Resumo
A pena prevista no artigo 273 do Código Penal brasileiro é inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade. A declaração dessa inconstitucionalidade não pode ter por efeito a aplicação, por analogia, de qualquer outra pena que não seja a prevista em tipo que contenha a descrição de importação de medicamento sem autorização legal, sob pena de utilizar-se da analogia em desfavor do réu. O efeito próprio das declarações de inconstitucionalidade, bem como a proibição de o Poder Judiciário agir como “legislador positivo”, implicam considerar o contrabando de medicamento como conduta subsumível ao art. 334 do Código Penal.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Tipo penal. Preceito secundário. Declaração. Efeitos.
Sumário: Introdução. 1 Inconstitucionalidade do art. 273 do Código Penal. 2 Efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 273 do Código. Conclusão. Referências.
Introdução
A importação de medicamentos sem a autorização dos órgãos de vigilância sanitária, tradicionalmente, era considerada crime de contrabando, amoldável à figura típica do art. 334 do Código Penal.
Com o advento da Lei nº 9.677/98, que deu nova redação ao art. 273 do Código Penal, a importação não autorizada de substância medicinal passou a ser considerada crime autônomo, tendo o legislador cominado uma pena de reclusão de 10 (dez) a 15 (quinze) anos.
A mudança legislativa suscitou duas relevantes questões. A primeira, saber se é constitucional impor a quem importa um medicamento sem autorização do órgão de vigilância sanitária uma pena mínima de 10 (dez) anos de reclusão.
A segunda, caso a resposta à primeira seja pela inconstitucionalidade, é saber qual o efeito prático da declaração incidental de inconstitucionalidade, ou seja, saber qual é o tratamento penal a ser conferido a quem pratica o contrabando de medicamentos.
1 Inconstitucionalidade do art. 273 do Código Penal
O artigo 273 do Código Penal, desde que teve sua redação alterada pela Lei nº 9.677, de 02.07.1998, passou a dispor, sem destaques no original:
“Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
§ 1º-A. (omissis)
§ 1º-B. Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
(...)
V – de procedência ignorada (...);”
Como se vê, a partir de então, a pena mínima prevista para o contrabando de medicamentos passou a ser 10 (dez) anos de reclusão.
O excessivo rigor legislativo dispensado ao contrabando de medicamentos tem suscitado a declaração de inconstitucionalidade da pena cominada por ofensa ao princípio da proporcionalidade.
Sob a ótica da Política Criminal, a lei em análise surge, como tantas outras, em um contexto marcado pela necessidade de o Poder Público dar uma satisfação à sociedade, alarmada com mais um escândalo ligado à segurança pública. O escândalo da vez, no caso, foi a distribuição das chamadas “pílulas de farinha”.
Em 1998, um conhecido laboratório, para testar a eficácia de uma máquina recém-comprada, simulou a produção de um lote de pílulas anticoncepcionais em que, no lugar do sal terapêutico, utilizou-se farinha. Por razões que ora não vêm ao caso, esse lote de falsas pílulas acabou sendo indevidamente comercializado em farmácias e inúmeras mulheres engravidaram involuntariamente.
O episódio, que foi superexposto na mídia, aliado à descoberta de laboratórios clandestinos que falsificavam princípios ativos de outras substâncias medicinais, fez com que o Poder Público, uma vez mais, se socorresse da atividade legislativa terrorista,(1) com escopo meramente simbólico, para forjar a sensação de que “algo está sendo feito contra essa prática odiosa”. Afinal, estávamos em meados de 1998 e o pleito eleitoral estava próximo.(2)
Ainda que se pudesse abstrair tais considerações, o fato é que a violação ao princípio da proporcionalidade, por parte da Lei nº 9.677, de 02.07.1998, é evidente.
Sabe-se que o princípio da proporcionalidade, comum ao Direito como um todo, mas cuja importância mostra-se mais sensível no âmbito do Direito Público, caracteriza-se basicamente pela proibição do excesso.
Em simples palavras, não pode o Poder Público, diante da necessidade da restrição autorizada de um direito fundamental, restringi-lo para além do que seria necessário. Os direitos fundamentais, dentre os quais o direito à liberdade, "só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável e no mínimo necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".(3)
Não se advoga, neste espaço, a profanação do princípio da proporcionalidade, como infelizmente se tem observado. Não raro, vê-se a invocação do princípio da proporcionalidade em hipóteses nas quais o operador jurídico pura e simplesmente não está de acordo com a decisão política do legislador.
