Resumo
O presente artigo tem o objetivo de analisar as discrepâncias trazidas pela Lei nº 12.016/2009, no tocante ao mandado de segurança coletivo, em face do regramento disposto pelo microssistema processual coletivo, composto, em seu núcleo, pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública. Busca-se, também, analisar a mitigação ao direito do jurisdicionado de excluir-se da tutela coletiva e submeter-se apenas aos efeitos de sua ação individual, em face da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Mandado de segurança coletivo. Lei 12.016/2009. Microssistema processual coletivo. Direito de excluir-se da tutela coletiva.
Sumário: 1 Conceito, origem e finalidade. 2 Polo passivo em sede de ação mandamental e os atos de gestão. 3 Mandado de segurança coletivo e as discrepâncias com o microssistema processual coletivo. 4 Mitigação do direito de excluir-se da tutela coletiva. Referências bibliográficas.
1 Conceito, origem e finalidade
O mandado de segurança é um direito constitucional do cidadão, previsto no art. 5º, LXIX, da CF/88, tendo a natureza jurídica de ação constitucional, cujo objetivo é sanar o vício causado por ato ilegal ou inconstitucional praticado por autoridade pública ou pessoa a ela equiparada. Tal remédio heroico foi instituído em nosso ordenamento pela Carta Magna de 16 de julho de 1934, em seu art. 113, que assim dispunha:
“Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade.”
O mandado de segurança visa à proteção de direito líquido e certo que não corresponda à liberdade de locomoção nem ao direito de informação, amparáveis, respectivamente, por habeas corpus e habeas data.
Sobre o conceito de direito líquido e certo, Hely Lopes(1) assim o define:
“Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocável, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for duvidosa, se a sua extensão ainda não estiver delimitada, se o seu exercício depender de situações e fatos ainda não determinados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.”
Porém, a expressão “direito líquido e certo” não é a mais apropriada, pois leva a crer que o direito veiculado no mandado de segurança é indiscutível porque já estaria delimitado, o que não ocorre, pois o que é liquido e certo não é o direito, mas sim os fatos que ensejam o mandamus.
Corroborando tal questão, a própria Súmula nº 625 do STF(2) aduz ser possível a discussão de questão de direito no bojo do mandado de segurança, ao dispor que a “controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança”.
Convém, em razão da importância do tema, transcrever a ementa do acórdão, da lavra do eminente relator Min. Sepulveda Pertence, no Recurso Extraordinário nº 117.936-8,(3) que foi precedente para a origem da referida súmula. Confira-se:
“Mandado de Segurança: Direito Líquido e Certo. O ‘direito líquido e certo’, pressuposto constitucional de admissibilidade do mandado de segurança, é requisito de ordem processual, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos em que se basear a pretensão do impetrante, e não com a procedência desta, matéria de mérito.” (STF, Pleno, Relator Sepulveda Pertence, REX 117.936-8 em MS 21.243, 12.09.90)
Assim, o direito líquido e certo é pressuposto constitucional de admissibilidade do mandado de segurança, tendo relação com a prova inequívoca dos fatos em que se basear a pretensão do impetrante, e não tendo, assim, vínculo com o direito invocado para embasar tal pretensão, pois não se refere ao mérito da lide.
Logo, eventual controvérsia, doutrinária ou jurisprudencial, a respeito dos fundamentos jurídicos invocados como causa de pedir próxima (ius in iudictum deducta) não impede eventual concessão da segurança pleiteada, desde que, quanto aos fatos (causa de pedir remota), haja a prova inequívoca de sua constituição.
Dessa forma, são os fatos que embasam o mandamus que devem ser comprovados de plano, de forma inequívoca, a fim de que seja concedida a segurança; isto é, deve ser suficiente a produção de prova documental acompanhando a inicial para a concessão da segurança.
Se houver necessidade de instrução probatória para a comprovação dos fatos, estes não são líquidos nem certos, devendo ser alvo de ação ordinária, e não de mandado de segurança, cuja inicial será indeferida, nos termos do art. 10 da Lei nº 12.016/09.
2 Polo passivo em sede de ação mandamental e os atos de gestão
O remédio heroico é sempre voltado contra ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público, englobando concessionárias e permissionárias de serviço público.
