Direito Previdenciário e evolução social: o caso do segurado especial na Lei nº 11.718/2008 e a necessária adaptação das posturas administrativa e judicial(1)

Autora: Aline Lazzaron Tedesco

Juíza Federal Substituta, especialista em Direito Público

publicado em 28.06.2013



O Direito Previdenciário é uma das mais importantes ferramentas de que dispõe o Estado para consecução dos ideais de justiça social dispostos na Constituição Federal. Além da sua notável função distributiva de renda, a circunstância de ser destinado a amparar os indivíduos em momentos de grande vulnerabilidade, como morte, invalidez e velhice, faz dele um elemento sensível da estrutura social.

Não obstante individualmente as relações que se travam entre o Estado e os cidadãos no âmbito dessa matéria não envolvam elevados conteúdos econômicos, o Direito Previdenciário é uma das áreas que mais tem ensejado litígios e merecido vasta regulamentação, o que evidencia a grande resistência que se encontra na sua aplicação prática. Certamente, frente ao caráter largamente abrangente das prestações previdenciárias, a litigiosidade tem sido vista, pela parte resistente, em aspecto amplo, ou seja: todo o universo de incontáveis demandantes judiciais ou administrativos é visto como apenas um adversário potencialmente muito significativo.

A principal via que o Estado tem buscado para sustentar a sua prática inegavelmente restritiva tem sido a exigência de exaustiva comprovação dos requisitos por si instituídos como condição para acesso aos benefícios previdenciários. Ao buscar a obtenção do benefício a que tem direito, ainda em âmbito administrativo o cidadão se defronta com uma série de elementos que deve provar. E tal prova lhe é exigida de forma predominantemente documental, como se todos os aspectos de uma vida inteira de trabalho pudessem ser facilmente resumidos a folhas de papel ou formulários virtuais.

Todavia, os requisitos para obtenção da maior parte dos benefícios previdenciários estão afetos a situações eminentemente práticas, e não formais. Fatos como o trabalho e suas condições, a dependência econômica e o comprometimento da saúde não são usualmente pré-documentados na vida cotidiana, de modo que não se deve estranhar o alto índice de indeferimento de benefícios que se verifica no âmbito administrativo, principalmente em se tratando de situações em que a informalidade é inerente à própria atividade, tal como é o caso da agricultura.

Assim, igualmente, não seria de causar espanto a constatação de que uma grande parcela dos litígios previdenciários administrativos e judiciais diga respeito à comprovação do efetivo exercício de trabalho rural. E note-se que, não obstante o desenvolvimento social das últimas décadas, tais demandas não têm reduzido, e sim, pelo contrário, proliferam-se cada vez em maior escala.

O trabalho rural, como elemento de relevante contribuição econômica, tem merecido especial destaque no cenário previdenciário. Trata-se de atividade econômica que serve de base para a economia nacional e que, por isso, ainda que não em nível ideal, goza de normatização específica, destinada a adequar as especificidades da sua realização à dinâmica social e dos mercados.

A proteção previdenciária do trabalhador rural tem aumentado no decorrer dos tempos, com grande evolução legislativa a respeito. Desde a sua instituição, em muito avançou, passando a abranger várias categorias de início desamparadas, tais como a do trabalho em regime de economia familiar, e, neste subgrupo, ampliou sua abrangência para todos os membros da família, em contraponto à antiga restrição ao arrimo.

Apesar dessa evolução legislativa, a postura administrativa do órgão gestor previdenciário não se tem mostrado igualmente ampliativa. Ao contrário, frente à maior demanda a que se viu submetido, o órgão previdenciário optou por tornar mais difícil o acesso aos benefícios em cada um dos pedidos que aprecia, buscando, talvez, um inconsciente equilíbrio de caixa, que, diga-se, é de todo infundado.

Devido a essa postura administrativa (restritiva) totalmente desencontrada da marcha legislativa (ampliativa), o que se viu foi a geração de uma enorme quantidade de demandas judiciais tendentes à revisão dos atos administrativos de indeferimento ou à revisão de atos de concessão de benefícios. E o Poder Judiciário, chamado a sanar esse descompasso, tem respaldado a crescente proteção previdenciária do trabalhador rural, produzindo vasto conteúdo jurisprudencial expansivo e facilitador do seu acesso, e até contribuindo para que o substrato normativo, posteriormente, avançasse ainda mais.

