agricultores (TOLEDO, 2012, p. 18).
Também há quem sustente que a agricultura familiar tem vital importância na economia do país, sendo responsável por cerca de 60% dos alimentos consumidos pela população brasileira e respondendo por quase 40% do valor bruto da produção agropecuária (ROZA, 2012, p. 32). Defende-se, outrossim, que a agricultura familiar é elemento de dinamização e modernização do sistema de produção agroalimentar, de importância estratégica para o desenvolvimento do país (TOLEDO, 2012, p. 17). Daí porque Jane Lucia Berwanger, no mesmo evento citado, ressaltou a importância de incentivar a permanência da classe no campo, sendo esta, inclusive, segundo ela, a visão do Ministério de Desenvolvimento agrário.
É verdade que as camadas sociais com mais capacidade contributiva sustentam um regime no qual existem serviços e benefícios deferidos àqueles que não têm nenhuma condição de contribuir em prol do sistema. Isso colabora para um processo redistributivo de renda, operando justiça social (FORTES; BECKER; CASTILHO, 2012, p. 75/76). Mas é justamente por isso que os segurados especiais são chamados a contribuir de forma adequada, na medida em que comercializam sua produção, particularidade que os afasta de outras categorias. Ou seja, sua diferenciação laborativa já é tomada em conta no momento de sua participação no custeio (FORTES; BECKER; CASTILHO, 2012, p. 77). E a diferença de tratamento não é pequena. Ao invés de ser obrigado a contribuir mensalmente, por exemplo, o segurado especial tem periodicidade não determinada, podendo ser uma vez por ano, por ocasião da venda da safra (PALMEIRA FILHO, 2012, p. 252). Além disso, a sua alíquota é muito menor do que a dos demais trabalhadores brasileiros.
Ademais, não esquecendo a maior dificuldade enfrentada pelos trabalhadores rurais, a Constituição Federal lhe trouxe outra vantagem: a redução em cinco anos do limite mínimo de idade para a respectiva aposentadoria (art. 201, § 7º, II). Não seria isso suficiente?
De outra parte, há quem pense ser um equívoco creditar aos rurais o peso de um suposto déficit previdenciário. Primeiro porque a política de proteção da classe estaria relacionada com a noção de cidadania; segundo, em razão da solidariedade social (MORELLO, 2012, p. 215/216). Todavia, isso nada tem a ver com déficit ou superávit do sistema.
Nos aspectos financeiro e orçamentário, a previdência social registrou no ano de 2012,(9) no setor urbano, uma arrecadação de R$ 146,7 bilhões, com despesas de R$ 134,3 bilhões. O saldo final foi de R$ 12,4 bilhões. O valor, inclusive, leva em conta o pagamento de sentenças judiciais e a Compensação Previdenciária (Comprev) entre o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e os regimes próprios de Previdência Social (RPPS) de estados e municípios.
Já no meio rural, a arrecadação de julho de 2012, por exemplo, foi de R$ 447,4 milhões. A despesa com pagamento de benefícios, de outro lado, foi de R$ 5,6 bilhões. A diferença entre arrecadação e despesa gerou necessidade de financiamento para o setor rural de R$ 5,1 bilhões – 13,4% a mais que no mesmo mês do ano passado.(10),(11)
Dessarte, parece-nos claro que a previdência urbana ainda é autossustentável, o mesmo não acontecendo com a rural, cuja sustentabilidade vem piorando a cada dia. No agregado, o déficit decorre dos benefícios rurais, não dos urbanos. E matemática não faz parte das “ciências” humanas, mas das ciências exatas, não havendo como se fazer milagre. Se ela não se sustenta, alguém irá pagar a conta. E o que não pode acontecer são as frequentes atribuições de culpa aos trabalhadores urbanos do regime geral, ou até mesmo aos servidores públicos dos regimes próprios, pelo déficit da previdência.
Não visamos, com toda nossa demonstração, afirmar se os agricultores merecem ou não continuar recebendo benefícios não contributivos. Mas, se a conclusão filosófica for positiva,(12) que se faça uma mudança legislativa, com transparência, alterando a natureza das correspondentes prestações de previdenciárias para assistenciais. E, principalmente, que se demonstre matematicamente a origem da fonte de custeio total.
Conclusão
Diante do que expusemos ao longo deste trabalho, de lege lata fica claro que não há mais a menor possibilidade de concessão de benefícios não contributivos aos segurados especiais, ressalvados apenas os casos daqueles que implementaram todos os requisitos legalmente exigidos até o dia 25.07.2006.
Apesar disso, tanto o INSS quanto o Poder Judiciário continuam a fazê-lo com enorme frequência, inclusive com base em vários entendimentos doutrinários. Tais pensamentos, no entanto, a nosso ver, possuem bases muito mais filosóficas do que jurídicas, ainda que apresentem o art. 39 da LBPS como fundamento dogmático aparente.
De qualquer forma, ainda que partamos da justiça filosófica do direito aos benefícios não contributivos, o que é questionável, fatalmente cairemos em uma velha pergunta: devemos optar pela norma ou pela justiça?
Sem querer responder a uma pergunta nunca respondida com precisão e sem entrar nos méritos e defeitos do direito natural ou do positivismo jurídico, somente chegamos a uma conclusão: se o justo for conceder benefícios não contributivos aos segurados especiais, esperamos que isso ocorra com mais transparência, demonstrando a realidade matemática do problema, colocando-o no seu devido lugar assistencial e, finalmente, prevendo a sua fonte de custeio total.
Bibliografia
BERNARDO, Leandro Ferreira; FRACALOSSI, William. Direito previdenciário na visão dos tribunais. 2. ed. São Paulo: Método, 2011.
FORTES, Simone Barbisan; BECKER, Carlos Alberto; CASTILHOS, Alan. Contribuições previdenciárias na atividade rural. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 73-110.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
MORELLO, Evandro José. Os trabalhadores rurais no contexto dos debates da reforma da Previdência Social. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 201-217.
PALMEIRA FILHO, Eduardo Rivera. Os benefícios previdenciários do segurado especial no Regime Geral de Previdência Social. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 239-260.
ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JR., José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado e ESMAFE/RS, 2003.
ROZA, Simone da. A não descaracterização do regime de economia familiar frente ao modo de produção e à extensão da propriedade. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 31-44.
TOLEDO, Eliziário Noé Boeira. Agricultores familiares: um conceito de resistência. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 13-29.
VIANNA, Cláudia Salles Vilela. A aposentadoria por idade dos trabalhadores rurais e a carência necessária à obtenção do benefício. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan (coord.). Previdência do trabalhador rural em debate. Curitiba: Juruá, 2012. p. 261-276.
3. Como poderia o legislador, em julho de 1991, exigir do trabalhador rural um mínimo de contribuições mensais para obter o benefício da aposentadoria se antes ele não estava obrigado a verter contribuição alguma ao sistema? Foi por isso que a lei admitiu que os trabalhadores iniciados no antigo regime obtivessem tratamento diferenciado dos urbanos (VIANNA, 2012, p. 265), ainda que provisoriamente.
5. “Art. 143. O trabalhador rural ora enquadrado como segurado obrigatório no Regime Geral de Previdência Social, na forma da alínea a do inciso I, ou do inciso IV ou VII do art. 11 desta Lei, pode requerer aposentadoria por idade, no valor de um salário mínimo, durante quinze anos, contados a partir da data de vigência desta Lei, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, em número de meses idêntico à carência do referido benefício. (Redação dada pela Lei nº. 9.063, de 1995)”
6. http://www.jf.jus.br/cjf
8. TRF 4: AC 200972990003903, AC – APELAÇÃO CÍVEL, SEXTA TURMA D.E. 20.05.2010; AC 200671000168860, AC – APELAÇÃO CÍVEL, SEXTA TURMA D.E. 06.05.2010; AC 200871990003209, AC – APELAÇÃO CÍVEL, QUINTA TURMA D.E. 03.05.2010. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/juris/unificada/Resposta>. Acesso em: 16 out. 2012.
9. No acumulado de janeiro a julho.
10. O pagamento de contribuições efetuado pelos segurados especiais cobre apenas 10% das despesas com o grupo (PALMEIRA FILHO, 2012, p. 252).
12. Tal conclusão, ainda que filosófica, somente se justificará com base em estudos específicos, partindo de dados concretos normalmente desconhecidos dos operadores do direito.
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