Nesse ponto, cumpre ressaltar que a Lei nº 12.016/09, em seu art. 1º, § 2º, legalizou o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que os atos de gestão comercial praticados por administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias não podem ser impugnados via mandado de segurança, pelo simples fato de que tais atos não possuem supremacia (jus imperium), uma vez que são meros atos da administração, nos quais a Administração atua em nível de igualdade de condições com o particular, não sendo atos administrativos.
Por atos de gestão comercial podemos apontar os decorrentes de contrato, ainda que de cunho administrativo, como a imposição de multa, conforme definido no REsp 1078342,(4) cuja ementa é a seguinte:
“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. EMPRESA PÚBLICA. CONTRATO FIRMADO A PARTIR DE PRÉVIO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO PARA ADEQUAÇÃO DE REDE ELÉTRICA DE AGÊNCIA BANCÁRIA. APLICAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL. ATO DE GESTÃO. DESCABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA.
1. A imposição de multa decorrente de contrato, ainda que de cunho administrativo, não é ato de autoridade, posto inegável ato de gestão contratual. Precedentes jurisprudenciais: AGRG REsp 1107565, REsp 420.914, REsp 577.396
2. Os atos de gestão não possuem o requisito da supremacia e, por isso, são meros atos da administração, e não atos administrativos, sendo que a Administração e o Particular encontram-se em igualdade de condições, em que o ato praticado não se submete aos princípios da atividade administrativa, tampouco exercido no exercício de função pública, não se vislumbrando ato de autoridade.
3. Sob este enfoque, preconiza a doutrina que: Atos de gestão são os que a Administração pratica sem usar de sua supremacia sobre os destinatários. Tal ocorre nos atos puramente de administração dos bens e serviços públicos e nos negociais com os particulares, que não exigem coerção sobre os interessados (In MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 31. ed., p. 166).
4. In casu, versa mandado de segurança impetrado por empresa privada em face da Caixa Econômica Federal visando anular ato do Presidente da Comissão de Licitação que, nos autos do contrato para prestação de serviços de adequação da rede elétrica de agência bancária, aplicou a penalidade de multa por atraso da obra.
5. Deveras, apurar infração contratual e sua extensão é incabível em sede de writ, via na qual se exige prova prima facie evidente.
6. A novel Lei do Mandado de Segurança, nº 12.026/09, sedimentou o entendimento jurisprudencial do descabimento do mandado de segurança contra ato de gestão, em seu art. 1º, § 2º, in verbis: ‘Não cabe mandado de segurança contra os atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de serviço público’. 7. Consectariamente, a Caixa Econômica Federal, mesmo com natureza jurídica de empresa pública, integrante da Administração Indireta do Estado, ao fixar multa em contrato administrativo, pratica ato de gestão não passível de impugnação via mandado de segurança, mercê de não se caracterizar ato de autoridade.
8. Recurso Especial desprovido.” (REsp 1078342/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09.02.2010, DJe 15.03.2010 – destaques nossos)
Dessa forma, somente os atos típicos de direito público, no qual há a supremacia do interesse público sobre o privado (ius imperium), é que são alvo de mandado de segurança, pois somente nesses é que temos a atuação de uma autoridade pública no exercício da função.
Os atos de gestão, como bem definido pelo acórdão acima, são aqueles puramente de administração de bens e serviços públicos e os negociais com os particulares, nos quais não há supremacia sobre os administrados, não sendo alvo do remédio heroico constitucional por se tratarem de meros atos da administração, nos quais a Administração atua em nível de igualdade com o particular, não constituindo, assim, atos de autoridade, requisito necessário para a admissibilidade do mandado de segurança.
3 Mandado de segurança coletivo e as discrepâncias com o microssistema processual coletivo
A grande inovação da Lei nº 12.016/09 foi a regulamentação do mandado de segurança coletivo, previsto na CF/88, em seu art. 5º, LXX, que assim dispõe:
“LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;”
Assim, em que pese a norma constitucional ter se referido apenas aos seus legitimados ativos, tendo em vista que se trata de um instrumento para a defesa da tutela coletiva, as normas do mandado de segurança coletivo devem se adequar ao chamado “microssistema processual coletivo”, que tem como núcleo central o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Publica.
Tal microssistema tem a função de, enquanto não houver a publicação do Código de Processo Civil Coletivo, aplicar suas normas subsidiariamente aos instrumentos jurídicos de proteção coletiva, tais como a ação popular, a ação de improbidade e o mandado de segurança coletivo, na busca pela sua efetivação.
Ocorre que a Lei nº 12.016/09, em alguns aspectos, que consideramos primordiais, não está em sintonia com o microssistema processual coletivo acima referido, pelas razões que passaremos a expor.
Registre-se que a referida lei tratou do mandado de segurança coletivo em apenas dois artigos (arts. 21 e 22), sendo que consideramos que ambos estão, em certas questões, em conflito com as regras do microssistema processual coletivo.
Primeiro, vamos analisar o disposto no art. 21, parágrafo único, da referida lei. Esse dispositivo, em seus incisos I e II, prevê a possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo para defender interesse coletivo e individual homogêneo, porém não se refere expressamente ao direito difuso, assim dispondo:
“Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetra do por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial.
Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser:
I – coletivos, assim entendidos, para efeito desta lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica;
II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.”
A questão do cabimento ou não de mandado de segurança coletivo para a proteção de direitos difusos vem desde antes da edição da Lei 12.016/2009, ainda na vigência da Lei 1.533/51, havendo entendimento doutrinário nos dois sentidos, alguns favoráveis ao seu cabimento(5) e outros desfavoráveis.(6)
Diante dessa divergência, esse silêncio do legislador poderia vir a ser considerado como intencional, no sentido de se sustentar a doutrina que defende, desde a vigência da Lei 1.533/51, o não cabimento de mandado de segurança coletivo para tutelar direitos difusos.
Porém, data maxima venia aos renomados processualistas que sustentam o não cabimento de direitos difusos em sede de mandado de segurança coletivo, somos partidários da corrente doutrinária que permite a tutela de direitos difusos em sede de mandamus coletivo.
Isso porque, como ressaltamos, as disposições previstas no microssistema processual coletivo devem ser aplicadas subsidiariamente a todos os instrumentos jurídicos de proteção da tutela coletiva. Assim, impõe-se a efetivação do disposto no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, irradiando sobre a Lei 12.016/2009, que assim dispõe:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
Dessa forma, aplicando-se subsidiariamente o art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se a possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo para a defesa de direito e interesses difusos, assim entendidos aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Registre-se que, conforme doutrina de Barbosa Moreira,(7) os direitos individuais homogêneos são considerados acidentalmente coletivos, pois, apesar de serem individuais, são defendidos judicialmente por meio dos mesmos instrumentos previstos para a proteção dos direitos difusos e coletivos, que são considerados pelo grande processualista como os essencialmente coletivos, por terem caráter nitidamente coletivo, e não individual.
Assim, tendo em vista que o direito difuso se trata de interesse essencialmente coletivo, não há razão lógica para excluir a possibilidade de sua proteção por meio da utilização de um instrumento jurídico, qual seja, o mandado de segurança coletivo, cuja finalidade é justamente a proteção dos interesses transindividuais.
Exemplificando, não há como impedir que uma associação de moradores ingresse com um mandado de segurança coletivo contra a prefeitura que está depositando lixo em uma área residencial, buscando, assim, a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito difuso essencialmente coletivo.
Concluímos, assim, que, não obstante o cochilo do legislador, de forma intencional ou não, o mandado de segurança coletivo é adequado para a defesa de direitos difusos, mediante a aplicação subsidiária do microssistema processual coletivo, notadamente o previsto no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, também a doutrina de Eduardo Arruda Alvim,(8) nos seguintes termos:
“Com efeito, parece sustentável que, nada obstante o silêncio dos incisos I e II do parágrafo único do art. 21 da Lei 12.016/09, que tratam apenas dos direitos coletivos e individuais homogêneos, cabe, em tese, mandado de segurança também para a tutela de direitos difusos. Interpretação diferente angustiaria indevidamente a importância que o legislador constituinte conferiu ao mandado de segurança e, em particular, ao mandado de segurança coletivo. Com efeito, não há por que negar o cabimento do mandado de segurança coletivo para impugnar, por exemplo, ato administrativo que provoque danos ambientais.”
Registre-se que esse entendimento está em consonância com os princípios da tutela adequada e da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal(9) já se manifestou sobre o tema, nos seguintes termos:
“(...) expresso meu entendimento no sentido de que o mandado de segurança coletivo protege tanto os interesses coletivos e difusos, quanto os direitos subjetivos.” (RE 181.438-1/SP, STF, Tribunal Pleno, Min. Carlos Velloso)
“À agremiação partidária não pode ser vedado o uso do mandado de segurança coletivo em hipóteses concretas em que estejam em risco, por exemplo, o patrimônio histórico, cultural ou ambiental de determinada comunidade.” (Min. Ellen Gracie, no STF, Pleno, RE nº 196.184, j. em 27.10.2004, RE 196.184, transcrições, Bol. Inf. do STF nº 372)
Dessa forma, entendemos que, apesar do silêncio do legislador, deve-se conferir interpretação conforme a Constituição, bem como conforme as regras do microssistema processual coletivo, a fim de completar a lacuna legal e também permitir o uso do mandado de segurança coletivo para a proteção de direitos difusos.
Continuando ainda na análise do art. 21 da Lei 12.016/2009, o seu caput também é alvo de críticas, na parte em que limita a legitimidade ativa dos partidos políticos à “defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”.
Verifica-se que, neste ponto, a referida lei restringiu a legitimidade ativa dos partidos políticos, em clara violação ao texto constitucional. Isso porque o art. 5º, LXX, da Constituição Federal não faz nenhuma restrição em relação à legitimidade da atuação dos partidos políticos, ou seja, a Carta Magna não limita a atuação dos partidos apenas aos interesses de seus integrantes ou à sua finalidade partidária.
Dessa forma, neste ponto, por limitar a legitimidade ativa dos partidos políticos sem o devido amparo constitucional, reputo a nova lei inconstitucional por restringir, em afronta ao texto magno, o uso de tão importante garantia constitucional.
Registre-se, inclusive, que o legislador infraconstitucional, além de violar a Constituição, também está em dissonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal(10) sobre o assunto, que entende possível os partidos políticos defenderem, via mandado de segurança coletivo, qualquer interesse, não se restringindo apenas aos assuntos relativos a direitos políticos (finalidade partidária) ou a seus integrantes. Nesse sentido, confira-se:
“Assim, se o partido político entender que determinado direito difuso se encontra ameaçado ou lesado por qualquer ato da administração, poderá fazer uso do mandado de segurança coletivo, que não se restringirá apenas aos assuntos relativos a direitos políticos e nem a seus integrantes.” (Min. Ellen Gracie, no STF, Pleno, RE nº 196.184, j. em 27.10.2004, RE 196.184, transcrições, Bol. Inf. do STF nº 372)
Dessa forma, não se pode sobre a matéria retroceder, sob pena de, inclusive, ferir o princípio da vedação ao retrocesso, pois o mandado de segurança é uma garantia fundamental da coletividade, devendo permitir que os partidos políticos protejam quaisquer direitos difusos, mesmo que não diretamente relacionado a sua finalidade partidária ou a seus integrantes.
Passemos agora à análise do art. 22 da Lei nº 12.016/09, que assim dispõe:
“Art. 22. No mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante.
§ 1º O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva.
§ 2º No mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas.”
Tal análise se concentrará no § 1º do art. 22, acima transcrito, que prevê a possibilidade de o jurisdicionado que ingressou com um mandado de segurança individual se beneficiar da decisão prevista no mandado de segurança coletivo desde que, no prazo de 30 dias contados da ciência comprovada da impetração do mandado de segurança coletivo, desista do seu mandado de segurança individual.
Ocorre que essa disposição conflita frontalmente com o microssistema processual coletivo, notadamente com o art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê a possibilidade de se aproveitar da ação coletiva, desde que se requeira a suspensão da ação individual no prazo de 30 dias contados da ciência da existência da ação coletiva, nos seguintes termos:
“Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e no parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.”