Tem-se visto, na prática, uma disseminação de declarações de inconstitucionalidade, sob o pretexto da violação do princípio da proporcionalidade – argumento amiúde aliado à violação do princípio da dignidade da pessoa humana –, quando, na verdade, o que se tem é a mera discordância do operador do direito com a decisão política do legislador.(4)
A esse respeito, compartilha-se do entendimento de Otto Bachof quando sustenta que há uma "primazia política do legislador", o que vem sendo sustentado no âmbito penal, embora em outro contexto, por Jorge de Figueiredo Dias, para quem, sem destaques no original,
“não pode ser ultrapassado o inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência de pena. Critério esse que, em princípio, caberá ao legislador ordinário avaliar e só em casos gritantes poderá ser jurídico-constitucionalmente sindicado, nomeadamente por violação ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito (v.g. quando o legislador ordinário entendesse sancionar o homicídio doloso apenas com sanções jurídico-civis; ou quando decidisse subverter por completo a ordenação axiológica constitucional, descriminalizando totalmente a lesão de valores pessoais e criminalizando de forma maciça a lesão de valores patrimoniais!”(5)
Ora, no caso em tela, está presente uma dessas hipóteses gritantes de violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a pena mínima prevista para o crime em tela ultrapassa qualquer senso de proporção em face da conduta apenada, principalmente se comparada com outras condutas muito mais graves previstas no ordenamento jurídico penal, às quais são cominadas penas bem menores.
Considere-se que a pena mínima de 10 (dez) anos ultrapassa em muito a prevista para crimes de gravidade incontestavelmente maior. Bastam dois exemplos suficientemente clamorosos: o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal) tem pena mínima de 08 (oito) anos de reclusão; e a tortura seguida de morte (art. 1º, § 3º, da Lei nº 9.455/1997), idem. Esses crimes, talvez as maiores vergonhas do gênero humano (em paráfrase a Franco Cordero), não mereceram tratamento tão duro quanto o dispensado à importação irregular de medicamento, o que desnuda a absurda desproporção da pena cominada a este último.
Os Tribunais nacionais não têm deixado passar em branco essa realidade. Há vários casos de declaração de inconstitucionalidade da pena cominada ao artigo 273 do Código Penal. Merece especial referência a ementa do pioneiro acórdão proferido no julgamento da Apelação Criminal nº 2001.72.00.003683-2/SC pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo sido relatado por Paulo Afonso Brum Vaz:
“PENAL. FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS. FORMA EQUIPARADA. ART. 273, § 1º-B, I, V E VI, DO CP. COMPETÊNCIA FEDERAL. INTRODUÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL DE COMPRIMIDOS DE CYTOTEC. PENA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. REDUÇÃO. PARÂMETRO. DELITO DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO.”(6)
O entendimento exposto nesse acórdão é dominante no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e tem sido seguido em alguns acórdãos no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Cita-se como exemplo a Apelação Criminal nº 2007.61.27000488-5.(7)
Recentemente, a 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a Apelação Criminal nº 990.09.152620-7, também com base no princípio da proporcionalidade, resolveu suscitar incidente de inconstitucionalidade do art. 273 do Código Penal ao Órgão Especial daquela Corte.(8)
Enfim, embora não seja ainda totalmente pacífica, já é amplamente dominante a aceitação da inconstitucionalidade da previsão de pena que varia de 10 (dez) a 15 (quinze) anos para o crime do art. 273 do Código Penal, por ofensa ao princípio da proporcionalidade.
2 Efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 273 do Código Penal
As decisões acima mencionadas, após declararem a inconstitucionalidade da pena cominada ao crime do artigo 273 do Código Penal, aplicaram à importação irregular de medicamento a sanção prevista para o tráfico de drogas, crime hoje tipificado no art. 33 da Lei nº 11.343/2006, cuja pena varia de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão e multa.(9)
Tal se deu com base no argumento de que haveria aí a aplicação da analogia in bonam partem. O raciocínio desenvolvido partiu do pressuposto segundo o qual seria melhor para o réu ser sancionado com a pena do tráfico de drogas do que com a pena originariamente prevista para o art. 273 do Código Penal.
Sendo assim, como o crime de tráfico de drogas ofende o bem jurídico saúde pública, tanto quanto a importação irregular de medicamentos, a pena do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 seria a mais adequada, diante da inconstitucionalidade do preceito secundário do art. 273 do Código Penal.(10)
Sem embargo da respeitabilidade e do brilhantismo da tese desenvolvida, pretende-se apresentar um contraponto procurando demonstrar que, em verdade, a aplicação da pena do crime de tráfico de drogas a quem pratica a conduta de importação irregular de medicamentos traduz-se em analogia in malam partem.
Sabe-se que a inconstitucionalidade, de acordo com a tradição doutrinária jurisprudencial brasileira, de inspiração norte-americana, é hipótese de nulidade. A norma reputada inconstitucional é nula de pleno direito, daí a razão pela qual a decisão de inconstitucionalidade tem, em regra, efeitos ex tunc, retroagindo até o nascimento da norma impugnada,(11) embora se permita ao Supremo Tribunal Federal modular esses efeitos em circunstâncias especiais.
Sendo assim, em sede de controle abstrato, a declaração de nulidade da norma inconstitucional tem o efeito de retirar a norma do ordenamento jurídico com efeitos ex tunc.
No âmbito do controle difuso, preliminarmente declarada a inconstitucionalidade de uma norma, a decisão deverá ser proferida tal qual não existisse a norma considerada inconstitucional. Em outras palavras, as instâncias inferiores do Poder Judiciário, quando concluem que uma norma é inconstitucional, por não terem o poder conferido ao Supremo Tribunal Federal, de retirá-la do mundo jurídico ab initio, devem julgar o caso desconsiderando a existência do ato normativo inconstitucional.
Quando se desconsidera a pena desproporcional cominada a um tipo, o resultado que daí se obtém é um tipo sem pena, o que equivale à inexistência de tipo, já que o artigo 5º, XXXIX, da CR/88, ao definir o princípio da legalidade penal, estabeleceu, sem destaques no original, que “não haverá crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal”.
Um tipo penal que tenha o preceito secundário considerado inconstitucional perde, igualmente, como consequência inarredável, a força normativa do preceito primário.(12) O princípio da legalidade não permite a criação, nem o empréstimo por analogia, da pena cominada a outro tipo.
A isso se soma outra característica do controle de constitucionalidade no âmbito do direito brasileiro. Ocorre que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é sólida ao proclamar que o Poder Judiciário, ao exercer o controle de constitucionalidade dos atos normativos, deve agir, tão somente, como se “legislador negativo” fosse, ou seja, extirpando a norma inconstitucional no mundo jurídico, no caso do controle concentrado, e não a aplicando ao caso concreto no caso do controle difuso. Não lhe é dado, entretanto, agir como “legislador positivo”.(13)
Sendo assim, não resta ao Judiciário, diante da inconstitucionalidade de uma norma penal, nada a fazer a não ser considerá-la inexistente, não lhe cabendo colmatar a lacuna decorrente da invalidação da norma como se “legislador positivo” fosse.
Assim agir significaria utilizar-se da analogia, o que viola o princípio da legalidade. Ocorre que, dentre as decorrências lógicas do princípio da legalidade, sobressai-se justamente o princípio da proscrição da incriminação pela analogia.
O princípio da legalidade penal é o mais importante limite imposto ao poder punitivo estatal em um Estado Democrático de Direito, e sua formulação genérica conduz à impossibilidade de o Estado intervir penalmente para além daquilo que a lei permite.(14)
Entretanto, dizer que somente por meio da lei o Estado pode definir crimes e cominar penas pode não ser suficiente. Não são poucos os exemplos históricos de amesquinhamento do princípio da legalidade mediante expedientes que, embora não o eliminassem expressamente, o transformaram em mera garantia formal, sem qualquer efetividade.(15)
Tenha-se, por exemplo, o que foi disposto no Código Penal Russo de 1926(16) e na Lei alemã sobre Analogia, de 1935.(17)
Nessa medida, para a garantia da efetividade do princípio da legalidade, sua evolução fez-se por meio da agregação de quatro adjetivos à fórmula latina de Feuerbach, os quais, a ela agregados, delimitam os corolários do princípio.
Proclama-se a vigência do princípio da tipicidade mediante a afirmação “nullum crimen nulla poena sine lege certa”; do princípio da proscrição da incriminação por analogia, por meio da formulação “nullum crimen nulla poena sine lege stricta”; do princípio da proscrição da incriminação pelos costumes, pela fórmula “nullum crimen nulla poena sine lege scripta”; e do princípio da anterioridade, com a dicção “nullum crimen nulla poena sine lege praevia”.
A compreensão do princípio da legalidade, portanto, somente se faz possível com a compreensão de seus corolários, ganhando um Estado de Direito o apanágio de poder ser Democrático.
Considera-se analogia “o procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante”.(18)
Mediante a analogia busca-se aplicar a um caso, para o qual não haja previsão legal, uma regra prevista para a regulamentação de outra situação semelhante àquela em julgamento, utilizando-se de “um procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamentados”.(19)
Para o direito em geral, a analogia constitui-se em importante técnica de colmatação de lacunas.
Sabe-se que a inexistência de previsão legal, de regra como parâmetro de decisão, não pode conduzir à ausência de prestação da tutela jurisdicional por parte do Estado, o qual a isso se obrigou constitucionalmente.(20)
O Código de Processo Civil, a esse respeito, em seu art. 126, estabelece que “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito”.
O Código de Processo Penal, da mesma forma, em relação ao ordenamento processual penal, em seu art. 3º, prevê que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
A solução, então, é socorrer-se, dentre outras técnicas de colmatação de lacunas, da analogia, expressamente prevista, também, no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.(21) Ou seja, deverá o juiz valer-se da regulamentação de uma situação semelhante àquela em julgamento.
Sobre o tema, são esclarecedoras as palavras de Lenio Luiz Streck, para quem
“A discussão a respeito da existência (ou não) de lacunas no Direito assume relevância, basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve como forte elemento norteador e, também, como sustentáculo ao Direito visto de maneira circular e controlado; em segundo lugar, serve, igualmente, como argumento desmi(s)tificador do próprio dogma baseado no modelo napoleônico, pois pode-se entender, sem dúvida, que, quando o juiz está autorizado/obrigado a julgar nos termos dos arts. 4º da LICC e 126 do CPC (isto é, deve sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é, dinamicamente, completável, por meio de uma autorreferência ao próprio sistema jurídico.”(22)
Isso, contudo, não é válido para o direito penal. Este, ao contrário do que ocorre em geral, é um sistema descontínuo de regulamentação de condutas,(23) o que significa que só se ocupa daquelas expressamente previstas na lei, não abrindo espaço para a atividade integradora.
Afinal, em decorrência do princípio da intervenção mínima, revelam-se duas características do direito penal, as quais repelem a atividade de colmatação de lacunas. São elas a fragmentariedade e a subsidiariedade, em relação às quais Santiago Mir Puig sintetiza:
“O Direito penal deixa de ser necessário para proteger a Sociedade quando isto pode conseguir-se por outros meios, que serão preferíveis enquanto sejam menos lesivos para os direitos individuais. Trata-se de uma exigência de economia social coerente com o menor custo social. O princípio da ‘máxima utilidade possível’ para as possíveis vítimas deve combinar-se com o do ‘mínimo sofrimento necessário’ para os delinquentes. Isso conduz a uma fundamentação utilitarista do Direito penal não tendente à maior prevenção possível, senão ao mínimo de prevenção imprescindível. Entra em jogo, aí, o ‘princípio da subsidiariedade’, segundo o qual o Direito penal há de ser a ultima ratio, o último recurso a utilizar à falta de outros menos lesivos. O chamado ‘caráter fragmentário do Direito penal’ constitui uma exigência relacionada com a anterior. Ambos os postulados integram o chamado ‘princípio da intervenção mínima’.”(24)
Como o direito penal só se ocupa daquelas condutas para as quais sua intervenção mostrou-se necessária, pode-se concluir que suas lacunas são intencionais,(25) razão pela qual não se pode colmatá-las pela analogia.
Ou a conduta criminosa está prevista na lei, ou a lacuna deve permanecer íntegra, o que impõe ao aplicador do direito penal atitude passiva diante dela, ou seja, deve abster-se de integrá-la.
Decorre logicamente do princípio da legalidade, que exige a expressa previsão legal, a impossibilidade de se punir alguém com base em lei que preveja como criminosa uma outra conduta, apenas semelhante àquela praticada pelo agente.
Embora seja indiscutível a impossibilidade de se utilizar da analogia in malam partem, ou seja, para de qualquer forma impor ao réu um tratamento mais grave do que aquele expressamente previsto na lei, a analogia in bonam partem é amplamente admitida.
Admite-se a utilização da analogia, por exemplo, para estender causas de exclusão da antijuridicidade às hipóteses sem previsão expressa,(26) para ampliar o rol de escusas absolutórias,(27) atenuantes e causas de diminuição de pena.
A utilização da analogia in bonam partem, ao contrário do que possa parecer, não se constitui em violação ou mesmo em ameaça ao princípio da legalidade penal. Sua utilização, ao contrário, só reafirma a prevalência do direito à liberdade em oposição ao poder punitivo estatal, que é justamente o que visa a assegurar o princípio da legalidade.(28)
Nessa linha, afastada a aplicação do artigo 273 do Código Penal pela declaração de sua inconstitucionalidade, aplicar a pena prevista para outro tipo penal no qual não se enquadre a conduta de importar medicamento sem autorização legal significa atuar utilizando-se da analogia in malam partem.
A lacuna que o aplicador indevidamente estaria suprindo, nesse caso, não decorre, como de ordinário, da inércia do legislador, mas de sua incapacidade de produzir uma norma respeitando os preceitos constitucionais.
Além disso, é preciso asseverar que tudo isso não significa que a conduta de quem pratique ato de importação irregular de medicamento reste atípica, pela declaração da inconstitucionalidade do art. 273 do CP.
Afinal, é de se considerar outro efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma lei, que é o chamado efeito repristinatório do ato normativo anterior supostamente derrogado. Isso porque, “sendo nulo, do ato inconstitucional não decorre eficácia derrogatória das leis anteriores”.(29) Por certo que, nessa hipótese, o ato legislativo anterior àquele declarado inconstitucional não pode padecer da mesma inconstitucionalidade.
A solução, portanto, é considerar a conduta de quem importa medicamento sem autorização dos órgãos de vigilância sanitária como típica do art. 334 do Código Penal, uma vez que é um tipo genérico e abrange em sua descrição a importação irregular de qualquer mercadoria.
Conclusão
A declaração de inconstitucionalidade da pena cominada ao crime do art. 273 do Código Penal implica enquadrar a conduta de quem importa medicamento sem autorização dos órgãos de vigilância sanitária no art. 334 do Código Penal.
A razão para tanto decorre da impossibilidade de, uma vez desconsiderado o preceito inconstitucional, o intérprete criar uma pena ou utilizar-se analogicamente da pena prevista em um tipo similar para suprir a lacuna surgida com a declaração de inconstitucionalidade.
Referências
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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
Notas
1. Sobre o tema, ver: RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionalidade do direito penal do terror. Curitiba: Juruá, 1991.
2. Especificamente sobre a lei em causa, conferir: REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista dos Tribunais, n. 763, p. 415-431.
3. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 134.
4. Nesse sentido, vale a pena conferir a excelente crítica de LIMA, George Marmelstein. Alexy à brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em:<http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/>. Acesso em: 27 set. 2010: “Hoje, já existem diversas decisões do Supremo Tribunal Federal aceitando a tese de relativização dos direitos fundamentais, com base na percepção de que as normas constitucionais costumam limitar-se entre si, já que protegem valores potencialmente colidentes. Do mesmo modo, há menções expressas à técnica da ponderação, demonstrando que as ideias básicas de Alexy já fazem parte do discurso judicial. O problema todo é que não se costuma enfatizar adequadamente o último item, a saber, a necessidade de argumentar objetivamente e de decidir com transparência. Esse ponto é bastante negligenciado pela prática constitucional brasileira. Costuma-se gastar muita tinta e papel para justificar a existência da colisão de direitos fundamentais e a sua consequente relativização, mas, na hora do pega pra capar, esquece-se de fundamentar consistentemente a escolha”.
5. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 80.
7. DJF3 CJ1 DATA: 09.09.2010. Em sentido contrário: Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Apelação Criminal nº 2007.61.17003444-2, DJF3 CJ1 DATA: 12.08.2010.
9. À exceção, por evidente, da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que remeteu a questão ao Órgão Especial em incidente de declaração de inconstitucionalidade.
10. Nesse sentido, ao julgar a Apelação Criminal nº 2001.72.00.003683-2/SC, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, assim decidiu, conforme constou na explicitação da ementa, sem destaques no original: “A pena do delito previsto no art. 273 do CP – com a redação que lhe deu a Lei nº 9.677, de 02 de julho de 1998 – (reclusão, de 10 [dez] a 15 [quinze] anos, e multa) deve, por excessivamente severa, ficar reservada para punir apenas aquelas condutas que exponham a sociedade e a economia popular a ‘enormes danos’ (exposição de motivos). Nos casos de fatos que, embora censuráveis, não assumam tamanha gravidade, deve-se recorrer, tanto quanto possível, ao emprego da analogia em favor do réu, recolhendo-se, no corpo do ordenamento jurídico, parâmetros razoáveis que autorizem a aplicação de uma pena justa, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade (...). Hipótese em que ao réu, denunciado por introduzir, no território nacional, 06 comprimidos de Cytotec, medicamento desprovido de registro e de licença do órgão de Vigilância Sanitária competente (art. 273, § 1º-B, incisos I, V e VI, do CP), foi aplicada a pena de 03 anos de reclusão, adotado, como parâmetro, o delito de tráfico ilícito de entorpecentes, o qual tem como bem jurídico tutelado também a saúde pública”.
11. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 244.
12. O açodamento com que são produzidas as leis penais no Brasil já produziu tipos sem pena cominada. A Lei nº 8.212/91 trazia nas letras a, b, c, g, h, i e j do art. 95 crimes contra a seguridade social aos quais não era cominada pena alguma. Bem por essa razão, jamais produziram qualquer efeito.
13. Nesse sentido, sem destaques no original: “(...) hipótese em que, do acolhimento da inconstitucionalidade arguida, poderia decorrer a nulidade da norma concessiva da isenção, mas não a extensão jurisdicional dela aos fatos arbitrariamente excluídos do benefício, dado que o controle da constitucionalidade das leis não confere ao Judiciário funções de legislação positiva” (REx 191531/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 28.08.97, p. 40233).
14. CONDE, F. M.; ARÁN, M. G. Derecho penal. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 99.
16. “Art. 6º – Toda vez que uma ação socialmente perigosa não esteja expressamente prevista pelo presente Código, o fundamento e os limites da relativa responsabilidade inferem-se dos artigos do Código que contemplam os delitos de índole mais análoga.” (MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 321)
17. “§ 2º – É punido quem comete um fato que a lei declara punível, ou que mereça pena segundo o conceito fundamental de uma lei penal e segundo o sentimento são do povo. Toda vez que uma determinada lei penal não encontre imediata aplicação ao fato, este será punido com base na lei cujo conceito fundamental ao mesmo se adapte melhor.” (Id. Ibidem)
18. BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 6. ed. Brasília: UNB, 1995. p. 151.
19. BOBBIO, N. Op. cit., p. 151.
20. Art. 5º, XXXV, da CR: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
21. Art. 4º – “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
22. STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 90-91.
23. BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 86.
24. MIR PUIG, S. Derecho penal: parte general. 4. ed. Barcelona: Reppertor, 1995. p. 89. “El Derecho penal deja de ser necesario para proteger la Sociedad cuando esto puede conseguirse por otros medios, que serán preferibles en cuanto sean menos lesivos para los derechos individuales. Se trata de una exigencia de economía social coherente con la lógica del Estado social, que debe buscar el mayor bien social con el menor costo social. El principio de la ‘máxima utilidad posible’ para las posibles víctimas debe combinarse con el de ‘mínimo sufrimiento necesario’ para los delincuentes. Ello conduce a una fundamentación utilitarista del Derecho penal no tendente a la mayor prevención posible, sino al mínimo de prevención imprescindible. Entra en juego aí el ‘princípio de subsidiariedad’, según el cual el Derecho penal ha de ser la ultima ratio, el último recurso a utilizar a falta de otros menos lesivos. El llamado ‘carácter fragmentario del Derecho penal’ constituye una exigencia relacionada con la anterior. Ambos postulados integran el llamado ‘principio de intervención mínima’.”
25. MACHADO, Luiz Alberto. Op. Cit., p. 57.
26. O art. 128, II, do Código Penal estabelece não ser punível o aborto consentido praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Admite-se a aplicação dessa regra, por analogia, às hipóteses de gravidez resultante de atentado violento ao pudor.
27. O art. 181, I, do Código Penal estabelece não ser punível o crime contra o patrimônio, não violento, praticado contra o cônjuge. Por analogia, admite-se a extensão dessa regra às relações de companheirismo. Sobre o tema: PELUSO. V. T. P. Escusa absolutória (art. 181, II, do CP): Aplicação analógica. Boletim do IBCCrim, a. 10, n. 113, abr. 2002, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. p. 3.
28. MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Op. cit., p. 123.
29. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 249.
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