1 O hábito da leitura ou uma obsessão por livros?
O amor obsessivo pelo livro e o hábito da leitura em geral vêm de longe. No meu caso, criança não alfabetizada, ganhei um livro ricamente ilustrado com alguns contos dos Irmãos Grimm, os Grimm Märchen, que são contos infantis recolhidos pelos irmãos da tradição oral medieval, como os de Chapeuzinho Vermelho, da Bela Adormecida, etc.
Assim, embalada pelas ilustrações, adquiri um hábito central na minha vida: a leitura. Dizem que os obsessivos não esperam ler o que têm em mãos para comprar o próximo livro, vão simplesmente comprando e empilhando. Costumam ler alguns simultaneamente, o que pode ser prejudicial à boa compreensão dos textos (veja Tia Julia e o escrevinhador) ou levar a uma confusão de enredos e personagens.
Quando os assuntos são diferentes, um livro técnico jurídico e um romance, por exemplo, não haverá problemas, garanto. Não insista em leitura que não agrada. Adie o autor ou a obra. Tenho alguns adiados sine die.
Os obsessivos têm uma relação passional com o objeto – livro. A paixão tem o sentido de posse física. O estar ao alcance da mão, dos olhos, a qualquer momento do dia e especialmente da noite. Não costumam devolver os emprestados.
Desde já, esclareço que devolvo os empréstimos religiosamente.
Não se dedicam aos best-sellers. Adquirem edições diversas das mesmas obras motivados por algum detalhe como a apresentação gráfica, etc. Tenho, por exemplo, diversos exemplares dos poemas de Fernando Pessoa. O livro também tem o aspecto de “obra de arte”. Possuir alguma edição rara é sonho de consumo, não realizado. Como raros, guardo o livro de rezas da minha mãe, escrito em alemão gótico, e a Bíblia antiga com os registros familiares de nascimento e morte.
Os obsessivos guardam dentro dos livros flores murchas, folhas, cartas recebidas, transformando-os em relicários de lembranças pessoais, fazendo anotações nas margens.
Ao ler Uma vida entre livros: reencontros com o tempo, de José Mindlin (São Paulo: Edusp/Cia. das Letras, 2001), descobri que existem características comuns a unir os bibliófilos. Destaco algumas referências do citado leitor, colecionador e autor:
“Desconfio dos livros de sucesso e desses em geral. Só vou ler os que tiveram um tempo de decantação.”
“Procuro, neste assunto, ter em mente a frase de Thomas Mann, segundo a qual a leitura de bons livros deveria ser proibida, porque existem os ótimos – mas não sou tão radical.”
“Ando sempre com um livro e é isso o que me permite ler em média uns oito livros por mês [...] porque minha leitura é feita da soma de pequenos períodos.”
Um detalhe sobre este grande leitor: José Mindlin, em 1975, foi Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo, a convite do Governador Paulo Egídio, e, como tal, encaminhou a nomeação do jornalista Vladimir Herzog ao cargo de Diretor de Jornalismo da Fundação Padre Anchieta. Logo após, ocorreu o triste episódio da prisão de Herzog e seu assassinato no interior do DOI-Codi.
Mindlin estava no exterior e, ao retornar, não compartilhando com o que viu, decidiu deixar o cargo. O episódio Vladimir Herzog rendeu inúmeros livros-denúncia, livros-reportagem – são ao redor de 13 títulos – e foi o episódio que marcou, em minha opinião, a presença de uma nova magistratura federal, com a condenação da União a indenizar a família, sentença de lavra do Juiz Federal Márcio José de Moraes, hoje Desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo), mas essa é outra história. No entanto, serve de exemplo sobre a riqueza histórica que se esconde nos processos judiciais.
Ainda sobre autores bibliófilos, Ítalo Calvino (nascido em Cuba, em 1923, foi para a Itália e resistiu ao fascismo, falecendo em 1985), em Por que ler os clássicos (Traduzido por Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993), define a biblioteca ideal: “Metade dos livros que já lemos e outra metade que pretendemos ler”. Sobre clássicos, deixa-nos três definições: “São aqueles livros dos quais se ouve dizer 'estou relendo', e nunca 'estou lendo'".
Ou: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.
Ou: “São aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado”.
“São aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram.” Calvino propõe classificação heterodoxa para os livros: livros-que-não-temos, livros-caros-demais, livros-que-não-lerá, etc. – as possibilidades são infinitas no Se um viajante numa noite de inverno. Entre as funções da literatura e da leitura está a de dar sentidos ao mundo, entrelaçando a experiência do leitor com o universo ficcional. A literatura é ferramenta útil também para a compreensão do direito e ganha destaque entre os instrumentos, pois possui um modo muito especial de tocar o leitor estudioso da Justiça e das leis.
Sobre o hábito da leitura e o livro, afirmaram os escritores:
Harold Bloom, em O Cânone Ocidental, aconselha:
Pode ser um bom início e responde à indagação:
“Que tentará ler o indivíduo que ainda deseja ler, tão tarde na história? Os setenta anos bíblicos já não bastam para ler mais que uma seleção de grandes escritores do que se pode chamar de tradição ocidental [...]. Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo [...].”
O crítico cita 26 “canônicos”, iniciando com Shakespeare e Dante.
Pierre Bayard:
Classifica os livros em livros desconhecidos que apenas folheamos, livros de que ouvimos falar e livros que esquecemos. Propõe que existem formas de não leitura, dizendo que é possível falar de livros nunca lidos.
O Ministro Francisco Rezek:
“Eu posso não me lembrar do filme que assisti na semana passada, mas o que li na primeira juventude, eu recordo de páginas inteiras de cor.” Recomendou a leitura de conteúdos com relevância histórica, e não só de best-sellers sazonais. Aconselhou estabelecer prioridades.(2)
Mário Quintana:
“Dupla delícia: o livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.”
Monteiro Lobato:
“Um país se faz com homens e livros.”
“Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.”
Pablo Neruda:
No Confesso que vivi:
“Chamava-se Gabriela Mistral, nova diretora do liceu de meninas [...]. Poucas vezes a vi [...] mas o bastante para cada vez sair com alguns livros que me presenteava [...]. Posso dizer que Gabriela me iniciou nessa séria e terrível visão dos novelistas russos e que Tolstói, Dostoiévski e Tchekóv entraram na minha predileção mais profunda [...].”
Cecília Meireles:
“Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal.”
Francis Bacon:
“A leitura torna o homem completo; a conversação torna-o ágil; e o escrever dá-lhe precisão.”
Fernando Pessoa:
“A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.”
“A alma é literatura e tudo acaba em nada e verso.”
Jorge Luis Borges:
“Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca.”
“A amizade, o amor e os livros, que também são uma forma de amor [...]. Bem, não sou leitor desde 1955, quando perdi a visão [...], mesmo ano em que a Revolução Libertadora me nomeou diretor da Biblioteca Nacional [...]. Nesta ocasião escrevi o Poema dos Dons:
‘Nadie rebaje a lágrima o reproche esta declaración de la maestría de Dios, que con magnífica ironía me dio a la vez los libros y la noche. De esta ciudad de libros hizo dueños a unos ojos sin luz, que sólo pueden leer en las bibliotecas de los sueños los insensatos párrafos que ceden las albas a su afán. En vano el día les prodiga sus libros infinitos, arduos como los arduos manuscritos que perecieron en Alejandría [...].’”
Edgar Morin:
Na autobiografia Meus demônios, relembra as leituras de juventude e refere: “Um livro importante revela-nos uma verdade ignorada, escondida, profunda e causa-nos um duplo encantamento, o da descoberta da nossa própria verdade, na descoberta de uma verdade exterior a nós [...].”
Joseph Addison:
“A leitura é para o intelecto o que o exercício é para o corpo.”
Voltaire:
“A leitura engrandece a alma.”
Rubem Alves:
“O mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei.”
Bill Gates:
“Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história.”
John F. Kennedy:
“Amar a leitura é trocar horas de fastio por horas de inefável e deliciosa companhia.”
Charles W. Elliot:
“Livros são os mais silenciosos e constantes amigos; os mais acessíveis e sábios conselheiros; e os mais pacientes professores.”
Ziraldo:
“Uma criança de dez anos que lê como quem respira, que gosta de ler, que lê como quem está usando mais um, além dos seus cinco sentidos, estará preparada pra receber toda a informação de que vai necessitar para enfrentar a vida.”
O Cardeal Mazarin (séc. XVII):
No Breviário dos Políticos, joia do absolutismo, do “simula e dissimula”, aconselha: “Se alguém te surpreende quando estás lendo, finge folhear rapidamente o livro que tens em mão para evitar que adivinhem o que suscita o teu interesse”.
Moacyr Scliar, em suas crônicas:
A poesia das coisas simples diz que ler faz bem à saúde, é a melhor forma de manter o cérebro ativo, que a gente leia coisa interessante, participe em um grupo de discussão de livros e, finalmente, escreva.
Sobre os livros “de cabeceira”: “São amáveis guardiões. Eles são como nossos pais, e por isso sempre voltamos a eles”.
André Maurois:
“A leitura de um bom livro é um diálogo incessante: o livro fala e a alma responde.”
Amós Oz, no biográfico De amor e trevas:
“Comecei a ler quase sozinho [...] quando ainda era bem pequeno [...]. Até hoje estão mesclados em minha memória o cheiro de velas acesas, o de lamparina a querosene enfumaçada e a vontade de ler um livro [...]. Havia um sentimento de que as pessoas vão e vêm, nascem e morrem, mas os livros são eternos [...]. Quando eu era pequeno, queria ser livro quando crescesse. Não escritor de livros, livro mesmo [...].”
Ossip Mandelstam, em O armário de livros, descreve magnificamente a biblioteca do pai na casa de madeira na cidade de Riga alemã:
“Um envidraçado armário de livros fechado por uma cortina de tafetá verde. É desse depósito de livros que quero falar. Um armário de livros em tenra infância é companheiro do homem para toda a vida.”
Alberto Manguel, outro bibliófilo, em Uma história da leitura (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), ao comentar o aprendizado da leitura, refere que, em todas as sociedades letradas, aprender a ler tem algo de iniciação, de passagem, ritualizada para fora de um estado de dependência! Lembra que, na sociedade judaica medieval, o ritual de aprender a ler era celebrado na festa de Shavuot.(3)
Hugo de São Vitor, Mestre Hugo, filósofo, gramático e teólogo, no Didascalicon, da arte de ler, escrito em 1127 (Editora Vozes, 2001): “A leitura, portanto, é o começo do saber. O bom aluno ouve com prazer todos, lê tudo, não despreza escrito algum, pessoa alguma [...] nenhum texto há que não tenha algo a ser aproveitado, quando é lido no tempo e no modo apropriado”.(4)
Quando a escrita se disseminou pela Grécia, Sócrates teria ficado preocupado, pois os jovens deixariam de exercitar a memória e a retórica. Platão, em Fedro, diz que a escrita não seria a “verdade”, mas a “aparência da verdade”. Na oportunidade, deu-se a transição da linguagem oral para a escrita; depois, do papiro ao papel, do manuscrito ao impresso e, agora, transitamos para a era digital, uma extraordinária modificação na arte de ler e escrever.
Houve críticas sobre o hábito da leitura de romances, especialmente em relação às mulheres. Dizia-se que tais leituras narcotizavam as jovens, que poderiam adoecer e morrer. Perdiam o empenho em suas tarefas domésticas. As críticas eram idênticas às que hoje se fazem à Internet e à dependência de crianças e jovens ao seu irresistível apelo. Em artigo publicado pelo jornal Die Welt em 28.10.2012 por Felix Müller, “Als die Lesesucht die Menschen krank machte” (Quando a febre por ler adoecia as pessoas), vemos como a questão foi criticamente abordada. Foi retratada em especial pelo pintor francês Pierre Antoine Baudouin no quadro A Leitura, de 1760, em que vemos uma jovem reclinada em desalinho, livro caído da mão, papéis soltos pelo quarto desarrumado. A jovem afastada de seus afazeres domésticos, a ler e sonhar.
Livros foram proibidos, proscritos e queimados, são censurados, e já se disse que onde se queimam livros, depois se queimam homens. Um magnífico livro, Mefisto, de Klaus Mann, foi censurado na Alemanha dos anos 60. O famoso “duelo dos mortos”. A decisão judicial se manteve por 15 anos.
Outra visão sobre a leitura foi retratada por De Troy, em 1728, no quadro A leitura de Molière, em que cinco jovens aparecem absortas, e Molière, de livro na mão, lendo em voz alta. Para a época, uma demonstração da arte de viver da realeza francesa.
Hoje, o ler em público é ensinado pelos cursos de extensão da UFRGS para a formação de mediadores para programas de leitura. O mediador de leitura atua em espaços como escolas, salas de leitura e bibliotecas,(5) acompanhando, ensinando, explicando, discutindo e incentivando.
Ler é fundamental para manter as funções do cérebro, e uma memória mais eficiente pode fazer diferença na nossa vida. No momento em que chegamos ao fim de um livro, o nosso cérebro estará fisicamente modificado. Estamos enfrentando mais uma transformação na transição para a era digital. Há mudanças profundas na leitura, como faz ver a reportagem da revista Veja, edição de 19.12.2012, A Revolução do Pós-Papel – ler e escrever na era digital: lentamente, a escrita e a leitura passam a se fazer por meio de telas de vidro, o que estaria afetando a nossa maneira de pensar.
Uma declaração de amor ao universo do livro impresso partiu de William Joyce, autor de Os fantásticos livros voadores de Modesto Máximo, em que um menino apaixonado pela leitura é levado por um furacão a uma imensa biblioteca, onde passa a morar. Em entrevista para a Folha de São Paulo, em 8 de janeiro de 2013, declarou que o livro impresso jamais vai morrer. “Um livro pode ser molhado e ainda poderá ser lido. Ele pode cair no chão, e ainda poderá ser lido. Seu cachorro pode mastigá-lo, e ainda poderá ser lido. E tem mais: ele nunca ficará sem bateria.”
Michael J. Sandel, em O que o dinheiro não compra: “Embora o merchandising em livros não se tenha generalizado, o surgimento de dispositivos digitais de leitura e publicação eletrônica provavelmente deixará a leitura de livros mais perto da publicidade [...]”. Ele está se referindo aos dois modelos do leitor da Amazon, o Kindle.
O acesso ao livro é um direito cultural, conforme assegurado pelos artigos 205 e 215 da Constituição Federal de 1988, que garantem o direito à educação e o exercício dos direitos culturais para o pleno desenvolvimento das pessoas e o exercício da cidadania.
“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
A literatura e a leitura nos levam a mundos ficcionais e, assim, enriquecem a nossa vida, pois, como já disse Bobbio: “o homem é o que lembra e o que lê”.
E escrever, bem, escrever é um pouco mais difícil.
Para escrever, a lição é de Pablo Neruda:
“Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as ideias.”
Ou a lição de Cláudia Laitano, na reunião de crônicas O ego do escritor:
“Para escrever, é preciso levar o ego para passear na planície de vez em quando, variar a perspectiva e desconfiar da posse de tudo aquilo que parece definitivamente conquistado, inclusive a própria autoimagem. Porque é dessa inquietação íntima que a leitura se alimenta – e a vida interior das pessoas também.”
Ainda Neruda:
“Quando escrevi meu primeiro poema [...] muito longe na minha infância [...] senti uma vez uma intensa emoção e tracei algumas palavras [...]. Era um poema dedicado a minha mãe [...] a que conheci como tal [...] levei-a a meus pais [...] trêmulo ainda com a primeira visita da inspiração. Meu pai, distraidamente, tomou-o em suas mãos, leu distraidamente, mo devolveu dizendo – de onde o copiaste? Tinha conquistado a primeira crítica positiva.”
Clarice Lispector – Clarice na cabeceira, sobre a palavra escrita:
“O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória.
[...]
Não sei bem como se escreve. Escrever é saber respirar dentro da frase. É pôr algum silêncio tanto nas linhas como nas entrelinhas para que o leitor possa respirar comigo, sem pressa, adaptando-se não só ao seu ritmo como ao meu numa espécie de contraponto indispensável. Para se chegar pelo menos a esse ponto, o de respirar dentro da frase, me adestrei desde os sete anos de idade. [...] A pontuação é a respiração dentro da frase.”
Sobre ela, disse Alceu Amoroso Lima: “Ninguém escreve como ela e ela não escreve como ninguém”.
2 Cultura: um conceito antropológico
O conceito mais difundido de cultura é o de Edward Tylor,(6) no sentido de ser um todo complexo, que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outro hábito de leitura pelo homem em sociedade, é todo o comportamento apreendido. O homem é o único ser possuidor de cultura. A cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo, ideia desenvolvida por Ruth Benedict. Todos os sistemas culturais estão sempre em movimento, não são fixos, e a cultura condiciona a visão do mundo que temos. Todos participamos de alguma forma, alguns mais, outros menos, da nossa cultura. A cultura se difunde, inclusive no interior das instituições. Ler é escrever e é modo de difusão.
3 O mundo jurídico e o mundo das letras
O mundo jurídico e o mundo das letras têm inúmeros pontos de contato. O mundo jurídico pode ser iluminado e melhor compreendido pelas letras, podemos pensar o direito e a Justiça na obra literária.(7) Dentre as inúmeras possibilidades, abre-se agora esta, a de pesquisar, ler e escrever sobre o rico acervo de autos findos, processos de interesse histórico. Podemos juntos preservar a memória da Justiça Federal e do patrimônio cultural que constituem a imensa gama de questões debatidas e decididas nestes últimos 45 anos, e por que não desde a República?
As questões jurídicas perpassam toda a vasta competência da Justiça Federal, desde o acesso à Justiça e os direitos fundamentais até as questões de gênero. O meio ambiente, a territorialidade brasileira, as nossas fronteiras, a etnografia e a etnologia, a saúde pública, a responsabilidade do Estado, as lutas contra os excessos do poder do Estado, a previdência social e a preservação do patrimônio cultural e histórico. O acervo da instituição é riqueza inexplorada, é joia sem lapidação, e desconhecida.
A gestão dos autos findos, espécie da gestão documental, tem o escopo de preservar a memória da instituição.
Com já salientei no artigo Justiça e Memória,(8) há obras literárias construídas exclusivamente sobre registros documentais do Poder Judiciário. Steven Ozment, professor de história antiga em Harvard, escreveu o romance histórico A filha do Burgomestre em face de registros documentais de um processo judicial ocorrido em 1525, em Schwabisch Hall, na Alemanha.
Outro exemplo de relato histórico escrito tendo por base um processo judicial é a obra Um genocídio em julgamento, sobre o processo Talaat Paxá, na República de Weimar. O processo Talaat Paxá foi instaurado, inicialmente, para julgar um crime comum de homicídio a tiro disparado pelo estudante armênio Salomon Teilirian contra o ex-Ministro do Interior da Turquia, Paxá, transformando-se no primeiro julgamento por crime de genocídio. Teilirian, julgado pelo Júri da Comarca de Berlim, foi absolvido. Há registros dos depoimentos e debates promovidos entre acusação e defesa.
Entre nós, o Supremo Tribunal Federal fez publicar, em 2004, Crime de racismo e antissemitismo: um julgamento histórico do STF, com o julgado do HC nº 82.424/RS. A obra tem o inteiro teor dos votos, envolvendo o caso da publicação de um livro que fazia apologia de ideias racistas. Com a divulgação, o caso torna-se acessível ao público em geral, alheio ao mundo jurídico.
Eis aqui alguns dos prodígios resultantes da conservação e do gerenciamento do acervo de autos findos da Justiça. É a construção de pontes entre o Direito e a Literatura. É a preservação da cultura da Instituição.
Concluindo, com relação à Justiça Federal, recorro a Dworkin para lembrar que o direito é uma prática social argumentativa, que os juízes escrevem um “romance em série” e que os juízes federais são vistos como os contistas morais do País.
É ler e escrever para preservar a memória institucional, o patrimônio cultural, difundindo-se o acesso a que todos têm direito e do qual somos guardiões e artífices.
Notas
1. Parte do texto-base para a palestra proferida na Sociedade B’nai B’rith em dezembro de 2012, complementado em fevereiro de 2013.
Além dos livros citados neste texto, foram comentadas na palestra, a título de ilustração, as seguintes obras: Dormindo com o inimigo: a guerra secreta de Coco Chanel, de Hal Vaughan; Divórcio em Buda, de Sándor Márai; Os limites da lei, de Scott Turow; Crônicas de um vendedor de sangue, de Yu Hua; A lebre com os olhos de âmbar, de Edmund de Wall; Um morgado de misérias: o auto de um poeta marrano, de Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro; e Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha Nazista pelo Brasil, de Mônica Raisa Schpun.
Texto resumido foi publicado no jornal Zero Hora de 8 de novembro de 2012, com o título “Leio... releio... lerei... leremos...”.
2. Palestra proferida no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, registro na Primeira Região em Revista, a. 2, n. 21, mar. 2012. Bibliotecários comemoram os 50 anos de profissão.
3. Moacyr Scliar, em entrevista no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, referiu que o hábito de leitura deve a sua mãe, que permitia, ocasionalmente, a compra de um livro em meio à modesta vida de imigrantes despossuídos.
4. Este livro foi indicado pelo falecido Ministro do Superior Tribunal de Justiça Milton Pereira.
5. leitura@camaradolivro.com.br.
6. VELHO, Gilberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O conceito de cultura nas sociedades complexas: uma perspectiva antropológica. Espaço: Caderno de Cultura/USU. v. 2, n. 2.
7. Veja-se: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta; COPETTI NETO, Alfredo. Direito e Literatura: discurso imaginário e normatividade. Porto Alegre: Núria, 2010.
8. Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 64-66, jan./mar. 2007.'
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