Verifica-se, assim, que a Lei nº 12.016/09, ao exigir que o autor de mandado de segurança individual desista de sua ação para poder se beneficiar de mandado de segurança coletivo, viola frontalmente o microssistema processual coletivo, previsto no art. 104 do CDC.
No caso, a situação se agrava porque, caso venha a perder o mandado de segurança coletivo, via de regra, o autor não poderá mais ingressar com mandado de segurança individual, uma vez que desistiu anteriormente e, muito provavelmente, já se terá consumado o prazo decadencial de 120 dias a contar do ato abusivo para a impetração do remédio heroico, nos termos do art. 23 da Lei nº 12.016/09, salvo nos casos de ato omissivo, em que não se aplica tal dispositivo.
Assim, a tutela coletiva, que não deve impedir a possibilidade de se buscar o direito por meio das ações individuais, acabará retirando o direito legítimo do autor de utilizar o mandado de segurança individual, somente restando-lhe as ações ordinárias, de procedimento mais demorado, caso o mandado de segurança coletivo seja julgado improcedente, em razão do instituto da decadência e em face da desistência anterior.
Assim, realizando uma interpretação conforme a Constituição do art. 22, § 1º, da Lei nº 12.016/09, bem como mediante a aplicação do disposto no art. 104 do CDC, entendemos que o sentido mais consentâneo com o microssistema processual coletivo é a possibilidade de o autor de mandado de segurança individual se submeter aos efeitos do mandado de segurança coletivo (right to opt in) desde que, para tanto, requeira a suspensão do mandado de segurança individual, sem a necessidade de requerer a desistência dele.
4 Mitigação do direito de excluir-se da tutela coletiva
Sobre o direito do impetrante de se submeter ou não às ações coletivas, isto é, de excluir-se dos efeitos da tutela coletiva, dando seguimento apenas à sua ação individual, uma importante questão necessita ser destacada. A ação coletiva não pode impedir o jurisdicionado de ingressar com sua demanda individual. Por outro lado, está mais em consonância com os princípios da duração razoável do processo e da efetividade que a questão seja resolvida em somente uma macrolide coletiva, ao invés de em milhares de lides individuais.
Por essa razão é que o próprio STJ, no REsp 1.110.549-RS,(11) decidiu que essa suspensão das ações individuais até o julgamento da ação coletiva sobre a mesma matéria pode ser declarada de oficio pelo próprio magistrado de 1º grau, nos seguintes termos:
“PROCESSO CIVIL. PROJETO ‘CADERNETA DE POUPANÇA’ DO TJ/RS. SUSPENSÃO, DE OFÍCIO, DE AÇÕES INDIVIDUAIS PROPOSTAS POR POUPADORES, ATÉ QUE SE JULGUEM AÇÕES COLETIVAS RELATIVAS AO TEMA. PROCEDIMENTO CONVALIDADO NESTA CORTE EM JULGAMENTO DE RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA REPETITIVA. CONVERSÃO, DE OFÍCIO, DA AÇÃO INDIVIDUAL, ANTERIORMENTE SUSPENSA, EM LIQUIDAÇÃO, APÓS A PROLAÇÃO DE SENTENÇA NA AÇÃO COLETIVA. REGULARIDADE.
1. É impossível apreciar a alegação de que restou violado o princípio do juiz natural pela atribuição a determinado juiz da incumbência de dar andamento uniforme para todas as ações individuais suspensas em função da propositura, pelos legitimados, de ações coletivas para discussão de expurgos em caderneta de poupança. Se o Tribunal afastou a violação desse princípio com fundamento em normas estaduais e a parte alega a incompatibilidade dessas normas com o comando do CPC, o conflito entre lei estadual e lei federal deve ser dirimido pelo STF, nos termos do art. 102, III, alíneas c e d, do CPC.
2. A suspensão de ofício das ações individuais foi corroborada por esta Corte no julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia Repetitiva nº 1.110.549/RS, de modo que não cabe, nesta sede, revisar o que ficou ali estabelecido. Tendo-se admitido a suspensão de ofício por razões ligadas à melhor ordenação dos processos, privilegiando-se a sua solução uniforme e simultânea, otimizando a atuação do judiciário e dasafogando-se sua estrutura, as mesmas razões justificam que se corrobore a retomada de ofício desses processos, convertendo-se a ação individual em liquidação da sentença coletiva. Essa medida colaborará para o mesmo fim: o de distribuir justiça de maneira mais célere e uniforme.
3. Se o recurso interposto contra a sentença que decidiu a ação coletiva foi recebido com efeito suspensivo mitigado, autorizando-se, de maneira expressa, a liquidação provisória do julgado, não há motivos para que se vincule esse ato ao trânsito em julgado da referida sentença. A interpretação conjunta dos dispositivos da LACP e do CDC conduz à regularidade desse procedimento.
4. Inexiste violação do art. 6º, VIII, do CDC pela determinação de que a instituição financeira apresente os extratos de seus correntistas à época dos expurgos inflacionários, nas liquidações individuais. O fato de os contratos terem sido celebrados anteriormente à vigência do Código não influi nessa decisão, porquanto se trata de norma de natureza processual.
5. Ainda que não se considere possível aplicar o CDC à espécie, o pedido de exibição de documentos encontra previsão expressa no CPC e pode ser deferido independentemente de eventual inversão do ônus probatório. Consoante precedente da 3ª Turma (REsp 896.435/PR, de minha relatoria, DJe 09.11.2009), a eventual inexistência dos extratos que conduza à impossibilidade de produção da prova pode ser decidida pelo juízo mediante a utilização das regras ordinárias do processo civil, inclusive com a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, conforme o caso.
6. A autorização de que se promova a liquidação do julgado coletivo não gera prejuízo a qualquer das partes, notadamente porquanto a atuação coletiva deve prosseguir apenas até a fixação do valor controvertido, não sendo possível a prática de atos de execução antes do trânsito em julgado da ação coletiva.
7. Recurso improvido.” (REsp 1189679/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 24.11.2010, DJe 17.12.2010)
Entendemos que tal conduta processual é constitucional, pois se estão resguardando os direitos em jogo, uma vez que se assegura o amplo acesso ao Judiciário. Tal suspensão de oficio apenas traria benefícios ao autor, pois, se a decisão na ação coletiva lhe for desfavorável, ele dará continuidade a sua ação individual.
Ademais, se a ação coletiva lhe for favorável, a sua ação individual será convertida em liquidação de sentença coletiva, conforme consta no inteiro teor do REsp acima transcrito, bem como no REsp 1.189.679-RS.(12)
Além disso, tal suspensão de oficio pelo magistrado privilegia também os princípios da efetividade processual e da razoável duração do processo, pois permite que o Judiciário, em uma só decisão, julgue definitivamente milhares de questões individuais, combatendo a tão reclamada morosidade da justiça e atendendo ao interesse público.
Assim, nos termos dos conceitos trazidos pela doutrina das class actions, de origem norte-americana, com a impetração da ação coletiva surgem, para o jurisdicionado, duas possibilidades: o direito de ingressar na tutela coletiva (right to opt in), isto é, de se submeter aos efeitos da decisão da demanda coletiva, bastando para tanto que requeira a suspensão (não a desistência, mesmo que se trate de mandado de segurança) da sua ação individual após a ciência da interposição da ação coletiva; ou o direito de excluir-se da tutela coletiva (right to opt out), isto é, o direito de não se submeter aos efeitos da demanda coletiva, bastando que continue a dar andamento a sua ação individual, mesmo após a ciência da existência da ação coletiva.
Contudo, com base no entendimento pacífico do STJ sobre a matéria, acima transcrito, e com o qual concordamos, o direito de excluir-se da tutela coletiva (right to opt out) está atualmente mitigado, pois o magistrado pode, de ofício, suspender a ação individual até a conclusão do processo coletivo.
Sobre o exercício do direito de excluir-se da tutela coletiva, Fredie Didier,(13) citando Antonio Gidi, assim nos ensina:
“O exercício do right to opt out não implica renúncia da situação jurídica individual: o indivíduo não ‘abre mão’ do seu direito à indenização, por exemplo; ele não quer, isso sim, que esse direito seja tutelado no âmbito coletivo, pois prefere, pelas mais variadas razões, a tutela jurisdicional individual. Ao excluir-se, o indivíduo ‘não será prejudicado pela sentença desfavorável’ e ‘também não poderá ser, naturalmente, beneficiado pela coisa julgada da sentença favorável’.” (GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: RT, 2007. p. 300)
Ressalte-se, contudo, que, conforme registrado, a tendência do STJ é mitigar o direito do autor de excluir-se da tutela coletiva (right to opt out), pois, mesmo que ele continue a desenvolver a sua demanda individual após a ciência da ação coletiva, o juiz, de ofício, pode suspendê-la, em prol da efetividade do processo e do interesse público, não necessitando de requerimento do autor.
Assim, o direito de se submeter aos efeitos da ação coletiva (right to opt in), que antes representava um direito potestativo do autor, dependente de uma conduta processual ativa por meio de requerimento de suspensão de sua ação individual, pode ser realizado pelo próprio magistrado, de ofício, pois tal atitude processual, como já analisado, não trará nenhum prejuízo à parte.
Não obstante, apesar dessa evolução jurisprudencial do STJ, que consideramos benéfica e constitucional, verifica-se que se exige, para se beneficiar dos efeitos da tutela coletiva, tão somente a suspensão da ação individual (quer feita por requerimento do autor, quer feita de ofício pelo magistrado), e não a desistência dela, mesmo em se tratando de mandado de segurança coletivo, pois, em determinadas situações, caso venha a perder a ação coletiva, o autor pode ainda continuar com sua lide individual, o que não seria possível no caso de desistência de mandado de segurança por já se ter operado a decadência, ultrapassando o prazo de 120 dias do ato impugnado. Ademais, caso a ação coletiva venha a ser julgada procedente, basta converter a ação individual em execução de sentença.
Referências bibliográficas
ALVIM, Eduardo Arruda. Aspectos do mandado de segurança coletivo à luz da lei 12.016/2009.
Disponível em: <http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/
art_srt_arquivo20100826170022.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2013.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Do mandado de segurança coletivo e suas características. In: ______. Da antecipação de tutela. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
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VELLOSO, Carlos Mario da Silva. As novas garantias constitucionais. São Paulo: RT, nº 644, 1978.
Notas
1. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança e ações constitucionais. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
2. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
4. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
5. No sentido de que cabe mandado de segurança coletivo para proteger direitos difusos, ainda na vigência da Lei 1.533/51, antes do advento da Lei 12.016/09, temos a doutrina de Nelson Nery Junior e Rosa Nery (Constituição Federal comentada e legislação constitucional. São Paulo: RT, 2006. p. 139; Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. p. 1034); Ada Pellegrini Grinover (GRINOVER, Ada Pellegrini. Mandado de segurança coletivo: legitimação e objeto. RePro 57/96, especialmente p. 100); José da Silva Pacheco (PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p 328-329); Carlos Mario da Silva Velloso (As novas garantias constitucionais. São Paulo: RT, 1978. n. 644, p. 11);e Marcelo Navarro Ribeiro Dantas (Mandado de segurança coletivo: legitimação ativa. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 122).
6. No sentido de que não cabe mandado de segurança coletivo para a veiculação de direitos difusos, temos, também na vigência da Lei 1.533/51, antes do advento da Lei 12.016/2009, a doutrina de Ovídio A. Baptista da Silva (SILVA, Ovídio Baptista da. Mandado de segurança: meio idôneo para a defesa de interesses difusos? RePro 60/131, p. 144); Ernane Fidélis dos Santos (Mandado de segurança coletivo: legitimação e interesse. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Mandados de segurança e de injunção. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 132); Athos Gusmão Carneiro (Do mandado de segurança coletivo e suas características. In: ______. Da antecipação de tutela. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 161).
7. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
8. ALVIM, Eduardo Arruda. Aspectos do mandado de segurança coletivo à luz da Lei 12.016/2009. Disponível em: <http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/
art_srt_arquivo20100826170022.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2013.
9. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
10. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
11. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
12. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.
13. DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil. v. 4. 8. ed. Salvador: Jus Podivm, 2013.
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