Essa contribuição ocorreu, certamente, porque o Direito, como fruto da evolução social, absorve as modificações evolutivas ocorridas no grupo social, de modo a tornar-se com ele compatível. Assim, são inúmeras as hipóteses em que, tal como na matéria de que ora se trata, pode-se ver a superveniência de uma norma escrita que é reflexo de determinada reiteração de jurisprudência.

A Lei nº 11.718/2008 é um exemplo disso. Na referida norma podem-se notar diversos pontos que, agora positivados, são o próprio eco da voz dos tribunais a respeito da matéria. Confrontando-se o texto dessa lei com as mais recorrentes decisões administrativas e judiciais que a precederam, claramente se vê que o legislador tencionou dirimir controvérsias havidas entre os entendimentos dessas duas searas, atinentes às questões que contemplou. Veja-se que até mesmo na sua exposição de motivos a norma sinaliza o intento de eliminar imprecisões terminológicas.

Os aspectos relativos à figura do segurado especial parecem ser o ponto em que o legislador mais concentrou sua vontade de proporcionar segurança jurídica ao editar o referido diploma. Bem compreensível o desiderato, frente à enorme litigiosidade que a matéria tem ensejado, nos termos do que se abordou anteriormente.

De início, vale destacar que foi banida a tese de que a caracterização do segurado especial está atrelada à agricultura de subsistência. Efetivamente, a Lei nº 11.718/2008 inaugura o conceito de empreendedor rural familiar: dentre outras medidas, admite expressamente a possibilidade de contratação de empregados, nas condições que estabelece, define critério objetivo relativo à extensão da propriedade e até desvincula a necessidade de residência em meio rural.

Na prática administrativa restritiva de concessão de benefícios de que anteriormente se tratou, era frequente a negativa de benefícios previdenciários a trabalhadores rurais sob o argumento de que não se enquadravam na categoria de segurado especial. A conotação que a administração atribuía à Lei de Benefícios, neste ponto, era de um cunho muito mais assistencial do que previdenciário. Assim, para lograr o enquadramento administrativo como segurado especial, além de superar a barreira antes já anunciada da robusta comprovação documental do trabalho rural, o cidadão deveria ostentar uma condição de quase miserabilidade. O entendimento administrativo era no sentido de que o trabalhador rural que dispunha de melhores condições financeiras, tais como uma maior extensão de terras e utilização de maquinário, deveria ser enquadrado como contribuinte individual e, portanto, proceder ao recolhimento de contribuições.

A lei ora em comento promove um grande esclarecimento a esse respeito, tornando manifesto o desacerto daquele entendimento. Nos termos do que o Poder Judiciário já vinha majoritariamente manifestando, restou evidenciada a intenção de reconhecer, na figura do segurado especial, também a de um agente econômico relevante que, na medida em que detiver maiores capacidades produtivas, igualmente irá contribuir em mais larga escala para a previdência. Rompe-se, portanto, com qualquer contaminação assistencialista no conceito dessa categoria de segurado que, por meio de sua produção, sempre foi contribuinte, o que por si só afastaria prontamente aquela compreensão.

É de se reconhecer que a mesma lei, no ponto em que previu um critério objetivo de extensão territorial para enquadramento deste tipo de segurado, mostrou-se um tanto paradoxal. Certamente movido pelo intuito de dirimir o maior número de divergências possível a respeito, o legislador optou pela fixação expressa de uma extensão máxima de terras para caracterização do segurado especial, descuidando do fato de que tal previsão daria origem a inúmeras outras controvérsias. É previsível que a administração, em sua insistente prática restritiva, venha a se utilizar desse critério objetivo de forma absoluta para, de plano, indeferir quaisquer pedidos de benefício nas hipóteses em que a extensão territorial explorada seja superior à máxima fixada.

Consequentemente, incumbirá ao Judiciário dar vazão à torrente de demandas em que os segurados, fundados nas mais diversas razões, pretendam demonstrar a necessidade de relativização da norma frente ao caso concreto, como seria, exemplificativamente, a hipótese da existência de uma área que, superior ao critério objetivo, tenha em grande extensão reservas legais não utilizáveis economicamente. Como se pode ver, até mesmo uma lei destinada a exterminar conflitos, por si mesma, traz em seu bojo a semente de outros novos.

