Da orientação jurisprudencial sobre o direito à pensão do menor sob guarda

Autor: Fábio Soares Pereira

Juiz Federal Substituto

 publicado em 30.08.2013



Resumo

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente determinou a proteção previdenciária ao menor sob guarda. A Lei de Benefícios Previdenciários, no ano seguinte, confirmou a previsão. Em 1996, no entanto, a lei previdenciária foi alterada, sem que houvesse modificação do Estatuto. Dessa situação, surgiu o problema: qual das leis deve ser aplicada? Prevalece, atualmente, a proteção previdenciária (especialmente o direito à pensão) ao menor sob guarda? Há intensas divergências jurisprudenciais a respeito.

Palavras-chave: Menor sob guarda. Pensão previdenciária. Regime Geral de Previdência Social.

Sumário: Introdução. 1 Situando o problema. 2 Das diversas orientações jurisprudenciais a respeito do tema. 2.1 Entendimento no âmbito dos Juizados Especiais Federais. 2.2 Entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 2.3 Entendimento do Superior Tribunal de Justiça. 3 Refletindo sobre a questão. 3.1 Da aplicação adequada à questão dos critérios para a solução de antinomias. 3.2 Interpretação a partir do art. 227 da Constituição Federal. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

Este breve estudo – escrito inicialmente como exigência de aproveitamento do Módulo Permanente de Direito Previdenciário, promovido ainda no ano de 2011 pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – foi recentemente atualizado (em julho de 2013), para fins de publicação.

O estudo estrutura-se em três capítulos. No primeiro, situa-se o problema gerado a partir da sucessão de leis que trataram da proteção previdenciária (ou não) do menor sob guarda. 

No segundo capítulo, são expostas as diversas orientações jurisprudenciais a respeito do tema. 

No terceiro e último capítulo, há um exame mais aprofundado da questão, com a proposta, ao final, do entendimento jurisprudencial tido como correto pelo autor deste breve ensaio.

1 Situando o problema

A Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91) incluía, em sua redação original, o menor sob guarda dentre os beneficiários do Regime Geral, na condição de dependente:

“Art. 16. São beneficiários do Regime Geral da Previdência Social na condição de dependentes do segurado: (...) § 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação.”

No ponto, a lei ratificava disposição constante do art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90): “A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”.

A partir da vigência da Medida Provisória nº 1.523/96 (que foi reeditada por diversas vezes, até ser convertida na Lei nº 9.528/1997), o mencionado art. 16, § 2º, da Lei de Benefícios foi modificado, sendo o menor sob guarda excluído do rol de dependentes previdenciários: “O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”.

Pela redação atual da lei, restaram protegidos, pela norma previdenciária, apenas o enteado e o menor tutelado. 

Não obstante, embora modificando a Lei de Benefícios, deixou o legislador de revogar o disposto no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, expressamente, a exemplo do que dispunha a redação original da Lei nº 8.213/91, ratifica-se, contempla a proteção previdenciária ao menor sob guarda.

A partir daí, surgiu a controvérsia: após a modificação da Lei de Benefícios, em 1996, mantém o menor sob guarda o direito à pensão pelo Regime Geral de Previdenciária Social?

2 Das diversas orientações jurisprudenciais a respeito do tema

Antes de mencionar as diversas orientações jurisprudenciais que envolvem o trato da questão, cumpre ressaltar que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não houve, até o momento, enfrentamento do tema. É provável, aliás, que assim prossiga, já que, em situações semelhantes, decidiu o Tribunal que o exame da matéria seria de competência do Superior Tribunal de Justiça, por envolver a aplicação da lei federal:

“(...) Concessão de pensão por morte a menor sob guarda da avó. 3. Controvérsia decidida à luz da interpretação dada pelo Tribunal a quo aos dispositivos legais aplicáveis ao caso (leis 7.249/98, do Estado da Bahia, e 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente). Incidência da Súmula 636. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AI 834385 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03.05.2011, DJe-095 DIVULG 19.05.2011 PUBLIC 20.05.2011)

No panorama atual, vem competindo, pois, ao Superior Tribunal de Justiça a última palavra a respeito da matéria.

2.1 Entendimento no âmbito dos Juizados Especiais Federais

No âmbito dos Juizados Especiais da 4ª Região, a matéria ainda não está sedimentada nas Turmas Recursais. Após reiterados precedentes em que restou reconhecido que ainda persistiria, nos dias de hoje, a proteção previdenciária ao menor sob guarda em decorrência do óbito do guardião (cite-se, como exemplo, o RCI 2008.72.58.003163-3, Primeira Turma Recursal de SC, Relatora Luísa Hickel Gamba, julgado em 29.04.2009), colhe-se precedente recente da Turma Regional de Uniformização da 4ª Região em sentido diverso:

“(...) O legislador foi claro ao estabelecer o rol de dependentes previdenciários, não sendo dado ao julgador ampliá-lo ou restringi-lo ao arrepio da lei, sob pena de estar atuando como legislador positivo. Precedentes do STJ. (...)” (IUJEF 0001492-48.2008.404.7162, Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Relator p/ Acórdão Fernando Zandoná, D.E. 29.05.2012)

Em direção distinta, a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência vem decidindo no sentido de “reiterar a tese da condição de dependente do menor sob guarda” (TNU; PEDILEF 00056181220104013200; Relator Juiz Federal Janilson Bezerra de Siqueira; Decisão em 29.03.2012; Publicação DOU 11.05.2012).

2.2 Entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, após intensas oscilações (veja-se, por exemplo, precedentes como a AC 0007585-47.2011.404.9999, Quinta Turma, Relator Ezio Teixeira, D.E. 06.10.2011), vem, atualmente, decidindo, por meio de suas duas turmas que tratam da matéria (5ª e 6ª), que o art. 227 do texto constitucional não faz distinção entre o tutelado e o menor sob guarda. Assim, conclui, permaneceria “como dependente o menor sob guarda judicial, inclusive para fins previdenciários” (TRF4, AC 0005806-86.2013.404.9999, Quinta Turma, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira, D.E. 05.07.2013).

De fato, de acordo com o TRF-4,

“a nova redação dada pela Lei nº 9.528/97 ao § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91 não teve o condão de derrogar o art. 33 da Lei nº 8.069/90 (ECA), sob pena de ferir a ampla garantia de proteção ao menor disposta no art. 227 do texto constitucional, que não faz distinção entre o tutelado e o menor sob guarda.” (TRF4, AC 0021754-05.2012.404.9999, Sexta Turma, Relator Néfi Cordeiro, D.E. 01.07.2013)

2.3 Entendimento do Superior Tribunal de Justiça

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a matéria encontra-se pacificada nos seguintes termos:

“É firme o entendimento neste Superior Tribunal de Justiça de que é indevida a concessão de pensão por morte a menor sob guarda nas hipóteses em que o óbito do segurado ocorreu na vigência da Medida Provisória nº 1.523, de 11.10.1996, posteriormente convertida na Lei nº 9.528/97. Precedentes.” (REsp 1328300/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., julgado em 18.04.2013, DJe 25.04.2013)

O Tribunal vem entendendo que, “após as alterações trazidas pelo art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91, não é mais possível a concessão da pensão por morte ao menor sob guarda, sendo também inviável a sua equiparação ao filho de segurado, para fins de dependência” (AgRg no REsp 1352754/SE, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª T., julgado em 05.02.2013, DJe 14.02.2013).

No mesmo sentido, pode-se citar, dentre outros tantos, os seguintes precedentes: EREsp 859.277/PE, 3ª Seção, DJe 27.02.2013; AgRg no REsp 1004357/RJ, Rel. 5ª T., DJe 05.12.2012; AgRg no REsp 1285355/ES, 5ª Turma, DJe 04.03.2013; e AgRg no RMS 30.045/MT, 6ª Turma, DJe 21.11.2011.

A propósito, no Superior Tribunal de Justiça, o último precedente reconhecendo a proteção previdenciária ao menor sob guarda, mesmo após as alterações legislativas promovidas a partir de 1996, remonta ao ano de 2006. Não obstante, mesmo naquele processo, em que o julgamento fora inicialmente favorável ao menor (Recurso Especial 869.635/RN, de Relatoria da Ministra Laurita Vaz, julgado em 17.10.2006), houve posterior reforma de entendimento, em sede de embargos de divergência, que restaram assim ementados:

“(...) Em consonância com julgados prolatados pela Terceira Seção deste Tribunal, a alteração trazida pela Lei 9.528/97, norma previdenciária de natureza específica, deve prevalecer sobre o disposto no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (...)” (EREsp 869635/RN, 3ª Seção, DJe 06.04.2009)

3 Refletindo sobre a questão

Um exame minimamente aprofundado da matéria demanda, pelo menos, a abordagem acerca do conflito normativo gerado a partir da sucessão de leis no tempo e, também, do alcance do art. 227 da Constituição Federal.
 
3.1 Da aplicação adequada à questão dos critérios para a solução de antinomias

A doutrina clássica, bem representada, nesse particular, por Norberto Bobbio, estabelece a existência de três critérios básicos para a solução de antinomias entre normas: cronológico, hierárquico e da especialidade. Há situações em que pode ocorrer "antinomia entre duas normas: 1) contemporâneas; 2) do mesmo nível; 3) ambas gerais"; e, ainda, em que "duas normas incompatíveis mantenham entre si uma relação em que se podem aplicar, concomitantemente, não apenas um, mas dois ou três critérios”.(1)

Em relação à dependência previdenciária do menor sob guarda no Regime Geral de Previdência Social, muito embora se perceba que os argumentos deduzidos na jurisprudência, de um lado e de outro, apontem para a resolução da questão sob a ótica do critério da especialidade (lex specialis derogat generali), criando outro problema de solução aparentemente ainda mais complicada – definir-se qual seria a norma especial entre duas normas que tratam (de forma geral) de matérias totalmente diversas: criança e adolescente e Previdência Pública –, não parece, a partir do que se passa a expor, que resida propriamente aí a solução da matéria, mas sim a partir da aplicação do critério cronológico.

As duas leis conflitantes, leis ordinárias nacionais, têm mesma hierarquia (o que afasta a aplicação do critério hierárquico). Ambas se apresentam, sob certo ângulo, gerais (uma trata, de forma geral, da previdência social; a outra, igualmente de forma geral, trata da proteção à criança e ao adolescente), mas abordam um ponto específico (ou especial): o menor sob guarda como dependente previdenciário. Daí por que tais normas gerais (art. 16, § 2º, da Lei de Benefícios e art. 33, § 2º, do ECA) também podem ser consideradas, ao menos sob esse aspecto, especiais.

Em suas redações originárias, as duas leis contemplavam a proteção previdenciária ao menor sob guarda. A primeira delas a ser editada foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (em 1990). No ano seguinte, veio a Lei de Benefícios (em 1991), confirmando expressamente o que, a respeito do tema, prescrevia o ECA. Dessa situação – ratificação de entendimento legislativo –, não surgiu, obviamente, nenhuma antinomia.

Foi após a edição da Medida Provisória nº 1.523/96 (convertida, após reedições, na ainda vigente Lei nº 9.528/1997) que a lei previdenciária (Lei nº 8.213/91) – posterior ao ECA (Lei nº 8.069/90) – foi modificada, com a exclusão do menor sob guarda do rol de dependentes previdenciários.

Diante do quadro narrado, parece inviável sustentar, validamente, sob a ótica do critério da especialidade – pois as três leis sucedidas no tempo tratam especificamente (ou especialmente) do mesmo tema –, que se mantém a proteção previdenciária ao menor sob guarda.

De fato, em se tratando de normas hierarquicamente idênticas, e não havendo especialidade de uma em relação à outra, é a ordem de vigência que define a norma prevalente.

Eis o raciocínio que se deve desenvolver para solucionar a questão: a primeira lei, lei A (ECA), diz X (menor sob guarda é dependente previdenciário para fins de pensão); a segunda lei, lei B, repete X (menor sob guarda é dependente previdenciário para fins de pensão); a terceira lei (de mesma hierarquia das leis A e B), lei C, diz Y (menor sob guarda não é mais dependente previdenciário). Deve prevalecer, assim, “Y”, como solução do conflito de normas.

Tal conclusão coaduna-se com o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42): “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

De fato, a lei posterior – que exclui o menor sob guarda do rol de dependentes – é manifestamente incompatível com as leis anteriores (embora tenha revogado apenas uma delas de modo explícito) e, bem assim, regula expressamente, de forma diversa, a matéria tratada nas leis anteriores.

3.2 Interpretação a partir do art. 227 da Constituição Federal

Para além da argumentação a respeito da aplicação do critério da especialidadeque, como recém observado, não se sustenta –, os julgados que defendem a manutenção da proteção previdenciária do menor sob guarda vêm reiteradamente invocando, na fundamentação, a previsão contida no art. 227 da Constituição Federal:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Não há dúvida de que a proteção aos direitos da criança e do adolescente, como princípio,(2) qualifica-se, nas palavras do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, como um dos “direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração, cujo adimplemento impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente em um facere" (STF, RE 482.611, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, DJE de 07.04.2010).

Ainda assim, muito embora a amplitude e a importância dos deveres impostos, pela Constituição Federal, à sociedade e ao Estado no que toca à proteção ao menor (criança e adolescente), a proteção previdenciária dos menores não foi objeto de qualquer tratamento no texto constitucional.

De fato, por mais analítica que se apresente, a Constituição Federal, mesmo que trate a previdência como um "direito social" (art. 6º) e faça expressa menção aos benefícios mínimos que devem ser cobertos pelo Estado (art. 201), não traz em seu texto o rol dos dependentes previdenciários do Regime Geral – definição que incumbe ao legislador ordinário.

É nesse quadro – ausência de disposição constitucional a respeito – que se deve compreender a inclusão (ou não) do menor sob guarda no rol dos dependentes previdenciários. Traduz-se em opção legislativa legítima contemplar ou não o menor sob guarda como dependente previdenciário, pois não há norma constitucional em sentido contrário.  

A respeito do tema, refere Humberto Ávila(3):

"Como a Constituição de 1988 é composta basicamente de regras, e como ela própria atribui, em inúmeras situações, ao Poder Legislativo a competência para editar regras legais, sempre que esse poder exercer regularmente a sua liberdade de configuração e de fixação de premissas dentro dos parâmetros constitucionais, não poderá o aplicador simplesmente desconsiderar as soluções legislativas."

Não pode o jurista, prossegue o autor, “simplesmente desconsiderar as soluções legislativas, quando encontradas no exercício legítimo do princípio democrático, mesmo que com base em princípios que pretende ‘otimizar’”.

Pelo contrário. Devem os aplicadores do Direito, ressalta Luís Roberto Barroso,(4) “acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, a segurança jurídica, a isonomia e a eficiência do sistema”.

De fato, a decisão judicial que simplesmente despreza uma opção legislativa – resultado da atribuição constitucional que compete precipuamente ao Poder Legislativo –, nas hipóteses em que a norma que trata da matéria encontra estrita conformidade com a Constituição Federal, ainda que sob o pretexto de realizar algo "em maior medida" – ou seja, concretizar em maior grau um princípio constitucional –, acaba por afrontar, reflexamente, a própria Constituição Federal, pois despreza a constatação lógica de que, em um sistema jurídico, a ponderação de princípios (e dos valores por eles estabelecidos) não é prerrogativa do aplicador do Direito; também pode (e deve, aliás) ser feita, a priori, no âmbito de conformação posto pela Constituição Federal, pela própria lei.

Deve-se sempre procurar evitar, como já ensinava Carlos Maximiliano, "não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e desse modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto ideias apenas existentes no próprio cérebro".(5)  
Pode produzir “um grave erro de interpretação”, ressaltava Francesco Ferrara, o intérprete que, “deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo ideias e princípios que são antes o fruto das suas lucubrações teóricas ou das suas preferências sentimentais".(6)

No mesmo sentido, não se pode afirmar que a exclusão do menor sob guarda do rol de dependentes previdenciários seria inconstitucional (por proibição de retrocesso), pois, para além de a proteção previdenciária do menor sob guarda não ter sido jamais determinada pela Constituição Federal (nem mesmo na mais elástica das interpretações do mandado de otimização extraído do art. 227 pode-se extrair validamente conclusão diversa), a opção legislativa encontra supedâneo lógico na natureza do instituto da guarda.

Embora não se pretenda, neste breve ensaio, revisitar, com maior profundidade, os conceitos de guarda e tutela, importante não se olvidar de que a guarda é, por expressa determinação legal, um instituto que se reveste de provisoriedade, já que "poderá ser revogada a qualquer tempo, mediante ato judicial fundamentado, ouvido o Ministério Público" (art. 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente).

A tutela, diversamente, embora também possa ser objeto de futura destituição (art. 24 do ECA), pressupõe a perda ou suspensão do poder familiar (art. 36, parágrafo único, do ECA).

Daí porque, aparentemente atento à distinção entre os dois institutos, é que o legislador, atualmente, contempla apenas o menor sob tutela, e não mais o menor sob guarda, como dependente previdenciário do Regime Geral de Previdência Social (art. 16, § 2º, da Lei de Benefícios).

Conclusões

1. O Estatuto da Criança e do Adolescente previu, inicialmente, a proteção previdenciária ao menor sob guarda, ponto em que foi acompanhado pela Lei de Benefícios Previdenciários. Em 1996, no entanto, a lei previdenciária foi alterada, sem que houvesse modificação expressa do Estatuto. Surgiu, a partir daí, um forte questionamento jurisprudencial a respeito da manutenção (ou não) do menor sob guarda dentre os dependentes previdenciários do Regime Geral. 

2. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, acompanhado, em seu entendimento, pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, vem decidindo no sentido de que o Estatuto da Criança e do Adolescente mantém-se em vigor, ou seja, o menor sob guarda ainda possui direito à pensão (dentre outros direitos, como dependente) pelo Regime Geral de Previdência.

3. Diversamente, e desde 2006, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que, após a alteração legislativa promovida em 1996, o menor sob guarda foi excluído do rol de dependentes previdenciários. A orientação está consolidada no âmbito daquela Corte Especial.

4. A partir da aplicação dos critérios de solução de antinomias, conclui-se pela aplicabilidade, no caso, a partir do critério cronológico, da lei posterior, já que todas as leis (cada uma delas, sob certo aspecto, geral) que trataram do tema (de forma especial) têm mesma hierarquia.

5. Por maior que seja a amplitude dos deveres de proteção impostos pelo art. 227 da Constituição Federal, não há como sustentar que a exclusão do menor sob guarda do rol dos dependentes previdenciários seria inconstitucional, já que a matéria não foi tratada pela Lei Maior. Estava no âmbito de conformação do legislador a possibilidade de, ao estabelecer os dependentes previdenciários do Regime Geral, atento às distinções entre os institutos da guarda e da tutela, incluir ou não o menor sob guarda.

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Notas

1. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UNB. p. 105.

2.  Trata-se de um mandado de otimização "porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida de seu cumprimento não depende apenas das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas". ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Traduzido por Manuel Atienza. Revista DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 5, 1988. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com>. Acesso em: 28 maio 2013.  

3. ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "Ciência do Direito" e o "Direito da Ciência". Revista Eletrônica de Direito do Estado (Rede), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan./fev./mar. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-17-JANEIRO-2009-HUMBERTO%20AVILA.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2011.

4. “(...) Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.” BARROSO, Luis Roberto. Retrospectiva 2008 – Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do Estado (Rede), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 18, abr./maio/jun. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 28 maio 2013.

5. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

6. FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. São Paulo: Líder, 2002. p. 25.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2013. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS