Resumo
Enfrenta-se no presente ensaio a questão da publicação nominal, via Internet, dos salários dos servidores públicos. Tendo-se estabelecido indeterminação sobre a norma que se deve extrair dos princípios aparentemente conflitantes (vida privada e publicidade ou transparência), intenta-se demonstrar que a solução mais adequada pode ser alcançada pela Hermenêutica Filosófica de Gadamer, acoplada à Teoria da Integridade e Coerência dos Princípios de Dworkin, sem recursividade à ponderação, tal com sustentada pelas Teorias dos Princípios e da Colisão e da Argumentação de Robert Alexy.
Palavras-chave: Princípios constitucionais. Direitos fundamentais. Vida privada. Proporcionalidade. Teoria da Colisão. Hermenêutica.
Abstract
This essay has the purpose to face the subject related to the nominal publication of the civil servant’s salaries on the web. As there has not been evolved a direction to the rule on which must be taken out the apparent conflicting principles (private and public life or transparency), it is intended to demonstrate that the most adequated solution can be reach through the Philosophical Hermeneutics of Gadamer combined to the Theory of the Integrity and Coherence of Principles of Dworkin without appeal to the deliberation as it is supported by The Theory of the Principles and the argumentation of Robert Alexy.
Keywords:Constitutional principles. Fundamental rights. Private life. Proportionality. Collision Theory. Hermeneutics.
Introdução
O objeto da presente investigação é analisar a questão referente à divulgação nominal, via Internet, dos salários dos servidores públicos, temática essa que acabou ganhando novos contornos não apenas a partir da edição da assim chamada Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011), mas, especialmente, tendo em conta tanto o Decreto nº 7.724/2012,(1) que regulamentou, no âmbito do Poder Executivo Federal, justamente a Lei nº 12.527/2011, quanto a Resolução nº 151/2012, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, que logrou alterar a redação do inciso VI do art. 3º da Resolução nº 102/2009,(2) do mesmo órgão.
Não é objetivo deste breve escorço encaminhar um estudo sobre a intimidade e a privacidade, do ponto de vista ético e moral, suposta a juridicização de tais conceitos pela via principiológica constitucional. Sequer cuida esta empresa da distinção entre ambos, senão que para, sucintamente, pontificar serem institutos imbricados. A privacidade está diretamente ligada à intimidade. Todo íntimo está dentro da privacidade, no entanto, nem todo privado é íntimo. O enfoque é dirigido à ideia de privacidade das pessoas públicas, que, em razão de seus cargos, abrem mão de parcela considerável de sua privacidade, a qual passa a ser necessariamente controlável pelo Estado (em nome da sociedade), até o ponto em que não haja aniquilação do próprio direito, é dizer, sempre preservado o seu núcleo fundamental, porque é um erro afirmar que agentes públicos não têm vida privada.
A confusão entre as noções de esfera privada e esfera pública atravessou a era moderna e ingressa na pós-modernidade (ou modernidade tardia) sem indícios de superação. Não chega sequer perto de um discurso harmonizador, uma dialeticidade compreensiva de seus sentidos, baldados os esforços de autores como Hannah Arendt (2010) e Habermas (1984). Os homens se tornaram privados, isto é, privados de ver e de ouvir os outros e privados de serem vistos e ouvidos por eles. No dizer de H. Arendt (2010, p. 71), “são todos prisioneiros da subjetividade, de sua própria existência singular, que continua a ser singular ainda mesmo que a experiência seja multiplicada inúmeras vezes”. Mas o domínio público é fundamental à nossa existência. H. Arendt, no seu A condição humana, explica que
“o nosso senso de realidade depende totalmente da aparência e, portanto, da existência de um domínio público no qual as coisas possam emergir da treva de uma existência resguardada. Até a meia-luz que ilumina nossas vidas privadas e íntimas deriva, em última análise, da luz muito mais intensa do domínio público.”
Adverte H. Arendt (2010, p. 63): “há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e radiante da constante presença de outros na cena pública; nesta, só pode ser tolerado o que é considerado relevante, digno de ser visto e ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado”.
De caso pensado, a sociedade contemporânea, neste trânsito para a pós-modernidade ou modernidade tardia, defronta-se com os riscos, perigos, medos, ansiedades e aflições, que se traduzem em incertezas nas decisões sobre o futuro. Aceita e demanda ser vigiada dia e noite e com isso torna o privado público. Prefere, em nome de uma utópica segurança, aplacar o
seu fear of crime restringindo a sua própria liberdade, permite e aplaude a devassa da sua intimidade, abdica da vida privada. Abriga-se em verdadeiros bunkers sociais: ama o privado e odeia o público. Explico: ora queremos ser vigiados e aceitamos de bom grado que toda a nossa vida seja publicizada, ora fugimos para o convívio privado e nos encerramos, junto com os nossos iguais, em comunidades homogêneas, de certa forma privatizando nosso cotidiano. Eis o paradoxo comportamental do homem deste limiar de milênio. Esta é a área de regulamentação ou campo de referência do direito fundamental à vida privada.
Ao esforço epistemológico proposto, a estrutura discursivo-argumentativa empregada direciona-se a investigar, a partir da definição do conteúdo material e normativo dos direitos fundamentais vida privada (intimidade) e publicidade (informação) em relação dialética, caminhos para a práxis decisória dos tribunais solver eventuais indeterminabilidades.
Formulamos alguns questionamentos. Situando criticamente a discussão na teoria dos direitos fundamentais, que distingue princípios e regras qualitativamente (Robert Alexy), a solução pelo critério de ponderação é adequada ao paradigma constitucional democrático? Qual o papel e quais as estruturas de conhecimento utilizadas pela hermenêutica filosófica na construção da compreensão judicial, que se equipara à decisão adequada? Qual, então, a importância dos princípios na solução das indeterminabilidades do direito, sob a pena de Dworkin?
Em resumo: intentamos demonstrar que, na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais, havendo indeterminação, deve ela ser resolvida pela busca do sentido dos textos principiológicos respectivos na situação hermenêutica da faticidade do ser-aí e sem riscos à coerência e à integridade do sistema do direito, objetivo que a recursividade à ponderação, típica dos modelos críticos e dogmáticos limitados pela tentativa de encontrar um modo procedimental de compreensão, não consegue alcançar sem voltar à matriz positivista idealista das inferências lógico-dedutivas (suficiência ôntica das regras) ou abrir espaço para as condições subjetivas privilegiadas do sujeito (assujeitador do objeto conforme a sua consciência).
1 Direitos fundamentais: indeterminações, limitações e incompatibilidades
A fatispecie revela, ao menos em perspectiva, uma incompatibilidade entre os exercícios do direito/princípio da vida privada e do princípio/bem da publicidade (transparência) dos atos da Administração: uma incompatibilidade no plano concreto. Um direito é conferido, mas outro é esgrimido no sentido de obstar o exercício do primeiro, residindo a incompatibilidade na tentativa de obstrução do exercício amplo do direito fundamental reconhecido, na hipótese, uma pretensão estatal de limitar o âmbito operativo do direito fundamental à vida privada a partir da publicação na rede mundial de computadores da relação nominal da remuneração dos servidores públicos do Poder Judiciário. Nisso reside a concretude. De rigor, as incompatibilidades abstratas entre direitos fundamentais são raras. No mais das vezes, elas sucedem diante da aplicação da norma ao caso concreto pelo “fechamento” de suas condições de aplicabilidade.(3)
A Constituição, ao reconhecer o direito fundamental à vida privada, no que concerne à área de proteção, não o restringiu, deixando de fazer qualquer referência a limites, como sói ocorrer nos casos em que o faz expressamente empregando os vocábulos “salvo se”, “a não ser que”, “sendo vedado”. De igual feitio, no que concerne à reserva legal, a redação do inciso X do art. 5° da Constituição não a instituiu (seja plena, seja limitada); não disse “nos termos da lei” nem “na forma da lei”. Seria o exercício do direito pleno e absoluto, e, por conseguinte, não haveria conflito abstrato? Parece que não. Isso seria inclusive perigoso. Explicamos: existe um conjunto de restrições imanentes ou implícitas à própria sistemática constitucional. Tais restrições, embora não expressamente previstas na norma definidora do direito fundamental, são hauridas do princípio da unidade da Constituição, como condição de harmonização e concordância prática entre os diversos direitos fundamentais e princípios jurídicos contemplados na Lei Fundamental. Sucede que a solução para o impasse da ausência de reserva legal pode levar ao solipsismo pelo uso da técnica da ponderação. Na prática, as incompatibilidades ou polarizações ocorrem e o Judiciário precisa resolvê-las.(4)
Para este mister, as teorias do direito apontam vários caminhos. Dentro das duas grandes vertentes, teorias normativas e teorias descritivas,(5) é possível aqui trilhar caminhos do normativismo (Ferrajoli), da hermenêutica filosófica (H. Gadamer), do realismo sociológico (Alf Ross), do funcionalismo construtivista (N. Luhmann) e das teorias críticas (Habermas e Alexy), de conseguinte lançar mão de quatro ou mais tipos discursivos, todos apresentando mecanismos didaticamente relevantes para a solução do problema. Todas as teorias têm lá suas aporias e mesmo falácias, como chegou a afirmar Ferrajoli (2003, p. 93-103), mas não vem a pelo dessas tratar agora. Vamos aqui verter nossas aproximações no sentido de tentar mostrar a possibilidade de chegar-se à solução adequada sob os auspícios do princípio da proporcionalidade filosófica, que não passa pela técnica ponderativa proposta por Alexy e largamente adotada no Brasil, tal como ocorreu no caso posto.
2 A teoria dos princípios e das colisões em Alexy: crítica à ponderação que conduz ao solipsismo
Robert Alexy, em sua conhecida obra Teoria dos Direitos Fundamentais, abandonando os critérios que denomina de “tradicionais”, para distinguir princípios e regras, refere que se trata de uma diferença qualitativa, o mesmo é dizer, enquanto os princípios “ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”, o que conduz à inexorável conclusão de serem “mandados de otimização” (Alexy, 2008, p. 90), as regras “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas”, muito embora o próprio autor admita que, no caso de conflito (a antinomia só existe entre regras, já que os princípios colidem), é possível a introdução de uma cláusula de exceção.
Em síntese, para Alexy (2008, p. 93-94), enquanto as regras ordenam algo definitivamente e estão situadas apenas no plano da validade (em outras palavras: as regras estão sujeitas a um modelo de conhecimento por subsunção), os princípios encontram-se na dimensão do peso e, nos casos de colisão, aquele que possuir maior força no caso concreto deve prevalecer, cuidando-se, a toda evidência, de direitos e deveres prima facie, que poderão revelar-se menos amplos após o sopesamento axiológico com princípios colidentes.(6)
Há mais: pela própria estrutura dos princípios como mandamentos de otimização, eles devem ser realizados na maior medida do possível, sempre, convém lembrar, observando não só as máximas da necessidade e da adequação (possibilidades fáticas), mas também a proporcionalidade em sentido estrito (possibilidades jurídicas). Robert Alexy explica que a lei da ponderação obedece a três fases. “Na primeira fase deve ser determinada a intensidade da intervenção. Na segunda fase se trata, então, da importância das razões que justificam a intervenção. Somente na terceira fase sucede a ponderação no sentido estrito e próprio” (Alexy, 1999, p. 278).
Assim constituída, a racionalidade da ponderação é largamente acolhida na doutrina estrangeira: Carlos Bernal Pulido (2007, p. 164 ss.), Manoel Atienza (2002) e Karl Larenz (1989, p. 491). No Brasil, conferir Ana Paula de Barcellos (2005), Humberto Ávila (2011), Luis Roberto Barroso (2004) e Daniel Sarmento (2000).
Nada obstante, conquanto dita teoria também desponte como a mais adotada na práxis forense, máxime do STF,(7) tem sido alvo de críticas. Por exemplo, as dirigidas por Habermas (baseado em Günther), que o próprio Alexy tentou rebater no posfácio à sua teoria. Mais recentemente, as referências trazidas, v.g., por Bodo Pieroth e Bernhard Schlink.(8) Entre nós, por todos, refiro as refutações de Lenio Streck,(9) Dimitri Dimoulis,(10) André R. Tavares(11) e Leonardo Martins.(12)
Habermas (2007), expoente máximo das teorias discursivas, sustenta que a ideia de ponderação, à míngua de um critério racionalmente verificável, corrói a estrutura deôntica (do dever ser) dos direitos fundamentais, remetendo o problema da colisão a um sentido meramente teleológico (finalidade valorativa). Esgrime com o modelo de discurso de aplicação idealizado por Klaus Günther, que, distinguido do discurso de justificação da norma (universal e abstrato), aponta a norma mais adequada ao caso concreto a partir de suas contingências (situação de aplicação), as quais, a partir da imparcialidade e da coerência, poderão afastar a incidência de uma norma válida.
Para Habermas, as decisões jurídicas fundamentadas pelo discurso não podem ser “corretas” no mesmo sentido que juízos morais válidos. Por isso, diz que “a harmonia entre direito e moral, defendida por Alexy, tem uma desagradável consequência: ela não somente relativiza a correção de uma decisão jurídica, mas a coloca em questão enquanto tal”. Pretensões de validade, assevera, são codificadas de modo binário (lícito/ilícito), não permitindo um mais ou menos (Habermas, 2007, p. 289).
A sua mais relevante contribuição quiçá resida no equacionamento da questão direito/moral/política, afastando a ideia de que a moral possa corrigir o direito (a partir de uma relação de subordinação e hierarquia entre ambos) para reconhecer uma relação de complementaridade recíproca entre moral racional e direito positivo (Habermas, 2007, p. 139). É dizer: embora distintos, moral e direito surgem lado a lado, complementando-se. Aproveita Habermas, para chegar a uma unidade operativa, justamente as diferenças entre os dois, tais como o sentido deontológico (dever-ser) das regras de direito em contraposição ao sentido teleológico das regras de moral; o código binário de validade (lícito/ilícito) das regras de direito em contraposição ao código gradualvalorativo passível de sopesamento entre si (mais ou menos) das regras de moral; a obrigatoriedade universal das regras de direito em contraposição à obrigatoriedade relativa das regras de moral; e a coerência que se exige das regras de direito como partes harmônicas do sistema jurídico, na medida em que sua validade é atestada no mesmo círculo de destinatários, em contraposição à concorrência entre si, em um processo de reconhecimento intersubjetivo, das normas de moral, insertas em um sistema flexível, repleto de tensões e de possibilidades (Habermas, 2007, p. 316-7). É definitivo ao assentar o caráter de coercitibilidade das regras de direito em contraposição ao caráter simbólico das regras de moral, obtemperando que “não se pode interpretar direitos fundamentais que aparecem na figura positiva de normas constitucionais como simples cópias de direitos morais” (Habermas, 2007, p. 141).
Em Habermas, na boa síntese de Cattoni e Andrade (2008, p. 6096-7),
“o direito surge como complemento da moral, pois, enquanto sistema de saber e sistema de ação, ele se estabelece nos níveis da cultura e da sociedade, e é responsável por conectar as decisões tomadas nos processos argumentativos com a institucionalização dessas decisões para torná-las eficazes para a ação. O direito apresenta-se, então, como um complemento funcional dessa moral, pois esta pode recorrer ao direito para promover integração social. A moral pós-convencional não é capaz de lidar com problemas altamente complexos relativos à integração social e, assim, transpor suas normas da argumentação para a ação, porque possui deficiências (a) cognitivas, (b) motivacionais e (c) operacionais.”
Habermas e Günther concluem que tratar princípios como valores coloca em risco a normatividade jurídica do direito e seu caráter deontológico universal (a coercitibilidade do dever-ser), na medida em que introjeta variáveis aleatórias, suprimindo da práxis decisória a racionalidade que permite o controle da argumentação. Os valores morais estão institucionalizados nos princípios (que têm conteúdo axiológico). É dizer, “domesticados” pela coerência sistêmica, eles adquirem juridicidade. Como tal, a despeito do nível de abstração que contenham em sua linguagem, não deixam de ser regras jurídicas,(13) que, cotejadas no caso posto, irão compor a racionalidade da decisão correta (Dworkin), sem equilibrismos, sopesamentos ou ponderações.
Habermas, ao que vemos, ao acolher a dicotomia discursiva de Günther (discurso de justificação e discurso de aplicação), não consegue superar a racionalidade metafísica de matriz kantiana que impregnou a modernidade, limitando a compreensão do fenômeno jurídico a uma relação sujeito-objeto (sujeito cognoscente e objeto conhecido) e separando os momentos interpretativo e aplicativo da norma. Estamos convencidos que interpretar, compreender e aplicar constituem momento único e incindível na hermenêutica da práxis decisória.(14)
3 A ontologia hermenêutica filosófica: superando o pós-positivismo na resposta às indeterminações do direito
O novo paradigma de direito instituído pelo Estado Democrático de Direito, incompatível com a matriz positivista, superou a ideia do direito como sistema de regras e a racionalidade linear causa e efeito, trazendo a lume a hermenêutica principiológica de matriz constitucional (neoconstitucionalismo), ou seja, introduzindo no discurso constitucional os princípios, cujo papel é, no dizer de Lenio Streck, representar a efetiva possibilidade de resgate do mundo prático (faticidade) até então negado pelo positivismo, desde Hans Kelsen até Hart.(15)
O reconhecimento dos princípios como normativos, para além da ampliação do âmbito de atuação dos tribunais, resolve o dilema metafísico da modernidade decorrente da desvinculação (tricotomia) direito, moral e política, possibilitando que possam interagir comunicativamente, sem prejuízo de suas identidades, ao mesmo tempo provendo o direito da inspiração política e moral e estas da dimensão normativa suposta ao senso de coercitibilidade.
Com isso (a positivação dos valores na forma de princípios), remanesceu o desafio de solucionar o problema da escassa efetividade dos direitos fundamentais inscritos nas Cartas programáticas do pós-guerra. Aos juízes cumpriu o desafio de reabilitar a instância política, embora desta devesse apenas ser o garante. A pergunta que se intenta responder é: como pode o Judiciário satisfazer discursivamente à demanda do Estado Democrático de Direito, exorcizando de uma vez por todas o direito de qualquer fundamento metafísico, sem incorrer no pecado do solipsismo interpretativo (provocado pelo positivismo)?
Sabe-se que a nova matriz epistemológica do direito implica verdadeira revolução paradigmática, invertendo a estrutura lógico-dedutiva de subsunção dos fatos ao direito. O movimento interpretativo do direito deixa de ser centrípeto e passa a ser centrífugo – desloca-se da decisão judicial para a Constituição, e não desta para a decisão judicial. Rompe-se o paradigma da subsunção formal, substituído pela ideia de convergência aos princípios constitucionais, tecida a partir da complexidade social.
A libertação do direito de qualquer fundamento metafísico deslocou o problema dessa fundamentação (legitimidade) para o campo hermenêutico, e uma hipótese é o reconhecimento de um novo paradigma compreensivo-interpretativo do direito que oferece a hermenêutica filosófica, sobretudo quando se valora a pré-compreensão, no que desloca a compreensão/interpretação para o modo-de-ser e a faticidade, provendo a práxis decisória de condições hermenêuticas para a efetiva solução dos problemas sociais.
Não há espaço para uma incursão sobre a hermenêutica filosófica a modo de explicá-la em sua essência e detalhamento, por isso remetemos os interessados à obra de Hans-Georg Gadamer, que constitui uma revolução paradigmática na hermenêutica do século XX a partir dos postulados da nova deontologia hermenêutica,(16) e, no Brasil, à obra de Lenio Streck,(17) que traz ao debate posições críticas sobre a teoria do direito e da argumentação, fincando os alicerces de sua crítica hermenêutica do direito na matriz hermenêutica filosófica, a qual se apoia na existencialidade/historicidade como condição de ser-no-mundo.
Escapar do círculo fechado das pré-compreensões, das aparências superficiais, dos conceitos prévios ou preconceitos é o dilema filosófico que Heidegger procurou solver. A tarefa primeira, permanente e final da interpretação é não receber de antemão, por meio de uma feliz ideia ou de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa ela mesma.
Toda interpretação correta tem que se proteger contra a arbitrariedade da ocorrência de felizes ideias e a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e o pressuposto para escapar desses preconceitos impõe ao ser-aí orientar-se à coisa ela mesma. Esse deixar-se determinar pela própria coisa não é uma tarefa hercúlea tomada de uma vez por todas, sim que, verdadeiramente, a tarefa primeira, constante e última. As compreensões e os sentidos vão sendo aperfeiçoados (abandonados, revistos e recriados) quando o agente do conhecimento penetra de corpo e alma no sentido da coisa a ser conhecida, livra-se dos preconceitos até que encontre uma unidade de sentido. É esse constante reprojetar que constitui o chamado círculo hermenêutico de Heidegger.
Pois bem. Gadamer recupera esse círculo hermenêutico com o objetivo de manter um constante interpretar até que os conceitos prévios, por meio do entendimento dos fundamentos linguísticos, sejam substituídos por outros, novos e mais próximos de uma verdade – esta, segundo incansavelmente sustenta, inatingível. Não propõe um método para se alcançar o verdadeiro ser das coisas; pelo contrário, entende que a busca de uma verdade universalmente válida constitui uma ameaça à realidade da compreensão, direcionando-a para um ideal de conhecimento que ela jamais concretiza. Assim, o seu apelo não passa pela definição de um método predefinido, senão que por uma avaliação prudente e cuidadosa do caso concreto a partir de estruturas existentes anteriormente a qualquer método, pois que são ínsitas à própria essência da compreensão e do conhecimento.(18) A ideia básica gadameriana, contraposta ao dogmatismo objetificante fundado em uma racionalidade linear de causa e efeito, é permitir que o novo venha a lume pela mediação do antigo por meio de um processo de comunicação cuja estrutura é composta por operações discursivas, dialógicas e linguísticas.
Gadamer, tomando a linguagem como condição de possibilidade da compreensão, dedica-se ao esclarecimento do que considera o fundamento das ciências: sua participação na forma mais geral de relação do homem com o mundo e a temporalidade – em suma, o seu próprio modo de existência.(19) Essa relação, repita-se, constituída pela linguagem, antes de se dar na forma de um sujeito contraposto a um objeto, caracteriza-se por uma ontologia hermenêutica. Lenio (2011, p. 279) explica:
“Fundamentalmente é preciso compreender que, nesse giro ontológico-linguístico, o ser não é um ente. Portanto, simplificadamente, é possível afirmar que, quando se fala ‘da norma que exsurge do texto’, não se está a falar em processo hermenêutico-interpretativo realizado por partes (repetindo, assim, a hermenêutica clássica – primeiro conheço, depois interpreto, por fim, aplico). É evidente que não. Eu não vislumbro primeiramente o texto para depois ‘acoplar’ a respectiva norma. A ‘norma’ não é uma ‘capa de sentido’, que existiria apartada do texto. Ao contrário disto, quando me deparo com o texto, ele já exsurge normado, a partir de minha condição de ser-no-mundo. Essa operação ocorre graças à diferença ontológica. É ela que faz a diferença. Por isso, repito, é impossível negar a tradição, a facticidade e a historicidade, em que a fusão de horizontes é a condição de possibilidade dessa ‘normação’.”
O significado de um texto, na perspectiva gadameriana, resulta de uma experiência dialógica que ocorre quando o horizonte de significados e suposições históricas do intérprete se funde com o horizonte dentro do qual o próprio texto está localizado, chegando-se a uma compreensão do texto inserta na compreensão do intérprete. Isso quer dizer que, no redespertar do sentido do texto, já se encontram sempre implicados os pensamentos próprios do intérprete, de modo que o próprio horizonte do intérprete é determinante na compreensão do texto. Compreender é, pois, um processo dialógico em que o intérprete se inclui e no qual ocorre essa fusão de horizontes, sendo esse compreender e interpretar um processo produtivo.(20)
Este suporte filosófico autoriza afirmar que a resposta acerca do sentido do texto depende da faticidade, uma vez que não existem conceitos sem coisas. No dizer de Lenio Streck (2011, p. 306-7), a diferença ontológica permite superar o dualismo metafísico texto e norma.
“Como o texto não ‘carrega’ o seu próprio sentido – sendo a norma o produto da atribuição do sentido ao texto –, deixa de existir (de forma stricto sensu) julgamento ‘de-acordo-com-a-lei’ ou ‘em-desacordo-com-a-lei’. A lei (uma vez apreendida enquanto realidade, é dizer, simbolicamente estruturada) nunca é ‘em-si-mesma’, nunca é ‘ela mesma’, porque somente se apresenta/aparece para nós mediante uma simbolização (pela linguagem). A norma é sempre o resultado da interpretação do texto. O texto não subsiste separadamente da norma (não confundir a equiparação entre texto e norma com a necessária diferença entre eles, que é ontológica). Nunca se sabe o que pode acontecer com a realidade até o momento em que se reduziu definitivamente a inscrever-se em uma linguagem. Para a hermenêutica aqui trabalhada, o conteúdo de um texto jurídico (que somente passa a existir na applicatio) está na literalidade e além dela (e, também, nos silêncios produzidos pelo texto).”
Esse nos parece ser o mapa do caminho para a solução do problema da indeterminação do direito, sobretudo desde a entificação dos sentidos jurídicos decorrente da dogmatização, abismo epistemológico que impede a efetividade dos Direitos Fundamentais reconhecidos pela Constituição.
4 Princípios como horizonte de sentidos harmonizador dos direitos fundamentais polarizados: alcançando a resposta correta (Dworkin)
Dentre as funções dos princípios, vamos encontrar a de reconhecer os direitos fundamentais, assegurando a sua concretude. Outra é a de agregar a moral ao direito, evitando que se fale em uma pretensão “corretiva” da moral sobre o direito. Ao contrário, o direito funciona como um complemento da moral racional, que institucionaliza os mandamentos morais, conferindo-lhes a eficácia necessária à ação. Mas a mais relevante talvez seja a de interdição dos relativismos interpretativos. Em outras palavras, a função de possibilitar o controle democrático das decisões judiciais, evitando as arbitrariedades judiciais.(21) O caráter imperativo dos princípios, como topos hermenêutico, decorre mesmo da sua natureza deontológica (e não apenas axiológica). Sua cogência dimana da força normativa da Constituição.
Ronald Dworkin considera os princípios mecanismos de fechamento do sistema, e não de abertura.(22) Justamente por essa propriedade fundamental, identifica-os, respondendo aos postulados positivistas contrapostos, como obrigatórios e vinculantes. Corolário desse atributo é a obrigatoriedade para o legislador e para o juiz, que devem levá-los em consideração (a sério!),inclusive para admitir que possam prescrever um resultado particular (segundo os positivistas, somente as regras ditam resultados) (Dworkin, 2011, p. 56-7). O caráter vinculante e obrigatório dos princípios reside na impossibilidade de o juiz, diante deles, fazendo uso de um discricionarismo– que não tem –, deixar de aplicá-los sob o pretexto de serem meramente programáticos e otimizadores.
Dworkin constrói sua teoria do direito a partir da noção de comunidade de princípios compartilhados: o direito pode ser compreendido como um conjunto de princípios que representam a moralidade política da comunidade. As decisões políticas e judiciais serão um palco de debates sobre quais princípios a comunidade endossa no seu sistema. Os princípios é que definem os ideais de justiça, de equidade e de devido processo legal, evitando que as decisões judiciais fiquem à mercê de posturas políticas e morais individuais do juiz ao decidir, de forma a abalar o paradigma democrático. É a criação do direito no caso concreto, de maneira coerente com uma tradição jurídica, que assume os princípios consagrados pelas normas constitucionais como o critério de validade do sistema, em que as decisões judiciais tomadas sobre os casos concretos devem se submeter a um dever de integridade e coerência (Dworkin, 2003, p. 254-5).
Diferentemente de Alexy, Dworkin concebe a normatividade do direito no nível da práxis interpretativa, e não em um sistema lógico adrede estabelecido e delimitado, encaminhando o conceito de norma para a pragmática e abandonando o campo semântico priorizado por Alexy. Assim, para Dworkin, os princípios são normativos na medida em que acontecem argumentativamente no interior da atividade interpretativa (Cf. Oliveira, 2008, p. 200).
Colocando isso na prática, temos dois cenários: de um lado, um suposto abalo ao princípio da vida privada, na medida em que a divulgação, via Internet, dos holerites nominalmente identificados, porque contêm, segundo a classificação posta, dados sensíveis, acaba por expor, sem o consentimento dos servidores, situação que apenas a eles diz respeito; de outro lado, a necessidade de transparência como interesse público que se expressa mediante a divulgação na rede mundial de computadores do conteúdo de tais informações, estando a publicidade e a transparência dos atos da Administração enunciada como princípio constitucional.
O que temos evidente é uma indeterminação do direito, que se reflete em termos de incompatibilidade entre dois princípios (ou dois grupos de princípios) polarizados: de um lado, a vida privada – expressão que abrange, embora em níveis diferentes e segundo a dicção de Ingo W. Sarlet (2012, p. 391), tanto a privacidade quanto a intimidade – e, de outro, a publicidade, contida no art. 37, caput, da Carta Republicana. Eis o ponto de estofo do problema que desafia a decisão judicial.
A empreitada direciona-se doravante ao objetivo de “abrir uma clareira” que permita desvelar, fugindo da dogmática, a congruência entre o caso posto e os princípios esgrimidos, contando com a mediação da tradição jurídico-democrática, é dizer, ao desafio hermenêutico da produção do sentido (conteúdo normativo) de tais textos diante da faticidade/existencialidade.
Quanto à tipologia, o direito fundamental à vida privada está situado na classe dos bens fundamentais personalíssimos de liberdade e de resistência (oposição), rigidamente imunizado contra a sua violação – como os órgãos do corpo humano, cuja integridade perfaz um todo –, com salvaguarda da pessoa e da sua dignidade (Ferrajoli, 2011, p. 57-8). A partir da evolução da relação entre as noções de público e de privado(23) e da própria ideia de que a pessoa humana é o centro dos fins que devem ser perseguidos pelos poderes públicos, e se reconhecendo – e ao mesmo tempo se garantindo – os direitos invioláveis do homem, passou-se a discutir quais espaços encontram-se protegidos de indiscrições externas.(24)
Uma compreensão filosófica – que se pretenda consentânea com o modelo de Estado Democrático de Direito – permite inferir que sem intimidade não haverá nada, porque desprotegidos estarão todos os demais direitos de personalidade(25) que se radicam da liberdade, antes, hoje e sempre, o direito inerente à condição e à dignidade humana mais fundamental.(26) O termo intimidade tem sua raiz etimológica no vocábulo latino intimus, que, no dizer de Pérez Luño (2012: 91), evoca “la idea de lo más interno o recôndito”. “Intimidad”, afirma Luño, "será la interioridad de la persona, como disposición peculiar del ser humano a la introspección, a lo recóndito y secreto. No en vano el término germano 'Geheim', es decir, lo secreto o reservado, evoca etimológicamente aquello que se encierra en el hogar; y tiene su correlato en el adagio inglés: 'My home is my Castle'.”
Intimidade é também um direito raiz, na medida em que alimenta e confere racionalidade a muitos outros direitos. Sem intimidade – inclusa a confidencialidade – não há liberdade, fica obstado o desenvolvimento da personalidade. Da intimidade extrai-se a autonomia de agir, corolário também da liberdade. Verdadeira virtude, a intimidade, como é da essência socioexistencial do ser humano, não é, no seu exercício, um direito absoluto. O interesse público poder-lhe-á impor limitações, mantida sempre intocada a sua parcela essencial, que não interesse ao domínio público. Isso levou Benjamin Constant a afirmar que há uma parte da existência humana que, necessariamente, tem que se manter individual e independente e que fica, por direito, fora de toda a competência social (B. Constant, 1997).
A perspectiva filosófica, ligada à ideia de isolamento, deixou-se progressivamente transpor, em suas projeções jurídicas, para a esfera das relações sociais. Pérez Luño (2012, p. 92) observa que
“Un concepto de la intimidad que no trascendiera al ámbito de la alteridad y de la sociedad, es decir, a la esfera de la ‘con-vivencia’, carecería de relevancia jurídica. El problema de la intimidad se plantea con respecto a las manifestaciones o incidências exteriores de o en nuestra vida privada, cuyo ejercicio se halla garantizado jurídicamente. Eso muestra que el problema de la intimidad como tal o es un problema jurídico o no existe; se trata de un problema jurídico que, por supuesto, tiene una raíz filosófica, pero que en el momento en el que incide en relaciones con los demás, o sea, cuando empieza a ser problemático deviene jurídico.”
A doutrina desenvolve-se hoje a partir de uma concepção aberta, dinâmica e ativa de intimidade, marcada pela possibilidade de conhecer, concordar e controlar as informações de cada pessoa. A nota fundamental é, pois, o controle das informações que são relevantes para cada sujeito nas suas relações com os outros, decorrência mesmo da qualidade social da pessoa, objeto de tutela constitucional, na medida em que esta pode ter legítimo direito de não revelar aos demais certos aspectos de suas relações pessoais, optando que permaneçam preservadas (no âmbito privado).(27)
Também no plano jurisprudencial, consoante noticia Pérez Luño (2012, p. 94), há um movimento no sentido da superação da "Teoria das Esferas" (Sphiirentheorie). A jurisprudência constitucional da República Federal de Alemanha, abandonando a abstração irreal de determinadas concepções e regulações normativas do direito de intimidade, inclina-se hoje para um sistema de tutela dos dados pessoais baseada na "intensidade social" da conduta, levando em conta que todo comportamento, para ter relevância jurídica, precisa possuir uma dimensão social, "sino en los valores e intereses, públicos y/o privados, que pueden contraponerse al deseo de la persona concernida de mantener sus datos en un plano de reserva".
Essa é a equação que se apresenta. Se levarmos em conta que o direito de intimidade está preordenado sempre à tutela das faculdades de autodeterminação do sujeito, mas não de um sujeito isolado, irreal e abstrato, produto de uma antropologia individualista, senão que do cidadão concreto que exerce sua intimidade no meio social e perante o poder público,(28) a solução deverá passar necessariamente pela análise da tradição jurídica contida no direito positivo, esforço que pressupõe uma breve e superficial incursão sobre o Direito de Privacidade na ordem jurídica.
No plano internacional há uma prolixidade de textos jurídicos reconhecedores dos referidos direitos. Ficamos com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que, no seu art. 12, diz: “Ninguém será objeto de ingerências arbitrárias em sua vida privada, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques a sua honra ou a sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências e ataques”.
Depois, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais reconheceu o direito à intimidade, em seu art. 8º:
“Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Não pode haver ingerência de autoridade pública no exercício deste direito senão quando essa ingerência estiver prevista na lei e construir uma providência que, em uma sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
Vê-se, nesse texto de direito positivo supranacional, que as exceções limitativas do direito à intimidade somente se legitimam em hipóteses extremas e restritas.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica, em 1969, no seu artigo 11, estabeleceu preceito protetivo da vida privada:
“Artigo 11.
Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.”
Esse arcabouço de normatividade transnacional encontra-se recepcionado, na ordem jurídica interna, pelo art. 5°, inciso X, da Constituição: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. No Código Civil, art. 21, está assentado que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Importa aqui uma referência à teoria do suporte fático amplo, que tem por característica, no que agora interessa,(29) incluir “no âmbito de proteção de cada princípio de direito fundamental tudo aquilo que milite em favor de sua proteção” (Alexy, 2008, p. 322), sem que se possa falar em exclusões a priori. Em outras palavras,
“toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do ‘âmbito temático’ de um determinado direito fundamental deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de proteção, independentemente da consideração de outras variáveis. A definição é propositadamente aberta, já que é justamente essa abertura que caracteriza a amplitude da proteção.” (Silva, 2009, p. 111)
Muito embora haja dificuldade em estabelecer um conceito unitário para a miríade de situações abrangidas pelo (ou que deveriam estar contidas no) suporte fático do direito à vida privada, deve-se lembrar, sobretudo no âmbito dos avanços da informática, a pertinência de atentar à chamada teoria do mosaico, cujo conteúdo, desenvolvido por Fulgêncio Madrid Conesa (apud Chebab, 2012), tem a seguinte configuração:
“Existen datos a priori irrelevantes desde el punto de vista del derecho a la intimidad y que, sin embargo, en conexión con otros, quizá también irrelevantes, pueden servir para hacer totalmente transparente la personalidad de un ciudadano, al igual que ocurre con las pequeñas piedras que forman los mosaicos, que en sí no dicen nada, pero que unidas pueden formar conjuntos plenos de significados.”
Dito de outro modo: não se pode “considerar os dados de forma isolada, mas, sim, a partir de uma perspectiva integrada”, já que “há casos em que dados (informações) aparentemente triviais podem, no âmbito de uma combinação de dados aparentemente aleatórios, implicar uma lesão do direito à privacidade” (Sarlet, 2006, p. 394). É preciso ter em mente, nesse contexto, a época em que se vive, cujo traço mais característico – diz Antonio Enrique Pérez Luño (2005, p. 351) – é, justamente, “la progresiva publicación de la vida”.
No polo oposto, constitui princípio regente da Administração Pública a publicidade (art. 37, caput), sendo que o art. 5º, XXXIII, estabelece o direito de todos à obtenção de informações “de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”.
A publicidade, segundo Uadi Lammêgo Bulos (2001, p. 579), “tem por escopo manter a total transparência na prática dos atos da Administração Pública” e deve ser encarada, bem por isso, como uma “preocupação constante no Estado de Direito” (Bastos; Martins, 1992, p. 45). Em outras palavras,
“a realização do princípio da publicidade constitui-se em um dever da Administração e se complementa com o direito à informação do cidadão. Dessa conjugação, tem-se a satisfação dos demais princípios que regem a Administração Pública. Constata-se que a Administração agiu ao amparo da legalidade e da eficiência, princípios estes que se prestam à realização do Estado Democrático de Direito.” (Ruaro; Limberger, 2012, p. 206)
Não se deve confundir, entrementes, curiosidade do público com interesse público, como, aliás, recentemente advertiu Cláudio Chequer em artigo jornalístico, ocasião em que esgrimiu com interessantes considerações com respeito à decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que, em situação envolvendo a publicação de fotografias da Princesa Caroline de Mônaco,
“diferenciou os casos que materializam, de um lado, a veiculação de notícias políticas ou de outras notícias públicas importantes, das hipóteses que evidenciam, de outro lado, a divulgação de meros comentários sobre celebridades, considerando que esses últimos tipos de matéria, por ofenderem mais comumente a privacidade, devem ser menos protegidos pela liberdade de expressão.” (Chequer, 2012)
É interessante sublinhar, ainda, o risco que implica interpretar a expressão interesse público como um fim em si mesma. É que tal noção, muito embora possa legitimar um agir estatal restritivo, reclama, sempre, o respeito e a compatibilização com o interesse privado, sendo que, antes deste teste, “não há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público sobre o particular” (Ávila, 1998, p. 178).
Compreende o núcleo substancial do direito subjetivo à vida privada, no que interessa ao presente trabalho, manter na intimidade (sob sigilo) o salário recebido, mesmo quando seja ele pago pelo Estado, protegendo a pessoa que o receber da curiosidade de terceiros. Diz-se que o valor pago pelo empregador a um trabalhador só a ele interessa. Salário não é diferente de renda, de patrimônio e de lucro para fins de publicidade. E estes últimos são, em princípio, sigilosos. A divulgação irrestrita do salário de um servidor público que possa, por seus méritos, ter ingressado em um dos poucos cargos bem remunerados em relação à média nacional ou que, por outro lado, embora com notória capacidade, perceba tão ínfima remuneração implica a publicização de um dado que se compreende na vida privada desse funcionário, expondo-o a uma situação desconfortável sem que haja um motivo relevante para tal, como a suspeita da prática de um crime ou infração administrativa. Sem contar que poderá tanto despertar a inveja e a cobiça como envergonhá-lo diante de seus pares e no seu ambiente social. Justo por isso, a tradição jurídica tornou esta informação sigilosa à mera curiosidade pública, salvo por autorização judicial.(30)
5 As (in)determinações do direito nos tribunais: um terreno fértil, mas ainda escorregadio
Há que se fazer, por fim, breves considerações a respeito da orientação jurisprudencial que tem prevalecido acerca da matéria, lembrando que é fundamental o papel dos tribunais na estabilização das expectativas sociais depositadas nesta relevante questão da transparência, a demandar uma solução pautada pela hermenêutica constitucional.
A matéria posta já foi enfrentada em algumas oportunidades pelo STF. Talvez a principal delas tenha sido nos autos do Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.902, de relatoria do Ministro Ayres Britto. Citamos, à pesquisa, a ementa do julgado:
“SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem a do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmo; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§ 6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O ‘como’ se administra a coisa pública a preponderar sobre o ‘quem’ administra – falaria Norberto Bobbio –, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos.” (SS 3902 AgR-segundo, Relator(a): Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 09.06.2011)
No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a questão não está pacífica. No Agravo de Instrumento nº 5012555-92.2012.404.0000, a e. Terceira Turma entendeu, por maioria, preponderar o direito à privacidade;(31) já a e. Quarta Turma, nos autos do Agravo de Instrumento nº 5013114-49.2012.404.0000, julgado na sessão do dia 13.11.2012, deu provimento ao agravo de instrumento manejado pela União e, assim, determinou a divulgação dos respectivos salários nominalmente.
A Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em decisão publicada no dia 08 de janeiro de 2013, entendeu pela prevalência, no caso concreto, do direito à intimidade ou privacidade. Senão, vejamos o teor da ementa:
“MANDADO DE SEGURANÇA. LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO. LEI Nº 12.527/2011. INEXISTE PREVISÃO LEGAL PARA PUBLICAÇÃO NOMINAL DOS VENCIMENTOS DE SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO À INTIMIDADE OU PRIVACIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A Lei de Acesso à Informação – Lei nº 12.527/2011 – dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º e no inciso II do § 3º do art. 37, ambos da Constituição Federal. 2. A finalidade da norma é assegurar às pessoas naturais e jurídicas o direito de acesso à informação de interesse coletivo ou geral, observados os princípios da administração pública, da inviolabilidade da vida privada e da intimidade do servidor público. 3. A publicação dos rendimentos dos servidores públicos com identificação nominal caracteriza ofensa a direito protegido constitucionalmente.” (TRF4, MS nº 0008248-83.2012.404.0000, Corte Especial, Des. Federal Tadaaqui Hirose, por maioria, D.E. 08.01.2013)
Entendeu o Tribunal citado que, a despeito da existência de relevantes precedentes determinando a divulgação nominal dos vencimentos de cada um dos servidores públicos, inclusive do órgão administrativo de cúpula do Poder Judiciário, não há previsão legal para a publicação dos salários dos servidores públicos em lista nominal identificada.
Os julgados referidos, em maior ou menor medida, adotaram como razão de decidir a ponderação entre os direitos fundamentais que compõem a relação dialética polarizada, optando pela prevalência de um deles.(32) A decisão do Supremo Tribunal Federal, embora procure esgrimir com a inexistência de violação à vida privada dos servidores, o faz em nome da primazia do interesse público, caindo na armadilha gnosiológica ponderativa. Acaba dizendo mesmo que a “prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo” e constrói seu raciocínio todo sobre a prevalência do interesse público, que reputa mais relevante do que a vida privada dos servidores públicos (aí ponderou, pesou e tudo mais!), arrematando que “a negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública”.(33)
No ponto, vão nossas diferenças. Não conseguimos superar a superficialidade da ideia de ponderação e admitir que o juiz, não se sabe com base em que critério (que não seja solipsista!), possa “pesar axiologicamente” os direitos fundamentais à margem da razão normativa do direito, escancarando notável deficiência democrática. Pensamos que a hermenêutica filosófica de Gadamer, trabalhando a compreensão a partir do círculo hermenêutico, da fusão de horizontes e da diferença ontológica, responde melhor a este dilema, acoplando-se à contribuição de Dworkin expressa na teoria da integridade e da coerência, de modo a conferir dignidade superior e cogente aos princípios constitucionais.(34)
A recursividade aos princípios e aos seus padrões estabelecidos e conhecidos historicamente(35) não nos permite a variação de sentido pretendida, que, de rigor, revela-se desnecessária.
O princípio da proporcionalidade não tem (e não pode ter) o mesmo significado que tem para a teoria da argumentação jurídica, que a dito princípio empresta a fórmula mágica de resolver colisões de princípios a partir da ponderação de valores. Com efeito, diz Lenio Streck (2011, p. 14),
“para a hermenêutica, o princípio da proporcionalidade é (apenas) um modo de explicar que cada interpretação – que nunca pode ser solipsista – deve ser razoável, isto é, deve obedecer a uma reconstrução integrativa do direito (e da legislação), para evitar interpretações discricionárias/arbitrárias sustentadas em uma espécie de ‘grau zero de sentido’, que, sob o manto do caso concreto, venham a estabelecer sentidos para aquém ou para além da Constituição (veja-se que o próprio Habermas admite o uso da proporcionalidade, se esta ocorrer nos espaços semânticos estabelecidos nos discursos de fundamentação, que têm em uma Constituição democrática o seu corolário).”
Ao que pensamos, as máximas do princípio da proporcionalidade – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – são etapas necessárias ao conhecimento no sentido de evitar, no círculo hermenêutico, compreensões discricionárias/arbitrárias que partam de um grau zero de sentido e que, no caso posto, possam estabelecer sentidos que desbordem, para mais ou para menos, dos princípios constitucionais. A terceira máxima, embora não autorize qualquer ponderação, na perspectiva da hermenêutica filosófica, constitui elemento da razoabilidade e revela-se importante a modo de condicionar o equilíbrio entre os interesses contrapostos (o público e o privado, na hipótese), interditando o excesso. Constitui, pois, a essência da fusão dos horizontes do texto e do intérprete, mediada pela historicidade (a existência do ser-aí), atuando como limite dos seus projetos de sentido.
De fato, descendo ao caso, verificamos, sem dificuldade, que a divulgação nominal dos salários é adequada ao fim a que se propõe, qual seja, a publicidade. Quanto a isso, não parece existir maior controvérsia. Em segundo lugar – e aqui reside o ponto de estofo da discussão –, temos que a medida adotada é desnecessária aos fins almejados (repetimos, publicidade e controle dos gastos públicos). Note-se que uma medida é necessária apenas quando “a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite em menor medida o direito fundamental atingido” (Silva, 2004, p. 38). Cuida-se, a toda evidência, de um conceito relacional, o mesmo é dizer, um conceito que exige uma comparação. A propósito, a lição de Carlos Bernal Pulido (2007, p. 741):
“En todo caso, el subprincipio de necesidad implica la comparación entre la medida adoptada por el Legislador y otros medios alternativos. En esta comparación se examina si alguno de los medios alternativos logra cumplir dos exigencias: en primer lugar, si reviste por lo menos el mismo grado de idoneidad que la medida legislativa para contribuir a alcanzar el objetivo inmediato de esta última; y, en segundo lugar, si afecta negativamente al derecho fundamental en un grado menor. Si existe algún medio alternativo que llene estas dos exigencias, la medida legislativa debe ser declarada inconstitucional.”
Nesse sentido, sem a necessidade de recursividade à ponderação (proporcionalidade em sentido estrito), foi a conclusão a que chegou o Juiz Federal Roger Raupp Rios, ao decidir a medida liminar na ação ordinária nº 5043799-79.2012.404.7100, distribuída à 4ª Vara Federal de Porto Alegre/RS (decisão recentemente confirmada em sede de sentença de mérito), verbis:
“O que se deve indagar é se, para atingir-se a transparência, é efetivamente necessária a divulgação nominal de todos os agentes públicos com suas respectivas remunerações (vencimentos e todas as vantagens, permanentes ou individuais, eventualmente pagas), o que significa realizar um juízo de proporcionalidade entre meios e fins. Sendo assim, não se pode admitir indiscriminadamente que, para que se atinja a transparência, deve-se divulgar de forma irrestrita toda e qualquer informação atrelada à divulgação dos nomes de todos os servidores, entendidos estes em sentido amplo. Pretende-se demonstrar, pois, que existem outras formas de aplicação da Lei nº 12.527/2011 que não diminuem o princípio da publicidade e que, ao mesmo tempo, não sacrificam desnecessariamente o direito à intimidade e à vida privada.
(...)
No que se refere aos direitos envolvidos, não há dúvidas de que a divulgação nominal afeta o direito à intimidade e à vida privada, invocando-se até mesmo preocupações com o direito à segurança física e patrimonial dos agentes públicos (como registrou o STF, no julgamento da Suspensão de Segurança nº 3.902/SP).
A questão a saber é se essa intervenção, do modo como operada, é necessária e, portanto, proporcional, para que se cumpra, de modo adequado, o direito à transparência. A favor da divulgação, costuma-se dizer que não é suficiente o conhecimento dos valores dos vencimentos, fixados em lei, porque os agentes públicos, em muitas oportunidades, recebem vantagens, eventuais ou permanentes, que podem ultrapassar, em muito, o próprio valor pago a título de vencimento. Daí a defesa da divulgação nominal, para que se tenha amplo conhecimento de quantos servidores de determinado órgão recebem tais vantagens e quais os seus valores. Todavia, existem outros meios menos gravosos que possam satisfazer plenamente a necessidade de transparência pública? A resposta é positiva. Em nada muda saber quais indivíduos recebem tais valores, bastando que se saiba quantos e sob que justificativa os recebem, para que a sociedade tenha pleno conhecimento da maneira como são aplicados os recursos públicos e exerça a fiscalização das contas públicas. O objetivo, sem dúvida, não é expor indivíduos, mas fiscalizar o procedimento da administração ao remunerar seus agentes. Isso pode ser verificado sem a divulgação nominal.
Existem, ao certo, muitas maneiras de realizar o direito à informação e à transparência pública, o que, evidentemente, é imperativo. Deve a Administração, nos limites da lei, escolher a melhor maneira, desde que não exponha desnecessariamente o nome de todos os seus agentes públicos a pretexto de satisfazer plenamente o princípio da publicidade, porque, como dito, trata-se de concretização desproporcional dos princípios envolvidos. Exemplificativamente, pode-se divulgar a relação de todos os cargos e respectivas remunerações, sem que conste identificação nominal, na forma do que já previa a redação originária da Resolução nº 102/2009 do CNJ, ou a substituição dos nomes pelas matrículas funcionais, conforme sugerido pelo Ministro Gilmar Mendes, então Presidente do STF, ao analisar o pedido de liminar na SS nº 3.902/SP.” (destaque nosso)
O princípio da proporcionalidade, em seu sentido filosófico, traduzido na interdição dos sentidos imposta pela historicidade do ser-aí, e a norma que dele se extrai no caso posto, diante dos argumentos deduzidos, não autoriza que a privacidade (ou a intimidade, dimensões da vida privada) seja solapada por um suposto interesse público, já que existem outros meios igualmente eficazes para promover a publicidade e o direito à informação.
Assim, considerada a situação hermenêutica e a faticidade do caso, concluímos que os princípios da publicidade e da transparência e a regra do art. 7º da Lei nº 12.527/11 (Regulamentada pelo Decreto nº 7.724/2012), tanto quanto a Resolução nº 151/2012-CNJ, bem interpretados seus textos e respectivos enunciados linguísticos (embora geminados, texto e norma não são equivalentes), não autorizam a compreensão que abala a estrutura do princípio constitucional da proteção da vida privada. O conteúdo normativo que tais textos permitem inferir – a diferença ontológica, melhor dizendo (“o ente só é no seu ser”, disse Heidegger) – é vazado no sentido de que a publicação dos rendimentos totais, com todas as vantagens e estruturas remuneratórias, sem a identificação do beneficiário, é suficiente para o efetivo controle de eventuais desvios da Administração (Chehab, 2012). Dita norma harmoniza transparência e privacidade.(36)
6 Síntese propositiva
Sobretudo, não concluir, apenas a pausa, o interlúdio, para o balanço provisório, a síntese reflexiva. Assim, encaminhamos nossa peroração imaginando que a resposta para o problema formulado demanda análise de uma complexidade de fatores. Dentre os que os limites deste ensaio permitiram focar, destacaríamos os seguintes:
Os caminhos da compreensão oferecidos pela hermenêutica filosófica permitem ao intérprete, a partir do acoplamento com a teoria dos princípios, chegar à decisão correta, que não é a verdadeira, tampouco a única possível, certamente, mas a que se pode racionalmente fundamentar em estruturas ínsitas ao conhecimento.
Se é certo que, quanto mais poder, menor é a liberdade, não menos certo é que o exercício de um cargo público, que, bem dito, nenhum poder próprio empresta a seus exercentes, não os desveste da liberdade, nem lhes solapa a condição humana, bases estruturais do direito à vida privada, direito personalíssimo (inato), inviolável, inalienável, intangível e contra todos.
Podemos comparar salário, típico dado pessoal, com informações bancárias e fiscais. O Estado pode, ainda assim com limitações – é dizer, com caráter de excepcionalidade –, tomar conhecimento de tais dados, mas, mesmo quando autorizado judicialmente a ter acesso a eles, o agente público responsável não lhes pode dar publicidade, sob pena de praticar crime. Fosse diferente, não haveria tão frequente judicialização dessa pretensão.
É paradoxal permitir a devassa financeira do funcionário público e manter sob sigilo tudo o mais que diga respeito à individualidade de qualquer pessoa, inclusive e com razão, daqueles que praticam crimes financeiros, por exemplo. Há uma ruptura que abala a integridade e a coerência do sistema de inviolabilidade como um todo, levando-o à falência, ao desaparecimento. Não haverá mais interesse em manter sigilosos outros bancos de dados em poder do Estado ou de particulares.
Coibir salários pagos ilegalmente pelo Estado (parece impossível isso, não?), embora legítimo, não passa pelo sensacionalismo demagógico e pela exposição gratuita da intimidade dos servidores públicos. Meios diversos há que podem alcançar o resultado almejado.
Nesse contexto, a solução constitucionalmente adequada e que preserva os direitos fundamentais polarizados pode ser operacionalizada pela publicação dos vencimentos dos servidores públicos (disponibilização na Internet) sem a referência nominal e sem a indicação de qualquer dado que possa facilmente identificá-los (como, por exemplo, número de matrícula, CPF, RG etc.). Com isso, harmoniza-se a necessária transparência dos atos públicos com a também imperiosa preservação da vida privada dos respectivos servidores.
Nossa proposição à solução da indeterminação concreta dos direitos em discussão não precisa ir ao nível ponderativo. Encontra, antes, na situação hermenêutica que permite a justificação racional, um conteúdo normativo principiológico que evita a colidência dos direitos que ambicionam ocupar um espaço regulatório no contexto sociopolítico. Quiséssemos solucionar o problema hermenêutico pelo princípio da proporcionalidade, ficaríamos na máxima parcial da necessidade. A escolha da alternativa compatibilizante não constitui uma ponderação. Não há um balanceamento discricionário, senão que a eleição racional de um critério que, constituindo a norma que se extrai da existência do texto e da faticidade, sem desbordar da normatividade dos princípios em confronto, cuida de preservar a integridade e a coerência do sistema.
Conquanto a ponderação constitua uma etapa da racionalidade do juízo de proporcionalidade levado ao limite, pode haver proporcionalidade sem ponderação. Ponderar é pesar ou balancear para depois escolher um dos princípios em detrimento do outro. A proporcionalidade em sentido filosófico, ao contrário, atuando na essência das estruturas prévias ínsitas ao conhecimento e à compreensão, permite ao intérprete/aplicador afastar as posições despidas de razoabilidade na fusão do seu horizonte com o do texto interpretado. A proporcionalidade está justamente na fusão de horizontes mediada pela tradição, que permite a construção da norma (resposta) correta (não a única, nem a melhor entre muitas).
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Notas
1. “Art. 7º É dever dos órgãos e entidades promover, independente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado o disposto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.527, de 2011. (...) § 3º Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1º, informações sobre: (...) VI – remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.”
2. “Art. 3º Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, os órgãos referidos no caput do art. 1º publicarão, nos respectivos sítios eletrônicos na rede mundial de computadores, e encaminharão ao Conselho Nacional de Justiça: (...) VI – as remunerações, diárias, indenizações e quaisquer outras verbas pagas aos membros da magistratura e aos servidores a qualquer título, colaboradores e colaboradores eventuais ou deles descontadas, com identificação nominal do beneficiário e da unidade na qual efetivamente presta os seus serviços, na forma do Anexo VIII.”
3. As teorias normativas não admitem incompatibilidades abstratas (Ferrajoli), enquanto as teorias descritivas as aceitam, embora limitem muitíssimo o alcance dessa possibilidade. Este assunto, deveras complexo, não precisará ser enfocado nesta oportunidade. Ficamos na zona do consenso: são remotas as incompatibilidades abstratas e comuns as incompatibilidades na aplicação concreta dos direitos fundamentais. E a que temos é concreta, refletindo uma indeterminação do direito!
4. Dimitri Dimoulis revisou sua posição neste sentido, justamente por encontrar um problema prático no exercício do direito à vida privada (art. 5°, inc. X, da Constituição), que não tem reserva legal. Temeroso de que o entendimento da liberdade plena pudesse representar um salvo conduto para o arbítrio do Executivo e do Judiciário, quando precisam solver, por exemplo, o conflito entre o direito de privacidade e o direito de informação, preferiu admitir limites sistêmicos (Dimoulis, 2006, p. 89-90).
5. As teorias descritivas, nomeadamente as conectadas ao realismo jurídico, conferem ao juiz, na solução das incompatibilidades, uma ampla margem de discricionarismo para balancear (ponderar) os princípios colidentes, determinando qual deve prevalecer no caso concreto. Disso resulta a incerteza quanto ao resultado de subsequentes ponderações em casos futuros.
6. A obra de Alexy está baseada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão (BVerfGE) no período conhecido como jurisprudência dos valores, que somente adquire sentido quando conectada com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração supralegais ou pré-positivos subjacentes às normas legais, dizem seus corifeus, e para cuja interpretação e complementação se deve lançar mão.
7. Ver, a propósito, Pedron (2008).
8. “Uma tal pesagem e ponderação, no seio do TCF também designada como ‘Jonglieren’ (‘fazer equilibrismos’), carece de padrões racionais e vinculativos. Também a invocação da ordem de valores dos direitos fundamentais ou da Lei Fundamental se limita a afirmar um padrão, mas não o pode comprovar. Por isso, o controle da proporcionalidade em sentido restrito corre sempre o perigo de fazer valer os juízos subjetivos e os pré-juízos daquele que controla, apesar de todos os esforços de racionalidade. Não é justificável o fato de o Tribunal Constitucional Federal, que exerce o controle, colocar os seus juízos subjetivos acima dos do legislador controlado. Pelo contrário, nos casos em que apenas podem ser emitidos juízos meramente subjetivos, aí começam o âmbito e a legitimidade da política. A proporcionalidade em sentido restrito tem um valor posicional totalmente diferente na Administração e na jurisprudência que controla a Administração; o legislador é tão livre de autorizar a Administração, apesar de todos os esforços de racionalidade, a uma pesagem e ponderação, em última análise subjetiva, como a jurisprudência é livre para colocar o seu juízo subjetivo acima do da Administração.” (Pieroth; Schlink, 2012, p. 142)
9. Lenio Streck, teórico da hermenêutica filosófica e um dos críticos mais consistentes da ponderação de Alexy, diz que o problema é saber como é feita essa “escolha”, que representa um caminho aberto para a arbitrariedade e a repristinação da discricionariedade positivista. “Tanto os processos de justificação interna como externa ficam prejudicados, encobertos em sua racionalidade argumentativa. Na justificação interna, adota Alexy uma postura ‘lógico-analítica’, e na justificação externa as ‘premissas são extraídas diretamente do direito positivo’, ou seja, busca essa justificação na moral, utilizada por Alexy na sua ‘teoria argumentativa’, uma função corretiva do direito – a moral está no direito (Habermas), mas não corrige o direito. Valores e princípios não disciplinam sua própria aplicação, e o sopesamento, portanto, ficaria sujeito ao arbítrio daquele a quem se delega a ponderação, o juiz.” (Streck, 2011, p. 231-242)
10. “Assim sendo, a proporcionalidade stricto sensu na acepção principiológica não só carece de ‘critérios seguros que possam afastar a discricionariedade de seu aplicador’, mas também é uma construção irracional, dada a impossibilidade jurídica de quantificar e comparar os direitos fundamentais, decidindo qual possui maior ‘peso’ ou importância no caso concreto. Como acreditar que um juiz possa comparar de forma confiável a ‘valia’ de um direito e a ‘desvalia’ do outro ou que tenha a capacidade de avaliar se um direito possui ‘peso suficiente’? Nem a doutrina nem o Poder Judiciário são detentores de uma balança de precisão (‘ponderômetro’!) que permitiria medir e comparar direitos. Persistir em tal crença, como o faz parte da doutrina, aplaudida pelos órgãos da justiça constitucional, que veem na proporcionalidade stricto sensu um meio para ampliar seus poderes de criação do direito, prejudica a credibilidade da dogmática jurídica e a estrutura do Estado constitucional.” (Dimoulis; Martins, 2012, p. 213)
11. “Esta terceira ‘etapa’ de aplicação da proporcionalidade não é unanimemente aceita na doutrina alemã. Alguns consideram uma etapa com alto grau de subjetividade e, por isso mesmo, imprestável para servir de critério de monitoramento da atividade parlamentar, seja a ponderação estritamente axiológica, seja aquela que leva em consideração aspectos fático-concretos. (...) Efetivamente, a ponderação ou otimização a ser realizada nesta etapa do processo de monitoramento da atividade do legislador não oferece critérios seguros ou objetivos que possam afastar a discricionariedade de seu aplicador. Levada às últimas consequências, pode acabar por, sutilmente, substituir a discricionariedade do legislador pela do aplicador do mandamento da proporcionalidade. Merece maior preocupação o desenvolvimento de uma teoria acerca do controle da racionalidade desta fase (o que envolve, certamente, o problema da hermenêutica da Constituição e concepções de Direito).” (Tavares, 2012, p. 782-3)
12. “A proporcionalidade em sentido estrito (ou teste de exigibilidade) tem racionalidade duvidosa, razão pela qual é rejeitada no presente ensaio como elemento constitutivo necessário do exame da proporcionalidade, a despeito da opinião dominante tanto no Brasil quanto na Alemanha. Nada obstante todas as tentativas de racionalização da ponderação entre os bens jurídicos constitucionais, dentre as quais destaque-se a dogmática dos direitos fundamentais enquanto princípios, a aplicação da proporcionalidade em sentido estrito tem dado azo à usurpação da competência para a decisão política, própria de órgãos do poder legislativo, por órgãos do poder jurisdicional. A racionalidade do critério da necessidade não pode ser negada com a simples referência a uma suposta transferência da ponderação do terceiro plano da proporcionalidade em sentido estrito para o plano do exame da necessidade da medida. A grande maioria dos problemas envolvendo a justificação de intervenções estatais na liberdade individual é resolvida, senão peremptória, pelo menos heuristicamente pelo critério da necessidade. Isso ocorre em consonância com o sentido dogmático do critério da proporcionalidade e dos direitos fundamentais como um todo: o custo jurídico sofrido pela liberdade para o alcance de propósitos estatais legítimos deve ser o mínimo e ele há de ser sempre redefinido tendo em vista, de um lado, as nuances do impacto concreto da medida estatal na liberdade e, de outro, a própria redefinição jurídica da liberdade. Trata-se, portanto, de um procedimento revisional-jurídico, e não político. A medida da revisão jurídica é a decisão política suprema do constituinte transformada em norma constitucional.” (Martins, 2006, p. 227)
13. Matéria-prima a ser trabalhada pela hermenêutica, conforme se queira utilizar uma ou outra das tipologias disponíveis.
14. “No fundo, não houve grandes alterações em relação ao âmago das teorias jurídicas arraigadas ao esquema sujeito-objeto. Discursos de justificação prévia (Begründungsdiskurs) – construção teórica das teorias discursivas (especialmente Günther e Habermas) – procuram ultrapassar a decisão de origem para atingir todas as ‘situações semelhantes futuras’. Ao mesmo tempo, para evitar decisionismos decorrentes de ‘ativismos judiciais’, tais teorias buscam aliviar o juiz da carga representada pelos problemas da fundamentação da norma que aplica, isto é, a racionalidade da decisão (discurso de aplicação – Anwendungsdiskurs) do juiz já não depende do fundamento racional dessa norma, porque este ‘problema’ já vem resolvido por um discurso de fundamentação (anterior). Isso, no entanto, não ocorre impunemente. Afinal, se fosse possível uma lei (um texto jurídico transformado em uma norma) prever todas as suas hipóteses de aplicação, estar-se-ia em face do fenômeno da entificação metafísica dos sentidos. Isso, entretanto, não se corrige com ‘discursos de adequação’, como propõem Klaus Günther e Jürgen Habermas, que nada mais fazem do que reconhecer a impossibilidade filosófica daquilo que sustenta a sua própria tese. É preciso compreender que nos movemos numa impossibilidade de fazer coincidir texto e sentido do texto (norma), isto é, movemo-nos numa impossibilidade de fazer coincidir discursos de validade e discursos de adequação. É neste ponto que se dá o embate entre hermenêutica (filosófica) e a(s) teoria(s) discursiva(s).” (Streck, [s.d.], p. 7)
15. “Dito de outro modo, esse mundo prático – sequestrado metafisicamente pelas diversas posturas epistemo-metodológicas – centra-se no ‘teatro do sujeito autocentrado e desdobrado sobre as palavras possíveis, coerentes, sensivelmente concebíveis’, proporcionando um ‘grande exorcismo da realidade’, mantendo-a distanciada, ‘nada querendo saber dela’.” (Streck, [s.d.], p. 4)
16. Wahrheit und Methode (Verdade e método). A teoria do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), traduzida na hermenêutica jurídica filosófica, surge como a redenção para o problema jurídico-interpretativo, vale dizer, do conhecimento no direito, que se inclinou para um sentido de encontrar respostas elucidativas na filosofia aplicada ao direito. A reaproximação da filosofia com o direito é conseguinte a uma inevitável constatação da sua complexidade, acompanhando o fenômeno sociocultural pós-moderno que tende a superar o cientificismo, o positivismo e o dogmatismo.
17 Principalmente o seu Verdade e Consenso, obra-prima da literatura jurídica, que analisa criticamente as teorias discursivas, mostrando que não interpretamos para compreender, mas sim compreendemos para interpretar, ou melhor, compreendemos interpretando.
18. “Há uma tendência entre os modernos de separação entre conhecimento e experiência. Essa formulação, diz Steven Connor, ‘baseia-se num sentido da separação inerente entre experiência e conhecimento, uma crença de que, quando experimentamos a vida, só podemos compreendê-la parcialmente e de que, quando tentamos compreender a vida, deixamos de experimentá-la de fato’. De acordo com esse modelo, o ato de conhecer está sempre condenado a chegar tarde demais à cena da experiência. Boa parte do trabalho crítico e teórico na filosofia e nas ciências sociais nos últimos vinte anos nos dá motivos para suspeitar dessa separação, razão para especular sobre se o conhecimento e a experiência não poderiam ser integrados num contínuo muito mais complexo. Pode ser que a experiência sempre seja, senão realmente determinada, ao menos interpretada de antemão pelas várias estruturas de compreensão e de interpretação vigentes em momentos particulares de sociedades particulares e em diferentes setores dessa sociedade. Na verdade, a própria relação que se afirma haver entre experiência e conhecimento também pode ser reflexo dessas estruturas de conhecimento e de compreensão. Disso se concluiria que a nossa atual maneira de conceber a oposição entre experiência e conhecimento, como, por exemplo, uma distinção entre transiência e fixidez, também tem sua origem e história em estruturas particulares de conhecimento.” (Connor, 2004, p. 11)
19. Envolvendo a tradição, a história efeitual (consciência da historicidade) e a experiência.
20. De certa forma, a fusão de horizontes de Gadamer se aproxima da interpretação criativa de Dworkin, não ficando adstrita à elucidação da vontade do autor do objeto interpretado, mas incluindo também a intenção do intérprete.
21. Em Dworkin, a discricionariedade é própria de um modelo de regras que – preso a uma simples imagem do direito– não consegue perceber o caráter de “fechamento” – antidiscricionário, portanto – dos princípios, ao passo que Alexy não vê discricionariedade no modelo de regras, mas sim nos próprios princípios que – como mandados de otimização – entram constantemente em colisão (Cf. Oliveira, 2008, p. 191).
22. Paradoxalmente, constitui abertura para fechamento, na medida em que os princípios possibilitam uma abertura a que o juiz encontre a resposta correta, mas um fechamento operacional porque do sentido histórico – é dizer, dos padrões estabelecidos e compreendidos, de que são exemplo os precedentes – não tem como fugir. O fechamento hermenêutico decorrente dos princípios reside no seu caráter de transcendentalidade histórica, que impede a liberdade de decisão judicial, visto que pressupõe atenção ao sentido histórico-temporal que a comunidade de princípios (Dworkin) projeta no caso posto à decisão.
23. Veja-se o interessante retrospecto trazido por Eduardo Didonet Teixeira e por Martin Haeberlin (Teixeira; Haeberlin, 2005, p. 27 e ss.).
24. Pode-se destacar, no direito norte-americano, a pioneira publicação, ainda no ano de 1890, do multicitado artigo de Samuel D. Warren e de Louis D. Brandeis, em que os autores, em reação às notícias veiculadas por meios de comunicação “relativas à contabilidade das atividades sociais de uma família de Boston, advogavam o nascimento de uma nova espécie de rompimento contratual, referente à invasão de privacidade, distinguindo-a da já conhecida hipótese de dano à reputação”, apesar da “ausência de disposições constitucionais expressamente dirigidas a tutelar a privacy”. No direito europeu, de seu turno, fala-se da gênese de tal noção nos direitos de personalidade, sendo que apenas recentemente a União Europeia regulamentou o tratamento de dados pessoais (Diretiva 95/45/CE) e a privacidade de comunicações eletrônicas (Diretiva 2002/58/CE) (Doneda, 2006: 226 e ss.). Na mesma obra, o autor traz um detalhado panorama sobre os dois principais modelos referentes à proteção de dados, quais sejam, o norte-americano e o europeu.
25. "La intimidad se halla siempre ligada a los ámbitos más auténticos de la personalidad humana. La intimidad, en esta perspectiva, tiene como condición esencial el encuentro del yo individual consigo mesmo. Se trata, en definitiva, del poder que toda persona tiene de aislarse virtual e provisionalmente del mundo, para encontrarse con lo más auténtico de su personalidad." (Pérez Luño, 2012, p. 91)
26. Para Castanheira Neves, a “dignidade pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito incondicional da sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente em comunidade e na classe.” (Neves, apud Farias, 1996, p. 49)
27. "Precisamente esa facultad de elección de la persona sobre la revelación o no de informaciones que directamente le conciernen constituye el núcleo de la autodeterminación informativa (informationelle Selbstbestimm ung) en cuanto aspecto básico de la intimidad. Esas nuevas facetas de la intimidad propias de las sociedades avanzadas requieren nuevos instrumentos de tutela jurídica. La defensa de la intimidad respecto al tratamiento automatizado de datos personales se halla garantizada por un cauce procesal denominado habeas data. Al tradicional habeas corpus corresponde en las sociedades tecnológicas del presente el habeas data, que cumple una función paralela, en el seno de los derechos humanos de la tercera generación, a la que en los de la primera generación correspondió al habeas corpus respecto a la libertad fisica o de movimientos de la persona." (Pérez Luño, 2012, p. 93)
28. Cfe. Pérez Luño, 2012, p. 95.
29. Martin Borowski (2003, p. 120), notável constitucionalista tedesco, refere que a aplicação dos direitos fundamentais se desenvolve em três etapas, quais sejam, análise do âmbito de proteção, da intervenção e da justificação constitucional da intervenção. Cumpre destacar, em especial, a abrangência do âmbito de proteção, que, para citado autor, tem a seguinte configuração: “el concepto de ámbito de protección se refiere al ámbito que abarca los bienes protegidos por un derecho fundamental. Los bienes protegidos con conductas, estados de cosas o posiciones jurídicas que se encuentran en el ámbito temático del derecho de defensa relevante en el caso”. E prossegue, distinguindo, didaticamente, entre as teorias estrita e ampla, verbis: “de acordo con la teoría estricta del supuesto de hecho, el supuesto de hecho de los derechos fundamentales aparece determinado desde el principio de una manera estricta, de tal modo que sólo se puedan presentar muy pocas colisiones con los derechos de los demás y con otros bienes colectivos que podrían hacer necesaria una restricción. Por el contrario, la teoría amplia del supuesto de hecho concibe de una manera extensa el contorno del ámbito de protección prima facie, con lo cual, tendencialmente se incrementan las restricciones que necesariamente deben imponerse a los derechos fundamentales” (Borowski, 2003, p. 133-4).
30. Minha condição de colaborador do Estado encerra paradoxos. Como ocorre todos os meses, chega às minhas mãos o chamado holerite. Vem em um envelope lacrado, e, subscrita com letras garrafais em azul, está a palavra “confidencial”. Ato contínuo, o mesmo conteúdo é publicado ao mundo via Internet. Não é isso uma contradição?
31. Os efeitos dessa decisão foram suspensos, conforme anunciado, pelo Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Reclamação 14.733.
32. É comum o próprio desvirtuamento da ponderação dos padrões argumentativos originariamente propostos por Robert Alexy. Vezes sem conta, tribunais rotulam de ponderativas decisões solipsistas e discricionárias, deturpando o verdadeiro sentido do trato ponderativo alexyano.
33. Mesmo para os corifeus da ponderação, salta aos olhos que a decisão do STF acolheu uma versão abstrata do princípio da supremacia do interesse público, tese definitivamente contraposta ao escólio de Humberto Ávila, no sentido de que o interesse público, por ser um conceito jurídico determinado, só é aferível após juízos de ponderação entre direitos individuais e metas ou interesses coletivos, feitos à luz de circunstâncias concretas (Ávila, 1998, p. 178).
34. Há uma indubitável aproximação entre a hermenêutica filosófica, no que define a tradição como formadora do modo-de-ser-no-mundo, destacando os preconceitos à compreensão do intérprete, com a ideia de integridade e coerência de Dworkin, a dispor que a decisão de um caso concreto deve guardar uma referência ao sistema jurídico como um todo, e só nessa relação é que seria possível referenciar o sentido jurídico das coisas.
35. Dworkin concebe os princípios a partir da ideia de história institucional: “Essa história institucional não é sem o ser-aí e, portanto, os limites que ela oferece aos próximos capítulos do romance em cadeia não derivam dela simplesmente, como se fosse uma realidade autônoma, independente do ser-aí humano. Só há limite porque o ser-aí é humano” (Oliveira, 2008, p. 205).
Cumpre esclarecer, consoante já advertiram Regina Linden Ruaro e Temis Limberger (Ruaro; Limberger, 2012, p. 190), que “não [se] advoga contra a publicidade dos atos da Administração pública, nem tampouco e, em decorrência desta, um retrocesso na transparência de seus atos. Mas, sim, estudar a partir de uma interpretação sistemática a compatibilidade da abertura de dados pessoais de servidores públicos com o ordenamento jurídico vigente”.
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