Outra grande contribuição da Lei nº 11.718/2008 foi a disciplina relativa à utilização de empregados. Se, anteriormente, pela falta de qualquer normatização a respeito, a mera referência de testemunhas a respeito da existência de terceiros trabalhando na propriedade do segurado já era suficiente para o pronto indeferimento administrativo de benefícios, atualmente há que se perquirir e investigar as condições desse trabalho. A menção a empregados não mais pode ser vista como termo proibido nos pedidos formulados por segurado especial.

Trata-se, em verdade, de mais uma forma de promover a inclusão do trabalhador rural mais produtivo na figura do segurado especial. A admissão de propriedades maiores, é certo, torna necessária a não objeção a fatores de potencialização da produtividade, tais como a utilização da mecanização necessária para sua total exploração e de mão de obra em maior quantidade do que a própria família pode fornecer, em alguns casos. Assim, apercebido de que o aumento da produtividade do segurado especial é em muito salutar para a previdência, o legislador passou a expressamente admitir a contratação de empregados, dentro das condições previstas no art. 11, § 7º, da Lei de Benefícios.

Muito importante, também, é o enquadramento que a lei propicia aos segurados especiais na hipótese de desenvolvimento de atividades não tipicamente rurais nas propriedades agrícolas. Se alguns dos membros da família se dedicarem a atividades correlatas àquela primordialmente explorada pelo grupo, tais como o turismo rural e a manufatura ou artesanato de artigos ligados à produção, a determinação legal é de que não se afastará o enquadramento na categoria.

Inúmeras demandas tiveram origem na resistência do órgão previdenciário em reconhecer a qualidade de segurado especial em situações em que o grupo familiar, além de cultivar produtos agrícolas, realizava o necessário beneficiamento de alguns itens que o exigem. O Poder Judiciário reiteradamente foi chamado a suprir a inconsistência de tais atos, afirmando que tal atividade não passava de mera complementação do cultivo agrícola. Agora, legalmente determinado tal reconhecimento, espera-se que cesse a recalcitrância no ponto.

Além disso, a autorização legal para que sejam tratadas da mesma forma as situações de produção de artesanato e de exploração do turismo rural, desde que subsumidas a patamares máximos ali previstos, de modo a não tornar a agricultura secundária, parece ser a maior evidência da intenção legislativa de tornar multifacetado o segurado especial, em contraponto à figura estanque e pouco flexível que até então se conhecia.

Outra inestimável contribuição para a pacificação dos conflitos previdenciários afetos à condição de segurado especial é a novel autorização legal para seu reconhecimento nas hipóteses em que algum dos membros do grupo familiar exerça outro tipo de atividade remunerada. O entendimento jurisprudencial sempre contemplou as hipóteses em que isso ocorria, desde que a renda advinda da atividade diversa de um dos membros não tornasse a atividade agrícola dispensável para a subsistência. A partir da Lei nº 11.718/2008, a previdência deverá reconhecer a qualidade de segurado especial dos demais membros do grupo familiar que exerçam a atividade agrícola, apenas ficando a descoberto dessa proteção o próprio indivíduo que tenha atividade econômica diversa.

No momento socioeconômico em que se encontra o país, a modificação ora abordada se revela de suma importância, tendo em vista a grande abrangência dos programas sociais instituídos pelas políticas públicas mais recentes. São muito frequentes os casos em que o grupo familiar é assistido por programas oficiais de assistência social, auferindo renda fixa, ou, até mesmo, em que algum dos membros do grupo familiar seja titular de benefício assistencial ou previdenciário. Não obstante ter o Poder Judiciário sempre se ocupado de analisar cada caso concreto como forma de verificar se a renda estranha poderia ser apta a tornar secundária a agricultura, essa circunstância foi ensejadora de recorrentes indeferimentos administrativos, sob o argumento de que a atividade agrícola deveria ser a única fonte de renda do grupo.

Na mesma linha, importante previsão é a que garante o enquadramento do segurado especial ainda nos casos em que a família obtenha renda, além de com a exploração da atividade agrícola, com a cessão de propriedade para exploração por terceiros, em regime de parceria. Trata-se de aspecto que era gerador de fundadas discussões, agora sem mais razões de se travar.

Por fim, é obrigatória a menção à medida profilática que o texto legal em questão traz em seu corpo: a instituição do sistema de registro da atividade do segurado especial no Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS. Com essa medida, certamente, a lei logrou prevenir tantos conflitos quantos aqueles que buscou dirimir com as disposições anteriormente abordadas. É louvável a medida, que, além de proporcionar a segurança jurídica, se coaduna com o novo enfoque que a norma pretendeu garantir ao segurado especial, que é o de relevante agente econômico e, como tal, importante financiador do sistema securitário e digno da mesma estrutura formal oferecida às demais categorias de segurados.

A conclusão que se pode extrair da análise da Lei nº 11.718/2008 é que o legislador buscou sinalizar o norte a ser seguido pelos agentes previdenciários, de compreensão de uma previdência social mais ampliativa e adequada ao atual estágio de desenvolvimento socioeconômico nacional. Maior abrangência de segurados não pode ser vista apenas como maior dispêndio em benefícios, tal como o faz a administração. Previdência ampliada significa, na mesma proporção, previdência social mais forte, decorrente da correspondente expansão da base de custeio.

No entanto, ainda que se promovam alterações normativas tais como a que ora se abordou, a resolução da litigiosidade previdenciária não ocorrerá senão por meio de uma mudança da postura do órgão gestor da previdência. Não se pode mais sustentar a atual atitude explicitamente restritiva que objetiva deixar de atender àqueles segurados que, por desorientação, se conformam frente aos desacertos administrativos como forma de reduzir um falacioso déficit. E, ainda que de falacioso não se tratasse, veja-se que é inadmissível a correção de um desajuste à custa do sacrifício de direitos legalmente assegurados.

Outra motivação para tal inadmissível postura é a assunção beneplácita pelo Poder Judiciário do encargo de verificação do real atendimento dos requisitos para os benefícios indeferidos de plano. Trata-se de uma manobra comodista e autogarantista do agente público que não encontra qualquer empecilho ou ônus, senão os prejuízos verificados pelo próprio segurado. O agente público, ao não verificar a exaustão de provas ou o perfeito enquadramento do fato à norma autorizadora, certamente irá desincumbir-se da responsabilidade pelo ato de concessão, optando pela negativa, transferindo tal ônus para o Poder Judiciário. E o Judiciário, maneando-se com a literalidade do princípio da inafastabilidade da jurisdição, só faz fomentar essa prática.

Muito mais grave é a percepção de que o indevido indeferimento de benefícios pode vir a gerar um ágio previdenciário em favor da administração, nas hipóteses de conciliação judicial. Desde a efetiva operação dos Juizados Especiais Federais, tem-se estimulado a política conciliatória em demandas judiciais dessa natureza, e muito ainda se tem a avançar em tal prática. Contudo, a partir de sua realização em larga escala, passou-se a perceber que os acordos têm se resumido à renúncia, por parte do segurado, de um percentual dos valores que lhe são devidos, em troca da abreviação do tempo necessário para recebimento por via judicial ao final do processo. Trata-se de investimento muito rentável à administração e de problemática que merece estudos muito aprofundados para sua superação.

Finalizando, não se pode deixar de reconhecer que o Poder Judiciário, não obstante busque bravamente a correção dos equívocos perpetrados pela administração, tem parcela de culpa na postura restritiva da administração previdenciária. Ao ser complacente com a transferência das funções da administração para si, não contribui com a proteção dos direitos dos segurados, embora seja esse o seu intento. Ao Judiciário incumbe a busca de novas formas de coagir a administração a realizar acertadamente a sua função sem que para tanto seja necessário o reexame de seus atos caso a caso, tais como a via das ações coletivas, exemplificativamente.

O legislativo já indicou o caminho com as mais recentes reformas. Resta saber se o Executivo e o Judiciário bem o compreenderão.

Nota

1. Trabalho de conclusão do Curso Currículo Permanente – Módulo III – Direito Previdenciário 2011. Modalidade: Comentário Crítico, conforme previsão do item “VI -2” do Edital de Inscrição de 02.03.2011.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2013. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS